Governança federal na construção da política de enfrentamento à COVID-19 na atenção primária à saúde brasileira

Federal governance in building the policy to combat the COVID-19 pandemic in Brazilian primary health care

Celmário Castro Brandão Ana Valéria Machado Mendonça Maria Fátima de Sousa Sobre os autores

Resumo

Este artigo objetiva descrever e analisar o processo de pactuação federal da política de enfrentamento à pandemia de COVID-19 no âmbito da atenção primária à saúde (APS). Trata-se de um estudo de análise de políticas para o qual se realizou pesquisa documental exploratória buscando identificar os registros dos debates e publicações oficiais do Ministério da Saúde acerca das políticas/orientações relacionadas à gestão e ao trabalho na APS ao longo da pandemia. À luz do referencial de governança em políticas públicas, procedeu-se à análise de conteúdo dos achados. O debate sobre o tema foi identificado em 23 reuniões/encontros oficiais, em sua maioria no âmbito da gestão, sendo menores os espaços científicos e de participação popular. No que se refere ao conteúdo das 34 publicações ministeriais, apenas 15 haviam sido discutidas previamente com outras representações institucionais. Não apenas pela pouca propensão aos debates, mas pelas contradições e ausências percebidas ao se concatenar o conteúdo das discussões e das publicações oficiais, percebeu-se evidente descoordenação central, rompimento do pacto federativo e hierarquização do modelo histórico de governança em redes no Sistema Único de Saúde, induzidos pela agenda autoritária e negacionista da Presidência da República.

Key words:
Governance in health; Primary health care; COVID-19

Abstract

This article aims to describe and analyze the process of federal agreement of the policy to combat the COVID-19 pandemic within the scope of primary health care (PHC). This is a policy analysis study for which exploratory documentary research was conducted seeking to identify the records of debates and official publications of the Ministry of Health on policies/guidelines related to management and work in PHC throughout the pandemic. In the light of the governance framework in public policies, content analysis of the findings was carried out. The debate on the topic was identified in 23 official meetings, mostly in the management sphere, with fewer scientific and popular participation spaces. With respect to the contents of the 34 ministerial publications, only 15 had been previously discussed with other institutional representations. Not only due the lack of propensity for debates, but also because of the contradictions and absences perceived when integrating the content of discussions and official publications, there was a clear lack of central coordination, as well as the rupture of the federative pact and hierarchization of the historical model of governance in networks in the Unified Health System, induced by the authoritarian and denialist agenda of the Presidency of the Republic.

Key words:
Governance in health; Primary health care; COVID-19

Introdução

Em janeiro de 2020 a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou situação de Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII), em função das infecções pelo vírus Sars-CoV-2, causador da pandemia de COVID-19. No Brasil, em 3 de fevereiro de 2020, o Ministério da Saúde (MS) declarou Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN), com o primeiro caso de COVID-19 registrado em 26 de fevereiro do mesmo ano.

Países que dispunham de uma atenção primária à saúde (APS) integrada aos demais níveis assistenciais, tais como Espanha e Portugal, demonstraram continuidade e eficiência na atenção, ao passo que o amplo escopo de serviços prestados influenciou o acesso à saúde, atenuando os impactos da pandemia11 Prado NMBL, Rossi TRA, Chaves SCL, Barros SG, Magno L, Santos HLPC, Santos AM. The international response of primary health care to COVID-19: document analysis in selected countries. Cad Saude Publica 2020; 36(12):e00183820.. A Estratégia Saúde da Família (ESF) na APS brasileira é considerada o modelo mais eficiente nas medidas de contenção da disseminação da COVID-19, por seus atributos essenciais, a saber: atenção no primeiro contato, longitudinalidade, integralidade e coordenação; e, derivados: orientação familiar e comunitária e competência cultural22 Medina MG, Giovanella L, Bousquat A, Mendonça MHM, Aquino R. Atenção primária à saúde em tempos de COVID-19: o que fazer? Cad Saude Publica 2020; 36(8):e00149720.

3 Giovanella L, Martufi V, Mendoza DCR, Mendonça MHM, Bousquat AEM, Pereira RAG, Medina MG. A contribuição da atenção primária à saúde na rede SUS de enfrentamento à COVID-19. Saude Debate 2020; 44(esp. 4):161-176.

4 Teixeira MG, Medina MG, Costa MCN, Barral-Neto M, Carreiro R, Aquino R. Reorganização da atenção primária à saúde para vigilância universal e contenção da COVID-19. Epidemiol Serv Saude 2020; 29(4):e2020494.
-55 Starfield B. Atenção primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Brasília: UNESCO, Ministério da Saúde; 2002..

De fato, a ampla rede de serviços de APS, presente em todos os municípios do país, efetivamente tem grande potencial como principal porta de entrada para o atendimento em saúde, o encaminhamento e a resolução de grande parte dos casos de COVID-19 (cerca de 80%), que são casos leves e moderados11 Prado NMBL, Rossi TRA, Chaves SCL, Barros SG, Magno L, Santos HLPC, Santos AM. The international response of primary health care to COVID-19: document analysis in selected countries. Cad Saude Publica 2020; 36(12):e00183820.,66 Gavriatopoulou M, Korompoki E, Fotiou D, Ntanasis-Stathopoulos I, Psaltopoulou T, Kastritis E, Terpos E, Dimopoulos MA. Organ-specific manifestations of COVID-19 infection. Clinical and experimental medicine 2020; 20(4):593-406.,77 World Health Organization. Report of the WHO-China joint mission on coronavirus disease 2019 (COVID-19) [Internet]. 2020. [cited 2022 dez 22]. Available from: https://www.who.int/docs/default-source/coronaviruse/who-china-joint-mission-on-COVID-19-final-report.pdf
https://www.who.int/docs/default-source/...
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Desde a Constituição Federal de 1988, e mesmo depois da criação do Sistema Único de Saúde (SUS), em 1990, foi definida uma estrutura clara de governança por meio do pacto federativo e de diretrizes nacionais relacionadas à redistribuição de recursos, à implementação descentralizada e aos espaços institucionais de participação social e negociação intergovernamental88 Abrúcio FL, Grin EJ, Franzese C, Segatto CI, Couto CG. Combate à COVID-19 sob o federalismo bolsonarista: um caso de descoordenação intergovernamental. Rev de Adm Publica 2020; 54(4):663-677.. Há registros de países que descentralizaram funções de governança na gestão da pandemia, porém que falharam na coordenação central de seus sistemas, acarretando dificuldades de acesso, alocação de recursos e qualidade de atendimento, como foi o caso de Reino Unido, França e Itália11 Prado NMBL, Rossi TRA, Chaves SCL, Barros SG, Magno L, Santos HLPC, Santos AM. The international response of primary health care to COVID-19: document analysis in selected countries. Cad Saude Publica 2020; 36(12):e00183820..

No Brasil, embora diversos trabalhos apontem a mesma ausência de coordenação central11 Prado NMBL, Rossi TRA, Chaves SCL, Barros SG, Magno L, Santos HLPC, Santos AM. The international response of primary health care to COVID-19: document analysis in selected countries. Cad Saude Publica 2020; 36(12):e00183820.,88 Abrúcio FL, Grin EJ, Franzese C, Segatto CI, Couto CG. Combate à COVID-19 sob o federalismo bolsonarista: um caso de descoordenação intergovernamental. Rev de Adm Publica 2020; 54(4):663-677.

9 Sodré F. Epidemia de COVID-19: questões críticas para a gestão da saúde pública no Brasil. Trab Educ Saud 2020; 18(3):e00302134.
-1010 Mendes A, Melo MA, Carnut L. Análise crítica sobre a implantação do novo modelo de alocação dos recursos federais para atenção primária à saúde: operacionalismo e improvisos. Cad Saude Publica 2022; 38(2):e00164621., não foram identificados estudos que aprofundassem um olhar geral sobre a governança federal na gestão da pandemia de COVID-19 no âmbito da APS. Entende-se por governança a maneira pela qual o poder é exercido na administração dos recursos sociais e econômicos de um país, visando seu desenvolvimento, o que implica na capacidade dos governos de planejar, formular e implementar políticas e desenvolver suas funções1111 World Bank. Governance and development. Washington: World Bank;1992.,1212 Santos MHC. Governabilidade, governança e democracia: criação de capacidade governativa e relações executivo-legislativo no Brasil pós-constituinte. Dados 1997; 40(3). DOI: https://doi.org/10.1590/S0011-52581997000300003.
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De modo a contribuir com a compreensão acerca de tal governança, este artigo descreve e analisa o processo de pactuação federal da política de enfrentamento à pandemia de COVID-19 no âmbito da APS brasileira.

Método

Trata-se de um estudo de análise de política, ou seja, um estudo do “governo em ação”1313 Souza C. Estado da arte da pesquisa em políticas públicas. In: Rochman G, Arretche M, Marques E, organizadores. Políticas Públicas no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2007; p. 65-83., envolvendo as tipologias dos estudos do conteúdo das políticas e dos estudos do processo de elaboração de políticas. Por meio dessas tipologias, buscou-se descrever e explicar a gênese e o desenvolvimento de políticas com interesse em desvendar as várias influências em sua formulação, invariavelmente mostrando interesse pelo conteúdo das mesmas1414 Ham C, Hill M. The policy process in the modern capitalist state. Londres: Harvester Wheatsheaf; 1993; p. 23-24..

O estudo foi desenvolvido em duas etapas. A primeira compreendeu uma pesquisa documental exploratória, buscando identificar os registros de encontros/reuniões em que estivessem em debate ações voltadas ao enfrentamento à pandemia no âmbito da APS. As buscas foram realizadas entre os dias 28 de março e 8 de abril de 2022, em portais (sites) institucionais e canais do YouTube de entidades/instituições representativas e associativas de gestores e pesquisadores de políticas públicas de saúde no país. Incluiu todos os resumos executivos e as atas das reuniões ali disponíveis, além dos registros em vídeo, seguindo roteiro de seleção previamente definido (Quadro 1).

Quadro 1
Síntese dos portais, roteiros de seleção e critérios de exclusão dos encontros/reuniões e publicações.

Foram incluídos na análise os encontros/reuniões - identificados nos registros em texto e/ou vídeo - que necessariamente contaram com a participação de ao menos um representante do MS nomeado em cargo de direção (ministro, secretários, diretores ou coordenadores) e que passaram pelos critérios de exclusão descritos no Quadro 1.

O recorte temporal dos encontros/das reuniões contemplados(as) na análise foi de 1º de janeiro de 2020 - mês em que mundialmente já se tomava conhecimento da existência do novo vírus e seu potencial pandêmico - a 31 de dezembro de 2021 - período já demarcado por: evidente avanço na vacinação; retomada significativa dos serviços de APS com os profissionais imunizados; surgimento da variante ômicron, com alta transmissibilidade e consequente necessidade de reestruturação de ações prioritárias em período de elevado contágio; e possível esgotamento de variações no modus operandi da tomada de decisão pela gestão do MS.

Na segunda etapa do trabalho também foi realizada pesquisa documental exploratória, buscando portarias, notas técnicas, manuais, instrutivos, entre outros documentos publicados pelo MS, cujo conteúdo contemplasse explicitamente as políticas/orientações relacionadas à gestão e ao trabalho no enfrentamento à pandemia de COVID-19 na APS. Tal ação se deu entre 30 de maio e 23 de junho de 2022.

Foram selecionados documentos datados entre 1º de janeiro de 2020 e 31 de dezembro de 2021. A seleção seguiu roteiro específico (Quadro 1), buscando identificar a redação expressa, no todo ou em partes do documento, abordando as políticas, os programas ou as orientações relacionadas ao enfrentamento à pandemia da COVID-19 no âmbito da APS.

Não foram consideradas publicações em texto e vídeo postadas diretamente nos sites (sem documento de extensão .PDF) pela inexistência de registros de data de publicação ou de eventuais modificações. Adicionalmente, caso tenha sido identificada alguma publicação instituindo uma estratégia/ação específica, as demais publicações sobre essa mesma estratégia/ação que não incrementassem novas abordagens/orientações não foram incluídas por serem consideradas desdobramentos da primeira.

Os achados de ambas as etapas foram codificados e categorizados em matrizes, conforme os núcleos de sentido da referência ao enfrentamento à pandemia na APS, da seguinte maneira: financiamento/estruturação dos serviços de saúde; organização do processo de trabalho das equipes; vacinação/salas de vacinas; educação/formação dos profissionais de saúde; e informação à população.

A partir das matrizes, procedeu-se à análise de conteúdo1515 Lorenzo C. Práxis hermenêutica na construção de referenciais teóricos e na análise de dados em pesquisa social na saúde. In: Mendonça AVM, Sousa MF, organizadoras. Métodos e técnicas de pesquisa qualitativa em saúde. Brasília: Ecos; 2021. p. 86-118., no intuito de aferir a dimensão do esforço ministerial para fortalecer sua governança por meio da construção de relações formais e informais, mantendo diálogo constante com os diversos segmentos e instituições de construção, problematização e gestão do SUS. Obteve-se um panorama geral dos conteúdos dos debates e das proposições feitas pelas diversas instituições, bem como das publicações oficiais do MS sobre a forma como a APS deveria se organizar no enfrentamento à pandemia de COVID-19.

Esse conteúdo permitiu uma análise cruzada, concatenando os achados da primeira e da segunda etapas do trabalho, ou seja, buscando correlação ou correspondência entre os debates realizados e as publicações oficiais do MS. Tais publicações são consideradas o formato pelo qual o MS instituiu e deu visibilidade à sua agenda política e às ações ali reconhecidas e priorizadas.

A análise dos conteúdos se deu à luz do referencial de governança em políticas públicas de Santos1212 Santos MHC. Governabilidade, governança e democracia: criação de capacidade governativa e relações executivo-legislativo no Brasil pós-constituinte. Dados 1997; 40(3). DOI: https://doi.org/10.1590/S0011-52581997000300003.
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e Bevir1616 Bevir M. Governance: a very short introduction. Oxford: Oxford University Press; 2012.. Governança consiste em um termo para a discussão geral da coordenação social, em que, segundo a teoria das organizações moderna, existem três tipos distintos e, para cada tipo, tem-se uma forma de governança ideal para coordenar as ações: hierarquia, que depende de autoridade e controle centralizado; mercado, que depende de preços e ampla competição; e redes, que dependem de confiança entre seus componentes1616 Bevir M. Governance: a very short introduction. Oxford: Oxford University Press; 2012..

O estudo seguiu todos os preceitos éticos estabelecidos no art. 1º da Resolução nº 510, de 7 de abril de 2016, do Conselho Nacional de Saúde (CNS), e considerando que as variáveis foram obtidas por meio de acesso a dados públicos, dispensou-se a submissão ao Comitê de Ética em Pesquisa.

Resultados e discussão

As buscas resultaram em um total de 21 resumos executivos e quatro atas, sendo que apenas a Comissão Intergestores Tripartite (CIT) e o CNS, respectivamente, disponibilizaram registros de suas reuniões nesses formatos. A aplicação dos passos 1 e 2 do roteiro de seleção dos vídeos (Quadro 1) retornou um total de 60 resultados. Os passos subsequentes do mesmo roteiro, bem como a aplicação dos critérios de inclusão e exclusão acarretou o resultado final de 23 registros em vídeo dos encontros/reuniões (Quadro 2), entre os quais se encontram as filmagens dos eventos dos quais também foram consultados os resumos executivos e as atas.

Quadro 2
Espaços com participação de gestores do MS, onde foi debatido o enfrentamento à pandemia na APS.

A análise do conteúdo dos registros em texto e vídeo (Quadro 3) permitiu a descrição do processo de pactuação federal da política de enfrentamento à pandemia de COVID-19 no âmbito da APS brasileira, bem como a discussão desse processo, sistematizada nos tópicos a seguir.

Quadro 3
Identificação, categorização e síntese das discussões acerca do enfrentamento à pandemia na APS.

Arenas e disputas na conformação da agenda

O estudo dos encontros/reuniões que compõem o cenário político institucional do processo de tomada de decisão no SUS levou à identificação das instituições, dos agentes e dos conteúdos que trazem para a pactuação da política de enfrentamento à pandemia de COVID-19 na APS. A descrição de tal cenário, conformado pelas relações formais ou informais construídas pelo MS1212 Santos MHC. Governabilidade, governança e democracia: criação de capacidade governativa e relações executivo-legislativo no Brasil pós-constituinte. Dados 1997; 40(3). DOI: https://doi.org/10.1590/S0011-52581997000300003.
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, possibilitou a análise das racionalidades de governança da instituição na coordenação social dessa política e dos regimes de conhecimento e poder nos espaços por meio das narrativas postas em disputa por cada agente1414 Ham C, Hill M. The policy process in the modern capitalist state. Londres: Harvester Wheatsheaf; 1993; p. 23-24.,1717 Shore C, Wright S. Conceptualising policy: technologies of governance and the politics of visibility. In: Shore C, Wright S, Però D, editors. Policy worlds: anthropology and the analysis of contemporary power. New York: Berghahn Books; 2011; p. 1-26..

Vale destacar que todas as representações partícipes dos debates nos encontros/reuniões frequentemente reconheciam a relevância estratégica da APS para fazer frente à pandemia de COVID-19 no SUS. Efetivamente, a APS brasileira, ancorada na ESF e articulada com a vigilância epidemiológica, detém a capacidade de: investigar casos suspeitos; fazer busca ativa de contactantes; informar a população; acompanhar os casos leves; e encaminhar, oportuna e precocemente, para o atendimento de maior complexidade22 Medina MG, Giovanella L, Bousquat A, Mendonça MHM, Aquino R. Atenção primária à saúde em tempos de COVID-19: o que fazer? Cad Saude Publica 2020; 36(8):e00149720.

3 Giovanella L, Martufi V, Mendoza DCR, Mendonça MHM, Bousquat AEM, Pereira RAG, Medina MG. A contribuição da atenção primária à saúde na rede SUS de enfrentamento à COVID-19. Saude Debate 2020; 44(esp. 4):161-176.
-44 Teixeira MG, Medina MG, Costa MCN, Barral-Neto M, Carreiro R, Aquino R. Reorganização da atenção primária à saúde para vigilância universal e contenção da COVID-19. Epidemiol Serv Saude 2020; 29(4):e2020494..

Levando em conta a relevância e o reconhecimento concernentes, esperava-se maior protagonismo do MS em relação à promoção e à participação de/em debates sobre a temática em diálogo. Dos 23 encontros/reuniões em que foi possível identificar a presença de seus representantes, 17 foram reuniões da CIT, cuja presença do MS é “obrigatória”, que em geral são ordinárias e burocratizadas, com pactuações rápidas, pouco espaço para debates aprofundados e participação limitada de entidades da sociedade civil e da academia.

Não resta dúvidas de que a CIT é um espaço de debate primordial para a gestão do SUS, por agregar representações de formuladores e executores da política de saúde nos âmbitos federal (MS), estadual (Conselho Nacional de Secretários de Saúde - CONASS) e municipal (Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde - CONASEMS). Entretanto, devido a essa composição, grande parte dos debates geridos pelo MS se deram no campo da gestão.

Para além das reuniões da CIT, espaços de discussão mais democráticos, com composição heterogênea, certamente enriqueceriam o processo de construção de uma política que se aproximasse ao máximo da universalidade e da integralidade no atendimento às necessidades de saúde da população, acometida por problemas diversos causados pelo fenômeno multidimensional (sanitário, político, econômico, social, cultural, ambiental e ético) que é uma pandemia1818 Souto LRF, Travassos C. Plano Nacional de Enfrentamento à Pandemia da COVID-19: construindo uma autoridade sanitária democrática. (Editorial). Saude Debate 2020; 44(126):587-592..

Constatou-se que em apenas uma oportunidade (R15) os trabalhadores e os usuários do SUS puderam participar dos debates. Do mesmo modo, em apenas duas ocasiões (R8 e R18) os pesquisadores vinculados às universidades puderam contribuir nas discussões, mesmo sendo a COVID-19 uma doença nova, para a qual o enfrentamento depende sobremaneira de conhecimento científico atualizado sobre seus impactos sociais e epidemiológicos. Tais fatos reforçam a fragilização do que legalmente foi determinado para o SUS no que respeita à participação popular e do que cientificamente se preconiza para a construção de políticas informadas por evidências.

Além disso, mesmo o MS detendo a coordenação de grande parte dos encontros/reuniões mencionados, em menos da metade deles (9) o debate sobre alguma estratégia de enfrentamento à pandemia na APS foi colocado previamente na pauta de discussões, ocorrendo apenas como um desdobramento de outras discussões.

Essa pouca propensão ao debate por parte do MS sinaliza um intencional isolamento da instituição, na tentativa de monopolizar a orientação da política, exercendo um modelo de governança hierarquizado1616 Bevir M. Governance: a very short introduction. Oxford: Oxford University Press; 2012., sujeito apenas às posições desarrazoadas do presidente da República. O chefe do Executivo nacional minimizou a letalidade da doença, desestimulou a prática do distanciamento social e de outras medidas individuais e coletivas de proteção, disseminou tratamentos medicamentosos cuja ineficácia terapêutica e risco à saúde dos usuários era acentuado e desacreditou a vacinação como meio de prevenção da doença99 Sodré F. Epidemia de COVID-19: questões críticas para a gestão da saúde pública no Brasil. Trab Educ Saud 2020; 18(3):e00302134.,1818 Souto LRF, Travassos C. Plano Nacional de Enfrentamento à Pandemia da COVID-19: construindo uma autoridade sanitária democrática. (Editorial). Saude Debate 2020; 44(126):587-592..

A falsa dicotomia produzida pela narrativa presidencial entre crescimento econômico ou saúde da população no Brasil gerou um discurso ruidoso, confuso, dúbio e repleto de incertezas, de tal modo que o MS perdeu a capacidade de dialogar e articular as políticas99 Sodré F. Epidemia de COVID-19: questões críticas para a gestão da saúde pública no Brasil. Trab Educ Saud 2020; 18(3):e00302134..

Centralização e iniquidades na estruturação do financiamento

A categoria mais recorrente nas intervenções feitas ao longo dos debates foi a de financiamento/estruturação dos serviços de saúde (Quadro 3). Em meio aos temas discutidos, o Programa Previne Brasil (PPB), lançado em 2019, ocupou, em grande medida, a agenda de debate geral sobre a APS, mediante a interlocução do CONASS e do CONASEMS, que ratificavam apoio ao programa mas frequentemente solicitavam mudanças e a dilatação dos prazos relacionados às suas ações, sob a alegação de que a pandemia de COVID-19 teria atrapalhado sua execução.

Em verdade, conforme esperado desde a concepção daquele programa e do início da referida pandemia, sua implementação se mostrou uma grande barreira à organização dos serviços de APS para a atuação focada no cuidado voltado às necessidades de saúde oriundas da COVID-19, devido às suas características restritivas e limitadoras da universalidade, à fragilização da abordagem territorial e do enfoque comunitário e à grande dificuldade dos municípios (grandes e pequenos) relacionada às mudanças de modelo e requisitos de financiamento por meio do programa22 Medina MG, Giovanella L, Bousquat A, Mendonça MHM, Aquino R. Atenção primária à saúde em tempos de COVID-19: o que fazer? Cad Saude Publica 2020; 36(8):e00149720.,1010 Mendes A, Melo MA, Carnut L. Análise crítica sobre a implantação do novo modelo de alocação dos recursos federais para atenção primária à saúde: operacionalismo e improvisos. Cad Saude Publica 2022; 38(2):e00164621.,1919 Massuda A. Mudanças no financiamento da atenção primária à saúde no Sistema de Saúde Brasileiro: avanço ou retrocesso? Cien Saude Colet 2020; 25(4):1181-1188..

Essa mesma opinião foi colocada em reunião do CNS, com o qual não houve qualquer discussão acerca da instituição do PPB, quando foi criticada a cobrança pela realização do cadastramento da população, em vez do cuidado às pessoas, sob o risco da perda de recursos do financiamento federal da APS em plena pandemia de COVID-191010 Mendes A, Melo MA, Carnut L. Análise crítica sobre a implantação do novo modelo de alocação dos recursos federais para atenção primária à saúde: operacionalismo e improvisos. Cad Saude Publica 2022; 38(2):e00164621.. Tal desfecho pode ser associado ao processo vertical ou hierarquizado de construção da proposta, pois as hierarquias são consideradas ineficientes e injustas por colocarem os trabalhadores mais concentrados em obedecer às regras internas do que em atender às necessidades dos cidadãos1616 Bevir M. Governance: a very short introduction. Oxford: Oxford University Press; 2012..

Como um dos desdobramentos das constantes manifestações dos gestores solicitando mudanças no programa devido às dificuldades vivenciadas, tem-se uma série de improvisos em relação às medidas de transição1010 Mendes A, Melo MA, Carnut L. Análise crítica sobre a implantação do novo modelo de alocação dos recursos federais para atenção primária à saúde: operacionalismo e improvisos. Cad Saude Publica 2022; 38(2):e00164621., como as extensões dos prazos para a capitação ponderada e o pagamento por desempenho, bem como a retomada dos repasses fixos per capita, semelhante ao anterior Piso de Atenção Básica Fixo (PAB Fixo), extinto pelo próprio PPB.

Além das dificuldades inerentes ao PPB, outra iniciativa ministerial relacionada ao financiamento/estruturação dos serviços demonstrou concepção conflituosa com a percepção de realidade dos demais entes. A portaria que instituiu o Programa Saúde na Hora Emergencial foi publicada em 19 de março de 2020, mas apenas no dia 21 de maio de 2020 (R4), na qual o MS esboçou o primeiro diálogo com outros entes sobre tal iniciativa, ao solicitar-lhes apoio na promoção das adesões ao programa em questão, que se encontravam demasiadamente baixas (apenas 7%) em relação às expectativas. Tal manifestação provocou pronta resposta por parte do CONASEMS, que trouxe os elementos técnicos que inviabilizavam o programa (R4), deixando clara a ausência de leitura da realidade vivenciada nos municípios, que poderia ter sido feita caso o MS tivesse propiciado a discussão antes da publicação da Portaria.

Sinalizando para a gestão do MS a riqueza da construção colaborativa da política de saúde, um dos carros-chefes do financiamento/estruturação dos serviços de saúde surgiu como proposição do CONASEMS, partindo de experiências municipais já existentes. Os Centros de Atendimento para Enfrentamento à COVID-19 e os Centros Comunitários de Referência para Enfrentamento à COVID-19, ambos apelidados “Centros COVID-19”, e seus financiamentos, foram a política/ação mais frequente nas discussões tripartite. Apesar disso, o MS não estruturou adequadamente seu financiamento regular, forçando os municípios a atuarem no limite ou com atrasos no custeio da iniciativa, de forma que suas representações precisavam fazer persistentes e desgastantes cobranças pelo recurso ao longo dos meses.

Morosidade, omissão e desorientação dos serviços de APS

Quase 15 dias após a confirmação do primeiro caso de COVID-19 no Brasil, o MS apresentou brevemente aos gestores estaduais e municipais o protótipo do primeiro conteúdo voltado à educação/formação dos trabalhadores para a abordagem sobre a doença nas Unidades Básicas de Saúde (UBSs). A contribuição dos participantes do espaço ficou limitada pelo pouco tempo disponível para discussão na rápida apresentação feita pelo gestor, tendo restado aos mesmos partícipes apenas a cobrança pela célere disponibilização dos conteúdos formativos, uma vez que outros setores de serviços já contavam com orientação federal (portos e aeroportos, por exemplo) e a APS ainda não tinha nada. Também foi informado que, devido às incertezas da construção federal, alguns estados já estavam com material formativo pronto e disponível aos trabalhadores.

Como a grande preocupação dos gestores no início da pandemia foi com a atenção hospitalar, para a APS restou um lapso relacionado à adequada orientação e estruturação para seu funcionamento, diante de um cenário de desassistência à população nesse nível assistencial em função do medo de contrair COVID-19 e até mesmo pelo fechamento dos serviços33 Giovanella L, Martufi V, Mendoza DCR, Mendonça MHM, Bousquat AEM, Pereira RAG, Medina MG. A contribuição da atenção primária à saúde na rede SUS de enfrentamento à COVID-19. Saude Debate 2020; 44(esp. 4):161-176.,2020 Horta B, Silveira MF, Barros AJD, Hartwig FP, Dias MS, Menezes AMB, Hallal PC. COVID-19 and outpatient care: a nationwide household survey. Cad Saude Publica 2022; 38(4):e00194121.. O fracasso de experiências internacionais com a mesma abordagem centrada no cuidado individual hospitalar alertou para a necessidade de uma atenção mais territorializada, comunitária e domiciliar, além da necessidade de ativar a APS, bem orientada, forte e integral, em toda a sua potencialidade22 Medina MG, Giovanella L, Bousquat A, Mendonça MHM, Aquino R. Atenção primária à saúde em tempos de COVID-19: o que fazer? Cad Saude Publica 2020; 36(8):e00149720..

Em vez de buscar esse papel para a APS, o MS não participou da construção da 1ª edição do “Guia orientador para o enfrentamento da pandemia na Rede de Atenção à Saúde”, publicada em maio de 2020, pelo CONASS e pelo CONASEMS. Em diversas ocasiões (R5, R6 e R9), essas entidades enalteceram a construção e disseminação desse material como meio de qualificar os trabalhadores e os gestores, além de orientar o funcionamento da APS, em um momento de poucas informações e praticamente nenhuma orientação ministerial.

A publicação foi a primeira de circulação nacional a trazer temas como “distanciamento social” e “lockdown”, que a Presidência da República (PR) e, consequentemente, a alta gestão ministerial rechaçavam veementemente. Essa foi uma das principais divergências entre as gestões estaduais e municipais e o governo federal, que combatia fortemente esse isolamento.

O MS só passou a compor a formulação do “Guia” em sua 4ª edição, um ano após o lançamento da primeira. Na reunião de apresentação dessa edição (R12), o MS também apresentou um documento intitulado “7 passos para APS”. Ao fazê-lo, tentou passar a impressão de que tanto a construção dos “7 passos” quanto a do “Guia” foram frutos de protagonismo ministerial. Contudo, foi interpelado pelo CONASEMS pedindo que fosse corretamente informado que já era a 4ª edição, que vinha sendo produzido pelo CONASS e pelo CONASEMS, e que os “7 passos” e diversas outras orientações aos serviços de APS estavam contemplados na referida publicação, que agora tem construção tripartite.

Com a intenção de blindar o MS das frequentes cobranças pelo custeio dos Centros COVID-19 e de propagar o ineficaz e inseguro tratamento medicamentoso precoce para a doença à base das substâncias cloroquina e hidroxicloroquina2121 Melo JRR, Duarte EC, Moraes MV, Fleck K, Arrais PSD. Automedicação e uso indiscriminado de medicamentos durante a pandemia da COVID-19. Cad Saude Publica 2021; 37(4):e00053221., já na abertura da 2ª CIT de 2021 (R11) o ministro Eduardo Pazuello lançou a provocação de que não havia falta de recursos, pois havia bilhões de reais nos cofres das prefeituras que foram repassados para investimento no combate à COVID-19. Para tanto, ele afirmou que cabia aos gestores manter as UBSs abertas, com médicos e medicamentos, para que os médicos, como lhes é de atribuição exclusiva, decidissem qual medicamento seria indicado para cada paciente. Aqui vale destacar que o tratamento precoce e a posição contrária às iniciativas de isolamento social configuraram os temas de maior conflito e dissenso, representando o modus operandi apartado da ciência e da formulação tripartite e participativa da política de saúde do MS2121 Melo JRR, Duarte EC, Moraes MV, Fleck K, Arrais PSD. Automedicação e uso indiscriminado de medicamentos durante a pandemia da COVID-19. Cad Saude Publica 2021; 37(4):e00053221..

O argumento da autonomia médica foi um dos que o governo federal sempre utilizou para sustentar o discurso do tratamento precoce, enquanto distribuía os medicamentos e induzia a sua prescrição pelos profissionais2121 Melo JRR, Duarte EC, Moraes MV, Fleck K, Arrais PSD. Automedicação e uso indiscriminado de medicamentos durante a pandemia da COVID-19. Cad Saude Publica 2021; 37(4):e00053221.. Assim, desde maio de 2020, Pazuello defendia institucionalmente, enquanto ministro interino, a posição do presidente, chegando a publicar a Nota Informativa nº 09/2020-SE/GAB/SE/MS, assinada por todos os secretários do MS, orientando o manuseio precoce dos casos de COVID-19 com as substâncias cloroquina e hidroxicloquina, entre outras. Tal publicação, retirada do ar meses depois, causou fortes manifestações contrárias e de repúdio por parte de diversas entidades, entre as quais o CONASS, o CONASEMS e o CNS.

Desde muito antes, ao finalizar a 9ª CIT de 2020 (R9), não havendo mais oportunidade para réplicas, o secretário executivo do MS discursou abertamente pedindo aos demais entes que defendessem e propagassem o tratamento precoce, pois, segundo ele, evidências de alto nível comprovavam sua eficácia. Tal afirmativa se trata de uma inverdade absoluta2121 Melo JRR, Duarte EC, Moraes MV, Fleck K, Arrais PSD. Automedicação e uso indiscriminado de medicamentos durante a pandemia da COVID-19. Cad Saude Publica 2021; 37(4):e00053221..

Vacinação e a ruptura do pacto federativo

A postura do MS causou conflitos e prejudicou as relações institucionais de gestão do SUS inerentes ao pacto federativo constitucionalmente instituído, infraconstitucionalmente regulamentado e consolidado pelo processo histórico de sua construção. Nesse ínterim, não foram raros os embates políticos e judiciais entre o governo federal, que defendia sua autonomia produtora de negacionismo e antipolítica social, e os estados e municípios, que buscavam mobilizar recursos, promover a educação da população, a vacinação e a organização da rede de serviços sob suas gestões diretas1818 Souto LRF, Travassos C. Plano Nacional de Enfrentamento à Pandemia da COVID-19: construindo uma autoridade sanitária democrática. (Editorial). Saude Debate 2020; 44(126):587-592..

Pelo menos desde dezembro de 2020 (R9) o MS já apresentava em CIT o planejamento para as campanhas de vacinação contra a COVID-19. Entretanto, foi notório o impasse no processo de início da vacinação no país, com destaque para o atraso na compra dos imunizantes e a atuação do presidente da República desqualificando as vacinas e desestimulando a vacinação. É possível afirmar que o andamento da vacinação (aquisição, distribuição etc.) só se deu verdadeiramente à medida que o governo federal sofreu uma série de derrotas políticas e jurídicas no que se refere à gestão da pandemia e da vacinação.

São exemplos dessas derrotas: a perda da queda de braços com o governador do estado de São Paulo sobre quem aplicaria a primeira dose de vacina no país; o avanço da vacinação em países outrora negacionistas, nos quais o governo brasileiro se espelhava (EUA e Reino Unido, por exemplo); e o reconhecimento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) da possibilidade de estados e municípios adquirirem as vacinas caso o MS não conseguisse suprir a demanda.

Como era evidente o desinteresse pela realização das anunciadas campanhas de mobilização para a vacinação, o CONASS precisou fazer duras cobranças pela sua execução nacionalmente (R23). Antes disso, a entidade já havia feito severas críticas ao descompasso do MS em relação às medidas tomadas pelas demais esferas de gestão e às decisões unilaterais e sem fundamentação epidemiológica e sanitária da instituição, referindo de nada valer as participações dos pares em reuniões técnicas, uma vez que as decisões do MS eram tomadas à revelia da posição dos demais (R20).

Na oportunidade, o CONASS indagou ao MS sobre uma possível inviabilização da aquisição de vacinas em 2022, por conta da expressiva redução na previsão de recursos para o combate à COVID-19 no Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA). Tal crítica também se deu pelo CNS em relação às metas de vacinação do Plano Nacional de Saúde (PNS).

A manifestação do CONASS sacramentou a percepção de que o MS não buscou o exercício de uma boa governança para o enfrentamento à pandemia de COVID-19 em parceria com os diversos segmentos e setores que fazem gestão, trabalham, estudam e/ou utilizam o SUS. Em vez de tentar ditar a política, o órgão deveria construir uma governança em rede, negociando e pactuando sua orientação, de modo que o poder conferido e exercido seja apropriado, tornando legítima a ação de todos. De fato, uma governança colaborativa pode promover mudanças em direção a uma nova agenda democrática, em que a participação e o diálogo suprimam a necessidade de responsabilização individual, melhorando a efetividade do processo político1616 Bevir M. Governance: a very short introduction. Oxford: Oxford University Press; 2012..

Por conseguinte, à medida que a pandemia se alastrava, coube à gestão dos estados e dos municípios ativarem a vigilância e a atenção à saúde, fortalecendo a governança compartilhada do SUS. Caberia ao MS atuar como uma coordenação central tripartite, unificando as ações e direcionando os recursos para medidas eficazes entre os entes - algo que não ocorreu99 Sodré F. Epidemia de COVID-19: questões críticas para a gestão da saúde pública no Brasil. Trab Educ Saud 2020; 18(3):e00302134..

Relação entre debates e publicações: abundância descoordenada

Ao discutir o conteúdo técnico/político identificado nas publicações e apresentado pelo MS ao conjunto dos trabalhadores e dos gestores do SUS é possível estabelecer uma correlação com os conteúdos dos debates identificados na primeira etapa (Quadro 4). Tal cotejamento apresentou uma visão geral da coerência entre discussão e formulação e a instituição formal do conjunto das estratégias, ou seja, da política. Assim, foi possível compreender o modo como a governança foi exercida pelo MS no processo de gestão do enfrentamento à pandemia na APS.

Quadro 4
Síntese dos achados das publicações instituindo ações de enfrentamento à pandemia de COVID-19 na APS.

Das 34 publicações encontradas, 15 guardavam relação direta com conteúdos objetivamente debatidos nos espaços anteriores de discussão e formulação da política (Quadro 5). As categorias das demais 19 publicações em que não foram identificadas nenhuma relação com os debates prévios, ou seja, não discutidas antes da publicação, foram as seguintes: 4 publicações (de um total de 6 localizadas nesta categoria) - organização do processo de trabalho das equipes; 3 publicações (de 3) - educação/formação dos trabalhadores; e 12 publicações (de 25) - financiamento/estruturação dos serviços de saúde.

Quadro 5
Identificação das publicações e dos respectivos debates sobre o enfrentamento à pandemia de COVID-19.

Diante do exposto, assim como na primeira etapa do trabalho, a categoria de financiamento/estruturação dos serviços de saúde foi a mais recorrente. Das 12 publicações não debatidas da referida categoria, 7 se referiam à instituição e ao emprego de repasses financeiros voltados para ações diversas relacionadas ao enfrentamento à COVID-19 na APS.

Entre estas foram identificadas iniciativas que tiveram que ser revistas sob o apelo de seus pares da tripartite ou das circunstâncias de insucesso vocalizadas pelos próprios gestores do MS. Em um primeiro exemplo, na 5ª CIT de 2020 (R6), o CONASEMS entregou ao MS um documento contendo uma série de apontamentos em relação à Portaria nº 1.857/2020 (que trata do incentivo financeiro para o combate à pandemia de COVID-19 nas escolas), pedindo que ela fosse revista e republicada após a devida pactuação tripartite. Como segundo exemplo, o próprio Programa Saúde na Hora Emergencial, com seu baixo percentual de adesões já discutido.

Ao não identificar as discussões correspondentes, depreende-se que o MS fez uma série de publicações, consequentemente de transferências financeiras aos estados e municípios, por decisão autocrática de seu direcionamento1010 Mendes A, Melo MA, Carnut L. Análise crítica sobre a implantação do novo modelo de alocação dos recursos federais para atenção primária à saúde: operacionalismo e improvisos. Cad Saude Publica 2022; 38(2):e00164621.. Nesse cenário, havendo pouco debate tripartite acerca de proposições uníssonas sobre o modo como deveriam operar a política localmente, a alternativa aos entes subnacionais, considerando o agravamento do estrangulamento financeiro do SUS pelas medidas de austeridade fiscal, sobretudo, pela Emenda Constitucional (EC) nº 95/2016, do teto dos gastos públicos, foi também de requerer mais repasses para que as iniciativas e os modos de organizar os serviços fossem autonomamente implementados em cada território1010 Mendes A, Melo MA, Carnut L. Análise crítica sobre a implantação do novo modelo de alocação dos recursos federais para atenção primária à saúde: operacionalismo e improvisos. Cad Saude Publica 2022; 38(2):e00164621..

A resposta ministerial àqueles pleitos foi efetivar os repasses financeiros, vinculados ou não a iniciativas assistenciais ou organizacionais objetivas, porém com frágil monitoramento da operacionalização das ações localmente. Isso somado à ausência de uma política consoante e com coordenação federal88 Abrúcio FL, Grin EJ, Franzese C, Segatto CI, Couto CG. Combate à COVID-19 sob o federalismo bolsonarista: um caso de descoordenação intergovernamental. Rev de Adm Publica 2020; 54(4):663-677., conforme relatado pelos próprios agentes ministeriais, resultou em acúmulo de recursos nos fundos municipais de saúde sem execução (R11, R13).

Também vale destacar que o governo federal adquiriu uma ampla capacidade financeira com a aprovação da EC nº 106/2020, que instituiu o chamado “orçamento de guerra” e facilitou os gastos do ente federal ao separar o orçamento geral da União dos gastos com a pandemia. Nesse viés, é possível inferir que, por meio do exercício dessa capacidade, o governo desenvolveu estratégias de tentar angariar apoio, minorar a crítica pública e exercer influência, quem sabe até silenciamento, para conseguir legitimar a orientação da política na contramão do que apontavam as evidências científicas, seguindo as convicções do presidente da República.

Aqui não se trata de afirmar que não havia demanda por financiamento federal na luta cotidiana dos municípios - responsáveis diretos pela assistência à população. Trata-se apenas da necessidade de um alinhamento institucional, do exercício de governança em rede, para que houvesse o direcionamento adequado dos recursos, de modo que efetivamente atendessem às demandas dos territórios.

Redes de governança são mais cooperativas e igualitárias do que as hierarquias. Substituem a competição por colaboração em benefício mútuo, as cadeias de comando por estruturas horizontais. Promovem fluxos de informações mais confiáveis e eficientes, pois os atores confiam uns nos outros e existem menos regras limitando o acesso às informações necessárias a todos. São mais flexíveis e adaptáveis do que outras estruturas organizacionais1616 Bevir M. Governance: a very short introduction. Oxford: Oxford University Press; 2012..

Propostas no vácuo

Em contrapartida às publicações sem debate/pactuação prévias, também foram identificados discussões, proposições e pleitos realizados nos diversos espaços que não desencadearam nenhuma resposta ou publicação que refletisse o empenho do MS em torná-los uma política ou estratégia formal para o enfrentamento à pandemia de COVID-19 na APS.

Uma dessas proposições, feita pelo CONASEMS, foi que os “mesmos recursos” empregados no custeio dos Centros COVID-19 pudessem ser utilizados, a partir do fechamento dos Centros, com a finalidade de atender à reabilitação de eventuais sequelas deixadas pela doença. Não obstante o reconhecimento pelo próprio MS no “Relatório avanços e desafios da atenção primária à saúde - balanço das ações 2020”, ratificado no mesmo relatório do ano de 2021, da necessidade de qualificar o cuidado e promover o manejo clínico adequado no âmbito da APS dos sintomas persistentes da COVID-19, não foi identificada nenhuma ação nesse sentido no decorrer dos dois anos analisados no presente estudo, exceto a destinação de recursos para a aquisição de medicamentos já em dezembro de 20212222 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Relatório avanços e desafios da Atenção Primária à Saúde balanço das ações 2020. Brasília: MS; 2022..

Ainda merecem destaque as várias referências advindas de diferentes debatedores em ao menos quatro oportunidades (R8 e R13) da importância das equipes multiprofissionais compostas por categorias profissionais para além da equipe mínima (integrada por médico, enfermeiro, técnico de enfermagem e agente comunitário de saúde), tendo sido suscitada a necessidade de apoio financeiro para sua conformação, das quais se espera a atuação desde a promoção da saúde até a reabilitação de pacientes no pós-COVID-19.

Apesar deste fato, o MS, por meio do PPB, apoiado pelo CONASS e pelo CONASEMS1010 Mendes A, Melo MA, Carnut L. Análise crítica sobre a implantação do novo modelo de alocação dos recursos federais para atenção primária à saúde: operacionalismo e improvisos. Cad Saude Publica 2022; 38(2):e00164621., mas sob forte resistência do CNS e de outras importantes entidades (Fiocruz, Abrasco etc.) defensoras do então modelo de organização das equipes multiprofissionais, promoveu o fim do financiamento específico das equipes do Núcleo Ampliado de Saúde da Família e Atenção Básica (NASF-AB), cuja composição e cujas atribuições contemplavam necessariamente aquelas mencionadas, aumentando a capacidade resolutiva da APS, bem como apoiando sua integração em redes de atenção à saúde1919 Massuda A. Mudanças no financiamento da atenção primária à saúde no Sistema de Saúde Brasileiro: avanço ou retrocesso? Cien Saude Colet 2020; 25(4):1181-1188.,2323 Coelho OCS, Ferreira ATM, Mendonça RD. Pandemia COVID-19 e ações do Núcleo Ampliado de Saúde da Família e Atenção Básica na Rede SUS. APS Rev 2021; 3(3):156-167..

Considerações finais

O presente estudo permitiu identificar e discutir o empenho do MS para promover e participar de debates, bem como o desencadeamento ou não desses debates em publicações oficiais que instituíssem ou orientassem políticas, programas ou ações específicas que pudessem contribuir para a estruturação e qualificação da APS para o enfrentamento à pandemia de COVID-19 no Brasil.

No momento da história em que a instituição foi mais criticamente exigida em termos de unidade, coordenação e cooperação intergovernamental, para dar respostas rápidas e assertivas, o MS, induzido pela agenda negacionista da Presidência da República, feriu o processo histórico e legalmente instituído de boa governança do SUS.

Percebeu-se uma indisposição aos espaços democráticos de debate com segmentos (universidades, movimentos sociais e instâncias do controle social, por exemplo) que historicamente contribuem com a formulação da política pública de saúde no país.

Diante das proposições e dos posicionamentos das representações com as quais, em grande parte, se via obrigado a debater, a opção do MS, na prática, foi pela negação, morosidade e omissão como política. Além disso, ao romper o pacto federativo e verticalizar o processo de tomada de decisões, incorreu em uma série de medidas equivocadas, com frágeis mecanismos de monitoramento e cujos impactos são questionáveis.

Esperava-se que o MS cumprisse seu papel institucional e coordenasse a política de combate à pandemia de COVID-19 de maneira harmônica, colaborativa e cientificamente fundamentada, tecendo a rede de governança nessa coordenação. No entanto, a alta direção da instituição hierarquizou o processo com uma indumentária militarizada, sem qualquer vocação para o planejamento participativo e ascendente preconizado no sistema de saúde.

Estudos que demonstrem e discutam tal postura são de fundamental importância para a memória científico-institucional, de modo que se possa refletir sobre os equívocos cometidos, evitando que se repitam em pandemias vindouras e que sejam frustrados os extenuantes esforços de trabalhadores e gestores sérios que, mesmo sob condições de trabalho degradantes, lutaram na linha de frente contra a COVID-19.

Por fim, tem-se que o governo federal colocou em risco o sucesso da política de enfrentamento à pandemia em todos os municípios do país, onde a APS se faz presente, e que poderia ter atuado de maneira mais eficiente na preservação da vida e contribuído para a promoção da saúde integral de uma população que padeceu e segue padecendo com as desigualdades sociais arraigadas no atual modelo de sociedade no Brasil.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    Dez 2023

Histórico

  • Recebido
    15 Set 2022
  • Aceito
    21 Mar 2023
  • Publicado
    23 Mar 2023
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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