Cuidados paliativos: ciência e proteção ao fim da vida

Claudia Burlá Ligia Py Sobre os autores

No contexto da medicina contemporânea submersa em uma espécie de imperativo tecnológico que domina o seu fazer cotidiano, surge o moderno movimento hospice no qual se inserem os Cuidados Paliativos. Tal movimento emerge em um ethos que se fundamenta na compaixão e no cuidado da pessoa doente e seus familiares focados como uma unidade, numa busca ativa de medidas que suavizem os sintomas angustiantes – em especial a dor – que possam dar alívio ao sofrimento, encarando a morte como parte do processo natural da biografia e não como um inimigo a ser enfrentado. É curioso que, na era da alta biotecnologia, uma modalidade de atendimento a pessoas que estão morrendo revele uma intervenção interdisciplinar com ares revolucionários: um olhar apressado não captura a dimensão do Cuidado Paliativo, uma práxis na área da saúde que integra conhecimento científico, interpelação bioética e sensibilidade diante do sofrimento humano 1. Campbell CS, Hare J, Matthews P. Conflicts of conscience: hospice and assisted suicide. Hastings Cent Rep 1995; 25:36-43.,2. Dunlop R. Cancer: Palliative Care. London: Springer-Verlag; 1998.,3. Floriani CA. Moderno movimento hospice: fundamentos, crenças e contradições na busca da morte. Rio de Janeiro: Publit; 2011.,4. Twycross R. Introducing Palliative Care. UK: Radcliffe Medical Press; 1995..

Profissionais da saúde treinados para fazer todo o possível a fim de manter o paciente vivo, veem-se na perplexidade diante de um indivíduo com doença crônica em fase avançada, que já não responde a qualquer terapêutica curativa. O conhecimento técnico aqui é tão essencial quanto a competência humanitária no exercício da humildade para perceber o limite da vida. Nesse momento, a atuação profissional não visa a medidas de prolongamento artificial da vida, mas sim proporcionar o maior conforto possível para a pessoa viver em plenitude tanto quanto puder até o momento da sua morte.

Cabe lembrar que Cuidados Paliativos não rejeitam a biotecnologia. Ao contrário, são uma modalidade de tratamento altamente intervencionista, valendo-se, por exemplo, das avançadas propostas da farmacologia para a efetividade do controle de sintomas. Constituem uma resposta ativa aos problemas decorrentes da doença prolongada, incurável e progressiva. Combina harmonicamente a ciência com o humanismo. É essencial que os profissionais tenham um amadurecimento pessoal para conseguirem perceber as demandas do seu paciente, assim como conhecer profundamente as doenças envolvidas e as possibilidades de intervenção, farmacológicas e não farmacológicas.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) faz um alerta: em países desenvolvidos e em desenvolvimento, pessoas estão vivendo e morrendo sozinhas e cheias de medo, com suas dores não mitigadas, sintomas físicos não controlados e as questões psicossociais e espirituais não atendidas. O avanço da doença crônica em fase adiantada faz com que a morte seja inevitável e qualquer terapêutica curativa instituída pode ser considerada fútil e não razoável 5. World Health Organization. Cancer: palliative care is an essential part of cancer control. http://www.who.int/cancer/palliative/en (accessed 13/May/2014).
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Essa é a realidade desafiadora dos Cuidados Paliativos, carentes ainda de políticas públicas que incluam esta forma inovadora de assistência, num atendimento de alta pertinência e eficácia. O grande contingente de pessoas com doenças ameaçadoras à continuidade da vida demanda cuidados que estendam sua abrangência ao controle dos sintomas que as afligem, à assistência psicossocial e espiritual e à atenção devida aos seus familiares.

Cuidado Paliativo tem origem nos primórdios da Medicina. Desde Hipócrates, o médico deve “curar quando possível, aliviar quando a cura não for possível e consolar quando não houver mais nada a fazer6. Doyle D, Hanks G, Cherny NI, Calman K. Introduction. In: EDITOR. Oxford Textbook of Palliative Medicine. 3rd Ed. New York: Oxford University Press; 2004. p. 1-4. (p. 25).

A base etimológica do adjetivo paliativo é pálio, que abarca um amplo círculo semântico, destacando-se aqui dois blocos que tangenciam e se complementam: um diz respeito àquilo que cobre, protege, agasalha, alivia, defende e outro se refere à distinção, singularização, individualização e poder. Esse último entendido como encargo, missão e não como dominação ou honra. Partindo das considerações etimológicas, Cuidado Paliativo não se restringe a quem é cuidado, mas se estende àquele que cuida. Constitui, pois, um processo profundamente intersubjetivo, de estreita relação pessoal. Tal relação pressupõe uma radical crença no sofrimento do doente e uma intensa atitude de disponibilidade (Oliveira apud Py et al. 7. Oliveira JF. O amplo significado de ‘pálio’: a matéria prima do que se entende por ‘cuidados paliativos’. Py L et al. “Cuidados paliativos e cuidados ao fim da vida na velhice”. Geriatria & Gerontologia. 2010; 4(2): 90-106.).

O conceito de Cuidados Paliativos evoluiu ao longo do tempo, com relevância à pessoa doente, às suas necessidades especiais e às de sua família, não mais ao órgão comprometido, à idade ou ao tipo de doença. Cuidados Paliativos já foram vistos como aplicáveis exclusivamente no momento da morte iminente. Hoje, os Cuidados Paliativos são oferecidos no estágio inicial do curso de uma doença progressiva, avançada e incurável.

Atenta à atualidade, à importância e à pertinência do tema, a OMS oferece-nos um detalhamento explicativo com ênfase nos aspectos cruciais à especificidade da sua aplicação. O Cuidado Paliativo promove o alívio da dor e de outros sintomas que geram sofrimento; reafirma a vida e vê a morte como um processo natural; não pretende antecipar e nem postergar a morte; integra aspectos psicossociais e espirituais ao cuidado; oferece um sistema de suporte que auxilia o paciente a viver tão ativamente quanto possível até a morte, e a família e entes queridos a sentirem-se amparados durante todo o processo da doença e no luto; utiliza os recursos de uma equipe multiprofissional para focar as necessidades dos pacientes e seus familiares, incluindo acompanhamento no luto; melhora a qualidade de vida e influencia positivamente no curso da doença; deve ser iniciado o mais precocemente possível, junto a outras medidas de prolongamento da vida – como a quimioterapia e a radioterapia – e incluir todas as investigações necessárias para a melhor compreensão e abordagem dos sintomas 5. World Health Organization. Cancer: palliative care is an essential part of cancer control. http://www.who.int/cancer/palliative/en (accessed 13/May/2014).
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Cuidados Paliativos como modalidade de intervenção diferenciam-se dos Cuidados ao Fim da Vida. Cuidados Paliativos devem ser aplicados ao paciente num continuum, par e passo com outros tratamentos pertinentes ao seu caso, a partir do diagnóstico de uma doença incurável e progressiva. Os Cuidados ao Fim da Vida são uma parte importante dos Cuidados Paliativos, referindo-se à assistência que um paciente deve receber durante a última etapa de sua vida, a partir do momento em que fica claro que ele se encontra em um estado de declínio progressivo e inexorável, aproximando-se da morte 8. Watson M, Lucas C, Hoy A, Wells J. Oxford Handbook of Palliative Care. 2nd Ed. New York: Oxford University Press; 2009..

É notória a expansão dos Cuidados Paliativos no mundo inteiro, estando presentes também no Brasil: “Tal difusão parece, de fato, ser irreversível e configura-se como uma necessidade não só técnica, relativa ao saber-fazer dos profissionais envolvidos, mas também moral, devido às situações de abandono pelas quais passam os pacientes que necessitam de intervenções que sejam consistentes com a busca de alívio de seus sofrimentos no fim da vida3. Floriani CA. Moderno movimento hospice: fundamentos, crenças e contradições na busca da morte. Rio de Janeiro: Publit; 2011. (p. 16).

A proposta dos Cuidados Paliativos é essencialmente ética, em especial no cenário da terminalidade da vida. Transita no tratamento convencional, transgride a égide da doença e se oferece à transformação da assistência às pessoas com enfermidades que as fazem caminhar inapelavelmente para o fim da vida.

Escutar os pacientes, estender sobre eles o pálio de proteção e cuidado, tocá-los e ser tocados por eles nos arredores da morte pode vir a ser o que anda faltando para um aprendizado que ilumine o caminho existencial dos profissionais, impulsionando-os a novos projetos, novos sonhos e, consequentemente, novas realizações.

Cuidados Paliativos não são cuidados menores no sistema de saúde, não se resumem a uma intervenção de caridade bem intencionada, não se destinam a um grupo reduzido de situações, não restringem a sua aplicação aos moribundos nos últimos dias de vida, e pela especificidade das intervenções são diferenciados dos cuidados continuados. Cuidados Paliativos não são dispendiosos e não encarecem os gastos dos sistemas de saúde: na realidade, tendem mesmo a reduzi-los pela melhor racionalização da assistência 9. Temel JS, Greer JA, Muzikansky A, Gallagher ER, Admane S, Jackson VA, et al. Early palliative care for patients with metastatic non-small-cell lung cancer. N Engl J Med 2010; 363:733-42..

A questão do envelhecimento populacional é exemplar. Com o evidente aumento da longevidade, o câncer e as doenças cardiovasculares são os grandes responsáveis pelos elevados índices de morbidade e mortalidade entre os idosos; as doenças neurodegenerativas e osteoarticulares estão na base da incapacidade que acomete esta população, comprometendo a sua autonomia com enorme prejuízo funcional e alto grau de dependência para as atividades diárias.

Cuidados Paliativos constituem hoje uma questão de saúde pública. São uma resposta indispensável ao tratamento das pessoas com problemas crônicos evoluindo até o final da vida. Em nome da ética, da dignidade e do bem-estar de cada ser humano é preciso torná-los cada vez mais uma realidade.

  • 1
    Campbell CS, Hare J, Matthews P. Conflicts of conscience: hospice and assisted suicide. Hastings Cent Rep 1995; 25:36-43.
  • 2
    Dunlop R. Cancer: Palliative Care. London: Springer-Verlag; 1998.
  • 3
    Floriani CA. Moderno movimento hospice: fundamentos, crenças e contradições na busca da morte. Rio de Janeiro: Publit; 2011.
  • 4
    Twycross R. Introducing Palliative Care. UK: Radcliffe Medical Press; 1995.
  • 5
    World Health Organization. Cancer: palliative care is an essential part of cancer control. http://www.who.int/cancer/palliative/en (accessed 13/May/2014).
    » http://www.who.int/cancer/palliative/en
  • 6
    Doyle D, Hanks G, Cherny NI, Calman K. Introduction. In: EDITOR. Oxford Textbook of Palliative Medicine. 3rd Ed. New York: Oxford University Press; 2004. p. 1-4.
  • 7
    Oliveira JF. O amplo significado de ‘pálio’: a matéria prima do que se entende por ‘cuidados paliativos’. Py L et al. “Cuidados paliativos e cuidados ao fim da vida na velhice”. Geriatria & Gerontologia. 2010; 4(2): 90-106.
  • 8
    Watson M, Lucas C, Hoy A, Wells J. Oxford Handbook of Palliative Care. 2nd Ed. New York: Oxford University Press; 2009.
  • 9
    Temel JS, Greer JA, Muzikansky A, Gallagher ER, Admane S, Jackson VA, et al. Early palliative care for patients with metastatic non-small-cell lung cancer. N Engl J Med 2010; 363:733-42.

Correspondência C. Burlá Rua Artur Araripe 43, apto. 1003, Rio de Janeiro, RJ 22451-020, Brasil. claudiaburla@gmail.com
Colaboradores
Ambas as autoras conceberam, redigiram, revisaram e aprovaram a versão final do texto; são responsáveis pela exatidão e integridade de toda a obra.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2014

Histórico

  • Recebido
    20 Maio 2014
  • Aceito
    26 Maio 2014
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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