EDITORIAL

 

Mídia, moralidade e fatores de risco em saúde

 

 

A forma como a epidemiologia dos fatores de risco aparece nos meios de comunicação é um tema relevante para a saúde pública. Diversos estudos analisam se a mídia é acurada na tradução do saber médico para os leigos. É interessante, porém, ampliar o foco do questionamento e incluir a dimensão subjetiva do consumo de notícias sobre saúde.

Desejamos consumir notícias sobre fatores de risco contidos em nossos estilos de vida porque elas desdobram a possibilidade de nos tornarmos sujeitos. O futuro aparece como calculável e dependente de nossas ações sobre nosso ser, isto é, sobre a parte de nós mesmos que nos incitaria ao descuido e, assim, conduziria à doença e à morte prematuras. O tempo que escoa em direção à morte afigura-se manejável e repleto de ocasiões significativas, aquelas em que haveria escolha, temor, esperança e arrependimento. Com o conceito de fator de risco tal como noticiado pela mídia, o sofrimento e a morte aparecem, ainda uma vez na história humana, na distância do evitável.

Apesar de estarem informados, por que os indivíduos não alteram seus estilos de vida como recomendado pelas notícias? A mudança é usualmente um convite à moderação, a ser adotado quando estamos diante de uma oportunidade de prazer. Como a relação é probabilística, tanto a ausência de restrição pode não ter como conseqüência a doença, quanto a moderação pode de nada adiantar - e, de todo modo, morreremos. Embora as propostas de moderação se dêem como promessa de multiplicação dos prazeres pela ampliação do tempo de vida, por que trocar o certo pelo incerto, o prazer imediato pelo diferido? Não é por falta de informação que os indivíduos acabam por não se cuidar tanto, mas porque a incerteza da recompensa torna razoável "ceder às tentações" e porque "gozar agora e pagar depois" não é só a mensagem de propagandas de cartões de crédito, mas lema maior de culturas hedonistas.

Esse modo de presença da medicina na mídia traz então dois problemas adicionais para a saúde pública, tão relevantes quanto a distância entre o consenso médico e o que aparece na mídia. Primeiro, realçar o que está ao alcance da ação dos indivíduos simplifica a causalidade dos problemas, reduzindo a capacidade de lidar com eles. A discussão recente no Brasil sobre acidentes de trânsito enfatiza a imoralidade dos motoristas e o poder de fiscalização da polícia; a qualidade das estradas, a segurança dos veículos e os múltiplos sentidos culturais de dirigir um carro parecem irrelevantes. Como se a agenda midiática fosse só o de alertar para as conseqüências danosas do descontrole e denunciar a incompetência do Estado. E quanto mais os indivíduos se pensam incapazes de agir politicamente para transformar as condições sociais, mais se frisa o que é suposto depender de suas escolhas.

Em segundo lugar, ao colocarem o advento de uma doença como conseqüência da opção pelo prazer sem moderação, as notícias sobre fatores de risco parecem ser regras morais, pois identificam sofrimento a castigo. Além de se opor ao esforço da medicina moderna de questionar o nexo entre doença e pecado, a forma moral pode ser iatrogênica, pois se torna sedutor contrariar a "regra". No ano passado, uma receita ensinando a assar porções iguais de bacon e carne de porco moída foi um dos tantos sucessos momentâneos da Internet. Parte da atração por essa dose de colesterol concentrado está na sua dimensão "transgressiva". No caso, os indivíduos experimentam a receita não porque desconheçam a relação entre colesterol e doenças cardiovasculares, mas porque sabem de sua existência.

 

Paulo Vaz
Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro, Brasil
paulorgvaz@uol.com.br

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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