“EU QUERO me exercitar”: as controversas recomendações para a atividade física em site do Ministério da Saúde

“I WANT to exercise”: the controversial recommendations for physical activity on the Ministry of Health website

Bárbara Coelho Nunes Alan Goularte Knuth Sobre os autores

Resumo

Este artigo tem o objetivo de analisar os conteúdos sobre atividade física veiculados no site Saúde Brasil, do Ministério da Saúde, no período entre 2017-2020, descrevendo-os e discutindo as interfaces (in)existentes entre os materiais publicados e o campo da Educação Física e Saúde Coletiva. Por meio de ferramentas netnográficas foram localizadas 98 publicações que dialogam com atividade física/exercício físico/prática corporal, veiculadas durante quatro anos. Pode-se observar que a vertente comportamental da promoção da saúde permeia todo o material, sendo admitidas três perspectivas de recomendações para a prática de atividade física: esportivizada, atividade física diária e generalizada. São analisados e refletidos esses enfoques, juntamente com a carência do domínio do lazer nas recomendações, o esvaziamento de vinculação com ações do Sistema Único de Saúde e a ausência de recortes que considerem as desigualdades sociais e econômicas no país que atingem o processo saúde-doença, e consequentemente, a prática de atividades físicas. Torna-se necessário que campanhas comunicativas de incentivo ao movimento considerem, além desses pontos, o reconhecimento da atividade física como um direito humano e o compromisso com uma sociedade mais justa e equânime.

Key words:
Communication in health; Physical activity; Unified Health System

Abstract

The scope of this article is to analyze the contents regarding physical activity posted on the Brazil Health website of the Ministry of Health, between 2017-2020, describing them and discussing the (non-)existent interactions between the contents published and the Physical Education and Public Health area. Through net ethnographic tools, 98 publications that deal with physical activity/physical exercise/corporal practices were located, which were posted on the website over four years. It was observed that the behavioral aspect of health promotion is predominant in all the content, and three perspectives on physical activity recommendations were identified: “sportivized,” daily and generalized physical activity. These approaches are analyzed and considered along with the lack of the predominance of leisure in the recommendations, the absence of coordination with SUS programs and policies, and the lack of clippings that assess the social and economic inequalities in the country that affect the health/disease process and, consequently, the practice of physical activities. In addition to these points, it is essential that communication campaigns to encourage the movement treat the recognition of physical activity as a human right and foster the commitment to a fairer and more equitable society.

Key words:
Communication in health; Physical activity; Unified Health System

Introdução

O avanço das Tecnologias Digitais da Informação e da Comunicação (TDICs) e a expansão do acesso à internet proporcionaram novas formas de relação com a saúde. A Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2005, destacou as potencialidades do eHealth, incentivando, desde então, os países membros a tomarem medidas para a incorporação das ferramentas em seus sistemas11 World Health Organization (WHO). Report 58º World Health Assembly (HA58.28). Geneva: WHO; 2005.. Em 2018, o reconhecimento da OMS também ocorreu ao fenômeno do mHealth, visualizando que essas novas tendências, como dispositivos vestíveis e aplicativos móveis, podem desempenhar um papel significativo nos serviços e sistemas de saúde, procurando estabelecer orientações para apoiar os países na implementação de ambos22 Word Health Organization (WHO). Report Executive Board 142/20. Geneva: WHO; 2017. e, consolidando-as, com a publicação da Estratégia Global para a Saúde Digital33 Word Health Organization (WHO). Global strategy on digital health 2020-2025. Geneva: WHO; 2021., em 2021. Cenário que amplificou de maneira significativa as práticas comunicativas de prevenção e promoção da saúde organizadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS), especialmente nos últimos anos.

No Brasil, a publicação da Política Nacional de Informação e Informática em Saúde (PNIIS), em 2015, marca o início de uma série de documentos produzidos44 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Política Nacional de Informação e Informática em Saúde. Departamento de Monitoramento e Avaliação do SUS. Brasília: MS; 2016.

5 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Comitê Gestor da Estratégia e-Saúde. Estratégia e-saúde para o Brasil. Brasília: MS; 2017.

6 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Departamento de Informática do SUS. Estratégia de Saúde Digital para o Brasil 2020-2028. Brasília: MS; 2020.
-77 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Departamento de Informática do SUS. Plano de Ação, Monitoramento e Avaliação da Estratégia de Saúde Digital para o Brasil 2019-2023. Brasília: MS; 2020., dentre outros objetivos, para fomentar a saúde digital no país. O estabelecimento de estratégias de comunicação social para o fortalecimento de ações em promoção da saúde é um dos objetivos da Política Nacional de Promoção da Saúde (PNPS), contemplando o desafio de fazer com que o Ministério da Saúde (MS) assuma o papel indutor de informações sobre prevenção e promoção da saúde na internet88 Malta DC, Morais Neto OL, Silva MMA, Rocha D, Castro AM, Reis AAC, Akerman M. Política Nacional de Promoção da Saúde (PNPS):capítulos de uma caminhada ainda em construção. Cien Saude Colet 2016; 21(6):1683-1694.. Em 2021, com a atualização da PNIIS, institui-se como uma das duas diretrizes, a promoção de hábitos saudáveis por meio da disponibilização de informações, visando que a população se torne gerenciadora da sua própria saúde99 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 1.768, de 30 de julho de 2021.Altera o anexo XLII da Portaria de Consolidação nº 2, de 28 de setembro de 2017. Diário Oficial da União; 2021..

É nesse contexto que, em 2017, o MS lançou o site Saúde Brasil, com o intuito de incentivar e apoiar os brasileiros através de publicações que promovam a qualidade de vida, colaborando para adoção de hábitos saudáveis1010 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Site Saúde Brasil [Internet]. [acessado 2021 maio 13]. Disponível em: saudebrasil.saude.gov.br.
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. Dentre os conteúdos disponíveis no site, são apresentados quatro pilares temáticos que envolvem o abandono do cigarro, o peso adequado, a alimentação equilibrada e a prática de exercícios físicos, temas presentes na PNPS1111 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Política Nacional de Promoção da Saúde. Brasília: MS; 2015.. Por ser o principal canal de produção de informações sobre prevenção e promoção da saúde do MS, os conteúdos do site Saúde Brasil têm seu alcance alastrado nas mídias sociais, através da repostagem dos materiais nas páginas oficiais do órgão. Em meio à propagação volumosa e acelerada de informações falsas ou distorcidas na internet, especialmente após o início da pandemia de COVID-19, houve um maior apelo para que a população privilegiasse as buscas em sites oficiais de instituições reconhecidas para informarem-se, intensificando assim, o acesso e o consumo dos conteúdos produzidos por esses órgãos, como o MS.

Assim, procuramos com este artigo, realizar uma análise do discurso institucional, na pretensão de compreendermos as abordagens veiculadas sobre a atividade física (AF). É claro que, pela internet ser um instrumento e campo de constante disputas de narrativas1212 Castells M. A Galáxia da Internet. Rio de Janeiro: Zahar; 2003., as repercussões da saúde e do movimento em produções governamentais acabam por refletir esses interesses, permeados por processos sociais e políticos que revelam a necessidade de olharmos para estas produções. Ainda que a análise perpasse o período de dois governos distintos, não apontaremos os achados em um sentido comparativo, por mais que cada programa de governo possa trazer suas intencionalidades e mereçam sempre um olhar crítico.

Programas e estratégias governamentais de cunho informacional para promoção da AF já foram analisadas anteriormente1313 Fraga AB. Exercício da Informação: governo dos corpos no mercado da vida ativa [tese] Rio Grande do Sul: Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2005.

14 Ferreira MS. Agite Antes de Usar...A Promoção da Saúde em Programas Brasileiros de Promoção da Atividade Física: o caso do Agita São Paulo [tese]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca; 2008.
-1515 Abib LT. O Governo De Si E Dos Outros Em Dispositivos De Saúde Móvel: reflexões sobre o "movimento 21 dias por uma vida mais saudável" [tese] Espírito Santo: Universidade Federal do Espírito Santo; 2019., denunciando o caráter de ações descontextualizadas da realidade da população, direcionadas exclusivamente para os comportamentos individuais, utilizando-se de discursos calcados nos riscos e na medicalização da AF, configurando-se em uma biopolítica informacional1313 Fraga AB. Exercício da Informação: governo dos corpos no mercado da vida ativa [tese] Rio Grande do Sul: Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2005.. Sob essas lentes, que se pautam nas leituras críticas da Educação Física e Saúde Coletiva, é que assentaremos nosso artigo, visualizando os novos contornos e possibilidades que as estratégias informacionais da AF ganham com os avanços das TDICs. Para buscar compreender esse processo, o objetivo desta pesquisa é analisar os conteúdos sobre AF veiculados no site Saúde Brasil, no período de 2017-2020, descrevendo-os e discutindo as interfaces (in)existentes entre os materiais publicados e o campo da Educação Física e Saúde Coletiva.

Métodos

Empregou-se nesta pesquisa qualitativa os preceitos metodológicos da netnografia, que consiste em um método exploratório, baseado no trabalho de campo on-line1616 Kozinets R. Netnografia: Realizando pesquisa etnográfica online. Porto Alegre: Penso; 2014.. A partir do ingresso cultural1616 Kozinets R. Netnografia: Realizando pesquisa etnográfica online. Porto Alegre: Penso; 2014., foi realizada uma observação inicial dos portais, sites, aplicativos móveis e mídias sociais do MS e, de acordo com os objetivos da pesquisa, foi selecionado o site Saúde Brasil como campo e objeto do estudo, visando o importante lugar que ocupa na disseminação de informações produzidas ministerialmente sobre prevenção e promoção da saúde.

Sendo assim, foram realizadas buscas no site Saúde Brasil e capturadas as publicações que resultaram das pesquisas pelos termos “atividade física”, “exercício físico”, “prática corporal” e suas flexões no plural, utilizando o filtro “expressão exata”, possibilitado na busca pelo site. Nuances e reflexões identificados, decorrentes do processo de coleta dos dados, foram expressos em diários de navegação, que consistiram em anotações no documento Word. Foram descritos, nesse diário, aspectos que sobressaíram aos demais e um detalhamento sobre a imersão no site, que pôde contribuir com a organização do material e a análise dos dados.

A captura das publicações iniciou no mês de setembro de 2020 e coletou os dados arquivais1616 Kozinets R. Netnografia: Realizando pesquisa etnográfica online. Porto Alegre: Penso; 2014. das publicações que foram veiculadas no site desde seu lançamento, em 2017. Foram armazenadas, em documentos individuais no formato Word, todas publicações resultantes da busca (n=178), ao partir do conteúdo da reportagem na íntegra, que era composto pelo seu título e subtítulo, data de postagem, material textual e imagético. Estes documentos foram organizados em pastas referentes ao ano em que a publicação foi postada. As publicações que consistiram somente em material audiovisual, podcasts ou que não puderam ser acessadas por erro no site não foram capturadas, da mesma forma que ocorreu a exclusão de publicações repetidas (n=80). Após esse processo, realizamos a compilação das publicações em um único arquivo, com o objetivo de observá-las na sua totalidade. Assim, o material analisado corresponde a 98 publicações que dialogam com atividade física/exercício físico/prática corporal. O material primário da análise está depositado no Repositório SciELO1717 Nunes BC, Knuth AG. Data for: "EU QUERO me exercitar": as controversas recomendações para a atividade física em site do Ministério da Saúde [Internet]. Disponível em: https://doi.org/10.48331/scielodata.RWL9FH. SciELO Data, V1, 2022.
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. Os trechos extraídos das publicações coletadas do site Saúde Brasil serão apresentados ao longo do artigo, com seu texto entre aspas e a data da postagem entre parênteses.

Para análise dos dados netnográficos foram considerados os passos propostos por Robert Kozinets (2014), baseado em uma abordagem indutiva, que consistiu, primeiramente, em uma leitura atenta das publicações e a realização do processo de codificação, identificando rótulos a partir das distinções e semelhanças averiguadas no material analisado. Os rótulos compostos nessa etapa foram produzidos após a análise do material e consistiram em: recomendações da AF; fontes; benefícios e riscos; e SUS. Estes fragmentos dos materiais foram analisados separadamente e, na sequência, verificados e refinados com a totalidade do material coletado. Por fim, uma formulação de grupos de análise não apriorísticos foi produzida e sustentada conceitualmente no campo teórico da Educação Física e Saúde Coletiva1818 Nogueira JA, Bosi ML. Saúde Coletiva e Educação Física: distanciamentos e interfaces. Cien Saude Colet 2017; 22(6):1913-1922..

Compreendemos a Saúde Coletiva, segundo Nunes1919 Nunes ED. Saúde Coletiva: uma história recente de um passado remoto. In: Campos GWS, Minayo MCS, Akerman M, Drumond Júnior M, Carvalho YM, organizadores. Tratado de Saúde Coletiva. 1ª ed. São Paulo, Rio de Janeiro: Editora Hucitec/Fiocruz; 2009. e Paim e Naomar Filho2020 Paim JS, Almeida Filho N. Saúde Coletiva: uma "nova saúde pública" ou campo aberto a novos paradigmas? Rev Saude Publica 1998; 32(4):299-316., como um campo científico e âmbito de práticas, de natureza ampla e interdisciplinar, edificada contemplando três núcleos de saberes principais, que consistem na epidemiologia, nas ciências humanas e sociais, e no planejamento, políticas e gestão em saúde1919 Nunes ED. Saúde Coletiva: uma história recente de um passado remoto. In: Campos GWS, Minayo MCS, Akerman M, Drumond Júnior M, Carvalho YM, organizadores. Tratado de Saúde Coletiva. 1ª ed. São Paulo, Rio de Janeiro: Editora Hucitec/Fiocruz; 2009.. Origina-se alinhada aos ideais de compromisso com o direito à saúde, de forma universal e equânime, além de estar imbricada com as necessidades de vida e, consequentemente, de saúde da população, ao passo que reconhece os atravessamentos dos diferentes aspectos biológicos, sociais, econômicos, políticos e culturais, principalmente ao buscar a constante horizontalização dessas interfaces na produção do conhecimento e nas práticas de cuidado1919 Nunes ED. Saúde Coletiva: uma história recente de um passado remoto. In: Campos GWS, Minayo MCS, Akerman M, Drumond Júnior M, Carvalho YM, organizadores. Tratado de Saúde Coletiva. 1ª ed. São Paulo, Rio de Janeiro: Editora Hucitec/Fiocruz; 2009.,2020 Paim JS, Almeida Filho N. Saúde Coletiva: uma "nova saúde pública" ou campo aberto a novos paradigmas? Rev Saude Publica 1998; 32(4):299-316.. Busca-se aqui, desnaturalizar e problematizar alguns aspectos que têm sido produzidos e disseminados de maneira acrítica, revelando a necessidade de observarmos os aspectos históricos e sociais nos fenômenos que envolvem a relação intrínseca entre saúde, movimento e sociedade.

Resultados e discussão

As buscas no site Saúde Brasil resultaram em publicações específicas sobre a AF (n=76), publicações sobre temas que dialogam tanto com a AF quanto com os demais pilares do site, como por exemplo, hábitos saudáveis, obesidade, saúde mental, programas e políticas públicas de saúde (n=13) e publicações com o foco central na alimentação saudável e no abandono do cigarro (n=9). Cabe salientar que, independentemente do seu tema central, todas as publicações recomendam a prática regular de AF, sendo designada de algum modo no seu conteúdo. Mesmo que as publicações apresentem semelhanças entre si e recomendem a prática de AF, existem algumas distinções de como e, sob quais enfoques, essas orientações são feitas. São a partir dessas diferenciações, observadas ao analisarmos os dados, que pudemos construir as perspectivas apresentadas no Quadro 1, exemplificadas por meio de alguns trechos extraídos do site Saúde Brasil. Um aspecto que deve ser esclarecido para compreensão de todos os leitores, é sobre os domínios da AF. Compreende-se AF como qualquer movimento corporal produzido pelos músculos esqueléticos que resulte em gasto energético e as diferentes formas de realizá-la são abarcadas pelos domínios da AF. Estes, caracterizam-se em quatro grandes grupos: as AFs desempenhadas nas atividades domésticas (AF realizada nos cuidados com o lar), no trabalho (AF realizada ambiente ocupacional ou decorrente da profissão), no lazer (AF realizada no tempo livre) e nos deslocamentos ativos.

Quadro 1
Perspectivas e recomendações de AF no site Saúde Brasil do Ministério da Saúde no período de 2017-2020.

Isto posto, em um primeiro momento, especialmente nos primeiros anos do site, 2017 e 2018, são observadas publicações (n=15) que recomendam para os leitores diferentes práticas esportivas (voleibol, natação, futebol), revelando os diversos benefícios das modalidades para saúde, o desenvolvimento de aptidão física e seu papel na prevenção de doenças. Essas publicações são embasadas por entrevistas concedidas por atletas e ex-atletas, medalhistas olímpicos e campeões mundiais que dão orientações aos leitores sobre suas modalidades, descrevem quem pode realizar a prática, quais cuidados devem ser tomados antes de começá-la, de que forma aprimorar o desempenho e explicam os benefícios que o esporte exerce na saúde. A sustentação dessas recomendações parte de uma perspectiva esportivizada das recomendações para AF e sua relação com a saúde, mostrando nas publicações as vantagens de ser um atleta e como as práticas esportivas promovem uma vida saudável, compreensão essa, que foi construída historicamente com o papel fundamental dos meios de comunicação2121 Melo VA. "Esporte é saúde": desde quando? Rev Bras Cien Esporte 2001; 22(2):55-67..

No contexto brasileiro, as práticas esportivas são culturalmente apreciadas, sendo uma AF importante de ser destacada e incentivada nas recomendações para saúde. Cabe pensarmos que, por outro lado, é visualizado um destaque desproporcional ao esporte, comparado às demais manifestações da cultura corporal (danças, ginásticas, jogos e lutas), que escassamente aparecem como o objeto central de publicações no site.

As propostas deste enfoque são indicadas para realização no tempo livre, que perpassam aspectos como a formação, o divertimento, a socialização e os gostos de cada sujeito, extrapolando a intencionalidade recorrente no material, de realizá-las em busca de outros benefícios, que não a prática em si. Entretanto, sua bagagem composta de sentidos culturais e sociais não é valorizada nas publicações, que se ocupam, essencialmente, de destacar os benefícios fisiológicos da prática esportiva, a ampliação do rendimento e o aprimoramento do condicionamento físico proporcionado pelos esportes, limitando e reduzindo as potencialidades que essa manifestação cultural carrega.

Nessa perspectiva, são propostas modalidades que muitas vezes exigem, para sua prática, um local específico ou materiais essenciais, como o caso da natação, por exemplo. A necessidade de um ambiente em que o esporte possa ser realizado não é observado como um problema para a sua recomendação, nem mesmo a escassez da oferta destes espaços, pelo contrário: “Felizmente, temos um bom número de piscinas públicas no país. [...] Nem todo mundo pode arcar com os custos de uma aula de natação e acaba aproveitando o que está à mão, como a piscina do condomínio ou a do clube” (25/07/2017)1010 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Site Saúde Brasil [Internet]. [acessado 2021 maio 13]. Disponível em: saudebrasil.saude.gov.br.
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. Lamentavelmente, a comemoração das restritas possibilidades disponíveis aos brasileiros para a prática de AFs, mostra-nos como as recomendações realizadas no site partem de uma realidade deslocada do cenário vivenciado pela população. Nessa mesma linha, são indicados certos cuidados com a vestimenta utilizada em cada modalidade esportiva, os equipamentos de proteção adequados, os calçados que promoverão uma melhor performance, entre outros aspectos externos que influenciariam a prática, como o seguinte trecho exemplifica: “Vista-se adequadamente e não economize no calçado. [...] Muitas vezes a pessoa tem um tênis guardado na caixa e diz que ainda está novinho e que pode usar. Por causa do clima, ele pode estar ressecado. Então, o melhor é apostar em um tênis novo, mesmo no início, ainda na caminhada” (10/08/2017)1010 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Site Saúde Brasil [Internet]. [acessado 2021 maio 13]. Disponível em: saudebrasil.saude.gov.br.
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. Excertos como esse, acentuam uma falta de compreensão da realidade social brasileira, o que acaba por distanciar grande parte da população que não possui condições financeiras de usufruir das práticas indicadas, que normalmente são ofertadas no setor privado. O mesmo ocorre ao incitar um investimento financeiro descabido em apetrechos, vestimentas ou materiais.

Em um segundo momento, podemos destacar as publicações (n=23) que direcionam as recomendações para as AFs diárias, que podem ser realizadas em qualquer lugar, inserida em hábitos rotineiros. Dessa forma, estas publicações priorizam, enfaticamente, as recomendações de AF nos domínios do deslocamento, do trabalho e das atividades domésticas. Agrupado a este conjunto, as orientações revelam também a necessidade de uma diminuição do comportamento sedentário. Essa predominância acontece, principalmente, nos anos seguintes, em 2019 e 2020, mas fragmentos dessas orientações de incentivo para prática de AF é visualizada durante todo período analisado. É durante estes anos que o MS começa a elaboração do Guia de Atividade Física para a População Brasileira, publicado em 2021, que direciona recomendações para a prática de AF pela população, apoiando-se na lógica dos domínios da AF, identificada também, em parte, nessa perspectiva.

São propostas dicas e estratégias que devem ser adotadas pela população na realização de AFs que possam ser praticadas no dia a dia, com o objetivo de ampliar o tempo de movimentação corporal, o gasto energético e diminuir o comportamento sedentário. A prioridade de realizar determinados comportamentos identificados como saudáveis na rotina é enfatizada nas recomendações, excluindo assim, as possibilidades de AF no lazer. Esse domínio, aliás, é pouco explorado nas publicações em geral, e neste enfoque específico é quase inexistente, distinguindo essa perspectiva das demais, ao centralizar enfaticamente as recomendações para a prática de AF em ações que não consideram o tempo livre, sugerindo comportamentos diários e individuais que podem ser adicionados ao tempo de AF do dia e que, em grande parte, são realizados compulsoriamente pela população.

As publicações veiculadas neste período de análise são marcadas pela acentuação de uma instrumentalização da AF em que, justifica-se e incentiva-se sua execução, a partir de um valor final que advém das contribuições físicas (saúde, estética, diminuição dos riscos), emocionais (diminuição do estresse, depressão, ansiedade), econômicas (menos gasto com transporte, combustível, lavagem do carro) e, até mesmo, de rendimento, como o apelo ao aumento da produtividade no trabalho. Sua proposta, neste sentido, não perpassa valores e subjetividades que estão imbricadas ao movimento humano e ao sentido dado às práticas por cada pessoa que as realizam, especialmente quando feitas no âmbito do lazer. Torna-se assim, um meio para alcançar outros objetivos, de diferentes classes, que não um fim nela mesma, conferindo novos valores, expectativas e vinculações, que são distintos àqueles que a promoveram como um direito de todos, essencial ao nosso desenvolvimento humano enquanto cidadãos2222 Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Movimento é Vida: Atividades Físicas e Esportivas para Todas as Pessoas. Brasília: PNUD; 2017.. O que seria, dentre outras, uma oportunidade de usufruir de um tempo para si mesmo através da movimentação, sobretudo no lazer, cada vez mais escasso nos tempos atuais é, infelizmente, pouco incentivado pelas publicações no site do MS. Mostra-se limitada e restrita as possibilidades de vivências corporais que permitam experiências reflexivas e educativas, a partir de uma visão crítica e emancipatória das diferentes dimensões que circundam os sujeito, sejam elas, formativas, subjetivas, sociais e políticas. Compreendemos que o movimento tem seu potencial no enriquecimento da vida das pessoas, na medida em que seu incentivo e promoção estejam entrelaçados nesses aspectos.

Deste modo, mesmo que as sugestões referidas no site Saúde Brasil tratem de opções que podem ser realizadas no dia a dia, sem custos financeiros e alegando, até mesmo, uma economia ao mudar os hábitos, as recomendações são destinadas a um retrato elitizado da sociedade, que não condiz com a rotina de grande parte das pessoas neste país. As recomendações beiram, de um lado, ações que não são passíveis de realização, por não fazerem parte da realidade dos sujeitos (uso de elevador, trabalhar em escritório, possuir automóvel) e, de outro, ações que já fazem parte do dia a dia, não pela disposição de atender os apelos em busca do aumento dos seus níveis de AF, mas sim, pela necessidade das circunstâncias de vida (deslocar-se a pé ou de bicicleta, serviços domésticos). Ao promover orientações que incentivam a realização de AFs sem distinguir as características dos domínios, o reconhecimento das desigualdades socioeconômicas e as influências do contexto sociocultural nessa relação, os aconselhamentos se distanciam da realidade da população e fomentam uma perspectiva simplista e equivocada, de que basta querer para movimentar-se2323 Knuth AG, Antunes PC. Práticas corporais/atividades físicas demarcadas como privilégio e não escolha: análise à luz das desigualdades brasileiras. Saude Soc 2021; 30(2):e200363.. Essa observação é reforçada pelo destaque dado, na página inicial do site, ao ícone que encaminha para as publicações sobre AF, apresentando ao leitor o título, com sua mensagem direta e firme: “EU QUERO me exercitar”. Ao clicar, estão disponíveis as informações, as estratégias, os comportamentos que devem ser adotados, revelando assim que, o necessário para alcançar a vida saudável é somente a sua própria vontade. Na medida em que são exemplificadas formas de movimentar-se, os riscos e benefícios da prática, a cada leitor fica então, a responsabilidade de cumprir os parâmetros recomendados, além da parcela de vontade, do “QUERER se exercitar”, fomentando a autogestão e o autocuidado em prol da saúde, cenário compatível com os imperativos neoliberais que priorizam a reduzida intervenção do Estado em questões sociais2424 Castiel LD, Guilam MC, Ferreira MS. Correndo o risco. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2010., como a saúde.

Por mais que incentivem práticas ditas como prazerosas, não se observa essa coerência em todas as orientações realizadas, como demostra o trecho a seguir, em publicação que propõe estratégias para o aumento da AF no “combate a obesidade infantil”: “Faça com que ela [criança] caminhe ao máximo. Caminhadas, em ritmo acelerado, ajudam a queimar calorias. Não leve a mochila para ela e deixe que ela empurre o carrinho até a porta da sala de aula [...] isso também ajudará no gasto calórico. [...] Resgate as atividades ao ar livre. [...] São tantas opções baratas e divertidas que elas vão amar” (04/06/2018)1010 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Site Saúde Brasil [Internet]. [acessado 2021 maio 13]. Disponível em: saudebrasil.saude.gov.br.
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. O que se percebe é uma obrigatoriedade em encontrar formas de ser ativo em qualquer situação, quando é evidenciado que não se possui preocupação com uma prática que gere satisfação para os sujeitos e, nem mesmo, a busca de uma proposta condizente que promova educação para a saúde.

É revelado como uma das “vantagens” que: “Você nem vai perceber que está praticando uma atividade física” (18/09/2019)1010 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Site Saúde Brasil [Internet]. [acessado 2021 maio 13]. Disponível em: saudebrasil.saude.gov.br.
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. Cabe aqui questionarmos como o “não perceber” a prática de alguma AF tornou-se um argumento plausível para incentivá-la? Por quais motivos estas ações “despercebidas” seriam boas ou se tornariam a razão para praticá-la? Essas afirmações presentes nos textos do site Saúde Brasil moldam uma visão de movimentação corporal baseada enfaticamente e, muitas vezes, exclusivamente, no gasto calórico e no cumprimento do tempo previsto nas recomendações oficiais, sem o compromisso com práticas que estejam alicerçadas nos valores e ideais da promoção da saúde ou em uma comunicação e educação em saúde baseadas nos valores do SUS.

A destituição do caráter lúdico, hedonístico e a complexidade cultural, histórica e subjetiva que o movimento e a sua relação com a sociedade possuem, vem sendo excluída e desvalorizada. O apagamento, por exemplo, da utilização do termo práticas corporais nas publicações é mais um dos indícios desse cenário, em que, dentre as 98 publicações analisadas, apenas 3 resultaram da sua busca, ambas veiculadas durante o ano de 2017. As nomenclaturas práticas corporais/atividades físicas são as referidas em políticas nacionais, como por exemplo, na PNPS, que institucionaliza a área no SUS e, mesmo assim, a predominância no uso se restringe à atividade física e ao exercício físico. O que seria, talvez, um suspiro de uma concepção teórica mais humanizada, é deixada de lado para que, de fato, seja fortalecido uma abordagem biológica, não somente pelos usos de determinados termos, mas sim, pelo direcionamento de ações que advogam por mudanças comportamentais individuais e na transposição para os sujeitos da responsabilidade de manter e promover sua saúde através da AF2525 Carvalho FFB, Nogueira JA. Práticas corporais e atividades físicas na perspectiva da Promoção da Saúde na Atenção Básica. Cien Saude Colet 2016; 21(6):1829-1838..

Por fim, é observado que a maior parcela das publicações assenta as recomendações e orientações da AF em uma perspectiva generalizada (n=60). Neste enfoque, as principais características são a reprodução das recomendações oficiais para a prática de AF da população e a sustentação destas a partir de uma descrição detalhada dos aspectos da saúde que serão influenciados positivamente com a realização de exercícios físicos, considerando, neste caso, todos os domínios da AF. Consequentemente, informam também, sobre os riscos para saúde decorrentes da obesidade, inatividade física e do comportamento sedentário, caso os hábitos indicados não sejam adotados. Diferentemente das demais perspectivas, não aprofundam suas orientações em modalidades ou estratégias de movimentação corporal, objetivando, principalmente, que a população cumpra com os parâmetros de tempo, frequência e intensidade do exercício, a partir dos argumentos e informações que lhes são oferecidos, ficando a cargo de cada um a responsabilidade por movimentar-se.

Destacam assim, os diversos benefícios da movimentação corporal: “A prática de atividade física traz vantagens e faz parte de qualquer receita para uma vida mais saudável” (27/03/2018)1010 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Site Saúde Brasil [Internet]. [acessado 2021 maio 13]. Disponível em: saudebrasil.saude.gov.br.
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, “Se existe uma pílula mágica para a saúde, ela se chama atividade física” (07/01/2019)1010 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Site Saúde Brasil [Internet]. [acessado 2021 maio 13]. Disponível em: saudebrasil.saude.gov.br.
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, para que, racionalmente, os sujeitos sejam interpelados a fazer o que é recomendado por sua própria responsabilidade. Esse cenário ainda é amplificado quando raramente observa-se vinculações com as políticas e os programas públicos de saúde e de promoção da AF. Na perspectiva generalizada, foram identificadas apenas três publicações, veiculadas no ano de 2017, que direcionam seu texto com o foco em programas, como o Academia da Saúde, e políticas de promoção da saúde, como a PNPS. Quando olhamos para todo material analisado, são observadas menções esporádicas do SUS, políticas e programas, que aparecem brevemente ao final de algumas publicações indicando ao leitor que se encaminhe às Unidades de Saúde para realizar avaliações, procurar grupos de AF, e a utilização de algumas políticas (PNPS - Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares na Saúde) para embasar trechos das publicações.

Um esvaziamento do SUS, em geral, e de seus programas e políticas são observados no material, em que grande parte das recomendações e aconselhamentos são indicadas para que os leitores realizem por conta própria, na sua rotina, ou mesmo, em espaços privados. Observamos que as publicações não valorizam, nem promovem os programas e serviços do SUS, por mais que o próprio site seja uma iniciativa governamental de saúde digital, produzido pelo MS e vinculado a estratégias de políticas públicas nacionais de saúde, como a PNIIS e a PNPS, essas iniciativas não se mostram interligadas.

Visualiza-se, nas publicações como um todo, a exposição para os leitores de uma via única em que a prática de AF, além de resultar, sem dúvidas, em saúde, serviria para remediar outros diversos problemas na vida da população2626 Carvalho YM. O "Mito" da Atividade Física e Saúde. 5ª ed. São Paulo: Hucitec; 2016.. Os benefícios da AF são exaustivamente anunciados, exaltando os “inúmeros ganhos”, as “vantagens” da AF para a saúde, utilizando termos como “e não para por aí”, “AF tem o poder”. Característica desse processo, também é identificado nas publicações a utilização de imperativos, constantemente exibidos nas publicações analisadas do site Saúde Brasil. Encontram-se trechos como: “Movimente-se! Você só tem a ganhar” (04/07/2017)1010 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Site Saúde Brasil [Internet]. [acessado 2021 maio 13]. Disponível em: saudebrasil.saude.gov.br.
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, “Mexa-se como puder. Só não fique parado!” (29/07/2020)1010 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Site Saúde Brasil [Internet]. [acessado 2021 maio 13]. Disponível em: saudebrasil.saude.gov.br.
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. Os chamados motivacionais em incentivo as AFs, presentes também nos demais meios de comunicação, perpassam uma ideia de dívida contínua com a minutagem de exercitação corporal, que permitem a frequente recordação aos leitores dos riscos dessa relação.

Da mesma forma que os comportamentos protetores das doenças são reforçados, o conhecimento sobre os prejuízos de comportamentos evitáveis ou modificáveis, também é alardeado, ao lado das dicas e dos conselhos para driblar o que se afasta das escolhas saudáveis. Assim, em todo material, é possível observar que a lógica predominante da epidemiologia da AF e saúde é acionada, para explicar aos leitores sobre os desfechos indesejáveis da inatividade física, especialmente por meio da ampliação dos riscos de acometimento e agravamento de determinadas doenças. Historicamente, essa vertente aproximou-se das políticas públicas de saúde e de promoção da AF por intermédio das associações estatísticas que o campo revelou sobre o papel protetor, preventivo e recuperador que a prática exerce sobre doenças cardiovasculares, DCNT e, mais recentemente, a obesidade. Indiscutivelmente, estes saberes foram e, ainda são, fundamentais para a promoção da AF em diferentes instâncias do cuidado em saúde, entretanto, há de vislumbrarmos as dimensões das incorporações acríticas destes conhecimentos nas ações de incentivo a prática de AF, culminado à hegemonia da perspectiva biológica sobre o movimento e a contínua desconsideração dos determinantes sociais nesse panorama.

Destacar esses elementos significa reconhecer que as relações entre os sujeitos, a sociedade, o movimento e saúde são complexas, multidimensionais, socialmente e economicamente atravessadas, extrapolando as visões e vertentes estritamente reducionistas, que as diminuem à uma compreensão basicamente biológica2525 Carvalho FFB, Nogueira JA. Práticas corporais e atividades físicas na perspectiva da Promoção da Saúde na Atenção Básica. Cien Saude Colet 2016; 21(6):1829-1838., fomentada na centralidade dos saberes epidemiológicos, como o que encontramos nas publicações analisadas. Apoiados na Saúde Coletiva, compreendemos que é na confluência de conhecimentos e saberes de diferentes formas, alinhados aos seus imperativos éticos, e nas fronteiras entre o biológico e o social, que deveríamos buscar o alinhamento para práticas, ações e produção de conhecimento em saúde e na promoção da AF nele alicerçados. Questionarmos modelos que, muitas vezes, são ofertados sem a devida reflexão destes aspectos na saúde pública institucionalizada é parte essencial do compromisso com o campo e com as necessidades de saúde da população, que são, indelevelmente, interpeladas pelas diferentes áreas, sendo infactível promover a saúde olhando sob as lentes de apenas uma delas1919 Nunes ED. Saúde Coletiva: uma história recente de um passado remoto. In: Campos GWS, Minayo MCS, Akerman M, Drumond Júnior M, Carvalho YM, organizadores. Tratado de Saúde Coletiva. 1ª ed. São Paulo, Rio de Janeiro: Editora Hucitec/Fiocruz; 2009.. As potencialidades de uma abordagem como a da Nova Promoção da Saúde2727 Buss PM, Hartz Z, Pinto LF, Rocha CM. Promoção da saúde e qualidade de vida: Uma perspectiva histórica ao longo dos últimos 40 anos (1980-2020). Cien Saude Colet 2020; 25(12):4723-4735. que, em tese, deveria ser a concepção assumida pelas ações em saúde vinculadas ao SUS, alinhadas aos seus valores e princípios, mostra-se como um contraponto a esta visualizada lógica medicalizante da saúde e do movimento humano.

Entretanto, o fortalecimento de estratégias que visam a responsabilização dos sujeitos pela sua própria saúde e as orientações baseadas nas transformações dos comportamentos individuais observadas nas publicações do site Saúde Brasil nos remetem a identificar uma aproximação com a vertente comportamental ou conservadora da promoção da saúde2727 Buss PM, Hartz Z, Pinto LF, Rocha CM. Promoção da saúde e qualidade de vida: Uma perspectiva histórica ao longo dos últimos 40 anos (1980-2020). Cien Saude Colet 2020; 25(12):4723-4735.,2828 Buss PM. Promoção da saúde e qualidade de vida. Cien Saude Colet 2000; 5(1):163-177., da qual pouco dialoga com os princípios do SUS e as propostas da PNPS. Nas publicações observa-se como basilar a oferta de informações sobre os benefícios da prática regular de AF, a diminuição dos riscos e prevenção de doenças como forma de promover ações no nível individual em busca de comportamentos saudáveis. A utilização da informação como suficientemente passível de mudanças nos hábitos da população permeia os textos e endossa a perspectiva já reconhecida por Fraga1313 Fraga AB. Exercício da Informação: governo dos corpos no mercado da vida ativa [tese] Rio Grande do Sul: Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2005. de uma biopolítica informacional, que tem sido privilegiada em programas, projetos e dispositivos de promoção da AF na saúde pública1313 Fraga AB. Exercício da Informação: governo dos corpos no mercado da vida ativa [tese] Rio Grande do Sul: Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2005.

14 Ferreira MS. Agite Antes de Usar...A Promoção da Saúde em Programas Brasileiros de Promoção da Atividade Física: o caso do Agita São Paulo [tese]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca; 2008.
-1515 Abib LT. O Governo De Si E Dos Outros Em Dispositivos De Saúde Móvel: reflexões sobre o "movimento 21 dias por uma vida mais saudável" [tese] Espírito Santo: Universidade Federal do Espírito Santo; 2019.. Os indivíduos e seus coletivos, deverão estar devidamente informados sobre o que fazer, como fazer e seus prejuízos, caso decidam não aderirem aos comportamentos aconselhados, privilegiando ações de nível informacional, em detrimento as políticas assistenciais e de urbanização, que busquem transformações estruturais2929 Abib LT, Gomes IM. A educação e o governamento dos corpos na atualidade: uma análise do "Movimento 21 dias por uma vida mais saudável". Saude Soc 2019; 28(4):229-242..

Os chamados e alertas em busca da movimentação corporal são propagados pelo MS em seu site de forma homogênea, sugerindo que sejam interpelados de formas semelhantes por toda população, sem o devido reconhecimento das acentuadas desigualdades sociais e econômicas que persistem no país. Não há qualquer direcionamento que leve em consideração esses aspectos ou que os reconheça como parte essencial do processo saúde-doença, ignorando, por exemplo, os contrastes de gênero, étnico-raciais ou de nível socioeconômico na promoção da AF, mesmo que, conhecidamente, sejam observadas importantes consequências das iniquidades sociais nos estados de saúde e no acesso/utilização dos serviços de saúde3030 Barata RR. Como e por que as desigualdades fazem mal à saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2009..

No que diz respeito ao movimento, pesquisas e inquéritos nacionais demonstram consideráveis desigualdades na prática de AF dos brasileiros, considerando seus quatro domínios e, em especial, nas exercidas no lazer. Homens, de cor da pele branca, com maiores níveis econômicos e de escolaridade, apresentam níveis de AF no tempo livre superiores, em comparação aos seus pares3131 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Departamento de Análise em Saúde e Vigilância de Doenças não Transmissíveis. Vigitel Brasil 2018:vigilância de fatores de risco e proteção para doenças crônicas por inquérito telefônico. Brasília: MS; 2019.

32 Cruz MS, Bernal RTI, Claro RM. Tendência da prática de atividade física no lazer entre adultos no Brasil (2006-2016). Cad Saude Publica 2018; 34(10):e00114817.
-3333 Botelho VH, Wendt A, Pinheiro ES, Crochemore-Silva I. Desigualdades na prática esportiva e de atividade física nas macrorregiões do Brasil: PNAD, 2015. Rev Bras Ativ Fis Saúde 2021; 26:e0206., cenário de desigualdades que já demonstrou estar se ampliando com o estado pandêmico no país3434 Crochemore-Silva I, Knuth AG, Wendt A, Nunes BP, Hallal PC, Santos LP, Harter J, Pellegrini DCP. Prática de atividade física em meio à pandemia da COVID-19:estudo de base populacional em cidade do sul do Brasil. Cien Saude Colet 2020; 25(11):4249-4258.. Logo, é de suma importância refletirmos o quanto é realmente eficaz e sensivelmente aceitável disseminar estas mensagens e promover a AF em todos os âmbitos, sem agregá-la algum sentido, em meio às discrepantes desigualdades do Brasil3535 Crochemore-Silva I, Knuth AG, Mielke GI, Loch MR. Promoção de atividade física e as políticas públicas no combate às desigualdades:reflexões a partir da Lei dos Cuidados Inversos e Hipótese da Equidade Inversa. Cad Saude Publica 2020; 36(6):e00155119..

Considerações finais

Propostas advindas do cenário internacional, aderidas e incorporadas nas políticas públicas de saúde brasileiras, fomentam o uso das TDICs como potencial para realização de campanhas de conscientização e conhecimento sobre os benefícios da prática de AF regular e da diminuição do comportamento sedentário3636 World Health Organization (WHO). Global action plan on physical activity 2018-2030: more active people for a healthier world. Geneva: WHO; 2018., visando que os sujeitos se apropriem de informações, estejam engajados na manutenção da sua saúde e comprometidos na autogestão de seus riscos66 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Departamento de Informática do SUS. Estratégia de Saúde Digital para o Brasil 2020-2028. Brasília: MS; 2020.. A adesão dessas estratégias, sem o necessário discernimento das iniquidades sociais, econômicas e culturais que a população vivencia nas suas relações, fazem com que essas ações mostrem-se controversas. Ao reforçar os imperativos de que a saúde está relacionada exclusivamente aos aspectos biológicos, por meio do incentivo e da intervenção nos comportamentos, estilos de vida e capacidades individuais ou, até mesmo, na possibilidade de pagar pelos serviços/espaços adequados promovidos em recortes de realidade que não consideram os aspectos sociais, históricos e econômicos que são essenciais para a produção de saúde, culmina-se na acentuação das referidas desigualdades.

As práticas comunicativas no campo da saúde, desde o início das suas aproximações, vêm filiando-se às perspectivas informacionais e unilaterais que pouco dialogam com os princípios orientadores do SUS3737 Araújo IS, Cardoso JM. Comunicação e Saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2007.. Nessa perspectiva da saúde digital, mesmo com uma ampliação das possibilidades de promover uma comunicação mais horizontal e democrática, contraditoriamente, como vimos, ainda é observado uma tendência verticalizada, que culmina na rasa transferência de informações sobre a saúde. O utilitarismo da comunicação na saúde enfraquece suas potencialidades, delineada em cenários de atribuições individuais de caráter motivacional, que se mostram alinhados com os ditames neoliberais da contemporaneidade, aos quais a AF vem respondendo sem maiores questionamentos.

Reconhecemos como limitação do artigo a escolha metodológica de análise estar situada no eixo da AF, e assim, não abranger também os demais pilares do site. Destaca-se ainda as possíveis análises das mídias sociais do MS, a veiculação dos conteúdos sobre a AF produzidos nesses ambientes, a interação com os seguidores e uma melhor compreensão dos conteúdos e materiais veiculados pelo órgão durante o período pandêmico, que ainda perdura, são pontos que não foram observados pelas lentes deste artigo.

Por fim, os apontamentos aqui estabelecidos, caminham para que se busque lançar um novo olhar para as estratégias de promoção da AF baseadas, essencialmente, na oferta de informações. A linearidade, posta com obviedade, das diferentes possibilidades da AF e a saúde, ressalta um imaginário cristalizado em nossa sociedade de que, bastaria somente a vontade e o querer para praticar AF. Fortalecido em uma reprodução simplista e reducionista do movimento, que apela ao cumprimento de alguns minutos por dia de uma prática que independe do domínio, do local, do desejo, das condições ou do contato com um profissional, alardeado pelo maior órgão governamental de saúde do país em seu principal site de prevenção e promoção a saúde, precisa ser desnaturalizada.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    Fev 2023

Histórico

  • Recebido
    13 Jan 2022
  • Aceito
    15 Ago 2022
  • Publicado
    17 Ago 2022
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br