Filhos do cárcere: representações sociais de mulheres sobre parir na prisão

Hijos de la cárcel: representaciones sociales de mujeres sobre el parir en la prisión

Khesia Kelly Cardoso Matos Susanne Pinheiro Costa e Silva Emanuela de Araújo Nascimento Sobre os autores

Resumos

O objetivo deste estudo foi compreender as representações sociais de gestantes e puérperas encarceradas sobre o parir na prisão. Trata-se de pesquisa de abordagem qualitativa desenvolvida com 19 mulheres, estando estas abrigadas em Colônias Penais do estado de Pernambuco, Brasil. Para coleta de dados, utilizaram-se entrevistas grupais, analisadas pelo software Iramuteq. As representações sobre parir durante o encarceramento são marcadas pelo sofrimento ocasionado pelo medo da separação. O processo do trabalho de parto é manifesto pelo preconceito da sociedade; já o tipo de parto parece influenciar na concepção de parir e ser mãe. O estudo aponta a importância de entender a problemática da maternidade no cárcere, bem como as dificuldades atreladas ao processo. Além do mais, faz-se necessário melhorar a atenção e cuidado por parte dos profissionais de saúde e gestores na garantia dos direitos dessa população.

Representações sociais; Parto obstétrico; Prisões


El objetivo de este estudio fue comprender las representaciones sociales de gestantes y puérperas encarceladas sobre el parir en la prisión. Se trata de un estudio de abordaje cualitativo desarrollado con diecinueve mujeres, estando ellas designadas en Colonias Penales del estado de Pernambuco, Brasil. Para la colecta de datos se utilizaron entrevistas grupales, analizadas por el software Iramuteq. Las representaciones sobre el parir durante el encarcelamiento están marcadas por el sufrimiento causado por el miedo de la separación. El proceso del trabajo de parto se manifiesta por el prejuicio de la sociedad, a su vez, el tipo de parto parece influir en la concepción del parir y ser madre. El estudio señala la importancia de entender la problemática de la maternidad en la cárcel, así como las dificultades vinculadas al proceso. Además, es necesario mejorar la atención y el cuidado por parte de los profesionales de salud y gestores en la garantía de los derechos de esa población.

Representaciones sociales; Parto obstétrico; Prisiones


Introdução

Em todo o mundo, há o crescimento do número de mulheres encarceradas pelo cometimento de delitos e, por conseguinte, elevado percentil de mulheres-mãe. Dentre os principais fatores descritos como responsáveis pela inserção feminina no mundo do crime, estão: dificuldades financeiras, desemprego, parentes no tráfico, ameaças, sustento familiar, obtenção do poder e influência dos seus companheiros11. Ferreira VP, Silva MA, Neto CN, Neto GHF, Chaves CV, Bello RP. Prevalência e fatores associados à violência sofrida em mulheres encarceradas por tráfico de drogas no Estado de Pernambuco, Brasil: um estudo transversal. Cienc Saude Colet. 2013; 19(7):2255-64. doi: https://dx.doi.org/10.1590/1413-81232014197.10012013.
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O aumento da população carcerária feminina é algo concreto, com registros em torno de 12% nos últimos cinco anos. O tráfico de drogas é o principal responsável por tal encarceramento nesse mesmo período no Brasil, com índice de 62,4%22. Brasil. Ministério da Justiça. Departamento Penitenciário Nacional – DEPEN Informações penitenciárias (INFOPEN) [Internet]. Brasília: Ministério da Justiça; 2018 [citado 20 Jan 2019]. Disponível em: http://www.mj.gov.br/depen
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,33. Scherer ZPA, Scherer EA, Nascimento AD, Ragozo FD. Perfil sociodemográfico e história penal da população encarcerada de uma penitenciária feminina do interior do estado de São Paulo. Rev Eletronica Saude Mental Alcool Drog. 2011; 7(2):55-62. doi: https://dx.doi.org/10.11606/issn.1806-6976.v7i2p55-62.
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. Assim, os presídios brasileiros femininos encaram dificuldades como: superlotação, estrutura física imprópria, falta de higiene, violência, discriminação, inexistência de áreas de lazer, poucas atividades de reinserção social, retorno ao cárcere, deficiência na assistência médica e inadequação de políticas específicas para mulheres.44. Agnolo CMD, Belentani LM, Jardim APS, Carvalho MDB, Pelloso SM. Perfil de mulheres privadas de liberdade no interior do Paraná. Rev Baiana Saude Publica. 2013; 37(4):820-34.

Tendo em vista as condições de saúde da população prisional, o Governo Federal, por meio dos Ministérios da Saúde e da Justiça, instituiu o Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário – PNSSP por meio da Portaria Interministerial nº 1.777/2003. O PNSSP propõe uma política de saúde específica, visando reduzir os agravos e danos provocados pelas atuais condições de confinamento, possibilitando o acesso à atenção básica dentro destas instituições por intermédio do trabalho integrado multidisciplinar da equipe de saúde prisional55. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário. Brasília: Ministério da Saúde; 2004..

Mesmo assim, ainda prevalecem presídios com celas improvisadas para exercer a função de enfermarias, além da escassez de profissionais, equipamentos e medicamentos necessários à manutenção da saúde. Práticas de prevenção de doenças e programas como o pré-natal são praticamente inexistentes, além de deficiente escolta policial para levar as encarceradas a serviços de saúde extramuros. Esse cenário carece de melhorias urgentes, sobretudo para atender gestantes e puérperas, já que estas necessitam de máxima atenção pela maior fragilidade e alterações, especialmente hormonais e emocionais, que a gravidez traz à tona66. Militão LP, Kruno RB. Vivendo a gestação dentro de um sistema prisional. Saúde (Santa Maria). 2014; 40(1):75-84. doi: http://dx.doi.org/10.5902/223658349180.
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Em países como Estados Unidos e Reino Unido, estudos mostram a necessidade da efetivação de orientações e cuidados para melhorar a saúde e o bem-estar das mulheres grávidas encarceradas, especialmente por isto não ocorrer em muitas unidades prisionais. Desse modo, os riscos para a saúde da mãe e do feto em desenvolvimento são ainda mais potencializados77. Kelsey CM, Medel N, Mullins C, Dallaire D, Forestell C. An examination of care practices of pregnant women incarcerated in jail facilities in the United States. Matern Child Health J. 2017; 21(6):1260-6. doi: http://dx.doi.org/10.1007/s10995-016-2224-5.
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,88. Powell C, Marzano L, Ciclitira K. Mother–infant separations in prison. A systematic attachment-focused policy review. J Forensic Psychiatr Psychol. 2017; 28(2):274-89. doi: http://dx.doi.org/10.1080/14789949.2016.1204465.
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No tocante a gestantes presas, a identificação prévia de problemas, prevenção e tratamento de doenças, assim como a preparação para o parto precisam ser incorporados no planejamento do cuidado pela equipe de saúde, com o objetivo de minimizar possíveis complicações. Vale ressaltar que o acesso aos serviços se fará dentro e fora da unidade prisional, demandando articulação entre gestores para garantir a assistência de qualidade99. Delziovo CR, Oliveira CSD, Jesus LOD, Coelho EBS. Atenção à saúde da mulher privada de liberdade. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2015..

Faz-se necessário, também, entender outras dimensões que o encarceramento acomete. Além dos efeitos nocivos à mulher, a reclusão pode ocasionar consequências a esta e ao feto, considerando que fatores biopsicossociais influenciam diretamente no desenvolver da maternidade1010. Leal MC, Ayres BVS, Esteves-Pereira AP, Sánchez AR, Larouzé B. Nascer na prisão: gestação e parto atrás das grades no Brasil. Cienc Saude Colet. 2016; 21(7):2061-70. doi: https://dx.doi.org/10.1590/1413-81232015217.02592016.
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Diante disso, é preciso perceber o universo destas mulheres pelo qual compartilham e organizam o senso comum, guiando suas condutas e relações interpessoais. Para tanto, pode-se utilizar a Teoria das Representações Sociais, entendendo sentidos e significados partilhados no ambiente prisional.

Destarte, compreender o universo destas Representações é elucidar questões relacionadas ao encarceramento feminino, envolto pela distância da família, falta de apoio emocional, desinformação sobre a maternidade e inexequibilidade para tomar decisões acerca da sua saúde, ficando reprimidas às condutas do ambiente. Assim, elaboram construções frente à tensão entre um mundo que já se encontra constituído e seus próprios esforços para serem um sujeito diante desta nova realidade.

O tema é ainda pouco debatido, sobretudo quando se trata das condições dos estabelecimentos prisionais para atender reclusas grávidas e em trabalho de parto, bem como as possíveis consequências da maternidade durante a detenção para mãe e filho. Logo, o estudo objetivou analisar as Representações Sociais de gestantes e puérperas encarceradas sobre parir enquanto vivendo em Colônias Penais do estado de Pernambuco, Brasil.

Metodologia

Trata-se de estudo descritivo-exploratório de abordagem qualitativa, no qual empregou-se, como referencial teórico-metodológico, a Teoria das Representações Sociais, apoiada pela Teoria do Núcleo Central1111. Moscovici S. Representações sociais: investigações em psicologia social. Guareschi PA, tradutor. 6a ed. Petrópolis: Vozes; 2009.,1212. Sá CP. Núcleo central das representações sociais. 2a ed. Petrópolis: Vozes; 2002..

A pesquisa foi realizada em Colônias Penais femininas de Petrolina, Abreu e Lima e Recife, no estado de Pernambuco. As participantes foram gestantes e mulheres que pariram enquanto encarceradas, com filho(s) de até seis meses de idade, não importando o tempo de gestação, número de gestações anteriores, passado obstétrico, idade e tempo de encarceramento. Aquelas que não obedecerem a tais critérios foram automaticamente excluídas. Não foram incluídas mulheres que estavam com o filho, mas não vivenciaram a gestação no cárcere; as que apresentaram aborto; e aquelas que não se encontravam no presídio durante a coleta dos dados.

Participaram dezenove mulheres integrantes das três instituições, sendo três delas do município de Petrolina; duas de Abreu e Lima e catorze de Recife. A média de participantes foi de seis por unidade prisional, com desvio padrão de 6,65. Dentre elas, dez eram gestantes e as demais, puérperas. A amostra deu-se por meio de censo da população investigada. Todas as internas que se enquadraram nos critérios de inclusão foram convidadas e aceitaram participar, tendo ocorrido a saturação dos dados.

Foi aplicada a técnica de entrevista grupal, tendo sido todo o conteúdo gravado por meio de aparelho de áudio, com posterior transcrição. O tempo médio total de coleta em cada instituição foi de cinco horas.

A abordagem às mulheres foi realizada nos presídios nos quais elas estavam cumprindo pena entre os meses de outubro a dezembro de 2016, pela própria pesquisadora, a qual realizou treinamento prévio para aplicação dos instrumentos. O aceite da participação foi documentado por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, respeitando os aspectos éticos conforme preconiza a Resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde.

A fim de preservar o anonimato, utilizaram-se, ao longo do texto, nomes fictícios para identifcação das participantes. A coleta de dados só teve início após aprovação pelo Comitê de Ética (CAAE 56619316.5.0000.5196).

O relatório gerado pelo Iramuteq classificou 136 Unidades de Contexto Elementar (UCE), considerando relevante 77,94% do material. Para garantir a estabilidade dos resultados, é aceitável a classificação de, pelo menos, 70% das unidades de texto1313. Kronberger N, Wolfgang W. Palavras-chave em contexto: análise estatística de textos. Em Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. Petrópolis: Vozes; 2002. p. 416-41.. Nota-se que o título de cada uma das classes vem acompanhado pelo número de UCE e se dá pela caracterização dos vocábulos em função do coeficiente de associação χ22. Brasil. Ministério da Justiça. Departamento Penitenciário Nacional – DEPEN Informações penitenciárias (INFOPEN) [Internet]. Brasília: Ministério da Justiça; 2018 [citado 20 Jan 2019]. Disponível em: http://www.mj.gov.br/depen
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. Assim, as ideias organizadas pelo programa foram agrupadas em seis classes, por sua vez dispostas em torno de dois grandes eixos, apresentados por meio do dendrograma.

Resultados e discussão

Na análise do corpus, proveniente da transcrição das entrevistas grupais, foram verificadas 4.725 ocorrências de palavras, sendo 148 formas distintas, com frequência média de três palavras para cada forma. O corpusfoi dividido em 136 unidades de contexto elementares. Destas, 106 (77,94% do total de palavras) foram equiparadas por meio de classificações hierárquicas descendentes (CHD) dos segmentos de texto de tamanhos distintos, indicando o grau de semelhança dos temas.

O corpus das entrevistas foi dividido em dois grandes eixos distintos. O primeiro, “Maternidade”, conteve 04 classes que contemplaram 58,84% do conteúdo total de UCE analisadas, sendo elas: “Ausência do acompanhante no parto, Alegria e medo, Filho no cárcere e Preconceito velado”. O segundo eixo, “Parto”, concentrou 41,06% do conteúdo total, situando 02 classes denominadas “Trabalho de parto” e “Experiência do parto”. Por meio da Figura 1, pode-se visualizar o dendrograma, o qual demonstra as classes/categorias advindas das partições do conteúdo.

Figura 1
Dendograma para parir na prisão.

Maternidade: consequências do cárcere

Repercussões cotidianas

As representações do parto no cárcere são marcadas pelo reflexo que este provoca em todos os envolvidos: mulher, criança e família. A classe 03, representada com maior expressão, traz consigo quanto é significante a presença do filho no cárcere em suas mais variadas dimensões. O conteúdo agrupou-se ao redor das palavras “domiciliar”, “prisão”, “pensar”, “filho” e “voltar”, dentre outras. Estas, por sua vez, revelaram que as unidades prisionais não apresentam condições adequadas para abrigar a criança, que, por motivos incontestáveis, carece de permanecer no presídio. Por este motivo, acreditam que a possibilidade da prisão domiciliar minimizaria os riscos e contribuiria para o desenvolvimento adequado do bebê, sendo esta uma utopia.

“O pavilhão é um quadrado. Se a gente tá presa, o bebê está preso! Eles nem respiram... só tem um quadrado aberto para o banho de sol.” (Eduarda)

“Estar presa grávida é ser presa duas vezes. O bebê nem pode sentir a sensação do mundo lá fora!” (Clara)

“Eu não tenho medo do bebê nascer! O medo é a insegurança; se a gente tiver domiciliar, o filho não sofre tanto...” (Júlia)

De acordo com a regra de Bangkok, no que tange ao tema 64, as penas não privativas de liberdade serão preferíveis às gestantes e seus filhos quando isso for permissível e adequado. A prisão deve ser reservada àquelas que cometerem crimes graves ou violentos, representando uma ameaça contínua à sociedade. O interesse na criança deve ser posto em evidência para evitar que, durante o período de amamentação, esta fique no presídio1414. Brasil. Conselho Nacional de Justiça. Regras de Bangkok. Regras das nações unidas para o tratamento de mulheres presas e medidas não privativas de liberdade para mulheres infratoras. Brasília: Conselho Nacional de Justiça; 2016..

Na situação em que a prisão domiciliar não ocorra, é importante destacar que, mesmo diante do ambiente precário do cárcere, sem locais apropriados para criar o bebê, faz-se necessária a permanência do filho com a mãe para o estabelecimento de vínculo, que é essencial para a saúde mental do binômio mãe-filho, dentre outras ações1515. Soares IR, Cenci CMB, Oliveira LRF. Mães no cárcere: percepção de vínculo com os filhos. Estud Pesqui Psicol. 2016; 16(1):27-45. doi: https://dx.doi.org/10.1590/1413-81232015217.02592016.
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O estado de Pernambuco tem condutas diversificadas em relação à prisão domiciliar de gestantes e puérperas. Em algumas unidades, estas conseguem gozar de tal benefício, enquanto outras localidades ainda não implementaram nenhuma ação nesse sentido, de acordo com o que foi percebido durante a imersão no campo de estudo.

Complementando, a classe 01 fornece subsídios sobre a chegada do bebê, que gera um misto de alegria e medo pela separação futura. As palavras que obtiveram maior associação por ordem decrescente de frequência foram: “falta, mãe, já, muito e quando”. Aqui, as representações exibem o anseio pela chegada do filho, embora a incerteza seja marcante, especialmente acerca da quantidade de tempo que passarão juntos até a saída dele do ambiente. De acordo com a legislação, a mulher presa tem o direito de ficar com o filho durante o período de aleitamento materno. Quando este se encerra, é chegado o momento de entregá-lo aos familiares.

“Quando completar os seis meses eu vou sofrer muito por causa da distância.” (Marta)

“Tiram o bebê de você e entregam à sua mãe. Ele vai se acostumar com minha mãe, pelo menos eu coloquei isso na cabeça, e vai ser a pior dor que já tive!” (Sara)

Ao se aproximar o término do período instituído para permanência do filho, as detentas ficam bastante apreensivas e a separação é sentida com muita aflição. Relataram que a única coisa a ser feita é entregar o menor aos familiares ou para algum abrigo, caso estes não possam criá-lo. A perda do direito de exercer os cuidados maternos é algo angustiante para elas. Após o fim do período de convivência entre mãe e filho na cadeia, apenas se encontram nos dias de visita. Muitas delas acabam por reencontrá-los novamente somente após o cumprimento da pena, quando serão libertas. Assim, o contexto prisional torna-se, para elas, um universo ímpar, na medida em que gera enfraquecimento dos vínculos familiares e afetivos1616. Ferreira BTC, Araujo FNE, Jandiroba FJ. Gestar e parir na prisão: difíceis caminhos. In: Anais da 7a Jornadas Santiago Wallace de Investigación en Antropología Social; 2013; Buenos Aires. Buenos Aires: Facultad de Filosofía y Letras, UBA; 2013..

Preconceito velado

O preconceito sofrido no ambiente hospitalar quando é chegada a hora de parir encontra-se explanado na classe 05. As palavras mais representativas foram: “olhar, perguntar, presa e mulher”. Estas apontaram que, desde o momento que adentram a emergência, tais mulheres percebem o julgamento impetrado, denotando o preconceito de outras parturientes, acompanhantes e profissionais de saúde para com elas.

“Quando fala “presa”, a sociedade já olha diferente. Tem médico que diz logo: Ave Maria!” (Mayara)

“Vieram me entrevistar parecendo uma repórter na maternidade. Depois, no quarto, ficaram me olhando e falando: é uma presa, é uma presa... me acordei e disse: presa uma porra! O que é?” (Carla)

“Os profissionais falam: “coloquem logo a escolta com essa presa que eu tô com medo!” (Adriana)

Nessa perspectiva, a violência contra à mulher perpetua-se na obstetrícia e acontece quando ocorre a realização de procedimentos desnecessários, sem justificativa científica, negação de direitos, negligência, descaso, insensibilidade com questões de ordem social e de gênero, discriminação, humilhações e preconceitos, gerando agressão velada e sua naturalização, atrelada a estereótipos de classe e gênero1717. Silva RLV, Lucena KDT, Deininger LDSC, Monteiro ACC, Moura RDMA. Violência obstétrica sob o olhar das usuárias. Rev Enferm UFPE. 2016; 10(12):4474-80. doi: http://dx.doi.org/10.5205/reuol.9978-88449-6-ED1012201606.
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A assistência hospitalar durante o processo de parir deve ser realizada com atenção e acolhimento, eximindo-se de julgamentos. No entanto, esse momento é, muitas vezes, marcado pela violência institucional, praticada exatamente por aqueles que deveriam prestar cuidado1818. Aguiar JMD, d’Oliveira AFPL. Violência institucional em maternidades públicas sob a ótica das usuárias. Interface (Botucatu). 2011; 15(36):79-92..

O preconceito e violência expressa em atitudes diante da parturiente presidiária refletem o estigma da sociedade, que acaba por julgá-las devido aos erros que cometeram, dando-lhes atributos e descrédito social ligados a categorias e juízos de valor, o que acaba por dificultar ainda mais a sua integração social1919. Junqueira MHR, Lima VAAD, Alencar FBD, Tada INC. A inclusão social de encarcerados e ex-apenados. ECOS - Est Contemporaneos Subj. 2016; 6(2):271-82..

Não bastassem todos os entraves para a gravidez e parto que enfrentam no cárcere, as detentas ainda lidam com questões distintas ao serem levadas para o mundo exterior. O momento do parto é singular e marcado por sentimentos diversos, potencializados quando a mãe enfrenta uma situação particular como esta. É importante, então, respeitar a chegada do bebê, independente das circunstâncias que rodeia o binômio mãe-filho.

Ausência do acompanhante no parto

A classe 06 evidencia a ausência do acompanhante no trabalho de parto e pós-parto, o que acaba por influenciar nas representações das participantes. As palavras que obtiveram maior associação foram “escolta, avisar, demora e família”. Relataram a presença apenas dos agentes penitenciários quando o momento de parir é chegado e são direcionadas ao hospital.

Além do mais, as imposições geradas pelo sistema carcerário dificultam que os familiares sejam avisados sobre o momento do trabalho de parto, apesar deste direito ser assegurado pela Lei nº 11.108, de 07 de abril de 2005, que determina a obrigatoriedade do acompanhante nos serviços de saúde do SUS à parturiente no período de trabalho de parto e pós-parto imediato.

“Não tem direito a acompanhante na hora do parto. O acompanhante vai ser o agente penitenciário. Não pode avisar o marido nem a família...” (Monique)

“Não pode familiar, só na hora da visita. E depende do agente penitenciário liberar...” (Amora)

“Se o agente penitenciário for bom, liga e avisa o marido da gente, se for bom. Se não, o marido só vai saber depois que a criança nascer!” (Tânia)

A ausência do pai da criança ou de alguém da família ocorre durante todo o processo gestacional em que a mulher se encontre encarcerada. Estendê-la para um momento tão significativo quanto o parto é perturbador para elas, que ficam a imaginar o que ocorrerá quando o momento chegar, afligindo-as a possibilidade de permanecerem sós.

Destarte, toda parturiente tem o direito legal de receber assistência integral, incluindo a presença de acompanhante durante toda a internação hospitalar. Deve, ainda, ser tratada com respeito, atenção equitativa e sem discriminação, com cuidados profissionais e acesso à saúde de qualidade2020. Silva MG, Marcelino MC, Rodrigues LSP, Toro RC, Shimo AKK. Violência obstétrica na visão de enfermeiras obstetras. Rev RENE. 2014; 15(4):720-8. doi: https://dx.doi.org/10.15253/2175-6783.2014000400020.
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Parir: Experiência e trabalho de parto

As representações sobre o trabalho de parto dispostas na classe 02 aludem ao momento deste na instituição hospitalar, quando da chegada delas a tal lugar. Dentre as palavras agrupadas nessa classe estão: “parto, exame, médico e nascer”.

Estes termos indicam: pouca familiaridade das participantes com o ambiente em que estão inseridas, o anseio e experiência de tratamento interpessoal com os profissionais de saúde, além da ausência de pessoas próximas para prestar-lhes suporte. Some-se a isso o fato de que muitas relataram se sentirem despreparadas para vivenciar o parto, desconhecendo como ocorre todo este processo.

“Eu gritei e me desesperei. As mulheres tudo indo parir e só o meu que não nascia!” (Luísa)

“A pessoa fica: “meu Deus, que dor é essa”?! O médico não encosta na pessoa, só diz: “põe o soro”!” (Siane)

“Eu nem sei como é que entra em trabalho de parto!” (Tâmara)

“Eu chorei, passei mal, fiquei ansiosa, eu tive medo, pois estava só!” (Danielle)

Deve-se atentar que o trabalho de parto é composto de períodos de transição. Cada andamento se manifesta por situações, reações e sentimentos diferentes que demandam sensibilidade por parte de quem cuida da parturiente. Se, por um lado, existem diversos documentos legais avançados conceitual, pragmática e politicamente para a prática de cuidados humanizados à mulher, por outro, os indicadores e qualidade dos serviços de saúde evidenciam falhas graves em relação a demandas e expectativas2121. Oliveira ASS, Rodrigues DP, Guedes MVC, Felipe GF. Percepção de mulheres sobre a vivência do trabalho de parto e parto. Rev RENE [Internet]. 2010 [citado 20 Jan 2019]; 11 Esp:32-41. Disponível em: http://www.redalyc.org/html/3240/324027973004/
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A classe 04, que se refere à experiência do parto e suas especificidades decorrentes do tipo normal ou cesariana, trouxe como palavras mais frequentes: “cesariana, parto normal, gravidez e cortar”. Percebe-se que a via de parto elenca a vivência desse período e gera representações acerca da melhor forma de parir para cada uma.

Relataram maiores vantagens quando ocorre parto natural devido ao protagonismo da mulher e recuperação pós-parto, sendo a escolha mais saudável para si e para o bebê. Narraram ainda que a dor de parir é marcante para o ato de ser mãe. Dentre as que preferiam parto cesáreo, destacaram, como vantagem, a ausência da dor no trabalho de parto, mas frisaram os riscos inerentes, já que se trata de uma cirurgia.

“Eu gostei da experiência do parto normal porque você sente a dor verdadeira de ser mãe!” (Patrícia)

“O parto cesáreo é grave! Você tá sendo cortada, mas é ser mãe do mesmo jeito!” (Layse)

O momento do parto é debatido incessantemente na vida da mulher, pois é representado por mudanças na vida de uma família, assumindo a mulher um novo papel: o de ser mãe. Nesse sentido, a maioria das participantes preferia o parto normal por ser considerado um evento natural, destacando a dor como presente em todo o processo, embora tolerável. Na cesariana, a dor está ausente inicialmente, todavia aparece como decorrência do procedimento, sendo mais persistente e incapacitante2222. Velho MB, Santos EKA, Collaço VS. Parto normal e cesárea: representações sociais de mulheres que os vivenciaram. Rev Bras Enferm. 2014; 67(2):282-9..

No processo do trabalho de parto e parto propriamente dito, é imprescindível respeitar as escolhas e explicar possibilidades à mulher quando da internação. Estas atitudes podem auxiliar na assimilação do que é melhor para cada uma delas que, quando bem atendidas, tendem a colaborar ainda mais, tornando a experiência o menos traumática possível.

Considerações finais

As Representações Sociais do parir em situação de cárcere por mulheres reclusas encontram-se articuladas com o medo da separação do filho, mesmo considerando o ambiente prisional inapto para permanência destes. A presença da criança promove conforto em meio a um conjunto de privações. É marcante o fato de enfrentarem muitas dificuldades ao entrarem em trabalho de parto e serem levadas à maternidade sem a presença de nenhum familiar.

Além disso, sofrem preconceito tanto por parte da sociedade quanto dos profissionais no ambiente hospitalar, quando deveriam receber apoio e assistência de saúde humanizada, sem julgamentos. Demonstram preocupações quanto ao tipo de parto que terão, influenciadas pelo senso comum que dita que mãe de verdade é aquela que pariu por via normal.

Conclui-se que as representações indicavam a descoberta de uma nova realidade que se descortina frente ao parto e maternidade, ancoradas na solidão que sentiam por vivenciarem este momento sem a família. A isso, atrela-se o anseio pela chegada do filho, embora isso ocorra no ambiente prisional.

A objetivação do parto na prisão emerge na figura de uma mãe, possivelmente elas mesmas, sendo esta aquela que cuida do filho, fato que demonstra o sofrimento antecipado decorrente da separação futura. A avó geralmente é aquela que cuida do bebê quando este vai para casa. Por isso, tem importante papel nas representações.

Diante do exposto, é necessário investir na saúde mental de gestantes e puérperas em situação de cárcere, dentre outras ações que possibilitem o atendimento de qualidade. As crianças são, para tais mulheres, grande força e alento para suportar a referida condição. Assim, é comum que sentimentos negativos e abalos emocionais que impactam fortemente a vida delas estejam presentes.

As principais limitações para a realização do estudo referiram-se à falta de ambiente reservado para a coleta de dados, sem a presença de funcionários das colônias penais, além da dificuldade para conseguir adentrar os seus muros, já que o protocolo de segurança exige muitos requisitos legais.

Por ser um tema pouco encontrado na literatura, espera-se contribuir para o desenvolvimento de pesquisas que abordem a população carcerária e que suscite reflexões entre os profissionais que atendem tais mulheres, especialmente nos serviços de saúde, promovendo práticas integrais e humanizadas. Ademais, que gestores e órgãos governamentais atentem para as dificuldades e problemas enfrentados, garantindo políticas públicas que melhorem as condições de vida das envolvidas.

Referências

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    Ferreira VP, Silva MA, Neto CN, Neto GHF, Chaves CV, Bello RP. Prevalência e fatores associados à violência sofrida em mulheres encarceradas por tráfico de drogas no Estado de Pernambuco, Brasil: um estudo transversal. Cienc Saude Colet. 2013; 19(7):2255-64. doi: https://dx.doi.org/10.1590/1413-81232014197.10012013
    » https://dx.doi.org/10.1590/1413-81232014197.10012013
  • 2
    Brasil. Ministério da Justiça. Departamento Penitenciário Nacional – DEPEN Informações penitenciárias (INFOPEN) [Internet]. Brasília: Ministério da Justiça; 2018 [citado 20 Jan 2019]. Disponível em: http://www.mj.gov.br/depen
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jul 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    24 Jan 2018
  • Aceito
    27 Fev 2019
UNESP Botucatu - SP - Brazil
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