Jogo de fronteiras: sobre a produção (bio)tecnológica de corporalidades femininas no Rio de Janeiro, Brasil

Silvia Naidin Sobre o autor

Resumo

O artigo trata da interface entre gênero, classes sociais e (bio)tecnologias destinadas ao aprimoramento da estética corporal. Dialogando com os estudos de gênero, investiga como essas (bio)tecnologias atuam na produção de corpos e feminilidades contemporâneos em diferentes grupos sociais, baseando-se em pesquisas etnográficas realizadas em circuitos onde essas intervenções são realizadas. Analisa-se os usos, sentidos e moralidades atribuídos a elas, mostrando como fabricam convenções ao mesmo tempo estéticas, morais e corporais de feminilidade, num processo também atravessado por distinções e pertencimentos de classe.

Palavras-chave:
Corpo; Gênero; Classe Social; Biomedicalização

Introdução

Os artefatos biomédicos voltados para o aprimoramento da estética corporal constituem há décadas um mercado fortíssimo e globalizado de cuidados de si que oferece uma infinidade de práticas e procedimentos, cada vez mais vastos em seu campo de atuação e nas possibilidades de intervenção. Das próteses e preenchimentos de todo tipo com silicone e outras substâncias, hormônios sintéticos, suplementos alimentares, antirrugas como o Botox, lipoaspirações e demais cirurgias plásticas, esse universo caracteriza um campo de intervenções em que a medicina atua fora do binômio saúde x doença, num processo que converte pacientes em consumidores e que tensiona limites entre ética, estética e mercado. Se os corpos têm se tornado cada vez mais um projeto, a partir de diferentes formas e graus de intervenção, a medicina vem se posicionando, nesse contexto, como um veículo para o seu aprimoramento11 Conrad P. Medicalization of society: on the transformation of human conditions into treatable disorders. Baltimore: The Johns Hopkins Univ. Press; 2007.(p.138). Os efeitos desse processo chamado por muitos de biomedicalização da vida foi discutido de maneira teórica por diversos autores22 Clarke AE, Shim J, Mamo L, Fosket J, Fishman J, editors. Biomedicalization: Technoscience and Transformations of Health and Illness in the U.S. Durham: Duke University Press; 2010..

O presente artigo propõe uma reflexão sobre como essas (bio)tecnologias assumem um papel central na produção de corpos e feminilidades contemporâneos em diferentes grupos sociais, partindo de pesquisas etnográficas realizadas em alguns circuitos em que essas intervenções são realizadas. Pretendo expor e analisar os usos, sentidos e valores atribuídos a elas, mostrando como fabricam convenções ao mesmo tempo estéticas, morais e corporais de feminilidade. O artigo discute, nesse sentido, como essas biotecnologias substancializam marcadores de gênero nos corpos, num processo que é sempre instável e sujeito a constantes (re)negociações. Esse processo também é indissociável da produção de outros marcadores de diferenciação social, de modo que o consumo diferenciado dessas (bio)tecnologias funciona como um poderoso produtor de pertencimentos e distinções de classe, raça e geração. O artigo pretende, assim, explorar a construção mútua desses marcadores, especialmente gênero e classe, analisando como diferentes grupos sociais agenciam o consumo de produtos e procedimentos a serviço da elaboração de suas corporalidades.

Metodologia e referencial teórico

A pesquisa antropológica que fundamenta este artigo ocorreu entre 2013 e 2015 e contou com o auxílio da bolsa CAPES de doutorado. A perspectiva metodológica adotada foi a etnografia multissituada, conforme proposta por Marcus33 Marcus G. Ethnography in/of the World System: The Emergence of MultiSited Ethnography. In: Marcus G. Ethnography through Thick/Thin. Princeton: Princeton University Press; 1998., que prioriza a circulação do pesquisador por diversos espaços sociais, seguindo as cadeias, trajetórias e fios que compõem o fenômeno que o interessa, a fim de tecer conjunções e conexões entre as situações vividas em campo. Iniciei a pesquisa entrevistando um cirurgião plástico que atendia pacientes de alto poder aquisitivo num bairro nobre da Zona Sul carioca, a quem fui apresentada por uma de suas pacientes que integrava meu círculo social. Esse cirurgião mediou meu contato com outros colegas, inclusive um médico renomado que, além do consultório particular, dirigia um importante serviço de cirurgia plástica de um hospital público, que também se tornou parte do campo de pesquisa. Meu acesso a pacientes desses médicos se deu através de contatos pessoais e todas eram mulheres entre 45 e 60 anos, residentes da Zona Sul, região econômica e simbolicamente favorecida da cidade. Meu primeiro contato com pacientes de setores populares aconteceu no hospital público mencionado, porém foi Rosa, uma antiga colega de faculdade, residente do tradicional bairro popular de Madureira, quem se tornou minha interlocutora privilegiada. Rosa me apresentou novas interlocutoras a quem passei a acompanhar em diversos espaços de elaboração da estética corporal, em bairros da Zona Norte, área da classe trabalhadora e de camadas financeiramente mais pobres. Esse trânsito por diferentes zonas geográficas (e sobretudo simbólicas) da cidade foi um aspecto crucial da pesquisa, revelando o quanto as distinções de classe estão presentes no fazer dos corpos e do gênero. Guiando-me pelas pistas trazidas pelo campo, por vezes foi questão de “seguir as coisas” (follow the things), como sugere Marcus, acompanhando as tecnologias de gênero em atuação: circuitos de cirurgia plástica, centros de estética, aplicação de anabolizantes, academia de ginástica; e por vezes foi questão de “seguir as pessoas” (follow the people), acompanhando como minhas interlocutoras de pesquisa, circulavam nesses contextos. Antes de passar ao relato etnográfico, apresento sucintamente o campo teórico no qual se situa o debate proposto e a partir do qual foram formuladas as questões de pesquisa que inspiraram minha etnografia.

As discussões aqui propostas nascem de um diálogo com os chamados estudos de gênero, principalmente aqueles decorrentes da teoria da performatividade de gênero elaborada por Butler44 Butler J. Problemas de Gênero. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2010.,55 Butler J. Bodies that Matter: On the Discursive Limits of 'Sex'. New York, London: Routledge; 1993., segundo a qual a materialidade dos corpos sexuados é construída pela performance de um conjunto de normas socialmente prescritas. A maioria dos estudos inspirados nessa base teórica se interessaram por formas de produção de corpos que não reproduzem a lógica cis-heteronormativa, buscando nelas, experiências que questionassem o essencialismo biológico da diferença sexual homem-mulher. Os universos trans e intersexuais, e a vivência das pessoas que “transitam entre os gêneros”66 Leite Jr. J. Transitar para onde? Monstruosidade, (Des)Patologizac¸a~o, (In)Seguranc¸a Social e Identidades Transge^neras. Estud Feministas 2012; 20(2):559-568. tornaram-se foco privilegiado dessas pesquisas, pois seus arranjos corporais e existenciais perturbavam padrões naturalizados do gênero, abrindo possibilidades de questionamento e transformação.

Entretanto, se as corporalidades trans são “boas para pensar”, porque expõem de forma emblemática o caráter fabricado e convencional da diferença sexual, parece-me igualmente importante investigar como são construídas as corporalidades cisgêneras na atualidade. Há que se olhar para as práticas e discursos que corroboram os padrões de gênero hegemônicos, e com eles, a diferença sexual. Cabe, sobretudo, indagarmo-nos o que são esses padrões hegemônicos no mundo atual, onde as ações sobre o corpo se tornaram um mercado globalizado e de estrondoso sucesso.

As pesquisas que realizei em circuitos de intervenção corporal, das quais apresentarei alguns fragmentos a seguir, parte da proposta de que os sujeitos e as corporalidades que não têm qualquer projeto de transgressão do “modelo cis-heteronormativo”, também são laboriosamente fabricados segundo preceitos e valores culturais que merecem ser analisados em diálogo com esse campo de estudos. O campo da produção dos corpos ditos normais e o processo constante de negociação moral dessa normalidade tornou-se o foco das pesquisas que realizei.

Cirurgia plástica e cuidados de si entre mulheres de classe média alta: a natureza como fim e princípio

Nas minhas entrevistas com cirurgiões plásticos de renome e pacientes da elite da Zona Sul carioca, o traço discursivo mais recorrente era o imperativo de que as intervenções corporais (cirurgias plásticas, aplicações de Botox, preenchimentos etc., realizados por dermatologistas) fossem “naturais”. O efeito embelezador deveria ser percebido sem que os meios utilizados para alcançá-lo ficassem evidentes. “Plástica bem feita”, me disse um cirurgião, “é aquela que se faz e ninguém nota”. Naquele contexto, era comum que pacientes fizessem segredo em relação aos procedimentos realizados, ocultando-os até mesmo de seu círculo mais íntimo.

As intervenções corporais, embora amplamente desejadas e consumidas, dependendo da forma como são agenciadas tornam-se rapidamente objeto de profundo estigma. Tanto no discurso médico, como no das minhas interlocutoras elitizadas, uma certa noção de natureza revelou-se como o critério estético (moral) definidor dos padrões corporais a serem criados e perseguidos. O natural tecnicamente fabricado é, por assim dizer, o principal fundamento das práticas de consumo entre as elites que pesquisei.

Fazer natureza, além de ser a finalidade última de médicos e pacientes desse segmento social, é também o princípio que norteia as intervenções julgadas aceitáveis pelos médicos: “Tem paciente que chega querendo colocar uma prótese mamária completamente desproporcional ao tamanho dela. Isso eu não faço porque não vai ficar natural” (Dr. Rogério, 2012).

Os profissionais que prestam serviços a esse segmento social afirmam exercer um rígido controle em relação ao volume das próteses de silicone, ao número de cirurgias de rosto e lipoaspirações, segundo eles, com o objetivo de resguardar essa suposta natureza a que devem imitar e respeitar. O “natural” é, ao mesmo tempo, critério para avaliar a qualidade dos resultados e parâmetro para determinar que demandas são legítimas e aceitáveis, merecedoras da intervenção médica, e que demandas devem ser recusadas.

A natureza, como representação, funciona como um referente do que é bom e aceitável. A chamada ordem natural funciona como uma ordem moral representando um modelo ideal de realidade77 Luna N. Natureza humana criada em laboratório: biologização e genetização do parentesco nas novas tecnologias reprodutivas. Hist Cien Saude 2005;12(2):395-417.(p.409). Há que se conformar os corpos a uma suposta natureza que é ao mesmo tempo presumida e construída pela prática médica. A natureza é de onde se parte e para onde se vai.

A adolescente que desejava submeter-se a uma mastectomia porque se sentia identificada ao sexo masculino, um dos cirurgiões entrevistados não operou porque via naquilo uma mutilação, algo que ia “contra a natureza”. Entretanto, a remoção de mamas em homens de todas as idades, não representa mutilação alguma e sim uma “condição médica” que possui um diagnóstico - a chamada ginecomastia - e a cirurgia é uma das mais realizadas entre a clientela masculina, sem que isso apresente ao médico qualquer dilema ético ou moral. Este exemplo evidencia a conotação heteronormativa44 Butler J. Problemas de Gênero. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2010. de gênero subjacente à noção de natureza em questão, explicitando o controle médico para que os usos das tecnologias de aprimoramento corporal não transgridam os padrões naturalizados de gênero, utilizando-as para substancializar seus preceitos hegemônicos.

É crucial ressaltar que o limiar que separa as intervenções bem-sucedidas, com efeitos tidos como naturais e embelezadores, das intervenções que “erram a dose” e “passam do ponto” é profundamente tênue. Se as primeiras trazem consigo a promessa de fornecer um valioso capital social e simbólico, baseado em uma reputação estética, as segundas produzem o efeito inverso, tornando-se objeto de estigmatização.

Projetos populares de corporalidade: a feminilidade hiperbólica das supergostosas

Minha pesquisa de campo também se deu num hospital em que há uma pós-graduação em cirurgia plástica, onde acadêmicos operam, a preços reduzidos, pacientes de menor poder aquisitivo. Na sala de espera desse hospital, conversei com diversas mulheres de classes populares, em sua maioria residentes das Zonas Norte e Oeste da cidade.

Logo que iniciei a pesquisa nesse hospital conheci Joana, uma jovem de 28 anos, faxineira, moradora de Jacarepaguá, que me contou com satisfação das intervenções que já havia realizado: “Já fiz o nariz, uma lipo no abdômen e agora vou fazer prótese de glúteo. Viu que chique?”. O “bumbum” que Joana pretendia aumentar, já tinha um volume muito superior àquele almejado entre mulheres elitizadas que eu vinha entrevistando, da Zona Sul da cidade. A secretária do hospital, que participava da conversa, brincou: “Você vai ficar igual à Valesca Popozuda!”. A brincadeira, em tom de alerta, também chamou minha atenção. Valesca, à época vocalista do grupo de funk Gaiola das Popozudas, tinha implantado 550 ml de silicone em uma prótese de glúteo que, segundo elas, dava até para apoiar um copo em cima.

A fala de Joana, suas aspirações, a ausência completa de constrangimento (e até um certo orgulho) com que expunha as cirurgias que já tinha feito, a referência compartilhada sobre Valesca Popozuda e a corporalidade da cantora, expunham sentidos e valores muito diferentes dos que eu vinha encontrando no discurso médico e no público mais elitizado.

O acesso às tecnologias de intervenção corporal, antes totalmente restrito às classes de maior poder aquisitivo, vem se popularizando. Sem dúvida, as apropriações que os distintos grupos sociais fazem dessas tecnologias, bem como os significados que elas assumem em diferentes contextos, variam muito, assim como também variam os critérios e valores que norteiam os projetos de corporalidade e as práticas de intervenção. Seguindo pistas encontradas no campo, decidi percorrer alguns circuitos populares nos quais essa estética feminina era produzida. Para isso, matriculei-me numa academia de ginástica em Rocha Miranda, bairro popular tradicional da Zona Norte e, através da rede de pessoas que conheci, passei a frequentar um centro de estética clandestino de onde elas eram clientes.

Entre essas novas interlocutoras, rapidamente chamou-me atenção a referência constante a figuras midiáticas que, como Valesca Popozuda, ascendem à fama pela forma com que agenciam seus atributos corporais. Trata-se de mulheres que superdimensionam marcadores corporais de gênero (glúteos, seios, coxas, cabelos, unhas...) pelo uso combinado de várias tecnologias (hormônios sintéticos, anabolizantes, lipoaspirações, próteses de silicone, preenchimentos com PMMA - o chamado Metacril - etc.), criando assim uma espécie de hiperfeminilidade88 Perlongher N. O negócio do Michê: a prostituição viril em São Paulo. São Paulo: Fundação Perseu Abramo; 2008.,99 Díaz-Benítez ME. Nas Redes do Sexo: Os bastidores do pornô brasileiro. Rio de Janeiro: Zahar; 2010. a que chamei de supergostosa1010 Naidin S. (Bio)tecnologias do corpo e do gênero: Uma análise da construção de corporalidades femininas [tese]. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 2016.. Vale ressaltar que esse não é o único modelo estético-corporal que orienta o gosto, as aspirações, desejos e projetos de corporalidade entre as classes populares, que são heterogêneas como todo estrato social nas sociedades complexas1111 Velho G. Projeto e metamorfose: antropologia das sociedades complexas. Rio de Janeiro: Zahar; 1994..

Pensando a corporalidade supergostosa no campo dos estudos de gênero

Enquanto o discurso médico e elitizado sobre as intervenções estéticas “aceitáveis” gira em torno de certo ideal de natureza, evitando “exageros” e buscando a máxima discrição (definida pela proximidade com esse natural), o uso que as supergostosas fazem dessas tecnologias tem um sentido diverso, ou até inverso. Aqui, a natureza não é nem um ideal estético, nem moral.

Trata-se, em parte, de uma apropriação “menos normalizada” dessas tecnologias, em que o natural é levado a seu extremo, o exagero dos volumes e formas é enaltecido. São usos que fogem às prescrições (regulações) médicas canônicas, e saberes não oficializados entram em cena, em circuitos mais ou menos clandestinos. São usos “impróprios das tecnologias de normalização”, como diria Preciado1212 Preciado B. Testo Yonqui. Madrid: Espasa; 2008., pois, mesmo que não busquem transgredir o binarismo sexual, tampouco obedecem às finalidades e efeitos formalmente oferecidos por essas tecnologias, ou seguem necessariamente as prescrições oficiais - legais e morais - que regulam seu uso.

A corporalidade supergostosa representa uma exibição hiperbólica do natural que, em seu exagero, revela o status fundamentalmente fantasístico desse mesmo natural44 Butler J. Problemas de Gênero. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2010.(p.211). Alguns desses corpos acabam provocando perturbações em padrões hegemônicos de gênero, mesmo que isso não seja um objetivo deliberadamente almejado. O uso contínuo que fazem de anabolizantes, muitos deles à base de testosterona, engrossa a voz, deixa os maxilares mais quadrados, a musculatura mais desenvolvida, pelos corporais mais grossos, traços inquestionavelmente masculinos dentro da gramática de gênero dominante. O volume das próteses para aumentar glúteos, seios e outras partes simbolicamente femininas também abala o ideal de mulher natural, criando dúvidas constantes sobre o que é “delas” e o que é prótese.

É possível dizer que a corporalidade supergostosa, exuberantemente construída na interface das tecnologias de gênero, desestabiliza uma série de fronteiras rigidamente estabelecidas pelas sociedades modernas, como as de natureza e artefato, masculino e feminino, humano e animal. Esse hibridismo pode ser pensado a partir da noção de ciborgue proposta por Donna Haraway1313 Haraway D. Manifesto Ciborgue. In: Tadeu T, organizador. Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica; 2013. p. 33-119., para quem o ingresso da tecnologia em regiões cada vez mais profundas do corpo, inclui a elaboração de materiais hoje capazes de penetrá-lo, habitá-lo, recompor seu ritmo, sua estrutura ou modelar sua forma, desafiando com isso diversas categorias de entendimento Ocidentais.

A noção de ciborgue é sugerida por Haraway1313 Haraway D. Manifesto Ciborgue. In: Tadeu T, organizador. Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica; 2013. p. 33-119. como a única ontologia possível num mundo onde estamos todos relacionados de forma tão íntima à tecnologia, que já não se pode definir onde termina a natureza e onde começa o artifício. Cada vez mais assimiláveis, os artefatos técnicos promovem interfaces inusitadas entre o orgânico e o inorgânico, masculino e feminino, humano e animal, natureza e cultura de modo que essas fronteiras foram irremediavelmente cindidas e já não funcionam como categorias de entendimento/construção do mundo ocidental.

O estabelecimento dessas separações sempre foi um empreendimento político e sua perturbação não ocorre sem provocar tensões. O pânico moral suscitado pelas supergostosas em diversos círculos sociais, frequentemente acusadas de serem “monstruosas”, “masculinas”, “vulgares”, “cavalas” expõem esse caráter político e moral inerente à definição dessas fronteiras e à sua transgressão.

Narro aqui o modo como a jovem Rosa, de 27 anos, moradora de Madureira, transitava em alguns circuitos de modulação corporal, os usos que fazia de certas substâncias, principalmente os hormônios anabolizantes, bem como os significados que tais substâncias adquiriam.

As cirurgias plásticas para além da natureza

Quando Rosa procurou um médico para realizar uma rinoplastia porque “detestava o nariz”, e colocar uma prótese de silicone para aumentar os seios, levou consigo fotos retiradas da internet de mulheres com o corpo que almejava ter. Vendo as imagens, o médico convidou-a a “projetar” o corpo desejado por sua própria fantasia:

Quando eu cheguei, o Dr. Alan me perguntou o que eu queria fazer. Depois de me ouvir foi me examinar. Fiquei só de calcinha e ele me mandou fechar os olhos e me imaginar numa praia, com a pessoa que eu amava. Ele me pediu pra descrever o corpo que sonhava ter naquele momento e para dizer o que faltava nele para atingir esse sonho. Aí eu falei que queria ter os seios maiores e falei que queria culotes mais arredondados. Quando ainda estava de olhos fechados, o Dr. Alan colocou dois tamanhos de prótese nas minhas mãos e perguntou com qual delas eu me sentiria melhor naquela praia. Foi assim que decidi o tamanho (Rosa, 2012).

A partir daquele devaneio, o médico sugeriu que, além das mamas e do nariz, Rosa também fizesse um enxerto de gordura no quadril de modo a arredondar seus culotes cuja ausência a deixava com formas muito “masculinas”. A ideia era então lipoaspirar um pouco de sua gordura abdominal e reinseri-la na região desejada.

É interessante notar como certas substâncias corporais (no caso a gordura) assumem um caráter espúrio em certos lugares, porém quando realocadas, tornam-se ferramentas valiosas na elaboração da corporalidade “feminina”. A transferência de gordura para aumentar o volume dos glúteos, é prática corrente entre as mulheres nos circuitos que percorri. O procedimento é parte da chamada “lipoescultura”, e o nome ilustra bem o processo de remodelação corporal, assim descrito por uma interlocutora: “é como se o corpo fosse uma argila e o médico vai moldando de acordo com o teu desejo”.

Cabe observar, ainda, a diferença entre o discurso do cirurgião que operou Rosa, em um circuito paralelo - em que pacientes pagavam mais caro para não enfrentarem filas para a cirurgia - e aquele proferido pelos cirurgiões que prestavam o serviço formalmente no mesmo hospital. Os últimos buscavam a todo tempo legitimar medicamente as cirurgias que realizavam, associando-as à noção de cura (ainda que fosse da “autoestima”1010 Naidin S. (Bio)tecnologias do corpo e do gênero: Uma análise da construção de corporalidades femininas [tese]. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 2016.,1414 Silva MJ. "Ame seu corpo, inclusive sua vagina": Estudo sociológico da produção discursiva sobre "autoestima vaginal" e "empoderamento feminino" nas mídias digitais [tese]. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará; 2019.) e afirmando a importância de submeter o desejo das pacientes a esses critérios. A fala de Dr. Alan é, por sua vez, uma estratégia de venda que se diferencia daquelas adotadas em circuitos elitizados, colocando a prática médica a serviço do desejo de Rosa.

Não busco, com isso, opor práticas oficiosas baseadas somente no interesse comercial e práticas oficiais fundamentadas no critério do “bem-estar” (como se este fosse um termo unívoco e não uma categoria em disputa, sujeita aos interesses de quem a evoca). Medicina e mercado não são esferas separáveis e, hoje, a prática médica é, em todas as suas linhas e especialidades, uma atividade também comercial. O caráter científico e a autoridade simbólica que ele confere aos médicos, é, inclusive, uma poderosa arma de venda1515 Dumit J. Drugs for life: How pharmaceutical companies define our health. Duke University Press; 2012..

Hormônios sintéticos anabolizantes e o agenciamento dos músculos

Minhas interlocutoras classificavam os anabolizantes em duas categorias, os locais - chamados de localizada - e os sistêmicos. As “localizadas” eram injeções intramusculares que inchavam a musculatura em que eram aplicadas. As aplicações concentravam-se principalmente nas pernas e glúteos. Havia dois tipos principais de “localizada”, a chamada ADE, complexo vitamínico que conjugava vitaminas A, D e E, e o Estigor que somava essas mesmas vitaminas à nandrolona, hormônio sintético que imita a testosterona. As “localizadas” eram interessantes, segundo elas, pois produziam o crescimento instantâneo da musculatura sem demandar um volume tão grande de exercícios físicos.

Por não conter hormônios, a ADE tinha a “vantagem” de não produzir efeitos masculinizantes, embora trouxesse maiores riscos, pois provocava uma grande inflamação na musculatura, responsável pelo efeito de inchaço desejado. Entretanto, em todas elas havia o perigo de não se conseguir controlar tal inflamação, que poderia se alastrar pelo resto do corpo e/ou causar altas concentrações de pus. Entre minhas interlocutoras, a “localizada” mais usada era o Estigor, descrito por uma delas como um óleo bem grosso, que quando entra no corpo vai “queimando tudo”. Trata-se de um medicamento produzido na Argentina, pelo laboratório Burnet, e a venda é proibida no Brasil. Oficialmente, ambos os produtos são destinados ao uso veterinário, para estimular a engorda/crescimento muscular de bois e cavalos.

Segundo Donna Haraway1313 Haraway D. Manifesto Ciborgue. In: Tadeu T, organizador. Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica; 2013. p. 33-119., o contexto político ciborgue não é apenas marcado pela dissolução da fronteira entre organismo (humano) e máquina, mas também pelo rompimento da separação entre humano e animal. Esse uso humano “impróprio”, isto é, não prescrito ou controlado de medicamentos formalmente desenvolvidos para animais, não deixa de ser um indício dessa ruptura assinalada por Haraway.

Enquanto o uso veterinário recomenda a utilização de 1 ml do produto para cada 60 kg do animal, Rosa e outras interlocutoras de mesmo físico, injetavam de 1 ml a 3 ml em cada furo em cada uma das pernas, em ambos os lados do glúteo, três furos por sessão, o que representava literalmente mais do que o triplo da “dose cavalar”, mencionada certa vez pela personal trainer da academia que frequentei.

Os anabolizantes chamados sistêmicos, por sua vez, tinham um efeito geral (não apenas local) no corpo, e eram usados por minhas interlocutoras com o objetivo de “secar” gordura e definir a musculatura. Os mais citados eram o Stanazolol e a Oxandrolona. O primeiro é um esteroide anabolizante derivado da testosterona, normalmente comercializado sob os nomes de Winstrol (uso oral) e Winstrol Depot (uso intramuscular), e foi desenvolvido pelo laboratório Winthrop, em 1962. Apesar de ser usado como medicamento veterinário, seu uso humano também é permitido.

Se as “localizadas” geravam o efeito de inchaço apenas onde eram aplicadas, nas pernas e nos glúteos, os anabolizantes sistêmicos tinham um efeito global, deixando o corpo todo mais musculoso, o que às vezes era visto como uma desvantagem, pois o desenvolvimento “exagerado” da musculatura dos braços, costas e abdômen, era classificado por muitas interlocutoras como traços masculinos não desejáveis em corpos femininos. Como me disse Diana, “eu gosto de mulher mignonzinha, pernão, bundão, mas braço fino. Não gosto daquela barriga toda musculosa, prefiro até ter gordura do que [sic] aquele monte de músculo. Fica muito masculino [...]”. Na maioria das vezes, fazia-se uso combinado dos dois tipos de anabolizantes: os sistêmicos para “secar” e “crescer” e a “localizada” para aumentar particularmente o volume das coxas e glúteos.

O primeiro anabolizante usado por Rosa foi o Estigor. Algum tempo depois de colocar a prótese de silicone nos seios, um policial militar, com quem saía ocasionalmente, ofereceu-lhe o produto. “Vou te levar num cara que aplica um troço que vai te deixar linda. É coisa boa, importada, vem da Argentina. Vai ficar toda gostosa, vai ficar Panicat [referindo-se às assistentes de palco do programa televisivo ‘Pânico na TV’]. Rosa conta que, logo na primeira vez, o aplicador queria injetar 2 ml de Estigor em cada um dos quatro furos que lhe faria nos glúteos.

Adiante, ela decidiu fazer uso do anabolizante sistêmico Winstrol, mas foi dissuadida por seu personal trainer, para quem esse produto a faria ter acne no rosto. O personal indicou-lhe então Winstrol Depot. Embora sistêmico, o anabolizante também era injetável e, para evitar inflamações, Rosa alternava os locais da aplicação entre braços e glúteos. Usou o produto por um longo tempo e sentiu seus braços e costas ficarem muito mais musculosos, a voz engrossar, os pelos corporais engrossarem e aparecerem no rosto e nas coxas, seu clitóris e sua libido aumentarem consideravelmente.

Durante o tempo em que usou a substância, Rosa fez outro ciclo de Estigor, dessa vez “com um cara que atendia num quartinho em Vila Valqueire e que usava o tampo do fogão como mesa. Tinha seringa pelo chão e tudo [...]”, dizia com um riso que misturava nervosismo e bom humor. Novamente, já na primeira sessão, ele queria começar aplicando 3 ml em cada furo, mesmo que Rosa preferisse fazer apenas 2 ml. O uso dessas substâncias de forma não prescrita, “imprópria”, e deliberada, representa uma verdadeira afronta às ambições normalizadoras que definem a medicina, segundo Foucault1616 Foucault M. Les anormaux. Paris: Seuil; 2001..

Rosa ficou mais de seis meses sem menstruar depois que começou a injetar o anabolizante sistêmico. O sintoma estava relacionado à proliferação de cistos em seus ovários, ocasionados pelo uso “excessivo” de “hormônios masculinos”, disse-lhe o ginecologista com quem foi se consultar. Seu corpo devia estar “completamente louco”, disse o profissional. Para voltar a menstruar, precisaria agora de “hormônios femininos”. Tomou três remédios ao longo de vinte e oito dias, ao fim dos quais voltou a menstruar, readequando seu corpo às expectativas de gênero hegemônicas, das quais havia escapado.

Agenciamentos da feminilidade em contextos de músculos e testosterona

Segundo Rohden1717 Rohden F. O império dos hormônios e a construção da diferença entre os sexos. Hist Cien Saude 2008; 15:133-152., a noção de que os hormônios desempenham um papel fundamental na determinação do comportamento dos indivíduos tem dominado o discurso médico científico e vem sendo amplamente incorporada pelo senso comum. Assistimos ao surgimento do “império de um corpo hormonal”, em que essas substâncias passam a ter grande importância na definição de quem somos. Preocupadas em mostrar o processo pelo qual a realidade natural é construída pela ciência, autoras como Oudshoorn1818 Oudshoorn N. Beyond the Natural Body: An Archeology of Sex Hormones. London: Routledge; 1994. e Winjgaard1919 Wijngaard M. Reinventing the sexes: the biomedical construction of femininity and masculinity. Bloomingtom, Indianapolis: Indiana Univ. Press; 1997. demonstraram de forma emblemática como a medicina, no início do século XX, baseada na crença da existência de dois sexos opostos e excludentes, “descobriu” os chamados hormônios sexuais e estes passam a ser entendidos como a essência ou o ponto inequívoco de diferença entre os sexos.

Entre 1920 e 1930, surge o campo da endocrinologia, introduzindo o conceito de que os hormônios “masculinos” e “femininos” seriam mensageiros químicos da feminilidade e da masculinidade1818 Oudshoorn N. Beyond the Natural Body: An Archeology of Sex Hormones. London: Routledge; 1994.. A partir de então, e cada vez mais, a testosterona - hormônio “masculino” por excelência - tornou-se a grande portadora dos atributos físicos e dos comportamentos masculinos, papel desempenhado pelo estrogênio e progesterona no âmbito feminino. O processo de síntese e de comercialização desses hormônios veio na sequência.

É sob essa perspectiva que podemos compreender, por exemplo, o comportamento do ginecologista de Rosa que entende a interrupção de sua menstruação como um enlouquecimento do corpo, causado por um uso “indevido” do hormônio “masculino”. A prescrição de hormônios “femininos” fazia-se necessária para sanar a perturbação e instaurar, naquele corpo, o funcionamento de gênero esperado. Essa é justamente a função médica e social atribuída aos hormônios sexuais1717 Rohden F. O império dos hormônios e a construção da diferença entre os sexos. Hist Cien Saude 2008; 15:133-152..

Se essas substâncias são vistas como as grandes portadoras/instauradoras de gênero, como compreender o uso de “hormônio masculino”, feito por minhas interlocutoras? Na maioria das vezes, o consumo de hormônios do “sexo oposto”, em circuitos fora da jurisdição médica formal, é feito com o objetivo deliberado de transitar entre os gêneros. Este é o caso de travestis e transexuais, como já foi muito bem descrito em algumas etnografias2020 Silva H. Travesti, a invenção do feminino. Rio de Janeiro: Relume-Dumará; 1993

21 Benedetti M. Toda Feita: o corpo e o gênero das travestis. Rio de Janeiro: Garamond; 2005.

22 Pelúcio L. Nos Nervos, na carne, na pele: uma etnografia sobre prostituição, travesti e o modelo preventivo de aids [tese]. São Carlos: Antropologia; 2007.
-2323 Bento B. A reinvenção do Corpo: Sexualidade e Gênero na experiência transexual. Rio de Janeiro: Garamond; 2006.. Visto que minhas interlocutoras não tinham esse objetivo, indaguei de que modo elas significam e agenciam - em discursos e técnicas - os efeitos “masculinizantes” das drogas que usam. Como (re)negociam a feminilidade - absolutamente necessária para elas -, diante do desenvolvimento corporal de significantes culturais do gênero masculino.

O uso de testosterona feito pelas supergostosas corresponde a um estilo de feminilidade em que a musculatura hipertrofiada é encarada como signo de sensualidade. A quantidade de músculos desejável e aceitável, porém, não era unânime, e estava sujeita a um debate vivo que gerava polêmicas recorrentes. Havia sempre o risco de exagero, altamente poluidor, que levaria fatalmente a uma descaracterização do feminino.

Se os músculos eram o traço desejado e mais facilmente feminilizável, havia outros efeitos da testosterona mais problemáticos para elas: o engrossamento da voz, o aumento e engrossamento de pelos corporais - tão arduamente combatidos para a instauração da condição feminina - e sua proliferação em locais “masculinizantes”, como o rosto. Porém os pelos, por mais incômodos que fossem, eram mais facilmente elimináveis por múltiplas técnicas de extração existentes no mercado - de pinças e giletes às depilações com cera ou a laser - que já faziam parte de rituais de feminilização, antes mesmo dos anabolizantes. Mais problemática era a questão da voz, considerada uma transformação mais profunda, e irremediável pelas técnicas cosméticas. A voz engrossada representava também uma marca indisfarçável do consumo de anabolizantes, o que não era propriamente um segredo, mas também não era assunto exposto a qualquer pessoa, visto que seu uso também pode ser um estigma em certos contextos.

Potencializar o volume dos músculos, “preservando” a feminilidade e minimizando os efeitos poluidores - acne, pelos, voz, queda de cabelo etc. - era uma fonte de “capital corporal”2121 Benedetti M. Toda Feita: o corpo e o gênero das travestis. Rio de Janeiro: Garamond; 2005. decisiva para elas. As próteses ou preenchimentos volumosos nos glúteos e nos seios constituíam pontos importantes nesses agenciamentos femininos - até porque os exercícios pesados e os anabolizantes tendiam a diminuí-los de tamanho. Outra técnica para ressaltar “atributos femininos” era a lipoaspiração de abdômen e flancos, para secá-los, e o enxerto concomitante da gordura retirada, no bumbum e nos quadris. Era importante também manter os cabelos compridos ou alongados por apliques, quase sempre lisos ou alisados, unhas postiças sempre longas, pintadas em cores vivas e o vestuário composto por peças bem justas e decotadas.

Natureza aprimorada x o antinatural: a produção do bizarro e do aceitável e seus atravessamentos de classe

Segundo Le Breton2424 Le Breton D. Anthropologie de la douler. Paris: Métailié; 1995.(p.65), os limites do corpo desenham a ordem moral e significante do mundo. Sendo assim, aquilo que é visto como uma perturbação na configuração do corpo representa antes uma perturbação na própria coerência do mundo, gerando, por isso, um desconforto moral.

Essa perspectiva fica visível na vigilância/controle exercida sobre si e sobre as intervenções corporais alheias, que eram continuamente avaliadas, julgadas e comentadas por minhas interlocutoras na pesquisa - em todos os meios sociais. Essas apreciações geravam hierarquias e disputas fortemente marcadas por distinções de classe. Os resultados das intervenções corporais estavam sujeitos a uma apreciação contínua em que se discutia a justa medida e as fronteiras entre os usos bem-sucedidos e legítimos das tecnologias de gênero2525 Lauretis TD. "A tecnologia de ge^nero". In: Hollanda HB, organizadora. Tende^ncias e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco; 1994. p. 206-242. e aqueles que constituíam um exagero produtor de efeitos abjetos44 Butler J. Problemas de Gênero. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2010.. Os critérios de gosto/estéticos empregados na negociação desses limites variava entre e no interior das diferentes classes2626 Bourdieu P. A Distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; 2007. sociais, produzindo um jogo tenso entre gênero e classe. Essas apreciações davam origem tanto a elogios quanto a condenações traduzidas nas categorias de acusação mencionadas anteriormente.

Nos meios elitizados, os usos considerados exagerados poluem a visão do corpo como instância natural, essa natureza que as tecnologias de gênero visam a fabricar, até aprimorar, mas nunca desconstruir. Entretanto, havia um equilíbrio frágil entre a busca de aprimoramento da “natureza” e o risco do efeito “antinatural” (portanto, monstruoso) dessas intervenções. Os limites estéticos e morais entre a natureza aprimorada e o antinatural são tênues, e podem se tornar objeto de controvérsias entre sujeitos diferentemente posicionados (p.ex. médicos e pacientes1010 Naidin S. (Bio)tecnologias do corpo e do gênero: Uma análise da construção de corporalidades femininas [tese]. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 2016., homens e mulheres, diferentes gerações, diferentes classes sociais etc.).

Distinções de classe nos processos de fabricação do gênero

O formato (e tamanho) da bunda, dos seios, do nariz, o tipo de cabelo, enfim, os mínimos traços corpóreos são bens que podem ser comprados e, além de marcadores de gênero, constituem fortes marcadores de classe. De fato, entre as interlocutoras da pesquisa nos meios populares, a beleza não era pensada como um dom, algo inato, como é frequentemente pensada nos meios elitizados, mas como algo que se adquire via consumo, bastando ter os meios. Nesse sentido, a beleza é explicitamente tratada como produto de elaboração estética, viabilizada pelo gasto financeiro e há, portanto, conexão profunda entre beleza e prosperidade.

No centro de estética que frequentei durante a pesquisa, uma mulher de pouco mais de 40 anos refletia: “Quando a idade vai chegando, não tem como parar de fazer [procedimentos estéticos variados]. Mas aí só com dinheiro. Vê a Gloria Maria [antiga jornalista da TV Globo]? Cada ano que passa ela parece que melhora, fica mais jovem! Isso é grana, né? Com dinheiro dá pra fazer tudo”. Outra cliente concordava: “Pois é, não adianta fazer essas lipos e tudo mais, porque se não tem dinheiro depois pra manter, volta tudo!”.

A produção da corporalidade feminina deverá ser objeto de investimento constante. O caráter instável, não ontológico e definitivo da condição feminina - dos marcadores de gênero, em geral -, faz-se ver por esse trabalho permanente a que os corpos devem ser submetidos e a facilidade com que tornam incessantemente a escapar do ideal. Isso é perceptível entre todas as interlocutoras desta pesquisa, tanto nos meios elitizados, como nos populares. A matéria resiste aos ideais prescritos pelo gênero e por isso, com o tempo, “volta tudo”.

Podemos concluir que qualquer corporalidade feminina é sempre um processo de fabricação técnica sujeita a procedimentos que estão determinados por classe/poder de consumo. De modo que o autenticamente feminino não é condição inerente a corpo algum, mas um produto instável, elaborado atualmente via consumo de bens e serviços oferecidos pela indústria farmacêutica, cosmética e do entretenimento (pornográfica principalmente1212 Preciado B. Testo Yonqui. Madrid: Espasa; 2008.). E como ouvi de minhas interlocutoras de pesquisa, esse feminino precisa ser permanentemente cuidado e aperfeiçoado, por isso o custo alto e permanente. É nesse sentido que “estar bem cuidada” e ter acesso ao consumo das técnicas que viabilizam essa reiteração do gênero nos corpos é um símbolo de inserção econômica e objeto de status que merece ser exposto no universo popular em que se inscrevem as supergostosas, como aponta Mizrahi2727 Mizrahi M. Cabelos Ambíguos: Beleza, poder de compra e "raça" no Brasil urbano. Rev Bras Cien Soc 2015; 30(89):31-45..

Desse modo, o corpo depilado, “jovem”, “liso”, sem manchas, torneado, siliconado, lipoaspirado, de unhas pintadas e cabelos “bem” tratados, é o corpo do acesso ao consumo. As supergostosas tornam explicito algo que, nas elites pesquisadas na primeira parte da pesquisa, existe amplamente, e é objeto de esforço de apagamento constante: a voracidade pelo consumo.

É possível dizer que os bens de alto custo material e simbólico fabricados pelo capitalismo, são almejados pelos mais variados grupos sociais. No entanto, com base na pesquisa que realizei, pode-se objetar que, embora exista de fato um repertório de consumo comum, é na forma de consumir que os sujeitos sociais se distinguem e há nesse jogo uma disputa simbólica fortíssima2828 Douglas M, Isherwooh B. O Mundo dos Bens: para uma antropologia do consumo. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; 2004..

Se a plástica e outros produtos da indústria cosmética tornaram-se acessíveis nos meios populares, é na forma de consumi-los e nos corpos que produzem que as elites da Zona Sul carioca novamente se diferenciam - corpos elitizados buscando o ideal “natural”, onde o consumo das tecnologias deve ser cuidadosamente apagado e inserido numa gramática de “higiene” e “cuidado com a saúde”.

Ao tratarem a beleza antes de tudo como uma mercadoria que se fabrica graças ao dinheiro e às técnicas da indústria da beleza, as supergostosas perturbam os esforços das elites de naturalizar seus marcadores de classe e raça, que lhes reservam lugar social privilegiado.

Conclusão

As questões aqui abordadas constituem em grande parte uma discussão sobre fronteiras. O tempo todo o campo se mostrou um terreno de fronteiras instáveis, em permanente negociação entre os atores envolvidos. Fronteiras de gênero, entre masculino/feminino e seus híbridos, fronteiras de classe, fronteiras entre natureza e artifício, entre o humano e não-humano, entre as intervenções corporais aceitáveis e inaceitáveis etc. Todas estavam sempre interligadas, de modo que a negociação de cada uma mobilizava todas as outras: definir o natural, ou a naturalidade, é também um procedimento de distinção de classe; definir os procedimentos estéticos aceitáveis define também formas de feminilidade aceitas e abjetas, assim por diante.

A primeira, e talvez a mais importante delas, era a fronteira entre natureza e artifício. De fato, os rumos tomados pela produção tecnológica contemporânea tornam incertas fronteiras que há pouco forneciam os parâmetros e limites, segundo os quais a cultura ocidental pensava o mundo2929 Bruno F. Mediação e interface: incursões tecnológicas nas fronteiras do corpo. In: Silva DF, Fragoso S, organizadoras. Comunicação na cibercultura. São Leopoldo: Unisinos; 2001. p. 191-215.. As tecnologias estudadas nesse trabalho, junto a muitas outras, colocam em movimento fronteiras que definem o que é próprio ao humano. Constatei que a separação entre natureza e artifício opera no campo estudado como uma forte distinção moral, encarnada pela diferenciação entre o natural e o artificial. Segundo Haraway1313 Haraway D. Manifesto Ciborgue. In: Tadeu T, organizador. Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica; 2013. p. 33-119., nas tradições da ciência e da política ocidentais (a tradição do capitalismo racista, dominado pelos homens; a tradição do progresso; a tradição da apropriação da natureza como matéria para a produção da cultura; a tradição da reprodução do eu a partir dos reflexos do outro), a relação entre organismo e máquina tem sido uma guerra de fronteiras.

A fabricação das corporalidades aqui analisadas e os processos de negociação moral para definir os critérios do que é bom e aceitável, expõem essa guerra. Os corpos e feminilidades elitizados, junto ao discurso médico formal, perseguem e constroem um ideal de natureza tecnicamente aprimorado, do qual não podem se distanciar sob pena de forte condenação social. Essas tecnologias, embora desenvolvidas para a normalização dos corpos e para sua adequação a esses critérios de natureza, sempre podem falhar ou ser usadas de maneiras impróprias produzindo assim o efeito contrário, isto é, desestabilizando fronteiras que elas deveriam, a princípio, confirmar.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    Fev 2024

Histórico

  • Recebido
    19 Jul 2023
  • Aceito
    22 Ago 2023
  • Publicado
    24 Ago 2023
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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