Réplica: Desigualdades mortais: a fabricação de vidas precárias no Brasil

Desigualdades mortales: la fabricación de vidas precarias en Brasil

Richard Miskolci Pedro Paulo Gomes Pereira Sobre os autores

Talvez o mais importante de um debate sejam os movimentos proporcionados pelas interpelações que ele suscita. Em forma de acordos ou críticas, adições ou sinalizações de falta, perspectivas outras surgem indicando caminhos antes não pensados. Pretendemos apontar neste texto alguns desses movimentos. Todos os debatedores concordam com os autores do texto-base que o direito universal à saúde e à educação tem sido desconstruído pela atuação de movimentos anti-igualitários articulados em uma aliança política que acabou por chegar ao poder nas eleições de 2018.

Mario Pecheny argumenta que não se trata apenas de um movimento anti-igualitário, mas sobretudo de ataque ao bem público. Keila Deslandes pondera o protagonismo das emoções e dos afetos na adesão coletiva a esse movimento contra políticas sociais. Wanderson Flor do Nascimento destaca o caráter interseccional do texto base que – segundo ele – é condição para entender a forma como os subalternizados serão atingidos. Luma Nogueira de Andrade sublinha as dimensões de sexualidade e gênero no início do governo Bolsonaro. Enfim, cada um(a) à sua maneira traz elementos para compreender as condições daquele(a)s cuja existência depende – mais do que outros segmentos da população – do acesso a políticas públicas universais e gratuitas para lhes garantir a vida e as condições de demandar reconhecimento e direitos.

Os anti-igualitários desestabilizam o ideal público de direito universal à saúde e à educação como valores, consolidando uma nova forma de “neoliberalismo” que, de acordo com Pecheny, é mais radical e danosa do que a vivida por sociedades latino-americanas na década de 1990. O contexto político atual corrói os valores de igualdade e universalidade de maneira a fragilizar a concepção de bem público. Trata-se de um fenômeno político e cultural que mostra um avanço da individualização e da competitividade, expandindo propostas de privatização para áreas antes consideradas de interesse comum e que, portanto, não deveriam ser organizadas por princípios mercadológicos.

No conflito entre anti-igualitários e apoiadores dos subalternizados, o ataque mais visível tem sido às mudanças nas relações de poder na esfera do gênero e da sexualidade. Flor do Nascimento questiona essa centralidade, posição compreensível diante das propostas deste governo que ameaçam a rede de seguridade social. Não obstante, é possível pensar Bolsonaro e o movimento que o alça a “mito” como recusa à igualdade de gênero e sexualidade materializada na gramática moral acionada diretamente nas áreas de educação e saúde, mas que interfere – mesmo que indiretamente e de forma menos visível – em outras políticas públicas.

As demandas feministas e LGBTI+ por reconhecimento e igualdade geraram incertezas ontológicas, sobretudo para o homem heterossexual, pois disseminaram questionamentos da ordem sexogenérica assentada no poder masculino, na heterossexualidade reprodutiva e no binarismo de gênero. A conquista de direitos e políticas direcionadas a grupos historicamente vulneráveis incomodou àqueles historicamente privilegiados, mas também contribuiu para a forma como a política sexual se espraiou em micropolíticas cotidianas de reação a comportamentos e atitudes antes aceitas.

O papel das redes sociais é ambíguo. Permitiu que se popularizassem pautas feministas, LGBTI+ e étnico-raciais, ampliando a visibilidade desses grupos e o apoio às suas demandas por igualdade. Entretanto, tal popularização se deu enquadrada pelo individualismo das redes em que, ao invés do pessoal se tornar político – como na antiga asserção feminista –, o político se tornou pessoal, engendrando práticas de vigilância, perseguição, denúncias e até linchamentos virtuais com consequências bem reais na vida de um sem número de pessoas.

As redes também permitiram respostas radicais, criando conflitos, protestos massivos e abrindo caminho para que ideólogos da extrema direita e seguidores anti-igualitários alcançassem vitórias eleitorais. Não por acaso, entre os principais alvos de perseguição e ataque estão os veículos de comunicação tradicionais e as universidades. As redes sociais automatizaram a esfera pública, disseminando sua organização horizontal que – propagandeada pelo oligopólio de empresas do Vale do Silício como “democrática” – tem, na verdade, efeitos antidemocráticos no achatamento do debate público. A esfera pública automatizada reduz o debate ao confronto de perspectivas equivalentes que colocam no mesmo patamar a opinião baseada apenas na observação imediata e a que resulta de fatos (jornalismo) ou evidências (ciência).

O projeto de lei Escola sem Partido ameaça a liberdade de cátedra e delineia uma recusa ao pensamento crítico e às teorias e descobertas das ciências. O ataque orquestrado pelas redes, a vigilância e perseguição a acadêmicos, assim como as ações policiais e investigativas contra as instituições de ensino superior, ameaçam o papel republicano da educação no desenvolvimento contínuo da democracia.

Como apontamos no texto base, as ações na área de saúde se concentram em inviabilizar o Sistema Único de Saúde (SUS). A escolha de um ministro vinculado há décadas à empresa privada de saúde corrobora a intenção de implementar um modelo que se afasta dos princípios de universalidade, equidade e integralidade. O Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos reforça o direcionamento das políticas de educação e saúde em direção contrária às necessidades da população LGBTI+ e aos direitos sexuais e reprodutivos como um todo.

Há fortes componentes emocionais e subjetivos na construção da aliança de grupos anti-igualitários contra a universalidade do acesso à saúde e à educação, como aprendemos com Deslandes. Ainda que identifiquemos os interesses políticos e econômicos por trás do ataque a essas políticas públicas, a adesão social à agenda anti-igualitária ocorre, ao menos em parte, por causa de temores e incertezas. Muitos dos que apoiaram a aliança atualmente no poder serão prejudicados por sua agenda em uma aparente contradição que se desfaz quando constatamos sua expectativa de que os eleitos os protejam de supostas ameaças: tanto antigas e reavivadas por esses grupos, como o comunismo; quanto novas, na forma como apresentam demandas de igualdade e reconhecimento como sendo uma suposta “ideologia de gênero”11. Miskolci R. Exorcizando um fantasma: os interesses por trás do combate à “ideologia de gênero”. Cad Pagu. 2018; (53):e185302. Doi: https://dx.doi.org/10.1590/18094449201800530002.
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Os temores sociais usados pela aliança anti-igualitária para angariar apoio para sua agenda faz da gramática moral uma plataforma para instituir uma tirania do óbvio que justifica o combate, por certos setores da população, a políticas sociais como o Bolsa Família e as ações afirmativas. Tais polêmicas na esfera pública mostram como certos estratos sociais privilegiados se revelam incapazes de simpatia e solidariedade com aqueles e aquelas dos quais buscam se distanciar e se distinguir: os mais pobres, os negros, os estranhos.

No que se refere à educação, a recusa ao pensamento crítico qualificado como “doutrinação” e as tentativas de vigilância e punição de educadore(a)s mal disfarçam um desejo de conforto cognitivo só alcançável pela tirania do óbvio, na qual frases como “meninos vestem azul e meninas vestem rosa” tornam o mais banal e irrefletido em verdades inquestionáveis, como destacam Andrade e Deslandes. Os ataques à universidade e aos educadores em todos os níveis como potenciais doutrinadores engendram propostas de uma suposta neutralidade na educação e na ciência que já é, em si mesma, ideológica. Flor do Nascimento enfatiza que a suposta “neutralidade” mal esconde a cumplicidade com o status quo em favor da desigualdade.

Mudanças nas hierarquias de gênero e sexualidade geram campanhas pelas redes sociais no formato de uma cruzada moral. Cruzada iniciada por Bolsonaro em reação ao reconhecimento das uniões entre pessoas do mesmo sexo pelo Supremo Tribunal Federal, em maio de 2011 – ocasião em que se voltou contra a distribuição de material anti-homofobia nas escolas, apelidando-o de “Kit Gay”. O que se iniciou como pânico homossexual se adensaria como campanha contra a introdução de uma perspectiva de gênero no Plano Nacional de Educação e seus congêneres estaduais e municipais, entre 2014 e 2016. Foi esse contexto que permitiu disseminar nacionalmente o fantasma da “ideologia de gênero”, que também reavivou o medo do comunismo e a apologia do antigo regime militar.

Bolsonaro transformou-se no “mito” ao catalisar esse processo nas redes sociais, explicitando preconceitos e discriminações contra homossexuais, negros, indígenas e mulheres. Não por acaso, seu governo cristaliza a aliança entre setores religiosos mais conservadores, grupos de interesse econômico neoliberais, militares do exército e um segmento do judiciário vinculado à operação Lava Jato. O objetivo comum de ganhar o controle do Estado e, por meio dele, das políticas públicas só foi possível pela construção de uma plataforma moral capaz de angariar apoio popular. Assim, fizeram campanha sem expor completamente sua agenda de desmonte do Estado e de políticas sociais, antes capitalizando as insatisfações e medos da opinião pública atingida pelos efeitos da crise econômica, indignada com os escândalos de corrupção ou contrária às políticas sociais inclusivas.

A aliança anti-igualitária conseguiu catalisar ódio e indignação contra o Estado, contra a suposta corrupção que o caracteriza e contra políticas públicas que segmentos sociais consideram que atendem a outros que não eles próprios. A resposta, no entanto, não será (só) moral, mas voltada ao desmonte do Estado e do público em benefício do mercado. Trata-se de um caminho desagregador que reduz os cidadãos a consumidores em competição e com acesso desigual a tudo: renda, saúde, educação, etc. São desigualdades que, no caso de grupos historicamente subalternizados como pessoas LGBTI+, indígenas, negros e mulheres, ampliam sua vulnerabilidade, negando-lhes a garantia de vida e de dignidade humana. No reino da desigualdade, a humanidade torna-se um privilégio e muitos são relegados à subcidadania, à violência e, no limite, ao extermínio.

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Jun 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    14 Mar 2019
  • Aceito
    27 Mar 2019
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