Viral Justice, nem distopia, nem utopia: nóstopia

Viral Justice, not dystopia, or utopia, but wetopia

Ana Cláudia Barbosa Sobre o autor
2022

Ruha Benjamin, professora de Estudos Afro-Americanos da Universidade de Princeton, Estados Unidos, escreveu Viral Justice11 Benjamin R. Viral justice: how we grow the world we want. New Jersey: Princeton University Press; 2022. durante a pandemia de COVID-19 e a crescente violência policial contra negros. Aborda as escolhas diárias que fazemos nas interações sociais que, somadas às políticas públicas, promovem justiça social. No livro, a autora mescla sua biografia como mulher que vem de “muitos Sul’s”11 Benjamin R. Viral justice: how we grow the world we want. New Jersey: Princeton University Press; 2022. (p. 17) e exemplos de organizações da sociedade civil para mostrar que pequenas mudanças nas relações sociais podem ser tão “virais” quanto o SARS-CoV-2 e levar à equidade. Se algo invisível (o vírus) alastrou-se através do contato entre as pessoas, nossas atitudes também podem transformar relações e comunidades. Coaduna-se à ideia de Horton22 Horton R. Offline: reasons for hope. Lancet 2020; 396(10257):1057. sobre uma demanda de ações colaborativas entre países para minorar o impacto da pandemia, cultivar sociedades mais inteligentes e gentis, considerando a necessidade não só da vacina biológica, mas de uma “vacina social”, metáfora de mudança na “orientação biomédica dominante do setor saúde”22 Horton R. Offline: reasons for hope. Lancet 2020; 396(10257):1057. (p. 1057).

O livro é composto por: 1. Nota da autora; 2. Introdução, 3. Sete capítulos temáticos, 4. Agradecimentos; 5. Notas Finais; 6. Índice remissivo.

Na introdução (“The White House”), apresenta as origens do termo “justiça viral” e o propósito do livro. Pelo bem coletivo, importa estarmos precavidas/os sobre a possibilidade individualista de termos “liberdade” para não se importar. Considera incontestável a interdependência entre todos os seres vivos, processo em que forjamos padrões e práticas que podem curar ou ferir. Quanto ao racismo, julga-o um vírus que, como o SARS-CoV-2, pode matar, sendo preciso encará-lo não isoladamente, mas como algo sistêmico, conectado, construído e evitável - uma série de escolhas. “O que somos em pequena escala é como somos em larga escala... nossas práticas cotidianas definem um padrão para todo o sistema”, sem que ele seja algo “separado das decisões e ações humanas do dia a dia...”11 Benjamin R. Viral justice: how we grow the world we want. New Jersey: Princeton University Press; 2022. (p. 20-21).

No capítulo 1 (“Weather”), a autora fala do ambiente antinegro, da estressante e constante necessidade de a pessoa negra estar atenta e preparada para um ato racista, e do quanto esse clima hostil corrói sua saúde. Viver sob a égide do racismo é determinante para piores desfechos em saúde, posto que a população negra incorpora estressores que causam doenças preveníveis e morte prematura, mas nem sempre os danos são tangíveis. A autora sugere uma “mudança climática” na estrutura social, modificando nossa cultura, e a nós mesmos: “Vivemos em um jogo mortal e a regra é que haja ganhadores e perdedores. O racismo reforça esta regra. [...] Em vez de querermos mais ganhadores, devemos parar de jogar”11 Benjamin R. Viral justice: how we grow the world we want. New Jersey: Princeton University Press; 2022. (p. 51).

O capítulo dois (“Hunted”) trata do policiamento e do encarceramento em massa da população negra, resgatando o período escravocrata, em que negros e negras eram literalmente caçados, e como esta prática reverbera nas condutas policiais/judiciais atuais. E o quanto ser criminalizado é condição adversa para toda uma comunidade, pois “mesmo quando não somos a presa, nos sentimos caçados”11 Benjamin R. Viral justice: how we grow the world we want. New Jersey: Princeton University Press; 2022. (p. 63). Propõe que possamos criar estruturas que abriguem e eduquem, em vez de penalizar e matar, que o controle social defina a destinação de recursos orçamentários e que estes sirvam à comunidade. Alerta para as “tecnologias racializadas”, como o uso de reconhecimento facial na segurança pública, reproduzindo a ocupação colonial, pondo a tecnologia a favor do exercício de soberania e capacidade de determinar quem pode viver e quem pode morrer33 Mbembe A. Necropolítica. Arte e ensaios 2016; 32:123-151..

No capítulo três (“Lies”) o tema é: espaços de aprendizagem servem a um sistema antinegro e antiminorias ou buscam reverter o status quo? O título “Mentiras” vem da assunção de que o sistema educacional não é um equalizador de determinantes estruturais das desigualdades e a meritocracia é um mito. Em suas palavras, ao encobrir a verdadeira história e o legado desta, é como se diariamente perguntássemos “O que pretendemos não saber hoje?”. Discorre particularmente sobre a eugenia, marcante nas sociedades em que houve escravização do povo africano e que ainda sustenta “ideologias e normas dominantes, onde somente os que se ‘encaixam’ devem sobreviver”11 Benjamin R. Viral justice: how we grow the world we want. New Jersey: Princeton University Press; 2022. (p. 110). No Brasil, uma história foi por muito tempo contada de forma enviesada: a da cordialidade entre as três raças que nos formaram, sob o mito da democracia racial. Entender como a miscigenação esteve a serviço da eugenia é fundamental na compreensão de como chegamos às desigualdades atuais.

O capítulo quatro (“Grind”) traz o mundo do trabalho como tema, e como algumas atividades desumanizam o cidadão, que acaba “moído” pelas ideias de flexibilidade, autonomia, empreendedorismo. Aponta para a histórica diferença entre brancos e não-brancos - negros, indígenas e latinos - no quesito renda e na ocupação de postos de trabalho. Explora o conceito de gig economy, do trabalho baseado em aplicativos de plataformas online, sempre temporário, sem vínculos formais, e que na pandemia foram considerados essenciais. Este aumento à exposição ao risco da COVID-19 foi quase uma “imposição” da estrutura social, em um modelo socioeconômico neoliberal que produz iniquidades, núcleo central das determinações que levam às desigualdades (acumulação, consumo, propriedade...). Breilh44 Breilh J. Una perspectiva emancipadora de la investigación y acción, basada en la determinación social de la salud. En: Asociación Latinoamericana de Medicina Social. Taller latinoamericano sobre determinantes sociales de la salud: documento para la discusión. México, DF: Alames; 2008. p. 1-16. elucida não ser possível pensar em qualquer situação de desvantagem social sem pensar nos modos de produção, que se desdobram nas relações de trabalho.

O capítulo cinco (“Exposed”) toma como foco a saúde, particularmente o suporte obstétrico. A autora afirma que vulnerabilidade não é fraqueza, em algum momento da vida estaremos vulneráveis; porém, isso não deve nos tornar expostas/os a um sistema de saúde que prioriza a tecnologia, e não o cuidado. Compara o sistema de saúde cubano e o estadunidense, e o dever de o último aprender com o primeiro que saúde não é uma mercadoria, mas um direito, um bem comum. Considera um sistema de saúde universal uma das formas de viralizar justiça. Discute o quanto a população negra é exposta na busca pelo atendimento em saúde, do quanto o racismo (e não raça) é fator de risco à saúde, e a necessidade de os profissionais de saúde perceberem isso e agirem para derruir práticas racistas11 Benjamin R. Viral justice: how we grow the world we want. New Jersey: Princeton University Press; 2022. (p. 193). Borret et al.55 Borret RH, Araujo DHS, Belford PS, Oliveira DOPS, Vieira RC, Teixeira DS. Reflexões para uma prática em saúde antirracista. Rev Bras Educ Med 2020; 44(Supl. 1):e148. cunham o termo cuidado em saúde antirracista, propondo que este seja de fato integral, considerando o racismo parcela constituinte da subjetividade de negras/os.

No capítulo seis (“Trust”) o tema é a violência científica. “Grupos racializados são valorizados enquanto sujeitos de pesquisa e desvalorizados como pacientes”11 Benjamin R. Viral justice: how we grow the world we want. New Jersey: Princeton University Press; 2022. (p. 227). Traz como exemplos as cirurgias ginecológicas feitas sem anestesia em mulheres escravizadas por J.M. Sims, “pai da ginecologia moderna”; as células de Henrietta Lacks na Universidade Johns Hopkins; a desconfiança da população negra em relação à vacina, pelo histórico abuso de seus corpos. Aponta saídas, como maior participação comunitária nas pesquisas científicas e o fim do epistemicídio sobre os conhecimentos em saúde trazidos por negros escravizados.

No capítulo sete (“La Casa Azul”), a autora conclui o livro reforçando algumas das ideias que basearam a construção do que chama de viral justice e o chamado para “semearmos” um mundo diferente. Por vezes, a ideia de uma ação individual frente a problemas que são estruturais pode parecer insuficiente, ou reflexo de uma sociedade individualista. Todavia, ao citar organizações de luta por direitos civis que começaram com iniciativas individuais e ganharam repercussão para todo um segmento, ratifica sua teoria.

As vivências e desafios dos corpos negros estadunidenses são semelhantes aos dos brasileiros. Por aqui também é preciso pensar em iniquidades e possibilidades de relações mais justas na micropolítica cotidiana. Recomenda-se a quem quiser compreender o racismo e pensar soluções, em especial trabalhadoras/es da educação e da saúde, por protagonizarmos trocas interpessoais contínuas onde fazemos pequenas escolhas: pela iniquidade ou pela justiça.

Referências

  • 1
    Benjamin R. Viral justice: how we grow the world we want. New Jersey: Princeton University Press; 2022.
  • 2
    Horton R. Offline: reasons for hope. Lancet 2020; 396(10257):1057.
  • 3
    Mbembe A. Necropolítica. Arte e ensaios 2016; 32:123-151.
  • 4
    Breilh J. Una perspectiva emancipadora de la investigación y acción, basada en la determinación social de la salud. En: Asociación Latinoamericana de Medicina Social. Taller latinoamericano sobre determinantes sociales de la salud: documento para la discusión. México, DF: Alames; 2008. p. 1-16.
  • 5
    Borret RH, Araujo DHS, Belford PS, Oliveira DOPS, Vieira RC, Teixeira DS. Reflexões para uma prática em saúde antirracista. Rev Bras Educ Med 2020; 44(Supl. 1):e148.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    Nov 2023
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