Sistema Único de Saúde: a eficiência do interesse público

Brazilian Unified National Health System: the efficiency of the public interest

Sistema Único de Salud: la eficiencia del interés público

Ronaldo Teodoro Sobre o autor
2022

O livro SUS: o Debate em Torno da Eficiência, de Alexandre Marinho & Carlos Ocké-Reis 11. Marinho A, Ocké-Reis CO. SUS: o debate em torno da eficiência. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2022., abriga um esforço de múltiplos sentidos para os desafios contemporâneos do Sistema Único de Saúde (SUS). É possível dizer que se trata de uma contribuição que se estende ao desafio de afirmação da agenda democrática junto ao Estado brasileiro. Esse mérito diz respeito não apenas ao vínculo tácito do SUS com os rumos da própria democracia no Brasil, mas, sobretudo, porque nos permite localizar no conceito liberal de eficiência o fundamento ideológico da superioridade da decisão técnica sobre os processos da política.

No Brasil, o pano de fundo do debate sobre eficiência na administração pública remonta à disputa de rumos travada nos anos 1990. Desde os anos 1970, em oposição aos governos militares (1964-1985), distintas correntes políticas formulavam reflexões críticas ao Estado brasileiro. Entretanto, foi nos anos 1990 que um projeto de modernização regressiva conseguiu alcançar viabilidade eleitoral, deslocando a legitimidade do poder público enquanto agente central do desenvolvimento e do planejamento nacional.

Em crise de legitimação, o Estado brasileiro, e mais precisamente a sua capacidade de planejamento, tornou-se crescentemente definido como burocrático, patrimonialista, perdulário e tecnocrático - um entulho a ser desmontado para o bem da modernização do país. A tese apontava para a repactuação da democracia com as instituições e a linguagem do mercado, em que o conceito de eficiência comparecia como dimensão importante da gramática que impulsionava a transformação em curso. No contrafluxo dessa ascensão do liberalismo conservador, a invenção democrática do SUS demandava toda uma cultura de planejamento público que estava em desagregação. Diante dela, se impunha uma reforma gerencialista importada da cultura thatcherista inglesa: a new public management.

Ao encarar de frente essa tradição, Marinho & Ocké-Reis 11. Marinho A, Ocké-Reis CO. SUS: o debate em torno da eficiência. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2022. contribuem com duas chaves de pesquisa: por um lado, expõem os fundamentos teóricos da avaliação da eficiência em políticas públicas; por outro, problematizam como o conceito é politicamente mobilizado para desarticular as lutas contra o histórico subfinanciamento do SUS e aprofundar sua privatização estrutural. Dividido em quatro capítulos, além da introdução e das considerações finais, o livro tem como objetivo central retirar o argumento da eficiência do cânone liberal. Como todo grande desafio nem sempre enseja saídas fáceis, avaliamos que a obra deixa temas importantes em aberto, levanta controvérsias com o campo da Saúde Coletiva, que por vezes não são plenamente solucionadas, e, ocasionalmente, apresenta algum déficit de clareza.

O capítulo 1 atende exitosamente ao propósito de deslocar a associação mecânica entre ganhos de eficiência e cortes orçamentários, apontando que constrangimentos de recursos limitam a qualidade da gestão. Na formulação dos autores, “a quintessência do debate sobre a eficiência na economia da saúde é atribuída à busca pela diminuição dos custos e pela eliminação dos desperdícios materiais e humanos11. Marinho A, Ocké-Reis CO. SUS: o debate em torno da eficiência. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2022. (p. 15). No desenvolvimento dessa crítica, dois movimentos ideológicos são identificados: (i) a legitimação da austeridade, em que os problemas do SUS decorreriam da má gestão; (ii) a afirmação da superioridade da racionalidade privada sobre as práticas da administração pública. A esses argumentos poderíamos acrescentar que esse sentido de eficiência comparece na tese de que entre o setor privado e o setor público não existe divergência quanto aos fins, sendo desejável o compartilhamento de meios.

Localizada a tese adversária, o segundo capítulo passa à apresentação das divergências entre conceitos e metodologias relacionadas aos estudos sobre eficiência. Para tanto, o trabalho apresenta um importante mapeamento da produção acadêmica, suas principais abordagens e métodos de avaliação. Um dos ganhos analíticos do capítulo consiste em vincular o entendimento de eficiência aos conceitos de eficácia e efetividade. Considerando as possíveis categorizações do conceito de eficiência (alocativa, técnica e de escala), a reflexão aponta que bons indicadores financeiros e de custo-efetividade podem ser, não obstante, incoerentes com o interesse e a deliberação pública.

Esse capítulo talvez possa ser considerado como aquele que menos cumpre com o objetivo de debater o tema com uma linguagem acessível ao público não iniciado. Nesse momento da obra, podem ser úteis as “sugestões de leitura” comentadas pelos autores, localizadas ao fim do livro.

O capítulo 3 traz ao centro da problematização o argumento segundo o qual o setor privado seria intrinsecamente superior ao setor público. Para evidenciar a condição ideológica dessa afirmação, os autores constroem o seguinte percurso analítico: em primeiro lugar, colocam em suspeição os fundamentos da teoria econômica neoclássica, apontando as diferenças que existem entre o funcionamento do mercado em geral e as especificidades do mercado na saúde. Seriam evidências dessa distinção a assimetria de informações entre médicos e pacientes; os limites de competição entre os agentes, dado que as excepcionalidades tecnológicas e de conhecimento na saúde limitariam a entrada de concorrentes; e a incerteza decorrente do adoecimento, que afetaria a racionalidade do consumidor, comprometendo pressupostos teóricos da microeconomia.

Em que pesem os contrapontos teóricos que poderíamos levantar em relação a essa definição de mercado, o deslocamento proposto pelos autores atende ao objetivo de bloquear o axioma da necessidade da “incorporação de práticas de mercado ou mesmo da participação da iniciativa privada para melhorar a eficiência do SUS11. Marinho A, Ocké-Reis CO. SUS: o debate em torno da eficiência. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2022. (p. 71).

Nesse momento do livro, os autores desenvolvem uma crítica à influência política do Banco Mundial esclarecedora para a tomada de consciência de que o SUS é uma das principais áreas do Estado brasileiro que abrigou a lógica da economia de mercado na organização dos seus serviços. A adesão a esse receituário por gestores de distintos espectros ideológicos na atualidade evidencia a importância do argumento apresentado por Marinho & Ocké-Reis.

O último capítulo abre espaço para a constatação de que o tangível subfinanciamento do SUS não deve impedir a reflexão sobre os problemas da gestão. Nesse ponto, os autores procuram antes destacar a unidade entre tais temas do que afirmar a sua dicotomia - como usualmente se faz.

No debate proposto, o planejamento de longo prazo torna-se central para a compreensão da eficiência orçamentária, em que metas e indicadores servem tanto para a identificação de capacidades quanto para a superação de gargalos. Por essa compreensão, o planejamento é apresentado como uma operação complexa. A integração entre o Ministério da Saúde e as Secretarias de Saúde torna-se fundamental para se pensar em uma rede que abranja do complexo hospitalar à atenção primária à saúde. Acrescentaríamos, ainda, que a relação do planejamento com a eficiência deve considerar também a distribuição e a fixação dos trabalhadores da saúde.

Nesse debate sobre o planejamento, os autores tocam em um ponto controverso ao sugerirem uma superioridade de eficiência orçamentária proveniente do “planejamento ascendente do SUS11. Marinho A, Ocké-Reis CO. SUS: o debate em torno da eficiência. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2022. (p. 99). No campo da saúde coletiva, a orientação descentralizada do planejamento público ecoa as teses democráticas que vicejaram após a ditadura militar. Na atualidade, o encontro entre a municipalização e a cultura cívica do controle social com a capacidade de coordenação e integração institucional do planejamento de Estado segue como um desafio não solucionado. Apesar de não explorada, essa questão é importante para o debate da eficiência no SUS.

O livro SUS: o Debate em Torno da Eficiência nos permite ainda uma consideração geral sobre um importante desafio contemporâneo. A preocupação com a eficiência em políticas públicas é fruto de um processo político e ideológico fortalecido desde meados do século XX. Ao redimensionar o debate sobre a organização dos Estados, o campo contribuiu para um aperfeiçoamento das democracias, mas embutiu nesse percurso uma crescente e implícita separação entre técnica e política.

A expectativa de se alcançar rigor científico na organização de serviços públicos por meio de modelos matemáticos e testes de variáveis fortaleceu o argumento da “neutralidade técnica”, deslegitimando o terreno da política. Em um sentido mais profundo, abriga certa ilusão de que seja possível separar o momento das disputas eleitorais e parlamentares da decisão processada ao nível técnico presente nas burocracias ministeriais, com suas secretarias e departamentos.

O prestígio da técnica sobre a política mostrou-se no Brasil recente uma arma contra os conflitos legítimos da democracia - que passaram então a ser reconhecidos como lócus do interesse e atestado de irracionalidade. Como aponta Fábio Wanderley Reis 22. Reis FW. Mercado e utopia. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais; 2009., esse sentido difundido da eficiência técnica remonta à tradição que se ancora em autores como Mosca, Pareto e Weber, revelando no fundo uma concepção moral de sociedade.

Em um contexto de refundação do debate sobre a âncora fiscal do Estado brasileiro e do sentido da administração pública para o combate às desigualdades, o livro de Marinho & Ocké-Reis abre a oportunidade de se elevar o debate sobre a eficiência e os rumos do SUS a um caminho fora da clausura liberal. Fica o ensinamento de que o debate da eficiência no SUS é, e será sempre, uma questão política que envolve a legitimação pública do conflito acerca do equacionamento, da produção e da distribuição de poder e recursos.

__________

  • 1
    Marinho A, Ocké-Reis CO. SUS: o debate em torno da eficiência. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2022.
  • 2
    Reis FW. Mercado e utopia. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais; 2009.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    22 Fev 2023
  • Aceito
    27 Fev 2023
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br