As modificações no mundo dos genes: a decodificadora Jennifer Doudna

Changes in the world of genes: the code breaker Jennifer Doudna

Elissandro Fonseca dos Banhos Ariela Soraya do Nascimento Siqueira Sobre os autores

A obra ora resenhada11 Isaacson W. A Decodificadora: Jennifer Doudna, edição de genes e o futuro da espécie humana. Rio de Janeiro: Intrínseca; 2021. descreve o papel da pesquisadora Jennifer Doudna na construção do método CRISPR, método de edição de genes que, inventado por sua equipe causou controvérsia a partir de 2012. Isso porque, o CRISPR apesar de ter sido inicialmente elaborado como solução biomolecular para graves doenças genéticas, abriu a possibilidade do aprimoramento genético humano. Toda a controvérsia em torno do método, suas potencialidades de usos benéficos para a humanidade, e a consequente modificação na ciência biomolecular causado por sua descoberta, garantiram à pesquisadora o prêmio Nobel de medicina no ano de 2020.

Livro escrito por Walter Isaacson renomado jornalista, autor de obras como Leonardo Da Vinci, Steve Jobs e Benjamin Franklin. Em A Decodificadora o autor acompanha a trajetória da pesquisadora Jennifer Doudna, dando-lhe ares quase de heroína, demonstrando de forma brilhante, os desafios enfrentados por ela em sua carreira, as modificações que sua descoberta causou no mundo com todo o processo da construção do CRISPR, e de sua utilização inclusive no combate à COVID-19, chegando até sua consagração com o prêmio Nobel.

A obra contou com o minucioso trabalho de tradução de Rogerio W. Galindo e Rosiane Correia de Freitas. Sua primeira edição foi publicada recentemente pela editora Intrínseca, na cidade do Rio de Janeiro no ano de 2021. A envolvente história conta com um total de 576 páginas, bem distribuída entre as narrativas exploradas pelo autor.

O livro possui nove partes, “Parte um - As origens da vida”, “Parte dois - CRISPR”, “Parte três - Edição de genes”, “Parte quatro - CRISPR em ação”, “Parte cinco - Cientista pública”, “Parte seis - bebês CRISPR”, “Parte sete - As questões morais”, “Parte oito - Relatos do front”, “Parte nove - Coronavírus”. O autor consegue reter o leitor com uma escrita simples e com diversos esclarecimentos e contextualizações que facilitam a compreensão, isso faz com que, não seja necessário um alto conhecimento em biologia molecular para a compreensão do que envolveu o desenvolvimento da técnica e seus desdobramentos.

Na Parte um, o autor apresenta a formação e o desenvolvimento tanto da cientista, a doutora Jennifer Doudna, iniciando no ambiente onde Doudna cresceu, seus primeiros contatos com a ciência e suas referências, assim como seu fascínio com as perguntas biológicas, e o despertar para um desejo de fazer ciência. Além disso, apresenta alguns conceitos das ciências biológicas, os pesquisadores e as descobertas que foram referência para o desenvolvimento da técnica CRISPR. Assim como as primeiras tomadas de decisão da pesquisadora rumo à descoberta da técnica que revolucionou a biologia molecular.

Na Parte dois, o autor apresenta algumas das mais relevantes contribuições de diferentes autores acerca do CRISPR. O trabalho de Francisco Mojica, por exemplo, pesquisador que trabalhando com a técnica desenvolveu seu nome. Além disso, os primeiros autores que pensaram na utilização da técnica como edição de genes foram Sontheimer e Marraffini. A partir desse ponto entra a equipe formada por Doudna, pois até então se tratava de uma ideia não comprovada, que ela esperava comprovar. Essa parte do livro marca o encontro entre Doudna e Emmanuelle Charpentier que viria a ser a grande parceira de pesquisa e amiga de Doudna durante a caminhada e construção do método CRISPR.

Ainda nesse capítulo é salientado o quanto é importante o desenvolvimento da pesquisa básica, como forma de promoção de novos modos de pensamento que podem levar a novas técnicas, nesse caso, na área da biologia molecular. Essa interrelação entre pesquisa básica e aplicada pode promover o desenvolvimento tecnológico e contribuir para o desenvolvimento em escala industrial, inclusive reduzindo a distância entre a atividade de pesquisa e o setor produtivo22 Walsh PP, Murphy E, Horan D. The role of science, technology and innovation in the UN 2030 agenda. Techn Forecast Soc Change 2020; 154:119957.. Foi exatamente o que aconteceu com esse trabalho, tratava-se de pesquisa básica em que a ideia é compreender como determinadas bactérias se defendiam do ataque de vírus, que levou a construção de uma técnica que modificaria a compreensão sobre a edição de genes humanos.

Na Parte três, a principal disputa científica das últimas décadas é apresentada. Doudna e Carpenter ainda estavam na pesquisa para a comprovação de que o método CRISPR poderia ser utilizado para a edição de genes, algo ainda não feito e que seria essencial para a utilização da técnica em células humanas. Da mesma maneira, as pesquisas de Zhang e Church, dois pesquisadores que também buscavam essa comprovação, ainda caminhavam, e houve uma disputa entre esses dois laboratórios para verificar quem primeiramente conseguia comprovar que o método poderia ser utilizado. Disputa essa vencida por Doudna e Carpenter, que conseguiram publicar com maior celeridade, e que tomou contornos pessoais, se repetindo para o estabelecimento da patente.

Essa parte do livro mostra uma face do universo científico relacionada à ética e comportamento competitivo dentro da ciência de ponta, esses temas são sempre relevantes e discutidos no meio científico: “...ética não é algo dado pela natureza, mas um produto de nossa consciência histórica. Não vem pronta para ser consumida, mas é construída na ação humana, que sempre exige a presença de um outro”33 Paiva VLMO. Reflexões sobre ética e pesquisa. Rev Bras Lingu Aplic 2005; 5(1):45-61.. É interessante analisar que pesquisadores renomados, como os apresentados na obra, capazes de construir ferramentas moleculares das mais complexas, têm dificuldades em questões mais elementares da relação humana.

Foi tema central da Parte quatro, os potenciais benefícios médicos da utilização do método para tratamentos de doenças históricas como a anemia falciforme. Ainda dentro dessa parte da obra é colocada a questão mais controvérsia relacionada a utilização do método, uma vez que ele apresenta potencial de ser utilizado como ferramenta para arma biológica. Nesta parte do livro o autor inicia a discussão mais polêmica relacionada à técnica que pauta o livro em vários momentos.

As questões bioéticas relacionadas ao uso da técnica são frequentemente discutidas no universo científico e é necessário desenvolver um comportamento bioético que assegure a execução de ações em biotecnologia que sejam respaldadas no respeito à vida e ao “outro”, e isso passa por uma construção de uma educação científica44 Gupta V, Sengupta M, Prakash J, Tripathy BC. Biosafety and Bioethics. In: Gupta V, Sengupta M, Prakash J, Tripathy BC. Basic and Applied Aspects of Biotechnology. Singapore: Springer; 2017. p. 503-520.. Essa construção deve necessariamente caminhar junto com o desenvolvimento científico, aqui expressado pelo desenvolvimento da técnica CRISPR.

Na Parte cinco o autor nos apresenta o cenário em que essas discussões no meio científico estão se desdobrando em eventos científicos, onde são discutidos todos os pontos de vista, favoráveis e contrários ao uso da CRISPR sem restrições. A pesquisadora Jennifer Doudna se vê obrigada a participar da discussão, principalmente com a apresentação do trabalho de He Jiankui, empreendedor ambicioso que, utilizando a técnica CRISPR, editou o DNA de crianças para livrá-las do vírus HIV. A sua total falta de ética no trabalho resultou em sua condenação à prisão e ao completo descredito no meio científico.

Ainda nas Partes seis, sete e oito são apresentadas questões que ampliam a discussão sobre os diferentes aspectos do uso da ferramenta e seus desdobramentos éticos. O uso para a solução de doenças psicológicas, para a anemia falciforme, e surdez são exemplos de propostas de bom uso da técnica. A obra coloca o leitor para refletir sobre questões relacionadas ao limite do conhecimento científico. Uma vez a informação disponibilizada como poderemos impedir o mal uso dela? O que fazer para evitar que tenhamos novos Oppenheimers no mundo científico? Essas são algumas questões suscitadas na obra que promovem o pensar no tema.

A obra é finalizada em sua Parte nove, apresentando toda a contribuição da técnica CRISPR para o enfrentamento da COVID-19. Essa parte do livro é especial porque apresenta o ponto de vista dos cientistas, o necessário retorno a seus laboratórios, e as modificações nas relações humanas indispensáveis para o enfrentamento da pandemia em 2020. Além disso, a pandemia do COVID-19 possibilitou o desenvolvimento da utilização da técnica como ferramenta de diagnóstico, o que ainda não havia sido feito.

O resultado positivo nessa empreitada abriu caminhos para o uso da técnica no diagnóstico de diferentes doenças, ou seja, possibilitou mais uma utilização. Neste sentido, o uso da técnica de CRISPR no combate à pandemia foi mais uma demonstração como essa técnica modificou a relação humana com a biologia molecular, e, portanto, modificou a relação do homem com o mundo em que vivemos.

A obra possui enorme relevância acadêmica, proporcionando um considerável arcabouço de conhecimento científico e avanços tecnológicos como pano de fundo de uma história de vida respeitabilíssima como a da doutora Jennifer Doudna. Através dela, nos é apresentado o papel da cientista mulher que atua, por vezes em um ambiente machista, de forma decisiva para a transformação da ciência como a conhecemos. A contribuição da obra para a ampliação do conhecimento sobre essa técnica é indiscutível. Mais do que isso, a obra contribui de forma ímpar oportunizando discussões sobre ética, competição e até machismo no universo científico.

Os temas foram apresentados no contexto da obra para que o leitor possa refletir e construir suas próprias impressões sobre essas questões. Dessa maneira, indicamos a leitura da obra como forma de capacitação para novos cientistas. Alunos de graduação e pós-graduação nas diferentes áreas, que desejem enveredar pelo ambiente científico podem se beneficiar da leitura, através de reflexões, que por vezes, são deixadas de lado no universo acadêmico-científico, mas que não podem ser negligenciadas na formação adequada de um cientista.

Referências

  • 1
    Isaacson W. A Decodificadora: Jennifer Doudna, edição de genes e o futuro da espécie humana. Rio de Janeiro: Intrínseca; 2021.
  • 2
    Walsh PP, Murphy E, Horan D. The role of science, technology and innovation in the UN 2030 agenda. Techn Forecast Soc Change 2020; 154:119957.
  • 3
    Paiva VLMO. Reflexões sobre ética e pesquisa. Rev Bras Lingu Aplic 2005; 5(1):45-61.
  • 4
    Gupta V, Sengupta M, Prakash J, Tripathy BC. Biosafety and Bioethics. In: Gupta V, Sengupta M, Prakash J, Tripathy BC. Basic and Applied Aspects of Biotechnology. Singapore: Springer; 2017. p. 503-520.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    Abr 2023
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