Contações femininas: gênero e percepções de mulheres dependentes químicas

Erika Ravena Batista Gomes Aline Veras Morais Brilhante Sobre os autores

Resumo

A dependência química é entendida pela ciência como um fenômeno complexo, multifatorial e polêmico. Embora o consumo de substâncias psicoativas e os problemas dele decorrentes sejam comuns nos diferentes gêneros, faixas etárias, classes econômicas e grupos sociais, esses constructos atuam de modos diferentes considerando seu papel nas estruturações das subjetividades e relação destas com o meio social. Buscou-se, nesse estudo, compreender a relação entre questões de gênero e dependência química partindo da percepção de mulheres que buscaram acompanhamento em saúde por adicção. Trata-se de pesquisa qualitativa realizada com mulheres dependentes de substâncias psicoativas, sendo estas lícitas - como álcool, tabaco e medicamentos - e ilícitas - como maconha e cocaína. A análise das entrevistas teve como base a análise de conteúdo de Bardin, embasada por estudos sobre gênero e dependência química. Os resultados demonstram que as questões de gênero marcam fortemente as percepções femininas de si, da forma como os papéis de mulher são ou não exercidos no movimento da dependência química e de como a sociedade valida seus comportamentos. Evidências deste estudo permitem inferir que as questões de gênero perpassam as vivências atreladas à dependência química, singularizando a relação da mulher com a droga.

Palavras-chave:
Gênero; Mulher; Drogas; Dependência Química

Introdução

Embora o uso de drogas ocorra desde tempos remotos, as relações do indivíduo e da sociedade com as substâncias psicoativas tornou este um fenômeno complexo na contemporaneidade. Enquanto o uso de drogas ditas lícitas, como cigarro, álcool e medicamentos, tem chancela social, o uso das drogas ilícitas segue estigmatizado, seja pela vertente patologizante, seja como elemento de políticas públicas convidadas a “combater” tais drogas no âmbito criminal (Melo; Maciel, 2016MELO, J. R. F.; MACIEL, S. C. Representação social do usuário de drogas na perspectiva de dependentes químicos. Psicologia, Ciência e Profissão, Brasília, DF, v. 36, n. 1, p. 76-87, 2016. DOI: 10.1590/1982-3703000882014
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).

A licitude da substância utilizada é um dos pontos associados ao estigma, não sendo, contudo, o único, afinal, visto que as questões de gênero são estruturais em nossa sociedade, este se torna um constructo relevante nos modos de estigmatização das pessoas usuárias de drogas. Durante muito tempo, o uso de drogas foi um fenômeno socialmente lido como restrito ao masculino, tendo sua imagética atrelada à virilidade e à violência (Mejía et al., 2015MEJÍA, B.; ZEA, P.; ROMERO, M. et al. Traumatic experiences and re-victimization of female inmates undergoing treatment for substance abuse. Substance Abuse Treatment, Prevention, and Policy, London, v. 10, n. 5, p. 1-8, 2015.). As mudanças na estrutura social evidenciaram que a penetrância do consumo de substâncias psicoativas, bem como os problemas dele decorrentes, são comuns a todos os gêneros, sendo, contudo, experienciada de formas diferentes entre eles, ponto relevante para compreender a relação usuário-droga (Silva; Lyra, 2015SILVA, M. G. B.; LYRA, T. M. O beber feminino: socialização e solidão. Saúde Debate, v. 39, n. 106, p. 772-781, 2015. DOI: 10.1590/0103-1104201510600030017
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).

Mulheres usuárias de drogas lidam em seu cotidiano com as consequências de romper com o estereótipo de feminilidade associado à passividade, aos cuidados domésticos e ao recato, vivenciando uma condenação de base moral transpassada pelas questões de gênero (Sharma et al., 2017SHARMA, V.; SARNA, A.; TUN, W. et al. Women and substance use: a qualitative study on sexual and reproductive health of women who use drugs in Delhi, India. BMJ Open, London, v. 7, n. 11, e018530, 2017. DOI: 10.1136/bmjopen-2017-018530
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; Medeiros; Maciel; Sousa, 2017MEDEIROS, K. T.; MACIEL, S. C.; SOUSA, P. F. A mulher no contexto das drogas: representações sociais de usuárias em tratamento. Paidéia, Ribeirão Preto, v. 27, supl. 1, p. 439-447, 2017. DOI: 10.1590/1982-432727s1201709
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). Partindo deste pressuposto, este artigo objetiva discutir a relação entre questões de gênero e dependência química a partir da percepção de mulheres que buscaram acompanhamento em saúde por adicção, na intenção de reconhecer como as questões de gênero singularizam o uso de substâncias psicoativas.

Metodologia

Trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa (Minayo, 2010MINAYO, M. C. S. Técnicas de pesquisa: entrevista como técnica privilegiada de comunicação. In: MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 12. ed. São Paulo: Hucitec, 2010. p. 261-297.), realizada com mulheres dependentes químicas. Devido à pandemia provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2, foram realizadas entrevistas remotas por meio do aplicativo WhatsApp.

As participantes foram selecionadas a partir da indicação de profissionais de saúde vinculados à atenção básica e ao Centro de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas (CAPS ad) de Picos, interior do Piauí. Vale ressaltar que a pesquisa ocorreu em um período de isolamento social rígido no município, medida de controle sanitário para pandemia associada à covid-19. Deste modo, a indicação se deu por conveniência, considerando a relação das entrevistadas com o dispositivo de cuidado, sua acessibilidade e a possibilidade de contato neste período. Antes da indicação, a pesquisadora principal informou os profissionais quais são os objetivos da pesquisa, os critérios de inclusão e exclusão a fim de nortear as indicações. Foram considerados critérios de inclusão idade mínima de 18 anos e acesso, nos últimos 12 meses, a serviços de saúde motivado pela dependência química e/ou por suas consequências. Foram excluídas mulheres sem acesso à internet e ao aplicativo WhatsApp.

Após a apresentação da pesquisadora e da pesquisa às mulheres, foram agendadas as entrevistas. O roteiro semiestruturado foi composto por quatro perguntas amplas, que buscavam caracterizar sua subjetividade, o início e a trajetória de vida enquanto usuária de substâncias psicoativas e dependente química, os efeitos da droga sobre sua vida e sobre sua saúde e sua percepção sobre a relação entre as questões de gênero e a dependência química. Além disso, foi enviado um questionário breve sobre seu perfil sociodemográfico. As mulheres foram orientadas a responder às perguntas através de áudios, com total liberdade para quaisquer digressões que julgassem oportunas após receberem o roteiro.

As questões buscaram, para além da pesquisa, oportunizar às participantes reflexões sobre suas vivências a partir da organização e escuta de suas próprias falas. As entrevistas ocorreram em junho, julho e agosto de 2020, com respostas que variaram entre 5 minutos e 24 segundos e 79 minutos e 57 segundos de áudios, sendo transcritas na íntegra pela pesquisadora. Após cada entrevista e respectiva transcrição, as pesquisadoras imergiram no material, registrando suas análises individuais, que foram então compiladas em temas e pré-categorias. Estas, por sua vez, foram organizadas em tabelas, permitindo a constatação visual da saturação (Fontanella et al., 2011FONTANELLA, B. J. B.; LUCHESI, B. M.; SAIDEL, M. G. B. et al. Amostragem em pesquisas qualitativas: proposta de procedimentos para constatar saturação teórica. Cadernos de Saúde Pública , Rio de Janeiro, v. 27, n. 2, p. 389-394, 2011. DOI: 10.1590/S0102-311X2011000200020
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) e, consequentemente, a interrupção do recrutamento na oitava entrevista. Deste modo, participaram da pesquisa oito mulheres.

Para organização, interpretação e análise das narrativas, elegeu-se a análise de conteúdo de Bardin (2011BARDIN, L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011.), modalidade temática, partindo-se de estudos nacionais e internacionais sobre dependência química e de gênero alinhados à perspectiva das estudiosas pós-estruturalistas, tendo Tereza de Lauretis (1994LAURETIS, T. A tecnologia do gênero. In: HOLLANDA, H. B. (Org.). Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 206-242.), Guacira Louro (1997LOURO, G. L. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 1997.) e Joan Scott (2005SCOTT, J. W. O enigma da igualdade. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 13, n. 1, p. 11-29, 2005. DOI: 10.1590/S0104-026X2005000100002
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) como lentes teóricas. Deste modo, partimos do pressuposto de que o enfrentamento à desigualdade entre os gêneros demanda que nos esquivemos da armadilha do binarismo maniqueísta entre masculino-feminino para nos concentrarmos na desconstrução e ressignificação dos estereótipos hegemônicos de gênero (Scott, 2005SCOTT, J. W. O enigma da igualdade. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 13, n. 1, p. 11-29, 2005. DOI: 10.1590/S0104-026X2005000100002
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; Louro, 1997LOURO, G. L. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 1997.), estruturados, em grande medida, tendo por base os discursos das diferentes tecnologias sociais (Lauretis, 1994LAURETIS, T. A tecnologia do gênero. In: HOLLANDA, H. B. (Org.). Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 206-242.).

O estudo teve anuência da Secretaria de Saúde do município onde foi realizado, sendo aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade de Fortaleza, com parecer número 3.773.409 de 16 de dezembro de 2019, respeitando as orientações éticas das Resoluções nº 466/2012 e 510/2016 do ConselhoNacional de Saúde.

Resultados e discussão

Os resultados foram organizados em três categorias temáticas: percepção de si, percepção da droga e percepção da sociedade. As mulheres foram nomeadas com a inicial P, seguida do número de ordem de realização da sua entrevista. A cor das mulheres foi destacada na apresentação dos relatos, considerando a heterogeneidade da categoria mulher e para que lugar de fala e contexto social de cada uma fique claro, respeitando os recortes interseccionais.

Participaram do estudo oito mulheres, apresentadas no Quadro 1, com idades entre 34 e 60 anos, sendo quatro autodeclaradas negras, três brancas e uma parda; duas de religião evangélica, uma católica, uma espírita, uma teísta e duas sem religião; cinco estavam inseridas no mercado de trabalho, nas profissões de zeladora, autônoma, cabelereira, doméstica e servidora pública; cinco vivenciando relacionamento conjugal heterossexual, e uma sem filhos.

Quadro 1
Perfil das mulheres participantes do estudo. Piauí, Brasil, 2020

Percepção de si

Esta categoria apresenta como as participantes expressaram suas percepções sobre si mesmas e suas relações pessoais permeadas por discursos que nos remetem às questões de gênero.

Cabe aqui destaque inicial sobre interseccionalidade entre gênero e raça. O fato de metade das participantes serem negras provoca reflexões sobre eventos discriminatórios ainda presentes no momento histórico atual. Sendo negras e mulheres, suas vulnerabilidades se interseccionam (Louro, 1997LOURO, G. L. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 1997.; Garcia, 2011GARCIA, C. C. Breve história do feminismo. 4. ed. São Paulo: Editora Claridade, 2011.).

Ao falar de si, essas mulheres resgataram relações com suas famílias de origem e contextos da infância e adolescência. Seus relatos externam angústias relacionadas a ausências (reais ou do exercício dos papéis socialmente atribuídos) das figuras de referência e o efeito destas em suas vidas.

Eu fui criada por minha bisavó, não conheço meu pai, minha mãe ela me deu entendeu e eu nunca tive, assim, afeto de mãe, nem de pai, nem nada. (P7, mulher branca)

Eu fui criada só pela minha mãe […]. Meu pai se separou da minha mãe eu tinha… o quê? Tinha? Ficou cinco filhos e ela grávida de 6 meses da mais nova. Então, eu fui uma pessoa fui criada muito sofrida. (P3, mulher parda)

Quando eu tinha meus 14 anos, aliás, quando eu tinha meus 13 anos, 12 pra 13 anos, ela [mãe] e o meu pai se separaram. E desde que se separaram, tinha eu dentro de casa, eu, aliás todos nós. Somos sete filhos do casal. (P8, mulher negra)

Seis mulheres cresceram em lares de arranjos monoparentais femininos, com a mãe (ou outra figura feminina, como no caso de P7) como responsável plena do sustento do domicílio e da família numerosa. Essas questões, historicamente atreladas ao fenômeno da feminização da pobreza (Cavenaghi; Alves, 2018CAVENAGHI, S.; ALVES, J. E. D. Mulheres chefes de família no Brasil: avanços e desafios. Rio de Janeiro: ENS-CPES, 2018.), associam-se à concepção de cuidado como responsabilidade feminina e materna, conferindo ao homem posição na qual o cuidar é opcional, e não obrigação (Silveira et al., 2016SILVEIRA, A. O.; BERNARDES, R. C.; WERNET, M. et al. Rede de apoio social familiar e a promoção do desenvolvimento infantil. Revista Família, Ciclos de Vida e Saúde no Contexto Social, Uberaba, v. 4, n. 1, p. 6-16, 2016. DOI: 10.18554/refacs.v4i1.1528
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). Deste modo, as atribuições sociais diferenciam as expectativas que acompanham homem e mulher no exercício dos papéis parentais. O homem que escapa do exercício da paternidade não será existencialmente definido por esse abandono, ao contrário da mulher, que estará à mercê de rigoroso julgamento moral (Zanello, 2016ZANELLO, V. Dispositivo materno e processos de subjetivação: desafios para a psicologia. In: ZANELLO, V.; PORTO, M. (Org.). Aborto e (não) desejo de maternidade(s): questões para a psicologia. Brasília: Conselho Federal de Psicologia, 2016. p. 103-122.).

Outro achado deste estudo refere-se ao casamento heterossexual como rito que marca fortemente as vivências femininas, no qual mulheres esperam encontrar proteção e chancela social relativas à decência e salvação:

Tenho dois filhos, que eu criei sozinha. Já tive várias convivências. E há dois anos estou convivendo com meu esposo, aquele que casou comigo, que me deu seu nome e que me trata feito uma princesa […]. Hoje eu tenho um lar, tenho uma casa, tenho um marido, tenho uma vida decente. (P8, mulher negra)

A idealização que acompanha o mito do amor romântico o associa a relações estáveis e duradouras, nos moldes do ideal familiar burguês, que, ao definirem os papéis do homem e da mulher na relação, reiteram os estereótipos de gênero e as relações de poder que os acompanham (Perez; Palma, 2018PEREZ, T. S.; PALMA, Y. A. Amar amores: o poliamor na contemporaneidade. Psicologia & Sociedade, Belo Horizonte, v. 30, e165759, 2018. DOI: 10.1590/1807-0310/2018v30165759
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).

Cinco entre as oito participantes exerciam atividade remunerada no período da pesquisa:

Eu trabalho, sou manicure e consultora natura, eu trabalho é… ambulante. (P3, mulher parda)

Me encontrei na área da beleza, eu me encontrei porque eu não tinha profissão nenhuma. Mas eu me encontrei na área da beleza, eu gosto de fazer cabelo, unha, limpeza de pele, maquiagem, massagem, depilação. Enfim, eu amo a área da beleza. (P4, mulher branca)

E desde então eu tenho um trabalho. Fiz o meu concurso e passei há 20 anos atrás, 22 anos atrás que eu passei, e comecei a trabalhar e ter uma renda fixa. (P8, mulher negra)

Nesta pesquisa, as mulheres identificam o trabalho como constituinte relevante nas percepções de si, refletindo as mudanças históricas da categoria gênero e seus aspectos circundantes (Scott, 2005SCOTT, J. W. O enigma da igualdade. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 13, n. 1, p. 11-29, 2005. DOI: 10.1590/S0104-026X2005000100002
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; Lauretis, 1994LAURETIS, T. A tecnologia do gênero. In: HOLLANDA, H. B. (Org.). Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 206-242.). Ao assumir, contudo, o papel de provedora familiar, única ou com companheiro, mantendo-se a responsabilidade quase exclusiva pelas funções do lar e o cuidado dos filhos, essas mulheres se vinculam frequentemente a trabalhos mal remunerados. Deste modo, além da perpetuação do ciclo de feminização da pobreza (Cavenaghi; Alves, 2018CAVENAGHI, S.; ALVES, J. E. D. Mulheres chefes de família no Brasil: avanços e desafios. Rio de Janeiro: ENS-CPES, 2018.), elas estão em risco de desenvolverem ou agravarem transtornos mentais - incluindo o abuso de drogas lícitas e ilícitas - em virtude da grande quantidade de responsabilidades simultâneas assumidas (OMS, 2005OMS - ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Livro de recursos da OMS sobre saúde mental, direitos humanos e legislação. Genebra: 2005.; Trindade; Bartilotti, 2017TRINDADE, V.; BARTILOTTI, C. B. “Não quebrou a corrente, mas abriu um elo entre nós”: o impacto da dependência química materna sobre o vínculo mãe-filho. Revista Eletrônica Saúde Mental Álcool e Drogas, Ribeirão Preto, v. 13, n. 1, p. 4-12, 2017. DOI: 10.11606/issn.1806-6976.v13i1p4-12
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).

Percepção da droga

Esta categoria apresenta como as mulheres vivenciaram/vivenciam o contexto do uso de drogas e da experimentação à dependência, além dos benefícios da abstinência, reconhecidos especialmente pelas que estão abstinentes.

Cabe destacar que, entre as participantes, todas usam drogas lícitas, com prevalência do cigarro, e apenas uma assume uso de drogas ilícitas. O tempo de uso varia entre 14 e 35 anos, sendo o menor tempo de uso pertencente à participante de menor idade. Cinco mulheres, no momento da pesquisa, encontravam-se abstinentes, enquanto três continuavam com o uso da substância. Este fato é relevante considerando que o uso pode afetar a percepção das mulheres sobre si e suas relações com as drogas.

Algumas participantes associam o início do uso de drogas a seus contextos familiares na infância.

Eu comecei a fumar eu tinha 20 anos de idade, minha avó fumava, aí ficava mandando eu pegar um fogo pra ela acender o cigarro, aí eu terminava às vezes acendendo, “vó, deixa eu fumar” aí ela ficava me incentivando a fumar. (P1, mulher negra)

A única e exclusiva pessoa que me incentivou a beber, que me fez conhecer o álcool e todas as derrotas da vida foi a minha mãe. […] Ela me transformou numa putinha bêbada [choro]. Ela não me deu escolhas para eu ser uma pessoa diferente do que ela vivia. (P8, mulher negra)

Percebe-se que, embora o uso de drogas por pessoas de referência tenha se desenhado como influência, isso é percebido de modo diferente entre as mulheres. Parentes usuários são fator de risco para o uso de drogas, considerando-se a naturalização deste uso e a facilitação do acesso, iniciado pela curiosidade ou pela admiração nutrida pelo familiar que consumia a droga - fator comum a homens e mulheres - aspecto que marca a experimentação por mulheres (Coelho; Paz, 2020COELHO, L. P.; PAZ, F. M. A dinâmica familiar como fator de risco para uso de substâncias: uma revisão da literatura. Perspectiva, Osório, v. 5, n. 2, p. 131-149, 2020.), como é o caso de P1. P8, por outro lado, revela indução atrelada a uma situação dor e sofrimento intenso, evidenciando a reprodução de comportamentos autodestrutivos.

Para outras mulheres, o início do uso ocorreu por influência de amizades:

Meu primeiro contato com a maconha foi uma amiga, nós fomos pra piscina, chegando lá ela me apresentou a maconha, que tem a prensada e a solta, só que eu não sabia distinguir quem era quem ali no jogo do bicho [risos]. Então, experimentei e gostei, porque olhava pra cara uma da outra e já sorria, do nada. Era bom. (P4, mulher branca)

Eu comecei a fumar por influência das amigas. Quer dizer, entre aspas, porque a gente só usa uma coisa quando a gente quer. (P5, mulher branca)

Silva e Lyra (2015SILVA, M. G. B.; LYRA, T. M. O beber feminino: socialização e solidão. Saúde Debate, v. 39, n. 106, p. 772-781, 2015. DOI: 10.1590/0103-1104201510600030017
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) encontraram resultados semelhantes nas mulheres de sua pesquisa, que iniciaram o uso de álcool em bares, festas, clubes, motivadas pelos grupos de amigos e na intenção de socializar e se divertir, mas também de aliviar tristezas e tensões.

É comum no relato das mulheres perceber o uso de drogas como refúgio para suas próprias emoções, uma forma pouco assertiva de lidar consigo e com suas questões internas (Silva; Lyra, 2015SILVA, M. G. B.; LYRA, T. M. O beber feminino: socialização e solidão. Saúde Debate, v. 39, n. 106, p. 772-781, 2015. DOI: 10.1590/0103-1104201510600030017
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). Elas encontram na substância uma espécie de acolhimento que muitas vezes não é percebido como possível em outros contextos.

Eu tinha muita ansiedade, as coisas para resolver, preocupação assim, com negócio, as coisas difíceis e eu me preocupava muito. Eu acendia um cigarro atrás do outro, fumava um cigarro atrás do outro. (P3, mulher parda)

Eu digo pra você uma coisa, eu encontrei no cigarro uma espécie de refúgio. Então, o cigarro pra mim era como se fosse assim, algo que eu estivesse desabafando. (P6, mulher negra)

O uso da substância como abrigo diante das experiências de frustrações, especialmente nos relacionamentos interpessoais, também se destaca em outras falas das participantes, como a seguinte:

Até que essa pessoa um dia saiu dizendo que ia trabalhar e nunca mais voltou. Daí foi mais uma recaída, muito pesada pra mim. Voltei a beber o triplo e fumava muito, muito, um cigarro atrás do outro, um cigarro atrás do outro. (P4, mulher branca)

Sharma et al. (2017SHARMA, V.; SARNA, A.; TUN, W. et al. Women and substance use: a qualitative study on sexual and reproductive health of women who use drugs in Delhi, India. BMJ Open, London, v. 7, n. 11, e018530, 2017. DOI: 10.1136/bmjopen-2017-018530
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) encontraram indícios de que o uso de drogas coloca as mulheres em estilos de vida caóticos que afetam negativamente seus relacionamentos interpessoais; e Laureano, Gomes e Ferreira (2018) acrescentam que mulheres que se envolvem com drogas comumente dispõem de repertório pobre de habilidade sociais, sendo este fator de risco tanto para o início quanto para recaídas.

Duas participantes revelam situações de prostituição associadas ao uso de drogas, seja como atrelada à exploração sexual, seja como estratégia de acesso à droga, expondo de forma crua particularidades do uso de drogas relacionada ao gênero.

Ela me disse, bem claro, que eu ia ficar lá [casa da mãe], mas que, pra isso, eu ia ter que beber, eu ia ter que me prostituir, que era pra poder comprar as coisas pro meu filho, que ela não queria mulher vagabunda dentro de casa […]. E aí eu fiquei na casa dela, grávida, me prostituindo e bebendo muito. (P8, mulher negra)

O homem se vira de tantos, tanto jeito para arranjar droga, arranjar, incluo todo tipo de droga. E a mulher ou ela rouba ou ela se prostitui. […] O homem tem sempre os amigos que compartilham, né? A mulher não. As mulheres eu acho que elas não são unidas que nem os homens, sabe, é cada uma na sua pelo menos no mundo da droga é assim, cada uma na sua. (P4, mulher branca)

Sharma et al. (2017SHARMA, V.; SARNA, A.; TUN, W. et al. Women and substance use: a qualitative study on sexual and reproductive health of women who use drugs in Delhi, India. BMJ Open, London, v. 7, n. 11, e018530, 2017. DOI: 10.1136/bmjopen-2017-018530
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) elencam como motivos possíveis para o envolvimento de mulheres com a prostituição as necessidades de financiar o seu uso de drogas ou de prover seu sustento e de filhos após o abandono do parceiro, o que condiz com a situação apresentadas nas referidas falas de P8 e P4 e destacam, entre os riscos inerentes à prática do sexo desprotegido, além da exposição a traumas, episódios de violência direta e indireta.

Ainda sobre vulnerabilidades, ameaças maiores para mulheres e a supremacia masculina no meio das drogas, outras constatações podem ser feitas nas seguintes falas.

Se você tá com uma colega e ela sai, você fica só e aí já vem um usuário, ali ele já quer se aproveitar de você. Já quer se aproveitar do dinheiro que você tem, ele pega, vai lá no teu bolso e arranca do teu bolso, porque isso já aconteceu comigo, arrancar dinheiro do meu bolso, tirar celular de mim aí sai correndo, e daí você fica ali, sabe, sem poder fazer nada. (P4, mulher branca)

O homem ele sempre predomina em cima da mulher, porque a maioria das coisas ilícitas são controladas por homens, e também as mulheres só servem mesmo como mulas, tipo, elas servem como usuárias, entendeu? Porque a maioria que faz essas coisas mas só pra poder conseguir a droga e poder consumir. (P7, mulher branca)

Riscos diferenciados são conferidos à mulher pelo simples fato de ser mulher, assim como ao homem é aferido e naturalizado o domínio. Scott (2005SCOTT, J. W. O enigma da igualdade. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 13, n. 1, p. 11-29, 2005. DOI: 10.1590/S0104-026X2005000100002
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) teoriza que justamente esses diferenciais de poder instaurados entre homens e mulheres torna as mulheres minoria, mesmo sendo maioria quantitativa da população.

Para as demais participantes, essas diferenças são claras, e chama atenção a falsa associação da mulher a uma fragilidade condicionada ao gênero:

No caso da mulher, ela é mais afetada! Ela tem o emocional, tem o caráter, e tudo isso atinge a mulher. […] Ela é mais afetada do que o homem porque ela é mais frágil, a saúde dela também é mais afetada por causa que o organismo da mulher é dependente diferente do homem. (P2, mulher negra)

A vida de uma mulher usuária de qualquer tipo de droga, mesmo só a bebida, é decadente. Essa é a palavra certa, porque já dizem “um homem bêbado é graça, uma mulher bêbada é desgraça”. (P8, mulher negra)

Esses fenômenos discursivos, naturalizados e normatizados na cultura, buscam legitimar a suposta inferioridade feminina com argumentos biologizantes - corpo feminino mais frágil - sustentando estruturas de poder sexistas (Louro, 2013LOURO, G. L. Currículo, gênero e sexualidade: o “normal”, o “diferente” e o “excêntrico”. In.: LOURO, G. L.; NECKEL, J. F.; GOELLNER S. V. (Org.). Corpo, gênero e sexualidade: um debate contemporâneo na educação. 9. ed. Petrópolis: Vozes , 2013. p. 43-53.). Perceber esses elementos ainda vigentes em percepções de mulheres sobre a mulher é reconhecer que o lugar da mulher na sociedade atual permanece diferenciado e subordinado.

Nos relatos femininos, a abstinência se associa a sentimentos de gratidão e felicidade. Concordando com os achados de Nascimento et al. (2017NASCIMENTO, V. F.; MOLL, M. F.; SILVA, R. G. M. et al. Perspectivas de mulheres em recuperação de drogas sobre o tratamento em uma comunidade terapêutica. Saúde, Santa Maria, v. 43, n. 3, p. 265-345, 2017. DOI: 10.5902/2236583423677
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), as mulheres desenham a retomada do controle de suas vidas.

Depois que eu parei de fumar, tudo mudou na minha vida. Eu não sou mais aquela pessoa de quase dois anos atrás, né. Eu mudei! Eu aumentei de peso, eu estou de bem com a vida, vamos dizer. Eu hoje tenho a certeza de que eu posso chegar perto de qualquer pessoa com cheiro de uma água de lavanda […]. Eu estou com uma pele melhor. Tudo mudou. Então, para melhor, é claro. (P6, mulher negra)

A minha alegria é que eu saí dessa a tempo de perceber, de pedir perdão a todos eles [familiares] e de hoje ter meus filhos […]. A minha felicidade é dizer que eu não sou mais, que eu durmo e acordo tomando remédios, mas nenhum é para alcoolismo. (P8, mulher negra)

Ao superar o uso de drogas e as práticas a ele associadas, as mulheres experienciam uma nova liberdade refletida em calmaria e o resgate possível dos papéis perdidos, assim, renascem expectativas de conquistas acadêmicas e profissionais, de confiança e afeto da família e de aceitação social. O reconhecimento da superação da condição de dependência é fator importante para que a abstinência perdure (Nascimento, 2017NASCIMENTO, V. F.; MOLL, M. F.; SILVA, R. G. M. et al. Perspectivas de mulheres em recuperação de drogas sobre o tratamento em uma comunidade terapêutica. Saúde, Santa Maria, v. 43, n. 3, p. 265-345, 2017. DOI: 10.5902/2236583423677
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).

Percepção da sociedade

Essa categoria apresenta e discute como as mulheres interpretam o olhar de suas famílias e da sociedade diante de suas relações com as drogas. As mulheres referem preocupações de seus familiares com seus comportamentos adictos, como percebemos nas falas:

Aí a minha filha sempre pedia: “Mãe, pelo amor de Deus, deixa esse cigarro! Mãe, a senhora tá se matando, e tudo!” Me cobrava muito, muito, muito! (P3, mulher parda)

Então, e eu cheguei a perder o meu esposo nesse período. Eu fiquei a um ponto que eu bebia muito e meu esposo saiu de casa. (P2, mulher negra)

Sobre essa questão, Silva e Lyra (2015SILVA, M. G. B.; LYRA, T. M. O beber feminino: socialização e solidão. Saúde Debate, v. 39, n. 106, p. 772-781, 2015. DOI: 10.1590/0103-1104201510600030017
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) afirmam que as mulheres ainda são menos incentivadas socialmente à experimentação e ao consumo regular quando comparadas aos homens, mas são muito mais cobradas ao abandono do uso quando a dependência se instaura. Além disso, os homens apresentam menor tolerância à dependência feminina, como a fala de P2 explicita.

Em outras falas, destaca-se a discriminação dos próprios familiares sentida pelas mulheres, especialmente pelas mulheres negras.

E meus irmãos, que me olhavam com tanta indiferença, que são educados muito educados, me diziam “bom dia” em público por uma questão de educação, mas era um bom dia e davam logo uma desculpa de sair como: “Ah, desculpa você chegou mas eu já estou saindo porque eu tenho alguma coisa pra resolver”. Eu sabia que era a minha presença que incomodava. (P8, mulher negra)

Meus filhos, um casal, eles odiavam o meu comportamento! Às vezes as pessoas reconheciam eles como meus filhos e eles diziam que infelizmente eram meus filhos, por conta do comportamento que o álcool, né, ou seja, motivado pelo álcool. (P2, mulher negra)

Trindade e Bartilotti (2017TRINDADE, V.; BARTILOTTI, C. B. “Não quebrou a corrente, mas abriu um elo entre nós”: o impacto da dependência química materna sobre o vínculo mãe-filho. Revista Eletrônica Saúde Mental Álcool e Drogas, Ribeirão Preto, v. 13, n. 1, p. 4-12, 2017. DOI: 10.11606/issn.1806-6976.v13i1p4-12
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) expõem que o uso de drogas interfere de forma significativa na qualidade do vínculo de mãe e filho, posto que este uso traz prejuízo no investimento afetivo mútuo, fragiliza a relação, causa afastamento e altera o exercício da maternagem.

As questões de gênero, baseadas nos estereótipos de homem e mulher, são geradoras de sofrimento psíquico para ambos, contudo, embora ambos estejam sujeitos ao poder disciplinar, os homens são valorados pela virilidade e pelo trabalho, enquanto as mulheres o são por dispositivos que a submetem aos homens, como os dispositivos amoroso e materno, culminando na perpetuação das relações de poder entre os gêneros (Zanello; Fiuza; Costa, 2015).

Deste modo, a vigilância - sobretudo as com base em discursos morais - incide com mais veemência sobre as mulheres, o que aumenta a estigmatização de usuárias de drogas:

As vizinhas, no caso casadas, né, me olhavam de uma certa maneira, assim de como que: “Nossa ela é drogada, pode entrar aqui na minha casa, pode querer se aproximar do meu marido, ou de, enfim, roubar”. […] Enquanto o homem que usa droga, que essas mesmas pessoas conhecem e sabem, chamam até para fazer bicos, tipo “Ah, vem aqui, tira esse, esse matinho aqui, capina esse matinho aqui de frente a minha casa”. (P4, mulher branca)

Sem falar que a mulher, na sociedade, ela é mais cobrada, por ser vista, por ser mãe e até mesmo a que não seja mãe, mas por ser mulher ela é mais afetada do que o homem, né. É como se o homem fosse livre para fazer tal coisa e pra mulher ficaria mais que restrito, é como se não fosse para ela. (P2, mulher negra)

A cena mais deplorável que alguém pode ver é uma mulher bêbada, principalmente ela botando boneco no popular, em bares, nas ruas, é horrível. É horrível. É realmente decadente, deplorável. (P8, mulher negra)

As relações sociais de pessoas desviantes das condutas socialmente impostas são marcadas pela estigmatização, que contribui para a construção de suas identidades sociais (Camargo et al. 2018CAMARGO, P. O.; OLIVEIRA, M. M.; HERREIRA, L. F. et al. O enfrentamento do estigma vivido por mulheres/mães usuárias de crack. Revista Eletrônica Saúde Mental, Álcool e Drogas, Ribeirão Preto, v. 14, n. 4, p. 196-202, 2018. DOI: 10.11606/issn.1806-6976.smad.2018.000354
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). Deste modo, sendo as demandas sociais diferentes entre os gêneros, também os estigmas - embora incidam sobre todas as pessoas - se estruturam de modo diferente entre os gêneros. As relações sociais de pessoas dependentes químicas são, portanto, gendradas. Às mulheres dependentes químicas, são atribuídas alcunhas de pervertidas, com comportamentos inadequados e renunciadoras dos papéis femininos - rótulos que, muitas vezes, afasta as mulheres das buscas por tratamentos (Silva; Lyra, 2015SILVA, M. G. B.; LYRA, T. M. O beber feminino: socialização e solidão. Saúde Debate, v. 39, n. 106, p. 772-781, 2015. DOI: 10.1590/0103-1104201510600030017
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).

Para Scott (2005SCOTT, J. W. O enigma da igualdade. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 13, n. 1, p. 11-29, 2005. DOI: 10.1590/S0104-026X2005000100002
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), a luta feminista é não linear, de forma que a geração seguinte se depara com os mesmos paradoxos da geração anterior, havendo uma repetição de lutas. É o que vemos nas colocações das participantes, que reproduzem os estereótipos de gênero e as relações de poder exercidas pelo homem sobre as mulheres, o que elas mesmas tentam romper por intensificarem seus sofrimentos.

Falando especificamente do consumo de álcool, a questão de gênero se torna ainda mais evidente:

Passei por aperto, passei exatamente por ser mulher, por tá bebendo. Tem uma coisa pior na sociedade, na vida de um ser humano, como MULHER estar em um estado como eu vivi, de totalmente eu bebia de segunda a segunda? Tá entendendo? Tem um estado mais terrível na sociedade do que uma mulher alcoólatra, completamente em meio de tantas coisas? É triste! Então, e poucas escapam com vida. (P2, mulher negra)

As regras morais de consumo de álcool por homens e mulheres não são as mesmas. Enquanto eles são estimulados a fazer uso da substância, mulheres sofrem sanções sociais frequentes, sendo o consumo de álcool culturalmente utilizado para legitimar diferentes tipos de violência - inclusive a sexual - podendo culminar em desfecho letal (Brilhante; Nations; Catrib, 2018BRILHANTE, A. V. M.; NATIONS, M. K.; CATRIB, A. M. F. “Taca cachaça que ela libera”: violência de gênero nas letras e festas de forró no Nordeste do Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 34, n. 3, e00009317, 2018. DOI: 10.1590/0102-311x00009317
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).

Toda esta discussão evidencia o quanto as questões de gênero se colocam não apenas como expectativas, mas como imposições aos que formam uma sociedade, e as mulheres são reféns maiores dessas determinações pelo simples fato de serem mulheres.

Vale ressaltar que o processo de indicação de possíveis participantes apresentou dificuldades que transcenderam o contexto sócio-sanitário vigente no período. Profissionais de saúde, tanto do CAPSad, quanto da Atenção Básica, apresentaram dificuldades em identificar mulheres dependentes químicas dentro perfil determinado. Essa dificuldade em parte se associa ao fato de que mulheres com dependência química ainda são pouco percebidas nos serviços de saúde, como podemos identificar nos diálogos com os profissionais durante o período de recrutamento.

Merece reflexão, também, o perfil das mulheres lembradas por estes profissionais: pessoas cis, heterossexuais, em sua maioria religiosas, mães, características que as aproximam dos padrões femininos socialmente valorizados. O silenciamento das diversidades, evidenciado na não identificação de mulheres outras - lésbicas, bissexuais, trans - é, portanto, em si um dado significativo para esta análise e nos lança questionamentos a serem buscados em pesquisas subsequentes: até que ponto a universalidade inclui todas as pessoas, inclusive aquelas que escapam a Matriz de Inteligibilidade (Butler, 2006BUTLER, J. Bodies that matter: on the discursive limits of “sex”. London: Routledge, 2006.)? O quanto nós - profissionais da saúde - conseguimos escapar de julgamentos moralistas nas ações de cuidado? Sugerimos, portanto, a realização de estudos subsequentes, que contemplem outras mulheres e que transponha a Matriz de Inteligibilidade de Gênero, para incluir um grupo mais diverso de participantes, descortinando outras questões estruturais para além das aqui evidenciadas.

Considerações finais

Evidências deste estudo permitem inferir que as questões de gênero perpassam e marcam as vivências atreladas à dependência química. Os homens não só permanecem livres para o acesso às drogas, consentido desde os primórdios, como são incentivados pelo uso mesmo quando os problemas dessa relação já existem. Às mulheres dependentes químicas, ficam reservados estigmas peculiares, que as associam a comportamentos inadequados, abandono da família e da sua casa, prostituição, vergonha e falta de moral, que se somam às vulnerabilidades às quais elas já estão expostas pelo simples fato de serem mulheres e pelo exercício do poder masculino, potencializando os riscos de serem violentadas e mortas. Quando considerados aspectos interseccionais que singularizam cada mulher nessa relação, mais exclusão se coloca, posto que, além de mulher e dependente química, ela pode ser negra, pobre, indígena etc.

Considerando o efeito positivo de tornar as iniquidades de gênero mais evidentes para a saúde coletiva e para outros campos de conhecimento e prática, fica a sugestão de outros estudos nessa temática, especialmente os que permitam voz aos que são silenciados nos contextos sociais, como foram e ainda são as mulheres.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Out 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    15 Jun 2021
  • Revisado
    15 Jun 2021
  • Aceito
    02 Jul 2021
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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