A onda pró-ciência em tempos de negacionismo: percepção da sociedade brasileira sobre ciência, cientistas e universidades na pandemia da COVID-19

Vanessa Moreira Sígolo Jade Percassi Pedro Fiori Arantes Hironobu Sano Mauricio Moura Débora Foguel Soraya Soubhi Smaili Arthur Chioro Sobre os autores

Resumo

O artigo apresenta resultados de pesquisas sobre percepção pública da ciência na pandemia no Brasil, realizadas no Centro de Estudos SoU_Ciência, sediado na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Com o intuito de responder à pergunta: “A pandemia da COVID-19 alterou a percepção da sociedade brasileira sobre ciência, cientistas e universidades?”, realizamos estudos quantitativos e qualitativos entre agosto/2021 e julho/2022. Em levantamentos quantitativos nacionais de opinião pública, coletamos dados exclusivos de série histórica de enquetes sobre o tema no Brasil, e em grupos focais, aprofundamos estudos sobre percepção e posicionamento político de diferentes segmentos sociais. Em meio ao quadro de crescimento do negacionismo científico, retrocessos políticos e sociais, desmonte de políticas públicas, especificamente científicas e tecnológicas, decorrentes do impeachment de 2016 e da eleição de Bolsonaro em 2018, as pesquisas indicam, aparentemente contrariando a tendência política obscurantista, uma expressiva ampliação do interesse público pela ciência na pandemia no país. Este trabalho analisa a emergência de uma “onda pró-ciência” na opinião pública no Brasil, os fatores que propiciaram seu surgimento na pandemia e suas perspectivas na atualidade.

Palavras-chave:
Opinião pública; Ciência; Pandemia; Coronavírus; Brasil

Introdução

A pandemia agravou as desigualdades socioeconômicas e a pobreza no Brasil, afetando mais gravemente a condição de vida da população de menor renda. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)11 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).PNAD Contínua - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua [Internet]. 2021. [acessado 2022 out 13]. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/trabalho/17270-pnad-continua.html?edicao=34039
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, a queda de rendimentos foi disseminada em todas as classes, mas a parcela mais pobre da população (os 10% com menor renda) viveu uma redução acima de 31,8%, em contraste com o 1% mais rico, que teve queda de 6,4% em sua renda. Estudos apontam que a fome atinge mais de 33 milhões de brasileiros e 58,7% da população vive em insegurança alimentar, o que regride o país a patamar equivalente ao da década de 199022 Rede PENSSAN. II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da COVID-19 no Brasil. São Paulo: Friedrich Ebert, Rede PENSSAN; 2022..

Entre as facetas perversas da desigualdade social, destaca-se o desigual acesso a educação, cultura e conhecimento científico. Conforme a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)33 Organisation for Economic Co-operation and Development (OECD). Education at Glance; Paris: OECD; 2021., uma reduzida parcela da população brasileira concluiu o ensino superior: apenas 21%, entre 25 e 34 anos. Os dados posicionam o país, em termos educacionais, atrás de Argentina (40%), Chile (34%), Colômbia (29%) e Costa Rica (28%), e distante da média dos países da OCDE (44%).

Esses fatores já seriam suficientes para criar um quadro adverso para o debate público sobre ciência no Brasil. Mas, ao aprofundamento da histórica desigualdade social, somou-se um cenário político antagônico às conquistas democráticas. A partir de 2016, com o impeachment da presidente Dilma Rousseff, e mais profundamente após a eleição de Jair Bolsonaro, em 2018, o país foi conduzido a retrocessos políticos e sociais, com o desmonte e o desfinanciamento de diversas políticas públicas, incluindo a científica e tecnológica, entre outros ataques a direitos da população. Em 2022, o governo Bolsonaro transferiu recursos do Fundo Nacional para o Desenvolvimento da Ciência e Tecnologia (FNDCT) para outras finalidades orçamentárias. Na base desse quadro extremamente crítico, no qual se deu a emergência da pandemia no país, destaca-se o impacto da Emenda Constitucional 95/2016, aprovada no governo Temer, chamada de “Teto dos Gastos”, que limita o financiamento de políticas, tais como as de educação, saúde e assistência social, exclusivamente à variação da inflação por 20 anos.

Esse quadro crítico integra as universidades e a ciência brasileira ao contexto amplo de crise dessas instituições, analisado por Boaventura Santos44 Santos BS. A universidade do século XIX. Coimbra: CES; 2004., que se refere à descapitalização das universidades e à transnacionalização do mercado universitário, bem como ao impacto das novas tecnologias de informação e à perda de hegemonia do conhecimento universitário e científico, alvo de questionamentos da sociedade, expressando certa incapacitação epistemológica da universidade e desorientação quanto a suas funções sociais44 Santos BS. A universidade do século XIX. Coimbra: CES; 2004.. Tal cenário global crítico às universidades e à ciência se soma ao contexto internacional de ascensão da extrema-direita, que se vincula à eleição no Brasil de um presidente identificado com esse ideário: antidemocrático, anti-intelectual, neofascista, neoliberal e negacionista55 Abranches S, Singer A, Venturi G, Alonso A, Gomes AC, Fausto B, Melo C, Barros CR, Dunker C, Mendes CH, Reis DA, Solano E, Starling H, Salles JM, Giannotti JA, Spektor M, Bolle M, Louzano P, Moriconi G, Domingues P, Quinalha R, Almeida R, Lemos R, Fausto R. Democracia em risco? 22 ensaios sobre o Brasil de hoje. São Paulo: Companhia das Letras; 2019..

O governo federal, como denunciam estudos66 Caponi S. COVID-19 no Brasil: entre o negacionismo e a razão neoliberal. Estudos avançados 2020; 34(99):209-224.

7 Centro de Pesquisas de Direito Sanitário (Cepedisa). Mapeamento e análise das normas jurídicas de resposta à Covid-19 no Brasil. São Paulo: Cepedisa/FSP-USP; 2020.
-88 Chioro A, organizador. Financiamento do SUS e garantia de direitos: orientac¸ão técnica e produção de dados na garantia de direitos no contexto da pandemia COVID-19. São Paulo: Unifesp; 2021., não apenas se omitiu na implementação de políticas mínimas de enfrentamento à pandemia como atuou abertamente pela disseminação da doença, agindo na contramão de orientações dos organismos internacionais, propagando desinformação, fake news e, em sua face mais grave, fake science. Na educação, seus ministros e apoiadores passaram a promover uma guerra ideológica e espalhar acusações infundadas e difamatórias, com ataques explícitos às universidades públicas99 Arantes P. Higher education in dark times: from the democratic renewal of Brazilian universities to its current wreck. Policy Rev Higher Educ 2021; 5(4):131-157., locus da produção de mais de 90% da pesquisa científica do país, como mostram levantamentos de órgãos internacionais1010 Clarivate Analytics. Research in Brazil - A Report for Capes; 2016..

Esses fatores potencialmente criam um quadro propício ao avanço de movimentos anticiência no Brasil. Contudo, apesar do contexto regressivo que o governo federal impôs ao país, as pesquisas indicaram o aumento do interesse e da valorização da ciência pela população na pandemia, formando o que denominamos uma “onda pró-ciência” na opinião pública brasileira.

Crescente ao longo da pandemia, a onda pró-ciência na percepção pública traz à luz outro importante elemento histórico: a trajetória de construção de políticas públicas de saúde e vacinação e do sistema de universidades e institutos de pesquisa no país. A criação do Sistema Único de Saúde (SUS), resultante de lutas sociais, e a consolidação do Programa Nacional de Imunização (PNI) foram barreiras decisivas a discursos e práticas antivacina. Como mostra a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz)1111 Dandar L. Programa Nacional de Imunizações é um marco histórico na saúde pública brasileira [internet]. 2022. [acessado 2022 out 13]. Disponível: https://portal.fiocruz.br/noticia/programa-nacional-de-imunizacoes-e-um-marco-historico-na-saude-publica-brasileira
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, o PNI tem amplos e bem-sucedidos resultados, constituindo-se em referência internacional de política de saúde ao oferecer acesso gratuito a todas as vacinas recomendadas pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Essa trajetória de ensino, pesquisa e atenção à saúde pública, sua organização e capilaridade, contribui para a adesão da população à vacina e sua confiança no SUS, na ciência e nas universidades do país, que estão no topo de rankings nacionais e internacionais de educação superior.

Nosso país foi pioneiro na América Latina em estudos sobre percepção pública de ciência e tecnologia1212 Massarani L, Castelfranchi Y, Fagundes V, Moreira I. O que os jovens brasileiros pensam da ciência e da tecnologia [Internet]. 2021. [acessado 2022 out 13]. Disponível em: https://www.coc.fiocruz.br/images/PDF/Resumo%20executivo%20survey%20jovens_FINAL.pdf
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. A série histórica de enquetes, realizadas em 1987, 2006, 2010, 2015 e 2019, envolveu importantes instituições de pesquisa brasileiras, como o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e a Fiocruz, com as últimas duas edições feitas pelo Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE) e o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). Desde 2015, as pesquisas seguem o Manual de Antigua1313 Polino C, compilador. Manual de Antigua: indicadores de percepción pública de la ciencia y la tecnología. Buenos Aires: RICYT; 2015., elaborado pela Red Iberoamericana de Indicadores de Ciencia y Tecnología (RICYT), o Observatório Iberoamericano de la Ciencia, la Tecnología y la Sociedad (OCTS) e a Organización de Estados Iberoamericanos para la Educación, la Ciencia y la Cultura (OEI), visando criar metodologias comuns para enquetes nesses países.

Com base na análise das pesquisas prévias, o presente artigo tem como questão central: a pandemia da COVID-19 alterou a percepção da sociedade brasileira sobre ciência, cientistas e universidades? Os resultados das pesquisas apontam o aumento do interesse por ciência e tecnologia, que alcançou 82% da população brasileira, e da confiança nos cientistas, que atingiu o maior patamar da série, ficando acima de todas as outras categorias profissionais. Ao identificar nos levantamentos realizados na pandemia a emergência de uma onda pró-ciência na opinião pública brasileira, busca-se compreender quais as suas características e manifestações nos diversos segmentos sociais. Propõe-se, ainda, entender o significado político e as perspectivas dessa onda pró-ciência na opinião pública, que emerge em contraposição ao crescimento de movimentos negacionistas, antivacina e obscurantistas no país. O objetivo do trabalho é apresentar dados sobre essas indagações, com análises que apontam para pistas importantes sobre as disputas do atual contexto político e o papel da ciência e das universidades públicas na construção de perspectivas para o país.

Metodologia de pesquisa

O estudo tem caráter quantitativo e qualitativo e foi realizado por meio de revisão bibliográfica, levantamentos nacionais de opinião pública e grupos focais. A revisão bibliográfica permitiu a análise da literatura e de pesquisas prévias sobre percepção pública da ciência no Brasil conduzidas por outras instituições, como termo de comparação e referências metodológicas.

Para os levantamentos nacionais de opinião pública (LOP), em parceria com o Instituto IDEIA, foram inseridas perguntas específicas em enquetes nacionais feitas pelo Instituto, via pesquisa telefônica com chamadas para linhas móveis. Pela aplicação de questionário estruturado a amostras representativas da população brasileira, as entrevistas ocorreram em cinco rodadas, entre agosto de 2021 e julho de 2022, com bases de 1.200 a 1.500 respondentes, homens e mulheres de todas as regiões do país, com idade igual ou superior a 16 anos, como detalhado a seguir:

  1. LOP 1: agosto/2021 (1.248 respondentes)

  2. LOP 2: outubro/2021 (1.500 respondentes)

  3. LOP 3: novembro-dezembro/2021 (1.271 respondentes)

  4. LOP 4: janeiro/2022 (1.252 respondentes)

  5. LOP 5: julho-agosto/2022 (1.200 respondentes)

A segmentação de entrevistados se deu por gênero, idade, cor ou raça/etnia, região, escolaridade, classe, renda, religião, tipo de município e posição política (a favor ou contra o governo e como o avaliam). Com intervalo de confiança de 95% e margem de erro máxima prevista de 2,85% para mais ou para menos, as amostras em duas etapas (probabilística e cotas) - sob os métodos de Fowler1414 Fowler FJ. Survey research methods. Newbury Park: CA, SAGE; 2002. e Bussab e Morettin1515 Bussab W, Morettin P. Estatística básica. São Paulo: Saraiva; 2017. - tiveram cotas variáveis, segundo distribuição da população por região e proporções definidas nas PNAD 2018 e 2021 e no Censo 2010. As perguntas trataram da percepção de ciência, cientistas e universidades, acesso à informação científica, demandas da sociedade à ciência e às universidades, pandemia e desafios atuais do país, e incluíram a coleta de dados de série histórica sobre o tema no Brasil, replicando questões selecionadas, com o mesmo enunciado e opções de respostas das enquetes anteriores.

Os grupos focais, baseados no método de Woodyatt et al.1616 Woodyatt CR, Finneran CA, Stephenson R. In-person versus online focus group discussions: a comparative analysis of data quality. Qual Health Res 2016; 26(6):741-749., permitiram aprofundar os estudos quantitativos, investigar a percepção de diferentes segmentos, discursos e posições políticas, avaliações sobre o governo e comunicação científica. Em parceria com o mesmo Instituto, foram feitas duas sessões virtuais de conversa mediada, com sete participantes recrutados em todas as regiões do país, homens e mulheres, com idade superior a 25 anos, de escolaridade e renda médias (de classes B e C, com ensino médio completo e/ou incompleto), pró e contra o governo Bolsonaro. Realizados em 7 de outubro e 9 de dezembro de 2021, com duração de 100 a 130 minutos, o primeiro grupo focou pessoas que se declaram interessadas em ciência, com opiniões políticas divergentes, e o segundo, pessoas que se identificam como adversas às universidades públicas, em busca de conhecer perfis, discursos e fontes de informação.

O material empírico produzido sustenta as análises apresentadas, organizadas nos tópicos a seguir: 1) interesse na ciência na pandemia; 2) credibilidade atribuída a cientistas; 3) reconhecimento das instituições de pesquisa; 4) avaliação da condução da pandemia e do investimento em ciência; e 5) informação e comunicação sobre ciência e universidades. Ao final, são expostas conclusões, novas indagações suscitadas nas pesquisas e perspectivas.

Resultados e discussões

A análise da série histórica de enquetes sobre percepção pública de ciência e tecnologia, segundo dados do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE)1717 Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE). Percepção pública da C&T no Brasil - 2019. Brasília: CGEE; 2019., indica que o interesse de brasileiros por ciência na última década havia atingido um “teto”, em torno de 60%. Em 2010, o interesse alcançava 64% da população e, em 2015 e 2019, dentro da margem de erro, atingia 61% de brasileiros (Figura 1A).

Figura 1
Interesse dos brasileiros por temas - na série histórica.

Na pandemia, em cenário trágico para a sociedade e a ciência, em meio a embates políticos em defesa da adoção de ações adequadas de prevenção, tratamento e vacinação contra a COVID-19, nos interrogamos sobre os impactos desse contexto na percepção pública sobre ciência no Brasil. Os dados da pesquisa são analisados abaixo.

Interesse na ciência na pandemia

Em levantamento de 2022 (LOP 4), identificamos uma impressionante valorização do interesse por ciência no país. Dados obtidos sobre o nível de interesse por cada um de oito assuntos (política, saúde, meio ambiente, arte e cultura, ciência e tecnologia, esportes, economia e religião) indicam, ao se comparar com as enquetes anteriores (2010, 2015 e 2019), que permanecem entre os temas de maior interesse da população: medicina e saúde (87%), meio ambiente (86%), seguidos por ciência e tecnologia (82%) e economia (80%). Ao analisar os dados de 2022, agrupando aqueles que dizem ter “interesse” e “muito interesse”, as áreas que mais cresceram entre 2019 e 2022 foram ciência e política. Cabe destacar que os resultados de 2022 revelam o maior patamar de interesse nessas temáticas entre todos os anos da série (Figura 1A).

O expressivo aumento de interesse da população por ciência e política, no entanto, não é homogêneo. Entre os mais interessados em ciência estão os de maior escolaridade e renda (com nível superior e renda acima de 5 salários-mínimos, SMs). Mais relevante é o aumento significativo do interesse em ciência entre os de menor escolaridade e renda: 65,6% dos com ensino fundamental, e 73,5% dos com até 1 salário-mínimo (SM). Em 2019, esses percentuais eram de 49% e 50,6%, respectivamente (Figuras 1B e 1C). Notou-se variação pouco significativa em relação à religião.

Cabe ressaltar a expressiva queda dos que se declaram “nada interessados” em ciência. Em contraste com pesquisas anteriores, que desde 2010 atingiam cerca de 15%, em 2022, apenas 2,7% manifestaram nenhum interesse sobre o tema, o que pode indicar que a totalidade da população brasileira hoje tem algum interesse por ciência. Apesar do crescimento expressivo do interesse em política, o tema permanece como assunto de menor interesse: apontado por 52% dos entrevistados, é menor entre os de menor renda (com até 1 SM, 43,9%) e menor ainda entre os de baixa escolaridade (com ensino fundamental, 33,9%).

Em um dos momentos mais críticos da história, os dados expressam que a ciência tem se destacado no debate público e a ampliação de interesse da população se relaciona com o cenário político-social do país. As ciências sociais, desde seus primórdios, discutem a relação entre ciência, política e sociedade, e analisam como a biopolítica está presente na ciência e como a ciência estabeleceu sistemas de controle sobre grupos sociais1818 Foucault M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal; 1979.. Tais correlações dependem de contextos históricos, culturais, econômicos e geográficos. O jogo entre ciência, poder e capital vem de longa data e não avançaremos aqui nesse debate.

No entanto, deve-se pontuar que a ciência ampliou a capacidade de transformar e controlar a natureza, as comunidades e os corpos, e cumpriu papéis na dominação colonialista, racial e sexista, embasando teorias das mais perversas e mortais na história humana, como a eugenia. Mas com o avanço da democracia e de um sistema global universitário e de pesquisa mais colaborativo, plural e inclusivo, a ciência pode se alinhar a lutas por direitos e em defesa da vida. Com o reconhecimento de que a ciência interfere diretamente nas nossas vidas e mortes, a pandemia explicitou a dimensão política da saúde pública e da ciência em contextos democráticos em tensão.

Credibilidade atribuída a cientistas

Outra pergunta do LOP 4 que traz dados que corroboram a hipótese da onda pró-ciência, com a mesma formulação da série CGEE/MCTI, abordou o grau de credibilidade atribuído a cientistas. Entre dez profissionais (jornalistas, médicos, políticos, militares, religiosos, artistas, escritores, ambientalistas, cientistas de instituições públicas e cientistas de empresas), o aumento da credibilidade em cientistas foi expressivo.

Em 2019, cientistas empataram com religiosos e foram superados pela confiança dada a médicos e jornalistas. Em 2015, situavam-se em quarto lugar. Nos dados de 2022, contudo, cientistas de instituições públicas alcançaram 41,6% da preferência, disparados em primeiro lugar, e em relação aos 16,4% de 2019, obtiveram crescimento de 253% (Figura 2).

Figura 2
Confiança da população em diversos profissionais - na série histórica.

É interessante notar o contraste entre cientista e líder religioso, que teve importante queda na preferência dos respondentes nos últimos anos. Escolhidos em primeiro lugar, por 19,5% dos entrevistados em 2015, perderam 1/3 do prestígio em 2022, sendo citados por 6,5%. A confiança em políticos segue extremamente baixa (menos de 1%), revelando que o interesse renovado de brasileiros por política não representa proporcionalmente o aumento do prestígio de políticos, apesar de sinalizar uma politização da sociedade. O mesmo ocorreu com os militares, que no contexto de um governo federal do qual participaram com integrantes em postos civis, com maior espaço e visibilidade, sua confiabilidade não superou 5%.

O crescimento da confiança em cientistas, notadamente de universidades e institutos públicos, indica que a ciência não está restrita a laboratórios e especialistas e tem alcançado maior reconhecimento na sociedade1919 Massarani L. Mendes IM. Fagundes V. Polino C. Castelfranchi Y. Maakaroun B. Confiança, atitudes, informação: um estudo sobre a percepção da pandemia de COVID-19 em 12 cidades brasileiras. Cien Saude Colet 2021; 26(8):3265-3276.. O embate entre negacionismo e ciência não se restringe ao campo da produção de conhecimento, ele se projeta na arena política, pois está em jogo o direito fundamental à vida.

Nos termos de Mbembe2020 Mbembe A. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção e política da morte. São Paulo: N1 Edições; 2018., o governo federal brasileiro tem atuado pela “necropolítica”, com o uso do poder de ditar quem deve viver ou morrer, elegendo categorias de pessoas “descartáveis”. No período mais crítico da pandemia, estudos apontaram que a maior vulnerabilidade à infecção pelo vírus esteve intrinsecamente relacionada às condições materiais para prevenção, como acesso a água/saneamento e possibilidade de manter distanciamento social2121 Furtado L. Nasser MA. Nakano AK. Fegadolli C. Silva CG. Souza LR Rodrigues JF. Paula L. Bragagnolo LM. Pesquisa desigualdades e vulnerabilidades na epidemia de COVID-19: monitoramento, análise e recomendações. São Paulo: Unifesp/Tide Setubal; 2021.. Com o descaso com as diferenças socioespaciais e econômicas, a crise sanitária acentuou desigualdades preexistentes, atingindo de forma muito mais grave os segmentos mais pobres - cujas mortes seriam “aceitáveis”, conforme declarações do governo federal2222 Bolsonaro sobre coronavírus: "Alguns vão morrer, lamento, essa é a vida" [Internet]. Congresso em Foco 2020. [acessado 2022 out 13]. Disponível em: https://congressoemfoco.uol.com.br/area/governo/bolsonaro-sobre-coronavirus-alguns-vao-morrer-lamento-essa-e-a-vida/
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Diante da crise, emergiram posições antagônicas no país. De um lado, o governo federal e seus apoiadores mais ideológicos, e de outro, a imensa maioria de cientistas, profissionais do SUS, da mídia, governadores e prefeitos, que pautaram a ação em evidências científicas, diretrizes e protocolos da OMS, artigos avaliados por pares e fóruns de colaboração entre universidades, institutos de pesquisas e governos, a exemplo do Consórcio Nordeste2323 Consórcio Nordeste. Ações de combate à pandemia [Internet]. [acessado 2022 out 13]. Disponível em: http://www.consorcionordeste-ne.com.br/compras-conjuntas-combate-a-pandemia/
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Nesse cenário de acirramento de disputas, cientistas, professores universitários e instituições de pesquisa (com maior exposição pública com a CPI da Pandemia e a produção de vacinas) se tornam relevantes sujeitos políticos de oposição ao governo federal e seus retrocessos. Ao mesmo tempo, o crescimento do interesse em ciência e da confiança em cientistas indica potenciais espaços de consensos entre posições políticas antagônicas em um contexto de polarização na sociedade.

Reconhecimento das instituições de pesquisa

A onda pró-ciência se expressa também no crescimento do reconhecimento das instituições de pesquisa pela população. Em 2022, no LOP 4, replicando questão da série histórica, 42,2% dos respondentes indicaram saber o nome de uma instituição de pesquisa, citando sobretudo o Instituto Butantã e a Fiocruz (Figura 3). Tal reconhecimento alcança 67,7% entre aqueles com mais de 5 SM, e 59,4% entre os com ensino superior. Em 2019, apenas 9,4% conheciam o nome de um instituto de pesquisa. O resultado de 2022 é cinco vezes maior do que o da pesquisa pré-pandemia. Além disso, na pesquisa mais recente, 26,2% declararam conhecer um cientista brasileiro, nomeando em especial Oswaldo Cruz e Carlos Chagas. O percentual é quase quatro vezes maior do que o de 2019, quando 7% sabiam citar um cientista brasileiro.

Figura 3
Reconhecimento de instituições de pesquisa - na série histórica e na internet.

A ampliação do interesse em instituições de pesquisa na pandemia é visível em dados coletados no motor de buscas do Google entre janeiro de 2019 e fevereiro de 2022. Na Figura 3C, o desempenho dos termos de pesquisa Fiocruz, Butantan, Oswaldo Cruz e Carlos Chagas forma evidente “onda pró-ciência”, com aumento significativo de consultas em 2021, período de início da vacinação contra a COVID-19 no país e da CPI da Pandemia.

Os dados refletem que a ciência e suas instituições alcançaram espaço proeminente no debate público, diante da necessidade de informações confiáveis e cientificamente embasadas, sobre o novo e trágico fenômeno, que passou rapidamente a afetar a todos.

As instituições de pesquisa e a comunidade científica tiveram atuação fundamental no combate à pandemia, apesar do cenário de cortes de recursos na área. Além dos institutos de pesquisa, as universidades ampliaram suas ações, articuladas à sociedade civil e a movimentos sociais e governos locais, sobretudo em regiões menos providas de serviços públicos. O painel “Universidades federais em defesa da vida”2424 SoU_Ciência. Universidades federais em defesa da vida - Painel da atuação na pandemia de Covid-19 [Internet] 2022. [acessado 2022 out 13]. Disponível em: https://dev-souciencia.unifesp.br/
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traz mais de mil ações em atenção à saúde, pesquisas e tecnologia, extensão e solidariedade, combate à fome e apoio à geração de trabalho e renda e comunicação com a sociedade.

No entanto, as pesquisas apontam que o crescimento do interesse em ciência, da credibilidade de cientistas e do reconhecimento dos institutos de pesquisa não se estende às universidades públicas. Nota-se a reduzida presença de universidades na nuvem de palavras citadas em resposta à indagação sobre nomes de instituições de pesquisa no país (Figura 3B). A tensão está presente também em declarações coletadas em grupos focais, com pessoas interessadas em ciência (o primeiro) e adversas às universidades públicas (o segundo).

Verificou-se que o reconhecimento da importância da ciência ficou mais explícito na pandemia, mesmo entre participantes pró-governo Bolsonaro:

Acredito que a ciência está em tudo, e depois da pandemia ficou mais do que óbvio [...] Nós precisamos de ciência no nosso dia a dia. Vocês viram a fabricação da vacina, se não tivessem cientistas empolgados ali estudando, a gente não teria a vacina hoje (grupo 1, pró-governo, feminino, 28 anos).

Com relação às universidades públicas, principal lugar da produção de ciência no Brasil, há falta de consenso e desconhecimento sobre a sua atuação. Nos debates, evidencia-se que o apoio ao governo Bolsonaro influencia na percepção sobre o tema, no entanto, há apoiadores desse governo que também reconhecem o papel das universidades:

Acredito que nas universidades [...], as públicas no caso, apesar de no momento existirem vários problemas por questões de financiamento e poucas verbas, eu acredito que nas universidades públicas, [...] a ciência está presente (grupo 1, pró-governo, feminino, 28 anos).

Acho que o foco das federais é em pesquisa de ciência, e a privada é mais no mercado de trabalho (grupo 1, pró-governo, masculino, 30 anos).

Entre participantes adversos às universidades públicas, as declarações a seguir foram obtidas após visualizarem a lista das melhores universidades do Brasil, segundo o ranking internacional Times Higher Education 2022:

É piada. Isso aqui é pura fake news (grupo 2, feminino, 37 anos).

Das dez melhores, oito são públicas? Não existe isso. Tudo que é de graça não presta. Se fosse privatizada, não estaríamos vivendo assim. [...] Você sai de lá [...] esquerda total (grupo 2, masculino, 28 anos).

Este mesmo participante, após ver um vídeo institucional sobre a atuação de uma universidade federal, ponderou:

A gente fala da universidade, mas acaba esquecendo que o pesquisador foi nascido e criado na universidade. É até bom para a gente pensar. Nem tudo é realmente o que a gente pensa (grupo 2, masculino, 28).

Apesar do importante aumento de interesse e reconhecimento da ciência, de cientistas e instituições de pesquisa, os dados mostram que há grande desconhecimento da sociedade sobre o tema. No LOP 2, em pergunta aberta (com respostas espontâneas) sobre o que é feito nas universidades públicas brasileiras, 40% apontaram pesquisa e ensino, no entanto, o dado mais preocupante é que 36,1% indicaram não saber. O desconhecimento é maior entre os de menores renda e escolaridade e aqueles identificados como estudantes, acima de 16 anos (40-42%). O percentual cai entre mais ricos, acima de 6 SM (26%), e com ensino superior (23%), refletindo o acesso desigual ao conhecimento.

No levantamento seguinte (LOP 3), identificou-se que a opinião sobre as universidades públicas é bastante distinta entre respondentes que avaliam o governo federal como ótimo/bom e os seus críticos. Estes últimos reconhecem o ensino qualificado (47,5%) e a pesquisa científica (69,2%), em contraste com as declarações de bolsonaristas, que destacam essas instituições como espaços de doutrinação (31,3%) e balbúrdia (26,7%).

Avaliação da condução da pandemia e do investimento em ciência

A crise pandêmica impactou de forma desigual a sociedade, afetando principalmente a população mais vulnerabilizada, com precarização do trabalho, violência de gênero, pobreza e fome2525 Oxfam. O vírus da desigualdade. Unindo um mundo dilacerado pelo coronavírus por meio de uma economia justa, igualitária e sustentável. Oxford: Oxfam; 2021.. Esse quadro teve reflexos na percepção pública de ciência na pandemia, com manifestações em diferentes segmentos sociais.

A LOP 5 expressou que 50% da população considera ruim ou péssima a condução da pandemia pelo governo Bolsonaro (Figura 4A). A reprovação é maior entre os de menor renda (64% dos com até 1 SM), jovens entre 16 e 29 anos (59%), menor escolaridade (58%), mulheres (55%) e negros (54%), segmentos geralmente em condições de maior vulnerabilidade e, por consequência, mais dependentes de políticas públicas.

Figura 4
Avaliação da condução da pandemia e de cortes em ciência pelo governo federal.

Por outro lado, os que consideram a condução do governo na pandemia como ótima e boa têm perfil oposto: renda acima de 6 SM (46%), ensino superior (36%), brancos (34%) e 40 a 49 anos (34%). Estes segmentos, em geral, têm maior acesso a sistemas privados de saúde e educação superior e, em tese, a informação qualificada, o que os torna menos vulneráveis à má conduta do governo na pandemia. Não casualmente, perfil similar apoia o governo Bolsonaro e votou por sua reeleição.

Sobre financiamento, em levantamento de 2021 (LOP1), 62,1% se posicionaram contrários aos cortes na ciência. Na pesquisa, 29% se declararam indiferentes ou não sabiam, sobretudo respondentes com menor escolaridade e renda. E 21,3% eram a favor dos cortes.

Em novo levantamento de 2022 (LOP 5), o mesmo percentual (62%) se manifestou contrário a cortes na ciência e ensino superior. A nova pesquisa reafirmou que a maioria dos brasileiros é favorável a investimentos no setor, enquanto apenas 11% apoiavam cortes (uma notável redução de dez pontos percentuais em relação à pesquisa anterior).

Em ambas pesquisas, a renda é fator relevante: os mais ricos (acima de 6 SM) são mais favoráveis a cortes na área: 13% em 2021 e 19% em 2022. A comparação mostra também que os mais ricos que se posicionam em defesa da ciência e das universidades públicas (e contrários aos cortes) tiveram redução significativa: de 66% em 2021 para 27% em 2022.

O contexto político eleitoral tem impacto evidente, haja vista que os mais ricos estão entre os que melhor avaliam o governo. No levantamento de 2022, entre respondentes que se declararam eleitores de Bolsonaro, 19% são favoráveis a cortes, e entre eleitores de Lula, apenas 5%. Mesmo assim, merece atenção que 55% dos apoiadores do então presidente são contra cortes, somando quase o triplo dos que apoiam o arrocho orçamentário. O dado indica relevante consenso entre posições políticas opostas sobre a importância do investimento em ciência, e que o tema pode propiciar espaços de diálogo e cooperação na sociedade brasileira.

Os resultados evidenciam que a polarização política tem classe, renda e cor. Entrevistados que mais defendem o investimento em ciência e pesquisa (Figura 4B) são principalmente, em dados de 2022: os mais pobres (82% até 1 SM e 68% de 1 a 3 SM), com menor escolaridade (75% sem instrução ou apenas fundamental), pretos e pardos (74% na média), do Norte (72%) e Nordeste (66%), mulheres (66%) e jovens (64%).

A sobreposição com segmentos identificados na questão anterior sobre a avaliação da conduta do governo na pandemia é reveladora: de um lado, os mais vulnerabilizados são os mais críticos ao governo e os que passaram a dar maior valor à ciência e à política pública na pandemia. Por outro, os que defendem os cortes (ou são indiferentes a eles) têm perfil oposto: renda acima de 6 SM (65%), brancos (48%), com ensino superior (47%), sulistas (43%), homens (37%) e evangélicos (37%) (Figura 4C). O paradoxo ainda mais explícito é que os segmentos com maior acesso a informação e educação superior são os que apoiam a destruição do sistema público de ciência, pesquisa e ensino superior no Brasil. Apenas 6% declararam não ter conhecimento sobre cortes, no entanto, 22% são indiferentes.

Acrescenta-se que parte expressiva do mesmo perfil (mais ricos, com ensino superior, brancos e homens), em questão sobre vacinação (LOP 5, de 2022), declarou não seguir as recomendações da ciência, pois não tomou vacina ou tomou apenas uma dose (sem eficácia necessária): 41% dos mais ricos, 32% dos com ensino superior, 29% dos brancos e 29% dos homens. O mesmo perfil coincide com o que melhor avalia a condução do governo na pandemia, mas pôde se proteger melhor do vírus, em comparação com segmentos de baixa renda e escolaridade, mais expostos e vulnerabilizados2121 Furtado L. Nasser MA. Nakano AK. Fegadolli C. Silva CG. Souza LR Rodrigues JF. Paula L. Bragagnolo LM. Pesquisa desigualdades e vulnerabilidades na epidemia de COVID-19: monitoramento, análise e recomendações. São Paulo: Unifesp/Tide Setubal; 2021..

Os dados revelam a desidentificação crescente das elites brancas brasileiras em relação ao sistema universitário e de pesquisa, que elas mesmas construíram em gerações anteriores. Apontam também comportamentos individualistas, de risco e negacionistas de parcela significativa das classes de maior renda na pandemia. Temas que merecem análise específica, que não será desenvolvida aqui. Importante lembrar que a primeira vítima mortal da COVID-19 no Brasil foi uma empregada doméstica, exposta ao vírus por patrões recém-chegados da Itália no início de 2020, um dos principais focos de propagação do vírus no Ocidente2626 Melo ML. Primeira vítima era doméstica e pegou coronavírus da patroa no Leblon [Internet]. UOL 2020. [acessado 2022 out 130]. https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/03/19/primeira-vitima-do-rj-era-domestica-e-pegou-coronavirus-da-patroa.htm
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As pesquisas expressam a emergência de uma onda pró-ciência na percepção pública brasileira, em especial entre segmentos historicamente apartados do universo científico e da educação superior, que passaram a ter maior acesso e interesse. Reconhecer os perfis pró-ciência em suas dimensões de cor ou raça/etnia e de classe é muito relevante, inclusive para orientar condutas. A negros e indígenas, a política de cotas, ao garantir 50% de vagas para egressos do ensino médio público, trouxe maior acesso ao sistema público de educação superior99 Arantes P. Higher education in dark times: from the democratic renewal of Brazilian universities to its current wreck. Policy Rev Higher Educ 2021; 5(4):131-157.. Os dados revelam que são justamente esses segmentos que mais apoiam a ciência na atualidade. O fato desafia a ciência a ampliar a compreensão dos problemas da maioria do povo brasileiro, sobretudo negro, indígena, mais pobre e menos instruído, que hoje constitui vetor de força civilizatória contra a barbárie. Diante da destruição do sistema universitário público apoiada pelas elites, é necessário decolonizar e deselitizar nossas universidades, bem como defendê-las contra cortes e ataques difamatórios.

Informação e comunicação sobre ciência e universidades públicas

No contexto de “superabundância de informações”, disputas políticas têm colocado em questão a confiança da população na ciência e nas universidades, com narrativas que por vezes vão de encontro ao próprio conhecimento científico e às instituições democráticas2727 Oliveira T. Como enfrentar a desinformação científica? Desafios sociais intensificados no contexto da pandemia. Liinc em Revista 2020; 16(2):e5374. Conflitos incluem a perseguição de cientistas e professores universitários, que tiveram de sair do país ao sofrerem ameaças por seu trabalho científico2828 Evangelista R. Ao negar a política, ciência cede ao obscurantismo [Internet]. 2020. [acessado 2022 out 13]. Disponível em: https://outraspalavras.net/crise-brasileira/quando-nega-a-politica-ciencia-cede-ao-obscurantismo/
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. Fatos que explicitam a associação do negacionismo da ciência a movimentos de extrema-direita, que utilizam o “ódio como política”, transformando adversários em inimigos a serem eliminados e indicam que cientistas estão se posicionando como atores relevantes na arena política.

A onda pró-ciência revelada nas pesquisas está associada a uma postura ativa de cientistas e comunicadores científicos na pandemia. Diante da negligência e da falta de orientações com base em evidências científicas por parte do governo federal, cientistas se colocaram em contato direto com a população e outros níveis de governo, criando formatos para a relação cientista-cidadão, ampliando capilaridade e velocidade de circulação de informação e diálogo, contribuindo para popularizar e deselitizar o acesso à ciência2929 Escobar H. A ciência contra o negacionismo: cientistas ganham espaço nas redes sociais, mas ainda é preciso crescer muito para superar a influência de grupos obscurantistas [Internet]. 2021. [acessado 2022 out 13]. Disponível em: https://jornal.usp.br/ciencias/a-ciencia-contra-o-negacionismo/
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. Pesquisas nas mídias digitais apontam o crescimento de canais, perfis e publicações de cientistas e do engajamento de usuários em perfis sobre ciência, com evidências da influência positiva no interesse da população por informações embasadas cientificamente3030 Gelape L, Spagnuolo S. Um ano de discussões científicas no Twitter: avaliando o impacto da divulgação científica na pandemia [Internet]. Science Pulse 2021. [acessado 2022 out 13]. Disponível em: https://abori.com.br/wp-content/uploads/2021/09/Relatorio-UM-ANO-DE-DISCUSSOES-CIENTIFICAS-NO-TWITTER_-AVALIANDO-O-IMPACTO-DA-DIVULGACAO-CIENTIFICA-NA-PANDEMIA-1.pdf
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Em levantamento de 2021 (LOP 1), em relação à pergunta «Quais são os formatos de informação que você considera mais interessantes para se informar sobre a pandemia, saúde e ciência?», a maioria (61%) considera as reportagens na TV aberta o melhor meio de acesso à ciência (Figura 5B). É interessante notar que o segmento crítico ao governo Bolsonaro é ainda mais favorável a esse formato (72,4%), contra 41% de seus apoiadores. A pesquisa apontou que 39,8% dos entrevistados têm interesse por “artigos científicos”, cabendo esclarecer que em grupo focal constatou-se que esses artigos podem ser apenas reportagens que citam dados produzidos por uma pesquisa ou cientista.

Figura 5
Fontes de informação sobre ciência.

Sobre universidades, em resposta espontânea (não estimulada) à pergunta sobre “O que gostaria de saber mais sobre as universidades públicas brasileiras?”, a transparência no uso de recursos foi citada em primeiro lugar, por 11,4%, atingindo até 20% dos respondentes de nível superior, maior renda e pró-Bolsonaro. Em segundo lugar, a demanda por informação sobre políticas de cotas, acesso e permanência (9,9%), sendo esse interesse maior entre críticos do governo (12,9%) do que entre apoiadores (3,5%), e maior ainda entre desempregados/sem renda (15,4%). A preocupação com cortes orçamentários e seus impactos foi o terceiro tema mais citado (6,8%), e o que mais interessa a estudantes (12,7%).

Ao refletir sobre “a universidade do século XXI”, Santos44 Santos BS. A universidade do século XIX. Coimbra: CES; 2004. propõe uma reforma criativa, democrática e emancipatória, que “tem por objetivo central responder positivamente às demandas sociais pela democratização radical da universidade, pondo fim a uma história de exclusão de grupos sociais e seus saberes”44 Santos BS. A universidade do século XIX. Coimbra: CES; 2004. (p. 51). A onda pró-ciência na pandemia pode ser uma janela de oportunidade para re-situar o papel da universidade pública na resolução coletiva de problemas sociais e ampliar o acesso e a articulação com a sociedade politicamente organizada e movimentos sociais, para que se torne efetivamente popular.

Considerações finais

Em resposta à questão de pesquisa: “A pandemia da COVID-19 alterou a percepção da sociedade brasileira sobre ciência, cientistas e universidades?”, as análises expressaram que a crise pandêmica evidenciou o papel da ciência, de cientistas e instituições, alterando a percepção pública brasileira, ampliando o interesse da população a respeito do tema, a confiabilidade em cientistas e o reconhecimento de instituições de pesquisa. Diante da catástrofe de centenas de milhares de mortes, parcela expressiva da sociedade (com diferenças entre classe, cor ou raça/etnia e gênero) passou a buscar informação embasada em evidência científica.

Passado o período em que a pandemia apresentou seu caráter mais agressivo, com mais de 690 mil óbitos, com as vacinas alcançando efetividade na proteção da população, cabe indagar: será essa onda pró-ciência duradoura? O que contribui para que perdure no tempo, impactando gerações e políticas públicas? Como manter um novo patamar de interesse por ciência e criar mobilização nacional - como força social contra o obscurantismo e a regressão democrática?

Com o debate público voltando-se para a crise econômica, o desemprego e a pobreza, de que maneira a ciência e as universidades seguirão atuando no enfrentamento a problemas decisivos, como a (in)segurança alimentar, o aquecimento global, a precarização do trabalho e do cuidado e outros gerados pelo atual sistema produtivo destruidor do planeta e de seus coabitantes? Como provocou Santos, em 20203131 Santos BS. A cruel pedagogia do vírus. Coimbra: Almedina; 2020., em que medida a “cruel pedagogia do vírus” trouxe aprendizados que resistirão no tempo? Em que medida gerou mudanças epistemológicas, culturais e ideológicas para criar novas articulações políticas, econômicas e sociais por direitos e novos modos de vida, produção e trabalho?

Para que a onda pró-ciência não desapareça no pós-pandemia de COVID-19 e a ciência e as universidades brasileiras sigam atuando pela vida e pela reconstrução (ou melhor, reinvenção) do Brasil no pós-Bolsonaro, será fundamental recompor e ampliar as políticas e financiamentos da ciência, da educação superior e da pesquisa, baseados no fortalecimento do diálogo e da articulação (em via de mão dupla) com a vida cotidiana da imensa maioria da população brasileira e na participação efetiva da sociedade em toda a sua diversidade.

Agradecimentos

Colaboraram na pesquisa: Meyrele Nascimento e os estudantes: Ana Paula Cruz, Nelson Passos, Pedro Antonelli, Washington Lira, Bárbara Montalva e Nicole Santos.

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  • Financiamento

    As pesquisas foram desenvolvidas com financiamento da Fundação Tide Setúbal e parceria com o Instituto Ideia.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    Dez 2023

Histórico

  • Recebido
    17 Dez 2022
  • Aceito
    15 Jun 2023
  • Publicado
    17 Jun 2023
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br