Os discursos na Audiência Pública da Saúde e seu impacto nas decisões do Supremo Tribunal Federal: uma análise à luz da teoria dos sistemas sociais11 Artigo baseado em dissertação de mestrado defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade de Brasília (UnB).

Alethele de Oliveira Santos Maria Célia Delduque Ana Valéria Machado Mendonça Sobre os autores

Resumos

O fenômeno social denominado judicialização da saúde levou o Supremo Tribunal Federal (STF) a convocar uma audiência pública, em 2009. A oitiva da sociedade, em seus diferentes segmentos, deveria prover os julgadores de embasamento para suas decisões. Os discursos proferidos no evento foram investigados, com o intuito de responder se a Audiência Pública da Saúde apresentou argumentos que foram incorporados pelo STF em sede de suas decisões, de modo a denotar alterações no subsistema judicial. A pesquisa foi realizada por meio da base de dados do STF, disponível na internet. Foi utilizado o método da Análise de Discurso e matrizes comparativas de decisões judiciais. Os resultados concluíram que a audiência se revelou estratégica e que os discursos apresentaram teses distintas conforme os segmentos participantes, demonstrando que o direito à saúde não apresenta significado hegemônico na sociedade. Conclui-se que os dois subsistemas sociais - saúde e direito - tiveram oportunidade de mútua aprendizagem. O subsistema jurídico incorporou, nas decisões analisadas, 20% dos argumentos apresentados na Audiência Pública da Saúde.

Sistema Único de Saúde; Poder Judiciário; Decisões Judiciais; Audiência Pública da Saúde.


Introdução

A realização da Audiência Pública da Saúde pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em 2009, foi um marco divisor das relações entre o sistema jurídico e o sistema político no que se refere ao Sistema Único de Saúde (SUS) e às ações e serviços relacionados à saúde no Brasil.

Embora tenha sido um evento de grandes proporções e consequências para ambos os sistemas, não houve efetivos estudos e investigações acerca daquele marcante encontro, seja no campo jurídico ou no campo das ciências sociais.

Este estudo teve por objetivo levantar e analisar os discursos proferidos na Audiência Pública da Saúde do STF e avaliar se eles tiveram impacto nas posteriores decisões proferidas pela Corte constitucional em matéria de saúde.

Para tanto, partiu-se da Teoria dos Sistemas Sociais, construída por Niklas Luhmann, segundo a qual há um sistema social global formado por subsistemas sociais. Esses subsistemas captam sentidos no ambiente, alteram seus códigos próprios e mantêm-se vivos. Para dar conta da conformação social, Luhmann indica a comunicação como fator de organização, o que explica a configuração dos subsistemas conforme a função que exercem - os subsistemas são funcionais e têm códigos próprios (Corsi; Esposito; Baraldi, 1996CORSI G.; ESPOSITO, E.; BARALDI, C. Glosario sobre la teoría social de Niklas Luhmann. Ciudad del México: Universidad Iberoamericana, 1996.).

Quando dois subsistemas entram em conexão, como no caso deste trabalho, onde é apreciada a conjunção dos subsistemas jurídico e político-sanitário, são denominados acoplamento estrutural (Corsi; Esposito; Baraldi, 1996CORSI G.; ESPOSITO, E.; BARALDI, C. Glosario sobre la teoría social de Niklas Luhmann. Ciudad del México: Universidad Iberoamericana, 1996.), para utilizar a expressão luhmanniana (Luhmann, 2004LUHMANN, N. Law as a social system. Oxford: Social-Legal Studies, 2004.). Na ocorrência do acoplamento estrutural de dois subsistemas funcionais há troca de estímulos, o que se denomina, segundo a teoria, irritação.

Um subsistema deve permitir-se receber irritações, pois estas desencadeiam reajustes de acordo com sua gramática interna e isso o mantém vivo e operante, o que revela a chance de aprendizagem entre subsistemas, contra a qual o subsistema se mantém ou se modifica.

No entanto, não pode haver sobreposição de subsistemas, pois estes perdem suas especificidades e passam a tomar decisões com códigos alheios - fenômeno denominado corrupção, para utilizar a linguagem de Luhmann (2004)LUHMANN, N. Law as a social system. Oxford: Social-Legal Studies, 2004..

Sob tais premissas, a Audiência Pública da Saúde pode ser vista como o acoplamento estrutural dos subsistemas jurídico e político-sanitário.

No Estado de Direito, o subsistema jurídico também fornece respostas legais aos problemas da política. Ocorre que, a rigor, os problemas da política são trazidos ao subsistema do direito de modo deslocado de seu código jurídico. O problema apresenta-se quando o direito procura determinar a política e a política busca limitar o direito.

Para reduzir a complexidade instalada, o STF entendeu adequado abrir um campo de irritações e convocou a Audiência Pública da Saúde, cujos discursos foram analisados e confrontados com os códigos criados.

Métodos

Foi realizada pesquisa descritiva e analítica, de caráter qualiquantitativo, cujo objeto foi a Audiência Pública da Saúde e a unidade de análise consistiu nos discursos proferidos nessa audiência pública e nas decisões do STF. A Audiência Pública da Saúde ocorreu em Brasília, entre abril e maio de 2009, na sede do STF. Foram selecionadas todas as falas, constituindo uma amostra de 64 discursos disponíveis em base de dados do STF (http://www.stf.jus.br/portal/audienciaPublica/audienciaPublica.asp?tipo=realizada), orientada pelos critérios propostos pelo método da Análise de Discurso (AD) e sua ferramenta auxiliar, o programa Qualiquantisoft (Lefèvre; Lefèvre, 2003LEFÈVRE, F.; LEFÈVRE, A. M. C. O discurso do sujeito coletivo: um novo enfoque em pesquisa qualitativa (desdobramentos). Caxias do Sul: EDUCS, 2003.). Esse programa possibilita a realização de pesquisas qualitativas e quantitativas e facilita a aplicação da AD, tornando o trabalho do investigador mais simples e célere.

O conjunto das formações discursivas de todos os tipos, ainda que em interação em uma conjuntura, jamais é totalmente concebível na AD. Esta almeja definir os procedimentos para expor ao leitor o que está subentendido no discurso, o que torna a AD dependente das ciências sociais e de sua evolução (Lefèvre; Lefèvre, 2003LEFÈVRE, F.; LEFÈVRE, A. M. C. O discurso do sujeito coletivo: um novo enfoque em pesquisa qualitativa (desdobramentos). Caxias do Sul: EDUCS, 2003.).

Foi excluído um discurso habilitado, por seu não comparecimento pessoal.

Por uma opção metodológica, os discursos foram agrupados em quatro subsistemas, em função da representatividade de seus interlocutores: (i) subsistema jurídico (J); (ii) subsistema político (P); (iii) subsistema científico (C); e (iv) subsistema social organizado (SC).

Foram consideradas 3 macrocategorias de análise: A - Teses: categoria na qual foram inseridos todos os fragmentos de discurso com abordagens teóricas; B - Propostas: categoria na qual foram inseridos fragmentos de discurso com demandas por ação programática; e C - Dilemas: categoria com fragmentos de discursos com narrativas de conflitos relativos à efetivação do direito à saúde.

Foram adotadas 14 subcategorias e 5 microcategorias, como ilustra o Quadro 1.

Quadro 1
Representação das categorias, subcategorias e microcategorias de análise dos discursos proferidos na Audiência Pública da Saúde do STF, 2009

Os argumentos dos discursos foram confrontados com as seguintes decisões posteriores do STF: Suspensões de Tutela (STA) 175, 211 e 178; Suspensões de Segurança 3.724, 2.944, 2.361, 3.345 e 3.355; Suspensão de Liminar (SL) 47; e Recomendação 31, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), presidido pelo STF. Tal eleição teve como critério serem as primeiras decisões pós-audiência pública a versar sobre o tema saúde.

Tal análise deu-se sob uma medição binária: "forte" e "não forte".

Foram considerados "fortes" os argumentos dos discursos, reproduzidos pelo STF quando das decisões analisadas, denotando a adesão do destinatário ao proferido na audiência pública, e, portanto, determinando como eficaz o discurso. Os argumentos não utilizados pelo STF nas decisões analisadas foram assinalados como "não fortes".

Resultados e discussão

Os 63 discursos analisados originaram 705 argumentos, dos quais apenas 20% foram considerados "fortes" e 564 (80%) foram "não fortes", isto é, não causaram impacto nas decisões posteriores do STF e do CNJ, salientando-se que a mesma tendência foi mantida quando observadas as categorias individualmente.

Observados os discursos que compõem a Subcategoria A.1, A importância jurídica e política da Audiência Pública da Saúde, infere-se que os expositores guardavam grandes expectativas com o resultado da audiência e com as decisões que o STF doravante passaria a tomar. Os argumentos considerados "fortes" apresentaram: (i) justificativas legais e objetivos para a convocação da Audiência Pública da Saúde; (ii) comunicação de que todos os subsídios oriundos daquela oitiva seriam utilizados por tribunais; (iii) quantidade expressiva de processos judiciais referentes à efetivação do direito à saúde em trâmite no Poder Judiciário brasileiro, como justificativa para a convocação da audiência pública.

A subcategoria A.2, Judicialização, teoria e prática, trouxe como argumentos "fortes" aqueles que apresentaram: (i) existência de teses divergentes acerca do direito à saúde; (ii) ações judiciais com pleitos referentes ao direito à saúde associadas à ineficiência, ineficácia ou omissão do Estado; (iii) ações judiciais que confrontam solicitações de medicamentos sem registro ou experimentais, versus os Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) e a Medicina Baseada em Evidências (MBE); (iv) insegurança jurídica, dada a falta de uniformidade das decisões judiciais, que tanto violam ritos processuais como não ouvem previamente os gestores; (v) competência do Poder Judiciário para avaliar a legalidade da política pública; (vi) necessidade de que as decisões sejam pautadas na avaliação caso a caso e com base em soluções de equilíbrio - não se trata de "tudo para todos" e nem "o caso de um pode deixar desprotegido o direito da coletividade".

A STA 178 (e outros processos) expôs teses de argumentação dos que recorrem ao Poder Judiciário para ver garantidas as prestações de saúde pretendidas e as teses daqueles que contestam os argumentos que as pleiteiam. Portanto, conforme o que foi categoricamente afirmado na decisão, trata-se de análise de teses controversas.

Exatamente por reconhecer a existência de inúmeras ações judiciais em trâmite, algumas delas foram tratadas com relevância na audiência: (i) a proposição de súmula vinculante, tratada na subcategoria A.3; e (ii) o recurso extraordinário com repercussão geral decretada, acerca da obrigatoriedade do Estado ao fornecimento de medicamentos de alto custo, destinados à hipertensão pulmonar, tratada na subcategoria A.4.

A subcategoria A.3, que trata da proposição da súmula vinculante para reconhecimento da responsabilidade solidária entre os entes federados para efetivar o direito à saúde, também está ligada às subcategorias A.4 e A.5. A subcategoria A.5 apresentou as duas correntes teóricas defendidas: A.5.1, pela responsabilidade solidária dos entes, até então mantida nas decisões do STF; A.5.2, aquela que defende a responsabilidade do ente conforme competências definidas na legislação infraconstitucional, que poderá ser apreciada, em sede de julgamento do RE 566.471, sob a lavra do ministro Marco Aurélio de Mello, como destacou a decisão STA 178 (e outros processos) e tratado na subcategoria A.4,

O STF, historicamente, preserva o princípio da lealdade à Federação, e, por conseguinte, à democracia. Das razões apresentadas na apreciação dos argumentos "fortes" que compõem a subcategoria A.5, é possível pressupor que a proposição de súmula vinculante acerca da declaração de responsabilidade solidária mereça guarida por parte do STF - permanecendo a interpretação constitucional de que os entes são solidários na obrigação do direito à saúde.

A subcategoria A.6 especificou diversas possibilidades de conflitos de interesse, mas o argumento considerado "forte" relatou a inexistência de conflito de interesses entre o subsistema político e subsistema jurídico, no que diz respeito ao exercício das competências de cada um.

Na subcategoria A.7, Eficácia dos direitos fundamentais, os argumentos considerados "fortes" indicaram que: (i) a razão de ser do Estado é a efetivação dos direitos fundamentais; (ii) o problema refletido na judicialização da saúde é a ineficiência, ineficácia ou a omissão do Estado; (iii) os direitos fundamentais têm eficácia e aplicação imediatas, podem ser exigidos judicialmente, cabendo, então, definir as condicionantes à sua sindicabilidade; (iv) a judicialização começa na composição orçamentária que não garante recursos suficientes às ações e serviços de saúde; e (v) a exigência judicial de direitos está ligada à informação sobre eles.

A subcategoria A.8, Fraudes na política pública de saúde e na judicialização, reconheceu em seu argumento forte a existência de fraudes no ajuizamento das ações - considerado dado incontestável. Ressalte-se que o STF, ao se manifestar pela inadmissibilidade de produção genérica de pedidos, de contestações e, também, de decisões judiciais, reconheceu que os casos concretos não vêm sendo tratados conforme suas peculiaridades individuais.

A subcategoria A.9, Proteção patentária, explicitou teses consistentes, todavia, não reconhecidas pelo STF nas decisões analisadas, importa atentar para futuras decisões do STF, afetas às patentes, especialmente a Ação Declaratória de Inconstitucionalidade (ADI) 4.234.

A subcategoria A.10, Registro e incorporação tecnológica, apresentou argumentos fortes derivados da associação entre a melhor prática científica - MBE - e a formulação de documentos capazes de indicar critérios para diagnóstico e tratamento - PCDT - como forma de viabilizar o princípio constitucional de acesso universal e igualitário às prestações de saúde. Por conferir acreditação aos argumentos atinentes a MBE e os PCDT, o STF determinou que deve ser privilegiado o tratamento fornecido pelo SUS em detrimento de opção diversa, pleiteada judicialmente pelo paciente. Contudo, tornaram-se excepcionais os casos em que o paciente consiga comprovar, mediante satisfatório conjunto probatório, a ineficácia do que lhe é oferecido pelo SUS - a ser analisado em cada caso concreto. Admitiu-se, ainda, que fossem contestados os PCDT, seja por inadequação da prova científica adotada pelo SUS, seja por inadequação dos próprios PDCT.

O STF, ao se manifestar sobre os pleitos que referem pedidos não contemplados pelas políticas públicas, corroborou o exposto na subcategoria A.10: (i) quando se tratar de medicamentos sem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), não há permissão legal para que a administração pública os adquira. A primeira das razões é a proibição legal à dispensação em território nacional. Realçou a competência de regulação econômica da Anvisa e que as exceções para dispensação de medicamentos sem registro em território nacional também estão previstas na lei e o subsistema jurídico deve ater-se a elas. Outro ponto é: (ii) quando se tratar de medicamentos sem evidência científica, os seguintes itens devem ser considerados: (ii.1) primeiro, se a política pública oferece tratamento para aquela patologia - se sim, a oferta pública deve ser privilegiada; (ii.2) nos casos em que a oferta pública não se prestar ao usuário - que haja provas nos autos da ineficácia do tratamento. Quando os pleitos se referirem a: (ii.3) "tratamentos experimentais", estes devem ser custeados pelos interessados em sua avaliação, não havendo condenação ao sistema público de saúde. E, por fim, (ii.4) nos casos em que o tratamento pretendido não tenha sido incorporado pelo SUS e que não seja experimental, é necessário que o pedido esteja legitimamente acompanhado das provas da eficácia do pretendido, podendo até haver contestação dos PCDT.

A subcategoria A.11, Financiamento do SUS, entre 42 argumentos, apenas 8 foram considerados "fortes". Destes, a grande expectativa estava adstrita à regulamentação da Emenda Constitucional (EC) n. 29/2000, como forma de conferir estabilidade à captação financeira do SUS - ao ampliar o percentual de participação da União e, consequentemente, estabilizar gastos. Em 13/01/2012, a EC n. 29/2000 foi regulamentada, sem qualquer acréscimo financeiro direto para o SUS. Existe, a partir da ação da sociedade civil e gestores de saúde, o intento da apresentação de projeto de lei por iniciativa popular, com a finalidade de prescrever constitucionalmente que o equivalente a 10% das receitas correntes brutas da União sejam destinadas à saúde. Para problematizar as questões relativas ao financiamento da saúde, seria necessário abordar a concentração da arrecadação tributária nos cofres da União (a pretendida reforma tributária), que, mesmo mencionada na Audiência Pública da Saúde, foi considerada argumento "não forte".

Os argumentos fortes reconheceram que a composição orçamentária é tripartite, que são finitos os recursos e as necessidades infinitas, indicam, portanto, que é necessário: (i) estabelecer parâmetros para as ações e serviços de saúde fornecidos pelo Estado; (ii) aplicar os recursos de forma adequada; e (iii) promover a participação democrática na elaboração dos orçamentos.

Em números absolutos, a subcategoria que apresentou a maior quantidade de argumentos foi a A.12, Aspectos conceituais da política pública de saúde, com 142 argumentos oriundos de 41 discursos, todavia, entre todos os itens apresentados, apenas 10 foram considerados "fortes". Os argumentos "fortes" expressaram: (i) a ação tripartite para conformação de sistema único; (ii) as competências de cada ente expressas na Lei n. 8.080/1990 e que cabe à administração pública garantir a efetividade do direito à saúde; (iii) os conceitos e regras de registro de medicamentos no Brasil, contidos na Lei n. 6.360/1976; (iv) a Lei n. 9782/1999, de criação da Anvisa; (v) a clareza de que a integralidade não pode ser um conceito aberto, carecendo de regras e parâmetros; (vi) as drogas experimentais só podem ser utilizadas em ambiente de pesquisa; (vii) não há justificativa legal para que o SUS arque com despesas relativas aos medicamentos sem registro no Brasil - portanto, sem segurança e eficácia asseguradas; e, por fim, (viii) a necessidade de conduzir os PCDT à centralidade do debate jurídico. Entre os argumentos "não fortes", chamaram atenção as referências ao alargamento do prestígio dos governos e de seu poder legiferante.

A subcategoria A.14, Efetividade do direito à saúde, foi dividida em 3 microcategorias: Microcategoria A.14.1, manifestações que entendem que o direito à saúde deve dar-se independentemente de qualquer política pública; Microcategoria A.14.2, manifestações que entendem que o direito à saúde deve dar-se mediante políticas públicas; e Microcategoria A.14.3, manifestações que entendem que o direito à saúde deve dar-se mediante políticas públicas, admitidas exceções. Essas posições variam conforme as interpretações do artigo 196 da Constituição Federal (CF) que afirma o direito social à saúde.

A microcategoria A.14.1 entendeu que toda pretensão em saúde deve ser atendida e custeada pelo Estado, independentemente da existência de política pública. Essa não foi a posição adotada pelo STF, contudo, entre os 7 argumentos que constituíram essa microcategoria, 2 foram considerados fortes: (i) o que afirmou que a audiência pública vem discutir a garantia do direito à saúde e como o Poder Judiciário deve agir para efetivá-lo; e (ii) o que afirmou que o Estado não pode negar a garantia de vida, salvo quando o pleito referir-se a tratamentos não recomendados.

A microcategoria A.14.2 entendeu que o direito à saúde está restrito ao que esteja regulado pelas políticas públicas e, ainda, que o STF tenha mantido posição ordeira, também não foi esta sua opção. Entre os 4 argumentos que deram forma a essa microcategoria, 2 foram considerados "fortes": (i) o artigo 196 da CF serviu de fundamento a decisões cuja interpretação levava a crer que o direito à saúde é ilimitado e que o Estado é obrigado a fornecer "tudo para todos"; e (ii) a CF dispõe que saúde é obrigação do Estado e que haverá meios apropriados para efetivar tal obrigação: as políticas públicas.

A microcategoria A.14.3 foi acatada pelo STF: há que se respeitar a política pública, mas há que se admitir exceções. Nesse parâmetro foi baseada a decisão STA 178 (e outros processos), assim como foi exarada a Recomendação 31, do CNJ. Os argumentos fortes dessa microcategoria defenderam: (i) a possibilidade de análise de casos individuais não pode ser fechada, porque há razões para a excepcionalidade, como as reações alérgicas e iatrogenia médica.

Para esgotar as dúvidas sobre o mandamento constitucional, o STF procedeu à interpretação do artigo 196 da CF destacando seus elementos principais: "direito de todos", "dever do Estado", "políticas sociais e econômicas", "redução do risco de doenças e outros agravos" e "ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação".

A categoria B, Propostas, apresentou demandas por ações programáticas e foi composta por 87 argumentos, dos quais 16 foram considerados "fortes".

As propostas trazidas pelos 4 subsistemas à Audiência Pública da Saúde não se preocuparam com o alcance e com as competências de cada subsistema. Nos casos em que os argumentos extrapolaram as competências específicas do subsistema jurídico - como na proposta de fortalecimento e composição da câmara de incorporação de tecnologias em saúde no SUS, ou, ainda, de alteração legislativa com vistas à assistência farmacêutica no SUS, mesmo que posteriormente contemplados pela Lei n. 12.401/2011 -, eles foram considerados, no âmbito da pesquisa, "não fortes".

Os argumentos "fortes" indicavam a necessidade de: (i) regulamentar a EC n. 29/2000, como forma de garantir o financiamento do SUS; (ii) admitir demandas judiciais que expressem casos individuais que, por razões específicas, careçam de tratamentos não encampados pelos PCDT; (iii) não fornecer medicamentos sem registro na Anvisa, porque assim está expresso em lei; (iv) admitir que tratamentos experimentais sejam feitos apenas no âmbito da pesquisa, porque assim estabelece a norma; (v) conferir credibilidade aos PCDT, trazendo-os ao debate jurídico, contudo, permitindo sua contestação, uma vez que carecem de atualização e elaboração constantes; (vi) conceder prestações de saúde não previstas em política pública, desde que não sejam vedadas pelo Estado e que não haja tratamento previsto; (vii) ouvir os gestores antes da concessão de liminares; (viii) admitir a formação de câmaras conciliatórias, evitando o grande fluxo de processos nos subsistemas jurídico e político; (ix) formar magistrados e operadores do direito para que conheçam a política pública de saúde; (x) produzir provas suficientes dos requerimentos de prestação de saúde; e (xi) assessorar tecnicamente o subsistema jurídico.

Tanto juízes como tribunais são obrigados a decidir todas as questões que lhes são apresentadas e estão sempre expostos às possibilidades de superação dos limites operativos, o que aflora, especialmente, quando o objeto de análise é a efetivação de direito social, como a saúde.

Há o reconhecimento de que os dilemas existentes para o enfrentamento da questão da efetivação do direito social à saúde estão fundados em fio lógico consistente.

Na categoria C foi possível identificar 99 argumentos, dos quais 23 foram considerados "fortes". Em sede da STA 178 (e outros processos), foi possível observar a narrativa de dilemas com suas razões/contrarrazões.

No elenco de 23 argumentos "fortes", é possível atribuir destaque ao fato de que efetivar o direito social à saúde é, per se, um desafio que deve ser analisado caso a caso, segundo critérios de necessidade. O subsistema político-sanitário lida com recursos escassos e necessidades infinitas (reserva do possível × mínimo existencial), em uma sociedade na qual é reconhecida a proibição de retrocesso social. Os gestores sempre apresentam a tese da reserva do possível, todavia, segundo o subsistema jurídico, não comprovam o dano orçamentário que a decisão judicial lhes impõe. E mais, havendo limitações financeiras, estas devem impor escolhas éticas e não escolhas focadas no custo dos tratamentos.

A STA 178 (e outros processos) considerou a hipótese de que, não havendo oferta pública ao item judicialmente pretendido, o subsistema político-sanitário apresente suas justificativas, bem como colabore com o subsistema jurídico na decisão, municiando-o com dados técnicos e necessários. Sobre os tratamentos novos, o STF argumentou que a inexistência de PCDT não pode ser empecilho ao acesso individual ou coletivo à prestação de saúde ainda não testada pelo SUS.

Para (Santos 2010SANTOS, A. O. A abordagem de temas jurídicos na audiência pública da saúde no Supremo Tribunal Federal. 2010. Monografia (Especialização em Direito Sanitário) - Fundação Oswaldo Cruz, Brasília, DF, 2010., p. 111), na questão da judicialização da saúde, "não há perseguidos e nem perseguidores". Entretanto, a autora reconheceu a existência de "excessos e desvios".

Verificou-se grande ênfase do STF aos itens a ser observados pela magistratura: (i) a exigência de suficiente produção de provas cientificamente fundamentadas - e a necessária produção de provas pode, em muitos casos, causar impedimento à concessão das medidas cautelares; (ii) se a prestação de saúde almejada em ação judicial é adequada às necessidades do paciente; (iii) a aferição do registro do medicamento e das possibilidades de aquisição pelo Estado; (iv) a existência da MBE e dos PCDT adotados pelo SUS para o caso analisado; (v) aferição da existência de política pública que contemple o almejado na ação judicial; (vi) aferição da existência de política de dispensação de medicamento sustentada pela MBE; (vii) admissão da corrente MBE de modo a permitir questionamento de ordem científica sobre a adequação da prestação de saúde almejada; (viii) a argumentação de que a reserva do possível (escassez de recursos), por si só, não elimine a obrigação do Estado (União, estados, Distrito Federal e municípios) quanto ao fornecimento de prestações de saúde. A apreciação dos argumentos de lesão à ordem, economia e separação de poderes não foi objeto da STA 178 (e outros processos).

Conclusão

Com o conflito entre o mandamento legal e o fato, na busca por respostas, é necessário que o subsistema jurídico reconheça a existência dos códigos dos outros subsistemas em sua ação. É no interior do subsistema político-sanitário que são formalizadas e executadas as políticas públicas de saúde que, por sua vez, têm um processo de formalização, na medida em que têm norma instituída (leis, decretos e atos administrativos). Considera-se adequado que a formalização da política de saúde reflete a intenção coletiva de efetivar direitos sociais, por meio de atos infraconstitucionais ou infralegais. O subsistema jurídico, ao desconhecer esse arcabouço, chega a impingir ao subsistema político-sanitário o cumprimento de decisões diversas daquelas constituídas com base em uma justiça distributiva.

Tais tensões propiciaram elevado número de processos judiciais referentes à efetivação do direito à saúde, em trâmite no Poder Judiciário, e ensejaram a convocação da Audiência Pública da Saúde, que, vista sob a ótica da Teoria dos Sistemas Sociais, foi compreendida como acoplamento estrutural e um campo aberto às irritações entre os subsistemas. Assim considerando, o objetivo foi provocar no núcleo do subsistema jurídico - o tribunal - a absorção de fundamentos sobre o sistema público de saúde.

Como já exposto, a macrocategoria A foi composta por 705 argumentos de discurso, dos quais o subsistema judiciário utilizou, nas decisões analisadas, 121. Dos 99 argumentos de discurso que compuseram a macrocategoria B, foram utilizados 23; e dos 87 argumentos de discurso que compuseram a macrocategoria C, 16 foram utilizados. A absorção dos argumentos expostos na audiência pública, pelo subsistema jurídico, foi de cerca de 20% dos argumentos totais.

As definições do STF podem vir a demonstrar regularidade e uniformização das decisões judiciais ao longo do tempo, especialmente pelo fato de que a magistratura vinculada foi orientada a seguir a Recomendação 31 do CNJ. Em termos práticos, nas ações que diuturnamente chegam aos tribunais e às procuradorias dos entes federados, a tentativa de uniformização de julgados pode demonstrar efetivos ganhos, quer seja para a sustentação e organização do SUS, quer seja para orientar os procedimentos do Poder Judiciário.

O subsistema jurídico, representado pelos magistrados, é colocado em posição de decidir sobre a "vida ou morte" do indivíduo, tendo de lutar com complexidades fora de seu código e que podem comprometer até programas de saúde determinados à coletividade (direito individual × direito coletivo).

Observados os pleitos baseados - segundo termo cunhado por representante do subsistema políticosanitário, na medicina baseada em esperança - que requerem medicamentos sem registro na Anvisa, fora de sua indicação ou experimentais, além de colocar em risco a situação do paciente, e em se tratando de tecnologias de alto custo, podem comprometer políticas destinadas à coletividade.

A Audiência Pública da Saúde também trouxe ao subsistema político-sanitário questões que merecem observação e tomada de decisão. O primeiro ponto diz respeito aos pedidos das ações judiciais que já estejam contidos em políticas públicas. Entendeu o STF que, nos casos em que haja política pública definida e que abranja o pleito, é inquestionável a existência do direito.

O STF rendeu-se às expectativas normativas ordeiras; as que pleiteiam efetivação do direito à saúde e que estejam contempladas em políticas públicas devem ser concedidas, assim como os casos em que haja, por meio de conjunto probatório adequado, comprovação de que a oferta estatal não é capaz de satisfazer ao caso individual. Essa foi a tese essencialmente acatada pelo STF e nela estão contidos dois elementos: as análises de efetivação do direito à saúde serão realizadas caso a caso; e as pretensões não normatizadas pelo SUS devem ser apreciadas em todos os seus elementos constitutivos. Consequentemente, os magistrados estarão sujeitos às possibilidades de superação dos seus limites operativos - o que não significa assumir códigos de outros subsistemas. Sem dúvida, ocorreu um mútuo aprendizado entre os sistemas político e jurídico pelo acoplamento estrutural da audiência pública.

Nesse contexto de análise, é possível perceber a existência de mais uma tensão, sem, contudo, ter resolvido nenhuma das outras. O modelo de sistema global já existente, burocratizado, limitado, atido a uma lógica pré-constituída, está em conflito com um tipo inovador: finalístico, ágil, prático, mais suscetível aos acoplamentos estruturais, disposto a aprender e comunicar - ainda que preservado o fechamento dos subsistemas.

Somente por meio da combinação entre o fechamento autopoiético dos subsistemas e as irritações advindas do ambiente é que o direito pode evoluir - e, ao evoluir, provocar a evolução do sistema social global e ser novamente provocado por ele.

  • CORSI G.; ESPOSITO, E.; BARALDI, C. Glosario sobre la teoría social de Niklas Luhmann. Ciudad del México: Universidad Iberoamericana, 1996.
  • LEFÈVRE, F.; LEFÈVRE, A. M. C. O discurso do sujeito coletivo: um novo enfoque em pesquisa qualitativa (desdobramentos). Caxias do Sul: EDUCS, 2003.
  • LUHMANN, N. Law as a social system. Oxford: Social-Legal Studies, 2004.
  • SANTOS, A. O. A abordagem de temas jurídicos na audiência pública da saúde no Supremo Tribunal Federal. 2010. Monografia (Especialização em Direito Sanitário) - Fundação Oswaldo Cruz, Brasília, DF, 2010.

  • 1
    Artigo baseado em dissertação de mestrado defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade de Brasília (UnB).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    05 Jun 2014
  • Revisado
    21 Ago 2014
  • Aceito
    17 Set 2014
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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