Multiplicidade e instabilidade ontológica nos corações não-humanos

Marisol Marini Marko Monteiro Jenny Slatman Sobre os autores

Resumo

O artigo reflete sobre as relações entre corpos biológicos e artefatos tecnológicos, a partir da pesquisa etnográfica sobre o desenvolvimento de tecnologias de assistência circulatória, conhecidas como corações artificiais. Para compreender as corporeidades que tais dispositivos mecânicos ajudam a produzir, buscamos aqui caracterizar dois tipos de corpos instituídos a partir de práticas médicas e biotecnologias projetadas para pacientes com insuficiência cardíaca avançada. Os corpos imunológicos, produzidos a partir dos transplantes de coração, serão contrastados aos corpos biônicos, compostos pelo arranjo com corações artificiais. Propomos que é preciso considerar que cada uma dessas tecnologias se coproduz com distintas naturezas, sustentadas em materialidades, práticas, moralidades e pressupostos específicos. A atenção dada às práticas e à materialidade permitirá destacar os diversos entrelaçamentos materiais-semióticos. Resgatar a trajetória de desenvolvimento desse campo nos permitirá explorar o imaginário a partir do qual tais intervenções emergem, assim como as transformações ocorridas, ressaltando o vínculo ao corpo-máquina tecido no âmbito biomédico.

Palavras-chave:
Constituição corporal; Biotecnologia; Transplante de Coração; Insuficiência Cardíaca; Coração Artificial

Introdução

A presente reflexão abordará a produção de corpos e tecnologias médicas, a partir de um estudo etnográfico sobre os chamados corações artificiais. Tais artefatos visam a substituição da função cardíaca diante do esgotamento do que na cardiologia se denomina ‘órgão nativo’ - que é melhor descrito não como o coração “natural”, fisiologicamente ideal, o órgão biológico originariamente integrado a um sistema circulatório, pertencente a um organismo humano. A incapacidade de bombear adequadamente o sangue e distribuir fluidos para a oxigenação das células do organismo é denominada insuficiência cardíaca, condição altamente debilitante e que em seu estágio avançado oferece alto risco de óbito. Estação central de comunicação química e mecânica, vital para o organismo, o coração tem se tornado um órgão fatigado e desgastado pelas condições de sobrevivência num sistema que desapropria os sujeitos de sua saúde, da sua vitalidade e até mesmo do ritmo fisiológico e pulsatilidade11 Nos referimos aqui à pulsatilidade como habilidade de ter pulsação, movimentação pulsátil do sangue, em contraste com os corpos cuja pulsação é apagada, silenciada com o estabelecimento de uma circulação de sangue contínua, sem variação. Na literatura médica o termo é utilizado para se referir a fluxos e movimentação de substâncias diversas, como a secreção de hormônios. Há parâmetros de normalidade para essas velocidades e movimentações que são fixadas por meio de índices (Aires, 1999). Adiante forneceremos explicações detalhadas sobre a circulação sanguínea e como se estabelece o fluxo pulsátil, cuja medida é dada tendo como referência a pressão atmosférica. instituídas evolutivamente. Os altos índices de insuficiência cardíaca na contemporaneidade - que superam sobremaneira a oferta de órgãos disponíveis para transplante - são agravados pela previsão de expansão significativa de casos em países industrializados e em desenvolvimento.

Dados sugerem um aumento do impacto das doenças cardiovasculares em torno de 120% a 137% nos países em desenvolvimento, comparado ao aumento de 30% a 60% em países desenvolvidos (Leme, 2015LEME, J. Desenvolvimento e estudo in vitro de um dispositivo de suporte circulatório temporário. 2015, Tese (Doutorado em Medicina) - Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015. ). Entre as causas mencionadas pela literatura especializada que contribuem para o aumento das doenças cardiovasculares e permitem a projeção de estatísticas futuras estão: sedentarismo, obesidade e tabagismo. Tais fatores se relacionam a hábitos alimentares e estilos de vida, mas a brutal diferença no aumento em países em desenvolvimento e desenvolvidos nos leva a pensar que há corpos mais explorados que outros, vidas que tem sido mais desgastadas por um sistema produtivo que expõe a saúde dos sujeitos de modo desigual. Não é preciso dizer que tal qual as terras devastadas, os rios e florestas extensivamente explorados no sul global - os ditos recursos naturais amplamente violentados e consumidos pelo centro do capitalismo mundial -, há corpos e vidas mais exploradas à margem do capitalismo em sua dobra financeirizada, e as doenças cardíacas podem ser pensadas como um sintoma dessa exploração.

As tecnologias de substituição de corações nativos por órgãos artificiais são um campo experimental e instável, o que significa que não há ainda protocolos médicos normalizados e rotineirizados (Marini, 2018MARINI, M. Corpos biônicos e órgãos intercambiáveis: a produção de saberes e práticas sobre corações não-humanos. 2018. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Departamento de Antropologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018.). Os dispositivos mecânicos são justificados pelos seus defensores como alternativas ao transplante de coração (Anand; Singh; Antoun; Cohn et al., 2015ANAND, J. et al. Durable mechanical circulatory support versus organ transplantation: past, present, and future. BioMed Research International, New York, v. 2015, 2015. Special Issue.), que apresenta uma barreira tecnológica incontornável, relativa à compatibilidade de tecidos e disponibilidade limitada de enxertos. Há outras linhas de investigação e experimentação, como o xenotransplante, que recentemente ganhou interesse renovado, apesar de ter sido desencorajado em outro momento da história (Sharp, 2014SHARP, L. The Transplant Imaginary: Mechanical Hearts, Animal Parts, and Moral Thinking in Highly Experimental Science. Berkeley: University of California Press, 2014.), assim como os órgãos e tecidos impressos em laboratório, relacionados à aposta de criação de tecidos vascularizados, cuja expectativa é que possam permitir a produção de órgãos artificiais.22No Brasil tem se destacado a startup pioneira em bioimpressão TissueLabs, comandada por um garoto propaganda ideal, Gabriel Liguori, cardiologista motivado por sua própria experiência com uma patologia cardíaca congênita. O pesquisador e empreendedor, que no ano de 2020 entrou para a lista de jovens inovadores do MIT, publicamente destaca que seu interesse de pesquisa está atravessado pela sua história pessoal, na medida em que sua cardiopatia o levou a ser operado aos dois anos de idade, o que faz dele até hoje um paciente do InCor, instituição na qual fez parte de sua formação como cardiologista. Além de trazer uma tecnologia alinhada às novidades no campo de bioimpressão, engenharia de tecidos, medicina regenerativa com células-tronco, o empreendedor traz um novo modelo de pesquisa acadêmica alinhada aos interesses de modernização almejadas por algumas instituição brasileiras. A TissueLabs é uma empresa jovem que recebeu apoio da Fapesp pelo programa Pipe (Pesquisa inovativa em pequenas empresas A tarefa aqui será explorar especificamente os dispositivos mecânicos “duros”, embora projetados para idealmente performar a organicidade do funcionamento fisiológico de forma simplificada. São tecnologias vinculadas à trajetória de imaginação de alternativas para a ventilação “artificial” e manutenção mecânica da circulação, herdeira do imaginário moderno Frankensteiniano das quimeras elétricas e mecanicamente constituídas. Dispositivos old fashioned, quando comparados às iniciativas de bioimpressão, compostos por tubos, mecanismos, motores e parafernálias cuja aparência se assemelha a “um pedaço de encanamento que poderia ser conectado de alguma forma à minha pia” (Sharp, 2014SHARP, L. The Transplant Imaginary: Mechanical Hearts, Animal Parts, and Moral Thinking in Highly Experimental Science. Berkeley: University of California Press, 2014., p. 105. Tradução dos autores).

A problemática da pesquisa que rendeu a tese de doutorado de Marini sobre corações artificiais, de que partem as nossas elaborações, foi estabelecida a partir de um desses dispositivos de assistência circulatória, desenvolvido em uma instituição paulista que repercutiu publicamente. Foi a partir da divulgação em jornais brasileiros que chegamos ao coração artificial auxiliar, aos seus desenvolvedores e à rede na qual estavam inseridos. Anunciado como o primeiro coração artificial brasileiro, as notícias carregavam esperanças de que aquele artefato pudesse administrar a ocorrência de mortes por insuficiência cardíaca avançada, oferecendo uma alternativa a pacientes que aguardavam na fila de espera por um transplante de coração. E ainda, o propósito era fabricá-lo para ser distribuído no SUS, uma vez que o laboratório de bioengenharia no qual essa tecnologia era desenvolvida fazia parte de um hospital público especializado em cardiologia, voltado exclusivamente ao diagnóstico e tratamento das doenças cardiovasculares. A partir deste dispositivo foi possível tecer uma rede de relações, acompanhar o desenvolvimento de outras tecnologias e os debates promovidos em torno deles.33Cada projeto tem uma temporalidade mais longa do que uma tese de doutorado para atravessar todos os passos necessários para o desenvolvimento e validação de um dispositivo médico. Quando a pesquisa etnográfica foi iniciada, o “coração brasileiro” já se encontrava na fase final, de avaliação clínica, aprovado pela ANVISA para ser implementado em humanos. Ao longo da pesquisa, no entanto, pudemos acompanhar os testes de bancada ou in vitro de outras tecnologias em desenvolvimento e que faziam parte da mesma rede de pesquisa, assim como os subsequentes testes in vivo com a participação de porcos e bezerros. A pesquisa etnográfica realizada no laboratório de bioengenharia e no hospital de cardiologia do qual ele era parte, seguindo os interlocutores em suas atividades de pesquisa que extrapolavam esses recintos, teve início em 2013. Além de acompanhar os testes in vitro realizados no período de 2013 a 2017, e entre 2014 e 2015, em momentos diversos foi frenquentado o laboratório onde pode-se interagir livremente com os pesquisadores. Além disso, entre 2016 e 2017 foram realizadas entrevistas formais com alguns dos interlocutores.

O empenho em investigar a hipótese de que tais tecnologias transformavam as compreensões e divisões entre natural e artificial; humano e não-humano; vida e morte; levou Marini às bancadas de laboratório de bioengenharia, em que dispositivos cardíacos eram projetados e testados. As pesquisas in vitro por meio das quais nasciam os protótipos eram o início de uma cadeia (não-linear) de procedimentos. Eram muitos os passos necessários para transformar protótipos em um dispositivo aprovado para ser utilizado em humanos, quiçá torná-lo um produto comercializável. Na instituição paulista onde parte da pesquisa etnográfica foi realizada, o laboratório de bioengenharia configurava-se em uma espécie de ponte da clínica para o centro cirúrgico. A demanda médica encontrada no hospital diante das limitações das técnicas disponíveis para mitigar a ocorrência de mortes levava à imaginação de soluções alternativas que pudessem retornar ao hospital e contribuir na gestão de vidas e mortes. Em se tratando de um campo de tradição cirúrgica invasiva, as soluções imaginadas envolviam aparatos a serem implantados cirurgicamente em procedimentos open heart, embora houvesse questionamentos e a busca por procedimentos menos invasivos fosse uma tendência no cenário brasileiro, em diálogo junto à comunidade internacional (Marini, 2018MARINI, M. Corpos biônicos e órgãos intercambiáveis: a produção de saberes e práticas sobre corações não-humanos. 2018. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Departamento de Antropologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018.).

O propósito deste artigo é investigar os distintos corpos produzidos nos arranjos com os diversos dispositivos e soluções tecnológicas propostas por pesquisadores da bioengenharia, em parceria com cardiologistas e validadas por cirurgiões e equipes médicas. A fim de construir uma interpretação deste assemblage entre corpos “nativos” e corações “artificiais”, tomamos como contraste os transplantes de coração, cujas implicações para os corpos que dali emergem são radicalmente outras. Desta forma, investigamos os múltiplos corpos que emergem de processos sociotécnicos que visam substituir corações “falhos”, buscando assim interpretar de que maneira cada entrelaçamento entre entidades heterogêneas produz corpos ontologicamente distintos. Buscamos interpretar tal multiplicidade como produto de práticas divergentes que, cada qual à sua maneira, produz imbricamentos particulares, com consequências para o que seja saúde, corpo, coração e imunidade bastante divergentes.

Não buscamos definir aqui um gradiente de naturalidade/artificialidade, categorizando diferentes tecnologias e suas corporalidades como mais ou menos naturais. Inspiramo-nos na proposição de uma ética orientada não em termos de graus de ‘naturalidade’ dos corpos biológicos, mas como algo ontologicamente separado de uma ‘artificialidade’ de artefatos tecnológicos.44Ao analisar a engenharia de tecidos e sua capacidade para construção de partes do corpo que supostamente podem ser plenamente integradas pelo organismo receptor, partindo especificamente do caso das válvulas cardíacas, Derksen e Hortstam (2008) argumentam que elas não deveriam ser tomadas como superiores às válvulas mecânicas unicamente por serem compostas de “carne”. Se por um lado podem ser moralmente boas, por serem “cópias da Natureza”, por outro lado são moralmente condenáveis por desafiá-la. Por isso sugerem: “Instead of stressing the differences between bionic technologies and Tissue Engineneering, and making either type of technology more innocent or more dangerous, a phenomenological analysis demonstrates that TE is no special, and can be analysed in terms similar to those used in other technologies” (Derksen; Hortstam, p.270). O entendimento de uma boa corporificação para a avaliação das tecnologias é pautada na noção de “lived integrity”, que procura avançar o debate sobre a “transparência” do corpo. Pensando criticamente sobre seu desenvolvimento na fenomenologia, e o modo como toma negativamente a percepção da experiência do corpo doente, eles argumentam: “for a notion of ‘lived integrity’ that does justice to experiences of being this hurting or changing body, which are often central during illness. ‘Lived integrity’ refers to the achievement of living illness, body change and technological additions as oneself” (Derksen; Hortstam, p. 270) Pensamos em termos de diferentes corporalidades e integridades vividas (Derksen; Horstman, 2008DERKSEN, M.-H. G.; HORSTMAN, K. Engineering flesh: towards an ethics of lived integrity. Medicine, Health Care and Philosophy, [S.l.], v. 11, n. 3, p. 269-283, 2008.), considerando os distintos quadros patológicos num cenário específico de formas de gestão de corpos e mortes. Assim, entendemos que a corporalidade pode ser vista não como fixa, imanente, mas como processo emergente, resultado de práticas e processos dialógicos e relacionais. Tais processos envolvem a biologia; artefatos técnicos; saberes médicos e científicos; e a própria vivência de pacientes que carregam tais corações.

A partir de uma etnografia das práticas de desenvolvimento de corações artificiais, pretendemos investigar formas de pensar e instituir a materialidade de corpos, a multiplicidade ontológica emergida no entrelaçamento material/semiótico de práticas que desorganizam, reorganizam, desfiam e tecem novas carnalidades e corporeidades, novos fluxos e instabilidades no limite entre a vida e a morte. O contraste sugerido aqui entre um corpo imunológico, identificado como uma unidade que compõe uma identidade, uma assinatura fisiológica, em disputa imunológica com o que não faz parte daquele sistema; e um corpo biônico55Cabe destacar que há variações entre os distintos corpos biônicos produzidos a partir de tecnologias diferentes, como os dispositivos de fluxo contínuo, que serão aqui investigados, mas também os mecanismos que mimetizam a natureza fisiológica do órgão, e que estabilizam outras corporalidades, além da tecnologia brasileira, cuja originalidade é uma proposta híbrida que se apoia no coração nativo e o replica. Porém não caberá no escopo desse trabalho trabalhar exaustivamente essas diferenças. permite analisar as distintas materialidades e entrelaçamentos próprios aos transplantes de órgãos e ao implante de artefatos mecânicos.

O que podemos afirmar sobre a corporalidade imaginada e performada no corpo biônico, comparativamente ao corpo imunológico dos transplantes, são as transformações mecânicas promovidas pelo arranjo entre a fisiologia nativa e o coração artificial, que no geral dizem respeito ao “silenciamento” do órgão e surgimento de novos “ruídos”. Isto remete não apenas a sons, propriamente, mas também a movimentos e fluxos, como é o caso do fluxo contínuo que não produz variação de pressão, o que tem várias implicações, como argumentaremos neste estudo. Ainda que projetados para uso temporário, as transformações operadas no corpo biônico são inexoráveis, produzindo efeitos materiais no organismo mesmo após o desmonte do arranjo com o coração artificial. Esses efeitos podem persistir no tempo, ainda que os artefatos possam permitir uma considerável “recuperação” ao órgão nativo.

Imaginação e projeção de tecnologias de assistência circulatória

Desde os primeiros dispositivos empregados em procedimentos cirúrgicos do tipo “open heart”, nos anos 1950, estes artefatos têm permitido manter e prolongar a vida de pacientes. Eles também possibilitaram uma reformulação da concepção de morte, não mais associada ao funcionamento cardiorrespiratório, mas definida pela função cerebral (Lock, 2002LOCK, M. Twice Dead: Organ Transplants and the Reinvention of Death. Berkeley: Univ of California Press, 2002.). Na Era de Lázaro, na qual a ressuscitação cardiopulmonar se tornou possível, as tecnologias empregadas para substituição da função cardíaca permitiram transformar as concepções de morte não só em termos de sua definição legal, mas seu significado, seus sentidos e sua “manipulação” material.

Embora atualmente os corações artificiais sejam projetados como alternativas ao transplante, eles são lógica e historicamente anteriores (Anand; Singh; Antoun; Cohn et al., 2015ANAND, J. et al. Durable mechanical circulatory support versus organ transplantation: past, present, and future. BioMed Research International, New York, v. 2015, 2015. Special Issue.). Por isso sugerimos que sua existência e desenvolvimento foi o que permitiu a imaginação dos transplantes de coração. Se é possível manter um corpo vivo com circulação mecânica, será possível transferir um órgão de um corpo saudável para um corpo doente? Eis o tipo de especulação que imaginamos ter sido levantada a partir da década de 1950, no rastro do questionamento que fazia o fisiologista francês Le Gallois, a quem é atribuída a primeira tentativa de aplicação de um suporte circulatório, em 1812. Ele se perguntava se seria possível manter viva qualquer parte do organismo, por tempo indeterminado, o que o permitiu imaginar e tentar responder ao desafio de substituir o coração por uma forma de bombeamento artificial. A potencialidade de (re)construção dos mecanismos de circulação sanguínea que germinavam desde o início do século XIX dão novos frutos com o surgimento dos primeiros dispositivos mecânicos e, na sequência, dos transplantes de coração.

A cirurgia performada por Gibbon, em 1953, usando uma máquina de coração-pulmão de sua autoria é narrada como o primeiro grande evento associado à história do suporte circulatório. Akutsu e Kolff são descritos como os primeiros cirurgiões que implantaram um coração artificial em um cachorro, em 1958; Liotta, em 1963 reportou ter implantado um ventrículo artificial em um paciente com choque cardiogênico, alimentando a esperança de que tais sistemas pudessem ser usados para tratar também a insuficiência cardíaca (Anand; Singh; Antoun; Cohn et al., 2015ANAND, J. et al. Durable mechanical circulatory support versus organ transplantation: past, present, and future. BioMed Research International, New York, v. 2015, 2015. Special Issue.).

Trazemos esses eventos históricos para argumentar que os dispositivos mecânicos estavam no horizonte do tratamento da insuficiência cardíaca na década de 1950. Porém, com o advento dos transplantes cardíacos na década de 1960, o cenário se transforma. Inicialmente, o foco no suporte circulatório mecânico é mantido, pois a rejeição de tecidos provocada pelos transplantes de órgãos caracterizava-se como um desafio intransponível. O advento de imunossupressores nos anos 1980, entretanto, relega e ao mesmo tempo permite o uso clínico dos corações artificiais como “ponte para o transplante”, ou seja, um uso temporário que oferece sobrevida enquanto se aguarda por um transplante.

O transplante de coração ainda oferece uma expectativa de vida maior em relação aos dispositivos mecânicos, apesar dos esforços de aprimoramento por parte de bioengenheiros dedicados a encontrar novas soluções para as limitações postas. Embora ainda se apresentem como opções clinicamente melhores, os transplantes têm custos altos, inclusive ecológicos, já que exigem uso de helicópteros e uma complexa logística, e pressa para que o órgão retirado de um organismo possa ser transplantado sem sofrer degradação, ou seja, sem que as células sejam danificadas, podendo comprometer a qualidade do enxerto e de sucesso de incorporação no corpo receptor.

Narciso,66Os pseudônimos aqui adotados são inspirados em nomes de heróis e personagens da mitologia grega, exceto pelos pacientes, seguindo a lógica da tese de doutoramento de Marini. cardiologista dedicado aos cuidados pós-operatórios e acompanhamento de casos de pacientes transplantados e implantados, um dos interlocutores da pesquisa etnográfica, afirmou:

A logística do transplante cardíaco é extremamente complexa, muito mais complexa do que o implante de DAV. No caso do dispositivo, você tem a máquina, então você programa o procedimento e implanta. Para o transplante cardíaco, a logística é infinitamente maior, é um fato, é um evento. (Cardiologista Narciso)

Atualmente tanto o transplante de coração quanto o implante de coração artificial demandam a realização de um procedimento cirúrgico complexo, visto como altamente invasivo. Para ambos é necessário realizar uma cirurgia de “peito aberto”, utilizando-se uma máquina de circulação extracorpórea para que o órgão nativo possa ser paralisado e manipulado, o que implica maiores riscos pós-operatórios, como a ocorrência de acidente vascular cerebral.

Apesar de apontar como a opção mais estabilizada, os transplantes de órgãos ainda não são uma solução definitiva. Recuperar brevemente a trajetória do desenvolvimento tecnológico de soluções para a insuficiência cardíaca nos permite especular sobre o imaginário de possibilidades de bombeamento, e o que as diferentes estratégias na tentativa de encontrar uma maneira adequada de circular e mover um sistema falho revelam sobre os entendimentos de corpo no âmbito biomédico.

Multinaturalismo e multiplicidade ontológica

A fim de interpretar corporeidades como processos e como múltiplos; mas não como natureza unificada, buscamos inspiração em etnografias e em pesquisas do campo dos Estudos Sociais da Ciência e da Tecnologia - ESCT (Barad, 2003BARAD, K. Posthumanist Performativity: Toward an Understanding of How Matter Comer to Matter. Signs, Chicago, v. 28, n. 3, p. 801-831, 2003.; Lock, 1993LOCK, M. Cultivating the Body: Anthropology and Epistemologies of Bodily Practice and Knowledge. Annual review of anthropology , Palo Alto, v. 22, p. 133-155, 1993.; Mccallum; Rohden, 2015MCCALLUM, C. A.; ROHDEN, F. (org.). Corpo e saúde na mira da antropologia: ontologias, práticas, traduções. Salvador: Edufba, 2015.; Mol, 2002MOL, A. The body multiple: Ontology in medical practice. Durham: Duke University Press , 2002.; Strathern, 1996STRATHERN, A. J. Body Thoughts. Ann Arbor: University of Michigan Press, 1996.). A formação antropológica de parte das vozes e mãos dessa autoria conheceu a temática do corpo no material de americanistas (Lima, 1996LIMA, T. S. O dois e seu múltiplo: reflexões sobre o perspectivismo em uma cosmologia tupi. Mana, Rio de Janeiro, v. 2, n. 2, p. 21-47, 1996.; Seeger; da Matta; de Castro, 1979SEEGER, A.; DA MATTA, R.; DE CASTRO, E. A construção da pessoa nas sociedades indígenas brasileiras. Boletim do Museu Nacional , Rio de Janeiro, n. 32, p. 2-19, 1979.; Viveiros de Castro, 2002aVIVEIROS DE CASTRO, E. O Nativo Relativo. Mana , Rio de Janeiro, v. 8, n. 1, p. 113-148, 2002a.) paralelamente à problemática biopolítica e feminista, ambas com reverberações teórico-metodológicas relevantes para a presente reflexão.77O corpo emergiu como problemática central nas etnografias das terras baixas nas análises de antropólogos americanistas. Tais trabalhos evidenciaram questões que as teorias melanésias e africanistas não davam conta de responder. O olhar atento à fabricação dos corpos por etnólogos brasileiros representou uma virada no pensamento, sobretudo seu aspecto não trabalhado por Clastres e Levi-Strauss, que destacaram, respectivamente, a inscrição de condições sociais no corpo como dispositivo de tortura e como superfície para a criação de arte, obras fugazes acopladas aos corpos (Seeger et al., 1979).

O perspectivismo ameríndio e a proposição de multinaturalismo (Viveiros de Castro, 2002bVIVEIROS DE CASTRO, E. Perspectivismo e multinaturalismo na América indigena. In: VIVEIROS DE CASTRO, E. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2002b, p. 345-399., Lima, 2002LIMA, T. S. O que é um corpo? Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, v. 22, n. 1, 2002.) nos levam a recolocar o lugar do corpo, e reconsiderar sua naturalização, o que implica no reconhecimento de outros mundos possíveis. Visando aproximar e contrastar corpos tão diversos, pode-se considerar que, no multinaturalismo ameríndio, a materialidade dos corpos, bem como sua constituição relacional, marca diferenças entre os seres/pessoas. Esquematicamente, se a alma é o que diferencia o humano de outras espécies na compreensão naturalista moderna, no perspectivismo amenríndio a diferença opera nos corpos.88Gostaríamos de agradecer a leitura da professora Marina Vanzolini Figueiredo, que nos ajudou a pensar essa aproximação entre multiplicidade ontológica e multinaturalismo, tema que lhe é familiar.

A discussão ganha expressão exemplar na anedota apresentada por Eduardo Viveiros de Castro em “O nativo relativo” (2002a), em que uma mulher Piro reivindica que, entre os seus, é a água fervida que provoca diarreia, e não o contrário, como tentava convencê-la a missionária branca, o argumento não remete a uma teoria biológica alternativa, ou seja, não se trata de um mundo dotado de outra física ou biologia, mas uma ideia não biológica de corpo - ideia que faz com que questões como a diarreia infantil não sejam tratadas enquanto objeto destas teorias. Com isso a mulher Piro reivindicava viver e ter um corpo distinto, enquanto que o esforço de convencimento da missionária branca pautava-se no entendimento da universalidade do corpo, reduzindo o entendimento de uma outra cultura à mera crendice.

O reconhecimento e reivindicação de que cabe às ciências sociais ocupar-se da materialidade dos corpos - o que acaba por revelar sua multiplicidade - tem um impacto enorme da reorientação da reflexão antropológica,99Esses movimentos ressoam as proposições políticas e analíticas que ativamente reivindicam o reconhecimento não só de outras epistemologias, mas de uma multiplicidade ontológica que implica em uma proliferação de mundos, como expressa na proposição de pluriverso (Cadena; Blaser, 2018) e na crítica ao problema do “mundo único” (Law, 2015). e não deixa de ter reverberações também no pensamento dos ESCT contemporâneos (Woolgar; Lezaun, 2015WOOLGAR, S.; LEZAUN, J. Missing the (question) mark? What is a turn to ontology? Social Studies of Science , [S.l.], v. 45, n. 3, p. 462-467, 2015.). A chamada virada ontológica e a antropologia contemporânea, seja ela da C&T ou não, vem explorando as consequências dessas teorias para pensar corpos, vivências e entrelaçamentos com tecnologias específicas, enriquecendo assim o campo das perguntas possíveis para ambos os campos de pesquisa (Pickering, 2017PICKERING, A. The ontological turn: Taking different worlds seriously. Social Analysis, Brooklyn, v. 61, n. 2, p. 134-150, 2017.; Sismondo, 2015SISMONDO, S. Ontological turns, turnoffs and roundabouts. Social Studies of Science, [S.l.], v. 45, n. 3, p. 441-448, 2015.; van Heur; Leydesdorff; Wyatt, 2013VAN HEUR, B.; LEYDESDORFF, L.; WYATT, S. Turning to ontology in STS? Turning to STS through ‘ontology’. Social Studies of Science , [S.l.], v. 43, n. 3, p. 341-362, 2013.).

A proposição de corpos compostos por arranjos heterogêneos é também parte da reflexão feminista, numa perspectiva ontológica que se coloca crítica ao entendimento do corpo como suporte material estável para a representação (Mol, 2002MOL, A. The body multiple: Ontology in medical practice. Durham: Duke University Press , 2002.). Autoras como Mol estão assim refletindo sobre as diferenças não apenas dentro de um mesmo regime epistemológico, mas considerando o próprio encontro e negociação entre ontologias distintas. Abre-se com isso a linearidade moderna e o que se inclui como próprio da produção corporal.

Tendo esses entendimentos e perspectivas no horizonte, propomos pensar que o corpo não é um objeto dado e pronto, mas um feixe material-semiótico (Haraway, 1991HARAWAY, D. J. Simians, Cyborgs, and Women: The Reinvention of Nature. New York: Routledge, 1991.) que se institui na relação com o mundo e com outros seres. Considerando especificamente o arranjo com dispositivos mecânicos de assistência circulatória no âmbito biomédico, que inauguram relações inusitadas, abordamos a abertura do corpo informada não só pela perspectiva crítica aos dualismos preconcebidos no âmbito das teorias voltadas à modernidade e sua crítica (Callon; Law, 1997CALLON, M.; LAW, J. After the individual in society: Lessons on collectivity from science, technology and society. Canadian Journal of Sociology, Edmonton, v. 22, n. 2, p. 165-182, 1997.; Latour, 1994LATOUR, B. Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.), mas também atentas ao caráter relacional da constituição dos corpos diante de epistemologias e ontologias distintas, conflitantes, que se arranjam, formam e deformam.

Tanto no perspectivismo quanto no debate sobre multiplicidade ontológica, o que está em jogo é o reconhecimento das diferenças como realidades materiais e práticas, e não como meras representações de uma realidade universal. Já não é novidade se atentar para os limites das divisões modernas, que não dão conta de organizar o mundo e os corpos e distingui-los em reinos absolutamente apartados, domínios de saída divididos e purificados. Ao deslocar a atenção para as práticas, revela-se que não há natureza fora ou anterior ao laboratório (Latour, 1994LATOUR, B. Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.; Mol, 2002MOL, A. The body multiple: Ontology in medical practice. Durham: Duke University Press , 2002.). O que se entende como corpo natural é um constructo sustentado em saberes e práticas, de modo que não há nenhuma razão para reivindicar sua universalidade, a despeito da eficácia (sempre limitada) de estratégias biomédicas pautadas em estratégias de generalização.

A ruptura cartesiana (Descartes, 1998DESCARTES, R. Discourse on Method and Meditations on First Philosophy. 4. ed. Indianapolis: Hackett, 1998.) possibilitou a emergência de um “corpo biotecnológico”, ao tornar a matéria ontologicamente diferente do espírito (Donatelli, 2000DONATELLI, M. Da máquina corpórea ao corpo sensível: A medicina de Descartes. 2000. Tese (Doutorado em Filosofia) - Departamento de Filosofia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2000.). E o corpo biotecnológico voltou-se contra a dualidade corpo/espírito, tornando-a obsoleta com a emergência de “corpos digitais”, pós-humanos e ciborgues (Tadeu, 2000TADEU, T. (Org.). Antropologia do Ciborgue: as vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.). Ou seja, o que instituiu a ciência e a medicina modernas é também o que se desdobra em seu esgotamento e crise.

Tais mudanças no modo de compreensão dos corpos são posicionadas dentro de reconfigurações da tecnociência e do capitalismo multinacional, de uma “nova ordem mundial” (Haraway, 1997HARAWAY, D. J. The Virtual Speculum in the New World Order. Feminist Review, [S.l.], v. 55, n 1, p. 22-72, 1997.) e um novo tipo de subjetividade pós-humana (Hogle, 2005HOGLE, L. F. Enhancement technologies and the body. Annual review of anthropology, Palo Alto, v. 34, p. 695-716, 2005.). Nesse sentido, a questão de por que nossos corpos devem terminar na pele, por que os limites dos sujeitos devem ter a pele ou o organismo como limite, como questiona Haraway, é cada vez mais relevante na atualidade, em que as fronteiras corporais desafiam cada vez mais não apenas as performances normativas dos sujeitos, mas também o próprio entendimento do que é considerado humano (Shildrick, 2015SHILDRICK, M. “Why should our bodies end at the skin?”: Embodiment, boundaries, and somatechnics. Hypatia, Cambridge, v. 30, n. 1, p. 13-29, 2015.).

Com a etnologia americanista (Lima, 1996LIMA, T. S. O dois e seu múltiplo: reflexões sobre o perspectivismo em uma cosmologia tupi. Mana, Rio de Janeiro, v. 2, n. 2, p. 21-47, 1996.; 2002LIMA, T. S. O que é um corpo? Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, v. 22, n. 1, 2002.) aprendemos a questionar o universalismo do corpo biológico, natural, e que tais divisões são específicas de uma ontologia moderna, marcada pela ciência euro-americana, impossível de ser universalizada para todas as experiências humanas. Isso nos abre a possibilidade, junto com Mol (2002MOL, A. The body multiple: Ontology in medical practice. Durham: Duke University Press , 2002.), de repensar a unicidade dessa ontologia, mesmo em mundos marcados por essa ciência, em ambientes onde a tecnologia biomédica é fundamental, como o caso da medicina contemporânea. As elaborações dos americanistas abriram novas perspectivas ao pensamento antropológico, levando-o a encarar as realidades materiais e relacionais, assumindo que não estamos sempre falando de um mesmo corpo quando analisamos práticas de produção de corporeidades.

Nos mundos ameríndios descritos pelos americanistas, ser sujeito é entrar em feixes de relações que envolvem corpos diferentes, inclusive não-humanos, dos mais diversos. O universo nessas cosmologias é povoado por diferentes sujeitos ou agências subjetivas, que estão relacionadas a capacidades de ver, fundamentais para a instituição de uma perspectiva. Tratam-se de epistemologias que localizam a diferença no referente (Viveiros de Castro, 2004VIVEIROS DE CASTRO, E. Exchanging Perspectives: The Transformation of Objects into Subjects in Amerindian Ontologies. Common Knowledge, Durham, v. 10, n. 3, p. 463-484, 2004.). Não se trata de uma pluralidade de visões de mundo, mas uma visão única de mundos diferentes, diferenças que derivam dos corpos e suas afetações/afecções. É o corpo que se coloca como instrumento de diferenciação ontológica. Cabe considerar que são cosmologias nas quais os muitos seres que povoam a terra veem a si mesmos como gente. Todo mundo é gente, porém ocupando perspectivas distintas, ou seja, habitando corpos fabricados de maneiras específicas. A imagem frequentemente acionada para explicar como operam essas perspectivas é a descrição de que para alguns o que é cerveja, para outros é sangue. Se há o reconhecimento entre os ameríndios, por exemplo, de que os porcos são humanos, com isso eles querem dizer que os estes também tomam cerveja. Porém o que é cerveja para os porcos, é sangue para os ameríndios. A afirmação da humanidade dos porcos é um enunciado que revela o conceito ameríndio de socialidade, que inclui porcos (Viveiros de Castro, 2004VIVEIROS DE CASTRO, E. Exchanging Perspectives: The Transformation of Objects into Subjects in Amerindian Ontologies. Common Knowledge, Durham, v. 10, n. 3, p. 463-484, 2004.).

Como olhar para as socialidades mais-que-humanas no âmbito da produção de sujeitos na biomedicina e tecnociência contemporâneas? O que essas relações nos dizem sobre o entendimento corporal e sua manipulação? Como pensar o argumento de um dos interlocutores, um pesquisador da engenharia, que em sua prática reivindica a produtividade do desenvolvimento de dispositivos diversos, na medida em que cada um poderia se mostrar mais adequado a casos ou quadros específicos? Colocando em questão: Por que apostar numa única linha, se há corpos/patologias diversas? Com uma multiplicidade de dispositivos seria possível atender a uma diversidade de quadros patológicos e características anatômicas, resistindo às escalas universalizantes e homogeneizantes da produção tecnocientífica. Não há melhor dispositivo por definição. Há a naturalização mais compatível a um determinado quadro clínico. Mas é um pensamento conflitante com a lógica capitalista e tecnocientífica. Seja porque é extremamente custoso e complicado validar dispositivos desenvolvidos, ou porque é inviável comercialmente produzir e distribuir uma diversidade de produtos.

Não é novidade que os esforços de universalização dos corpos e das doenças no âmbito da biomedicina são provisórios e limitados. Não é preciso o contraste entre cosmologias distintas, como o entendimento Piro sobre a ineficácia da água fervida para evitar diarreia. Ao menos no que se refere à gestão da insuficiência cardíaca, o próprio entendimento biomédico prevê que a manifestação da doença e a anatomia dos órgãos não são sempre iguais, por isso não há nenhuma razão para acreditar que um único dispositivo poderia sempre oferecer melhores respostas, a não ser uma conveniência econômica. A eleição de soluções mais estabilizadas se dá por evidências que não são absolutas, mas capazes de reunir um maior nível de eficácia. Também não há como sustentar o entendimento de que mitigar a ocorrência de mortes com transplantes ou implante de dispositivos é a mesma coisa. Mas, com esse contraste, iluminamos com outras colorações as problemáticas biomédicas contemporâneas.

O que acontece se projetarmos as problemáticas multinaturalistas ameríndias nos corações artificiais? Será que os distintos corpos performados nas e pelas diferentes práticas biomédicas, os arranjos entre fisiologias e artefatos diversos, nascem também de capacidades distintas de olhar? Bioengenheiros, cardiologistas, enfermeiras e equipes médicas, de maneira geral, desenvolvem habilidades de ver/conceber/instituir corpos distintos. Se o entrelaçamento temporário que se estabelece é reconhecidamente diferente e novo, se comparado ao sistema fisiológico instituído temporalmente no processo (co)evolutivo, com implicações específicas, é preciso também considerar que o que se vê quando se manipula um enxerto para transplante, um dispositivo de fluxo contínuo ou um coração artificial de outro tipo, também é diferente. São outros índices buscados, outras as fisiologias vistas, outras técnicas de manipulação, outros ritmos instituídos, naturezas distintas performadas. Cada sistema se articula instituindo sua própria natureza, opera dentro de uma lógica que permite que as relações possam se desenvolver, ainda que sob o risco de falhas e ruídos.

Essa projeção, no entanto, não se presta a diminuir ou aumentar as diferenças entre cosmologias ditas modernas e ameríndias, generalização, por si só, complicada. Quando aproximamos contribuições analíticas produzidas a partir de etnografias e cosmologias diversas, arriscamos reajustar o dispositivo da alteridade. Se a desnaturalização da universalização da natureza é potencializada pelas evidências e análises empreendidas a partir dos mundos ameríndios, disso não se deve deduzir que a constituição de sujeitos e corpos a partir da intervenção biomédica nos torna mais iguais ou diferentes do que as pessoas vivendo em cosmologias ameríndias. Não é sobre reduzir as diferenças, ou mesmo torná-las maiores. Também não é porque “lá” os corpos são relações que não estão dadas e fixadas a priori que aqui haveremos de sê-lo também.

Com essas aproximações, não pretendemos promover tradutibilidades imediatas, que sequer são possíveis, muito menos sugerir uma continuidade ontológica. O que nos interessa é multiplicar também a natureza naturalista, canibalizá-la, iluminar as diferenças entre os corpos. Além disso, trata-se de destacar certas coincidências entre argumentos provenientes de mundos tão diversos, experimentando possíveis limites entre as divisões dualistas, tanto no multinaturalismo ameríndio como na multiplicidade ontológica emergente, a partir das intervenções, práticas e saberes biomédicos e científicos. Haja vista que o perspectivismo ameríndio é uma ficção analítica que sustenta um multinaturalismo justamente em contraste exacerbado ao multiculturalismo moderno, o que acontece quando voltamos esse esquema à crítica promovida pela perspectiva da multiplicidade ontológica?

Debater a multiplicidade ontológica (Mol, 2002MOL, A. The body multiple: Ontology in medical practice. Durham: Duke University Press , 2002.), assim como a problemática da política ontológica que vem a reboque; e a reivindicação da fabulação de narrativas alternativas (Haraway, 2016HARAWAY, D. J. Staying with the Trouble: Making Kin in the Chthlucene. Duke University Press, 2016.), novas naturezas e mundos possíveis; nos inspira a fabular sobre as corporalidades emergentes. Sugerir uma multiplicidade de corpos e naturezas é atentar para diferenças que importam, multiplicar as naturezas e reconhecer suas (não)naturalidades.

A incorporação ainda incômoda do transplante de coração

As diferenças entre o transplante de órgãos e o implante de dispositivos mecânicos não se esgotam na logística e no procedimento cirúrgico. Elas também estão presentes no cuidado e na corporeidade, no processo de manutenção dos arranjos heterogêneos. Nos transplantes de corações, os sentidos e “governos” implicados por esse órgão implicam não apenas na dificuldade de adaptação material, como também “reajustamentos morais” ao organismo receptor. Tudo se passa como se cada sujeito transplantado vivenciasse um “deslocamento transitório” de sua organização psicossomática, como se o coração veiculasse a personalidade (suposta) do doador, demandando, portanto, um tempo para ser personalizado, uma reelaboração da imagem que cada pessoa faz de si e do seu corpo (Vaysse, 2005VAYSSE, J. Coração estrangeiro em corpo de acolhimento. In: SANT’ANNA, D. B. (Org.) Políticas do corpo: elementos para uma história das práticas corporais/ organização. Denise Bernuzzi de Sant’Anna. São Paulo: Estação Liberdade, 2005). Esses reajustamentos passam pelas esferas psíquicas e somáticas referentes à introdução de um novo órgão e um coração imaginário, que carrega o “espírito” de outro sujeito, provocando uma “reestruturação do eu”. Isso explicaria a preferência expressa de uma paciente relatada por Vaysse (2005)VAYSSE, J. Coração estrangeiro em corpo de acolhimento. In: SANT’ANNA, D. B. (Org.) Políticas do corpo: elementos para uma história das práticas corporais/ organização. Denise Bernuzzi de Sant’Anna. São Paulo: Estação Liberdade, 2005 por um coração artificial a um humano, o que estaria, em sua leitura, associada à primazia da visão maquínica e compósita do corpo no mundo médico contemporâneo.1010Os reajustamentos morais podem também ser reconhecidos na equipe médica e entre os familiares de doadores, embora sejam de outra ordem. Se hoje temos protocolos devidamente instituídos a respeito da determinação da ocorrência da morte, isso não significa que a convenção da morte cerebral e a retirada de órgãos de pacientes nessa condição clínica não produzam dilemas morais. A condição de “cadáveres vivos” (Lock, 2002) pode produzir confusões e desconfortos, porque os pacientes com morte cerebral continuam tendo sinais vitais, continuam respirando e quentes, desafiando a percepção de que estão mortos. Em sua etnografia, Lock evidencia que o transplante de coração é uma opção menos estável do que se supõe e que produz dificuldades e desajustes de ordens distintas.

Em termos de incorporação, o cardiologista Narciso destaca que os pacientes são totalmente distintos: em linhas gerais, o paciente com coração artificial precisa de anticoagulação e cuidados específicos com a bateria e com a ferida que se forma em torno do cabo que atravessa o corpo - o driveline, fio por meio do qual a energia elétrica chega ao coração, ligando o controlador e a bateria na parte externa do corpo ao DAV implantado no interior do corpo. Já o paciente transplantado é imunossuprimido, o que significa que seu risco de infecção é de outra ordem, envolvendo todo o sistema, e não apenas em torno da abertura atravessada pelo cabo. Outros aspectos da dificuldade de incorporação formulados por Nancy serão apresentados a seguir, a partir dos quais costuraremos o corpo imunológico.

Performando o corpo imunológico

O conceito de corpo imunológico nos serve aqui para dar conta de um conjunto de relações material-semióticas envolvendo corações biológicos transplantados para pacientes com problemas cardíacos. Usamos a ideia de imunológico a fim de marcar a preponderância da gestão da imunidade na materialidade emergente dessas intervenções. Nesse corpo que emerge com o transplante, inicia-se um processo de convivência problemática com um órgão nativo de outra pessoa, no qual os processos imunológicos são inexoravelmente alterados, precisando de constante manejo.

A análise fenomenológica de Jean-Luc Nancy (2000NANCY, J.-L. Being singular plural. Redwood City: Stanford university press, 2000.; 2008NANCY, J.-L. Corpus. New York: Fordham University Press, 2008.) sobre seu próprio processo de transplante de coração é inspiradora para pensar o corpo imunológico que emerge da implantação de um corpo estranho em um sistema coerente e semifechado. Na medicina dos transplantes, o corpo é um sistema semifechado ou semiaberto, composto por aberturas controladas e “barreiras” que garantem comunicação e proteção. Mais do que estabelecer um interior oposto a um exterior, o corpo é um sistema com comunicações controladas e proteções contra invasões que podem causar o colapso do organismo.

Há diversos intrusos nas relações inauguradas num transplante, a começar pelo próprio órgão doente, enferrujado, cuja intrusão se dá pela deserção, como sugere Nancy (2000NANCY, J.-L. Being singular plural. Redwood City: Stanford university press, 2000.). A cirurgia também estabelece um fluxo constante de estranhezas, como medicamentos. A primeira abertura produzida pelo transplante é dos ossos do esterno, algo que se materializa nas radiografias. Já a entrada de um órgão pertencente a outra pessoa é descrita como um evento que perturba a intimidade. Apesar de inicialmente restituir uma integridade, a incorporação do órgão estranho assemelha-se a de um segredo, uma cumplicidade ou intimidade fantasmagórica entre si e o outro. Rapidamente o outro aparece como um estranho imunológico. Segundo Nancy (2000NANCY, J.-L. Being singular plural. Redwood City: Stanford university press, 2000., p. 167), há uma dupla estranheza na rejeição, proveniente da identificação do coração estranhado, que é atacado como outro; além da estranheza instituída pela medicação para proteger o enxerto, baixando a imunidade para que o organismo possa tolerar o estranho, tornando-o, assim, estranho a si mesmo.

Com Nancy (2000NANCY, J.-L. Being singular plural. Redwood City: Stanford university press, 2000.), poderíamos dizer, portanto, que não é possível ser “imune” ao intruso, pois o estrangeiro é a própria “assinatura fisiológica” que faz do corpo um sistema coerente e totalitário. No entanto, como ele evidencia, tornar-se estranho a si mesmo não o aproxima do intruso com quem estabelece uma rede entre vida e morte, fazendo comunicar o incomunicável.

No processo de controle da rejeição de um órgão estranho, as técnicas biomédicas estabelecidas - imunossupressores - acabam por enfraquecer a “identidade imunológica”. Há uma relação entre identidade e imunidade, assinatura e “fechamento”. De modo que, ao reduzir a imunidade, se enfraquece a identidade e a “assinatura fisiológica”, o que implica que o processo de gestão de um intruso torna a pessoa suscetível a outros.

As metáforas e a ciência imunológica já renderam boas análises sobre a instituição de fronteiras e sua relação com a biopolítica (Haraway, 1991HARAWAY, D. J. Simians, Cyborgs, and Women: The Reinvention of Nature. New York: Routledge, 1991.; Martin, 1990MARTIN, E. Toward an anthropology of immunology: The body as nation state. Medical Anthropology Quarterly, Washington, DC, v. 4, n. 4, p. 410-426, 1990.; Sontag; Broun, 1977SONTAG, S. Illness as metaphor. New York: Farrar, Straus and Giroux: 1977.).1111Marini et al (2020) desenvolveram mais profundamente tais narrativas em que o sistema imunológico opera como uma espécie de máquina de produção de fronteira entre o corpo/eu e o mundo. É dessa fronteira que emergem as estratégias hostis ao que não é reconhecido como parte daquele mundo. A discussão inclui a proposição de Roberto Esposito de paradigma imunitário, que evidencia a íntima conexão entre imunidade e comunidade, cuja constituição negativa inviabiliza a reciprocidade. Ou seja, a imunidade é um estado de privação da comunidade, o que se faz possível com a emergência de uma soberania moderna que permite a emergência de indivíduos isolados. Para Susan Sontag a ideia de imunidade está relacionada à imagem do corpo como uma fortaleza, fortemente associado a metáforas militares, especialmente no século XX. As metáforas são construídas em uma linguagem de ficção científica, remetendo ao “modo como as doenças particularmente temidas são vistas como um ‘outro’ alienígena, como os inimigos são na guerra moderna” (Sontag, 1990, p. 99).

Na análise de Martin sobre as discussões científicas e populares, a imunologia remete a uma compreensão de corpo como uma “rede de comunicações regulatórias”. Trata-se de um sistema imaginado como um arsenal que trabalha para barrar a entrada de estrangeiros ou destruí-los - em caso de fracasso em conter a “invasão”. O corpo é retratado como o cenário de uma guerra total entre invasores implacáveis e defensores determinados. Nessa lógica, os problemas imunológicos referem-se a falhas nessa regulação, no reconhecimento de si e do mundo/outros e na proteção das próprias fronteiras.

O corpo imunológico instituído com os transplantes a um só tempo institui e enfraquece uma assinatura fisiológica que se apresenta como dispositivo de produção de fronteiras e divisão entre self e outro, organismo e mundo, reforçando e questionando o corpo imaginado e performado no paradigma imunitário moderno, argumentado por Emily Martin e outras. É possível considerar, portanto, que o corpo imunológico do transplante é um corpo contra o paradigma imunitário, em certo sentido, uma vez que desarma esse corpo, normalizando os estrangeiros.

O relato de Nancy (2000NANCY, J.-L. Being singular plural. Redwood City: Stanford university press, 2000.), assim como as discussões apresentadas anteriormente por Lock (1993LOCK, M. Cultivating the Body: Anthropology and Epistemologies of Bodily Practice and Knowledge. Annual review of anthropology , Palo Alto, v. 22, p. 133-155, 1993.) e Vaysse (2005VAYSSE, J. Coração estrangeiro em corpo de acolhimento. In: SANT’ANNA, D. B. (Org.) Políticas do corpo: elementos para uma história das práticas corporais/ organização. Denise Bernuzzi de Sant’Anna. São Paulo: Estação Liberdade, 2005), nos falam sobre o corpo imunológico, os desafios de incorporação de enxertos, dos dilemas morais, éticos e técnicos postos pelo arranjo entre corpo e coração transplantado do qual emerge o corpo imunológico. Tais elaborações reverberam a experiência de cuidado de pacientes transplantados apresentados pelo interlocutor da pesquisa, Narciso, a respeito da sua prática como cardiologista.

Performando o corpo biônico

Corpos entrelaçados aos corações artificiais - compondo o que sugerimos chamar de “corpo biônico” - sugerem uma imagem de serem compostos como sistemas coerentes, caracterizados como um todo, constituídos por partes que podem ser destacáveis e substituíveis. Embora essa configuração se assemelhe parcialmente ao corpo imunológico, existem diferenças consideráveis em termos do que significa integridade e uniformidade. A caracterização do corpo como conjunto de elementos comunicantes, no caso do arranjo com os dispositivos mecânicos, não implica uma possível recusa radical de um órgão ou aparelho estranho que não pertença a uma identidade. Há espaço para possíveis negociações, apesar de ser um corpo suscetível a intercorrências e danos às suas partes, principalmente ao sangue - o fluido que explicita o caráter sistemático do corpo.

O sistema sanguíneo estabelece unidade ao corpo e o sangue bombeado pelo coração e oxigenado pelos pulmões abastece as suas células. O principal desafio no caso do corpo biônico refere-se ao esforço de criação de um mecanismo capaz de compor uma nova entidade harmônica, bem orquestrada e responsiva. É menos uma questão de perturbação de uma identidade íntima (imunológica), e mais de como (re)coreografar os movimentos e fluxos do sangue e seu bombeamento. O risco no corpo imunológico, como vimos anteriormente, é o colapso do sistema como consequência da rejeição, devido à profunda perturbação da identidade. No corpo biônico os perigos estão associados ao desafio de estabelecimento de uma boa circulação sanguínea, sem “efeitos colaterais” que podem ser fatais. Movimentar um líquido vivo e extremamente “habitado”, como o sangue, implica risco de coagulação, potencializado com a circulação mecânica. O coágulo resultante de uma distribuição desarmônica pode ser fatal se atingir o cérebro.

Um princípio importante da bioengenharia na produção de órgãos artificiais é a suposição de que as tecnologias sempre podem ser aprimoradas, modificadas e adaptadas. Os primeiros corações artificiais foram baseados na ideia de que a fisiologia deveria ser imitada. Esse era o pressuposto que sustentava o entendimento dos interlocutores da bioengenharia a respeito dos desdobramentos históricos de aprimoramento dos dispositivos. Assim, a primeira geração apresentava fluxo pulsátil, era “total”, o que significa que o coração nativo era totalmente substituído pelo mecânico.

A proposta de desafiar a inevitabilidade da pulsatilidade, como até então era conhecida, levou ao desenvolvimento de dispositivos miniaturizados “mais simples”, encarregados de substituir não mais o órgão nativo, mas a função ventricular. Dada a complexidade do órgão, uma solução imaginada foi instituir um modo mecânico de bombeamento do sangue sem se preocupar com ajustes elétricos relativos ao pulso. Evidências encontradas na literatura demonstraram que os resultados clínicos da perfusão1212Procedimento de circulação artificial de líquidos em um corpo durante procedimentos cirúrgicos, com propósito de filtrar e oxigenar o sangue que é reinjetado. de fluxo não pulsátil eram semelhantes aos obtidos com bombas pulsáteis. Os dados sugeriam que os “níveis hemodinâmicos” eram equivalentes nos dois grupos testados (Anand; Singh; Antoun; et al., 2015ANAND, J. et al. Durable mechanical circulatory support versus organ transplantation: past, present, and future. BioMed Research International, New York, v. 2015, 2015. Special Issue.), embora seus efeitos a longo prazo ainda não fossem conhecidos e controlados, e sem levar em conta os riscos subjacentes.

A mudança de dispositivos pulsáteis para as bombas de segunda e terceira geração, de fluxo contínuo, acompanha a mudança de sua forma. Enquanto os dispositivos anteriores emulavam a função e a forma de um coração biológico, reproduzindo a aparência de um coração humano, os dispositivos de assistência ventricular foram projetados como um conjunto de tubos e mecanismos arranjados para performar a função do ventrículo, estrutura que no órgão nativo se encarrega do trabalho pesado de impulsionar o sangue.1313Há um coração artificial produzido no Brasil que coloca-se entre essas duas classificações. Trata-se de um dispositivo total, com aparência de coração fisiológico, pulsátil, que foi projetado para ser implantado junto ao órgão nativo. O argumento de seu desenvolvedor apostava na segurança que a presença do órgão nativo oferecia, caso o dispositivo apresentasse falhas. Tudo se passa como se a natureza performada se apresentasse a um só tempo auxiliar, mas também apoiada na própria fisiologia nativa, passível de confiança até mesmo quando comprometida, doente, falha. Cada um desses sistemas falha de modos e por razões diversas, e por isso podem se apoiar e se complementar. Embora não tenha sido implantado em pacientes, a projeção é que a pulsatilidade do dispositivo entrelaçado ao órgão nativo produza um segundo pulso, um eco. Em termos de corporalidade, nos perguntamos se seria demasiadamente ruidoso em comparação ao silenciamento promovido pelos dispositivos de fluxo contínuo. Ruído e silêncio não se referem apenas às experiências auditivas, mas a sensações mais amplas e desafios de incorporação que não se limitam ao incômodo de ouvir novos barulhos ou perder a capacidade de ouvir o próprio órgão.

Os dispositivos pulsáteis, de tipo total, da primeira geração, em sua maioria foram descontinuados ou não se tornaram produtos aprovados, à medida que a segunda e terceira geração de dispositivos de fluxo contínuo mostraram-se viáveis. Por serem mecanismos mais simples, são menos passíveis de falhas. O desenvolvimento e aprimoramento encontrou, portanto, um caminho mais simples e uma forma de atuar diretamente na principal necessidade, uma vez que, na maioria dos casos de insuficiência cardíaca avançada, é o ventrículo esquerdo que precisa ser “salvo”.

O grande desafio associado à incorporação desses dispositivos de fluxo contínuo é a inexistência de regulação de pressão, o que implica uma série de restrições ou adaptações ao organismo. Um exemplo simples que observamos em pacientes é a dificuldade de se levantar de uma posição de repouso com a mesma velocidade que pessoas com regulação de pressão aferida à pressão atmosférica podem ter.

Cabe destacar que a medida de pressão sanguínea foi evolutivamente estabelecida em referência à pressão atmosférica da Terra. A pressão que o sangue exerce sobre as paredes vasculares depende do volume de sangue ejetado pelo coração e a resistência à sua circulação (ou seja, o espaço nos vasos). O que impulsiona o sangue ao longo das cavidades dos vasos sanguíneos é o gradiente de pressão sanguínea, dada pela elevação da pressão aórtica (Aires, 1999AIRES, M. D. M. Fisiologia. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1999.). A diferença de pressão conduz o sangue das artérias para as veias, por meio da ejeção ventricular, que eleva a pressão aórtica acima da pressão atmosférica (120mmHg), enquanto a pressão nas grandes veias é próxima à atmosférica. A pressão arterial é pulsátil porque o sangue é ejetado intermitentemente. Entre as sucessivas ejeções, a pressão arterial alterna de 120mmHg para 80mmHg.

A pressão sanguínea é expressa em milímetros de mercúrio porque é medida tendo como referência uma coluna de mercúrio que institui uma escala de nível zero definida pela pressão atmosférica. Os impulsos elétricos, produtores de desestabilizações, instituem um equilíbrio perpetuamente provisório. Um desequilíbrio marcado pela escala atmosféricas, que produz um ritmo/fluxo de descontinuidades e continuidades. No caso dos dispositivos de fluxo contínuo, essa variação é pacificada, silenciada. O sangue é continuamente bombeado, circulando pelo corpo sem intervalos de variações. Assim, ajustes “simples”, como o aumento de pressão exigido pelo sistema para se adequar a um movimento rápido, estão impossibilitados em pacientes implantados.

Os desafios são representados pela ausência de pulsação.1414Sabe-se pouco sobre as dificuldades e especificidades de incorporação e instituição de corpos biônicos. No Brasil os pacientes implantados não passam de uma dúzia. O acesso a eles nem sempre é facilitado e possível, uma vez que se trata de um hospital privado, que não tem publicado os dados sobre esses implantes. Mesmo nos Estados Unidos, os dados encontrados na base Intermacs sobre os cerca de vinte mil pacientes implantados dizem pouco sobre a corporalidade, exceto sobre o tempo de sobrevida e causas da morte. Rogério, paciente que recebeu um DAV de uma empresa estadunidense em um programa de filantropia de um hospital privado de São Paulo, narra no filme Corpos Instáveis (produto da tese de Marini) que seu arranjo entre o coração artificial e seu órgão nativo “gira” continuamente, sem o barulho típico da pulsação dada pela injeção de sangue no ventrículo. Segundo ele, assim como Nona, outro paciente entrevistado, o arranjo produzia um barulho maquínico esquisito, contínuo, sem pulso.1515Corpos Instáveis é um projeto audiovisual que aborda a utilização de corações artificiais, os dilemas e transformações produzidas por essas tecnologias. Disponível no YouTube: < https://www.youtube.com/watch?v=R0L4AhYYYFo >. Acesso em 20 abr. 2022.

Há uma sobreposição do bombeamento mecânico sobre o nativo, de modo que o coração e a pulsação nativa são silenciadas. O DAV se torna um guia, cuja força responsabiliza-se pela distribuição do sangue em auxílio ao órgão debilitado. A expectativa é que o arranjo seja temporário, seja porque o paciente receberá um transplante, ou porque poderá tirar o dispositivo e seguir com o seu órgão nativo reabilitado.

Rogério é um exemplo de paciente que recebeu implante de DAV, com o qual conviveu por três anos e um mês. Depois desse período, as evidências de que seu coração havia se recuperado levaram a equipe médica à decisão de extrair o coração artificial, permitindo ao órgão nativo “trabalhar” sozinho novamente. Quase dois anos depois de retirar o DAV, Rogério foi submetido a um implante de CDI para estabilizar o sinal elétrico do seu órgão, que não apresentava boas condições. Quando nos falamos, cerca de quatro meses depois de implantar o CDI, dois anos depois de tirar o coração artificial, que por três anos silenciou seu órgão, Rogério seguia sem ouvir nada em seu peito:

M: Estava pensando hoje: será que o coração do Rogério voltou a funcionar, será que ele sente o coração batendo novamente?

R: E agora que parei pra pensar. Eu não sinto ele bater.

M: Nadinha? E se você coloca a mão no peito, sente alguma coisa?

R: Não. Não ouço nada.

M: E sente alguma coisa? Algum movimento?

R: Eu já coloquei a mão, não sinto nada. Ontem que eu senti um tremor dentro do peito, mas nada diferente.

M: Como foi esse tremor? Deu medo? Foi incômodo? O que você sentiu com esse tremor?

R: Só tremor mesmo, normal.

M: Você já sentiu isso outras vezes?

R: Foi só essa vez.

(Paciente Rogério)

Mais de dois anos depois de ter o DAV retirado, Rogério sobrevivia sem o implante, mas também sem sentir seu órgão esgotado e anestesiado. Desde que sua insuficiência cardíaca agravou Rogério não trabalhou mais formalmente. Vivia com uma aposentadoria paga pelo Estado, dadas as suas limitações físicas. O imaginário de super-homem biônico contrasta com a fragilidade corporal de Rogério, que se movimenta com certa lentidão e apresenta dificuldades de comunicação, seja porque lhe falta ar nos pulmões, ou oxigenação nos pensamentos. A fala é lenta, o pensamento algumas vezes desarticulado. De toda forma, Rogério estava superando e sobrevivendo às estatísticas, com alegria e agradecendo à Deus.

A corporeidade biônica contínua e sem pulso impunha um estar no mundo um tanto inerte, uma vida quase suspensa, silenciada de vitalidade. E as transformações produzidas em sua fisiologia pelo arranjo com o DAV apresentava efeitos aparentemente irreversíveis. As relações no seu organismo haviam se transformado, a ponto de sustentar as “características” biônicas mesmo na ausência do dispositivo. Ele tinha consciência de que possivelmente teria morrido na situação em que recebeu o DAV, mas a vida instituída possuía outro ritmo, outro fluxo, produzindo certa suspensão da morte, mantendo-a, no entanto, próxima. E isso não mudou depois de ter o dispositivo retirado. Além dos desafios com as baterias, a necessidade de trocá-las regularmente, dormir conectado à tomada, cuidar da abertura necessária para a passagem da energia fornecida pelas baterias, Rogério havia sido desconectado de seu órgão nativo. O fantasma do coração artificial impunha-se mesmo na ausência material do aparato mecânico.

Pode-se considerar que a natureza performada com os corações artificiais de primeira geração, do tipo “total”, que substituía o órgão, buscando mimetizar com eficácia tanto sua forma quanto as funções, pode estar associada a uma compreensão de superioridade moral da Natureza - ou seja, o entendimento de que o processo evolutivo encontrou os melhores caminhos para distribuir os fluidos no organismo humano. Tal perfeição poderia ser tecnicamente buscada e reproduzida, (re)colocando o lugar prometeico da produção tecnológica capaz de encontrar soluções passíveis de constante aperfeiçoamento. Tendo a Natureza como modelo, a natureza instituída pelos corações artificias totais revelou-se falha e pouco eficaz, na medida em que a complexidade da fisiologia impunha dificuldades que pareciam irreproduzíveis. Era muito difícil performar o fluxo pulsátil. Os DAVs, por sua vez, pareciam sugerir soluções alternativas pautadas numa natureza simplificada, simplista, focada na tarefa de manter corpos oxigenados, ainda que um tanto inertes. Podemos sugerir que o pressuposto moral embarcado na materialidade dos DAVs relaciona-se a uma desidealização da Natureza, da fisiologia, que pode ser radicalmente transformada pela alteração do fluxo pulsátil.

Considerações finais

A distinção entre fenômenos da ordem da natureza ou da cultura, naturais ou artificiais, biológicos ou tecnológicos entra em crise quando o projeto moderno de purificação dessas zonas ontológicas se desgasta (Latour, 1994LATOUR, B. Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.). A máquina de purificação enrosca diante da proliferação das traduções e da criação de híbridos de natureza e cultura, promovidos sobretudo pelos desenvolvimentos biomédicos, tecnológicos e científicos. Tal polaridade torna-se incomensurável. Por muito tempo (ou em certas correntes), as ciências sociais foram pensadas, ou se pensavam, como destinadas à segunda classe de objetos ou à desnaturalização do que se considerava natural, o que tem passado por transformações.

Olhar para a produção científica, para técnicas, tecnologias, saberes, discursos e práticas biomédicas implica considerar e buscar compreender os arranjos entre entidades heterogêneas distintas, de modo que o caráter “técnico”, ou “médico”, revela-se inserido em uma agenda moral e política. Iluminar os processos de emergência das tecnologias e de novas verdades biomédicas, e seu caráter processual, não implica considerar que a materialidade seja uma ilusão, ou que os enredamentos sejam puro fluxo e devir. Os artefatos são importantes para manter a solidez das sociedades, os não humanos são condições de possibilidade para a formação das sociedades humanas (Latour, 1994LATOUR, B. Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.), e a materialidade torna-se central para a compreensão dos fenômenos (Mol, 2002MOL, A. The body multiple: Ontology in medical practice. Durham: Duke University Press , 2002.).

As práticas e a materialidade, assim como as políticas, os usos e incorporações dos sujeitos a elas submetidas nos permitem ver a mistura de sujeitos e sua coprodução. O intuito de destacar a materialidade dos eventos é justamente trazer à luz o entrelaçamento de seres. Se por um lado as práticas reforçam e evidenciam o pragmatismo de determinadas divisões, que permitem à biomedicina e à ciência produzir coisas, por outro lado, a atenção dada a elas permite destacar também os limites de tais divisões. O olhar atento às materialidades e à produção de corpos no âmbito biomédico, científico e biotecnológico nos permite suspender e colocar em questão os princípios de isolamento, fixação, autonomia e individuação, que supostamente caracterizam os modernos.

Se os procedimentos cirúrgicos requisitados para o estabelecimento dos corpos imunológicos e biônicos se assemelham em sua complexidade, a logística para sua preparação, bem como os desafios de sua manutenção após a transformação cirúrgica são bastante distintos. A pressa, os custos de transporte, a gestão da fila de espera e a dinâmica de transferência de um órgão de um corpo para outro é um “evento” mais complexo do que a implantação de um dispositivo mecânico. Em termos de corporeidade, o corpo imunológico demanda a naturalização de um órgão estrangeiro que ameaça a assinatura fisiológica, além de implicar lidar com a sombra de sua “personalidade”, se consideramos os relatos de dificuldade dos pacientes que se veem diante de mudanças que são corporais, psíquicas, emocionais e relacionadas à pessoa que o órgão recebido carrega. O corpo biônico, por seu turno, instaura uma dependência de fonte externa de energia, além de implicar desafios de ajuste lento e limitado da pressão, uma vez que a variação de pressão e seus ajustes automáticos são silenciados. Imunossupressores por um lado, anticoagulantes por outro.

No campo ainda instável de produção de tecnologias cardíacas projetadas para mitigar o alto índice de mortes resultantes de insuficiência cardíaca, consideramos que as distintas soluções técnicas propostas fazem emergir diferentes corpos. Não se trata, no entanto, de elencar graus de naturalidade imbricadas nas distintas soluções, mas descrever do que são feitos tais arranjos e que tipo de natureza se institui a partir deles. Há distintos entrelaçamentos material-semióticos em cada uma dessas tecnologias.

É preciso considerar, entretanto, que se trata de um conjunto de tecnologias que estão historicamente relacionadas. Há um repertório comum de imaginação nas formas de substituir corações falhos, e as soluções podem se associar, como no caso do seu uso como “ponte para transplante”. Uma não substitui a outra em uma evolução linear, mas elas emergem de práticas médicas/científicas associadas e se retroalimentam enquanto inovações e possibilidades de soluções. Dessa forma, como buscamos demonstrar, não podemos separar totalmente o corpo biônico do imunológico: não são uma oposição binária, mas um emaranhado próximo de práticas e técnicas que, no entanto, produzem corporalidades bastante divergentes, com consequências distintas tanto para médicos e pacientes, quanto para as práticas médicas nas quais estão situados.

Os transplantes são uma gestão da morte a longo prazo, se o arranjo for bem instituído e sua manutenção bem-sucedida; enquanto o implante de dispositivos é ainda tomado como uma gestão emergencial e experimental da morte. É para possibilitar que pacientes possam receber a esperança de um transplante que os dispositivos mecânicos têm sido utilizados. Suspende-se a morte, para que uma outra vida talvez possa ser oferecida.

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  • 1
    Nos referimos aqui à pulsatilidade como habilidade de ter pulsação, movimentação pulsátil do sangue, em contraste com os corpos cuja pulsação é apagada, silenciada com o estabelecimento de uma circulação de sangue contínua, sem variação. Na literatura médica o termo é utilizado para se referir a fluxos e movimentação de substâncias diversas, como a secreção de hormônios. Há parâmetros de normalidade para essas velocidades e movimentações que são fixadas por meio de índices (Aires, 1999AIRES, M. D. M. Fisiologia. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1999.). Adiante forneceremos explicações detalhadas sobre a circulação sanguínea e como se estabelece o fluxo pulsátil, cuja medida é dada tendo como referência a pressão atmosférica.
  • 2
    No Brasil tem se destacado a startup pioneira em bioimpressão TissueLabs, comandada por um garoto propaganda ideal, Gabriel Liguori, cardiologista motivado por sua própria experiência com uma patologia cardíaca congênita. O pesquisador e empreendedor, que no ano de 2020 entrou para a lista de jovens inovadores do MIT, publicamente destaca que seu interesse de pesquisa está atravessado pela sua história pessoal, na medida em que sua cardiopatia o levou a ser operado aos dois anos de idade, o que faz dele até hoje um paciente do InCor, instituição na qual fez parte de sua formação como cardiologista. Além de trazer uma tecnologia alinhada às novidades no campo de bioimpressão, engenharia de tecidos, medicina regenerativa com células-tronco, o empreendedor traz um novo modelo de pesquisa acadêmica alinhada aos interesses de modernização almejadas por algumas instituição brasileiras. A TissueLabs é uma empresa jovem que recebeu apoio da Fapesp pelo programa Pipe (Pesquisa inovativa em pequenas empresas
  • 3
    Cada projeto tem uma temporalidade mais longa do que uma tese de doutorado para atravessar todos os passos necessários para o desenvolvimento e validação de um dispositivo médico. Quando a pesquisa etnográfica foi iniciada, o “coração brasileiro” já se encontrava na fase final, de avaliação clínica, aprovado pela ANVISA para ser implementado em humanos. Ao longo da pesquisa, no entanto, pudemos acompanhar os testes de bancada ou in vitro de outras tecnologias em desenvolvimento e que faziam parte da mesma rede de pesquisa, assim como os subsequentes testes in vivo com a participação de porcos e bezerros. A pesquisa etnográfica realizada no laboratório de bioengenharia e no hospital de cardiologia do qual ele era parte, seguindo os interlocutores em suas atividades de pesquisa que extrapolavam esses recintos, teve início em 2013. Além de acompanhar os testes in vitro realizados no período de 2013 a 2017, e entre 2014 e 2015, em momentos diversos foi frenquentado o laboratório onde pode-se interagir livremente com os pesquisadores. Além disso, entre 2016 e 2017 foram realizadas entrevistas formais com alguns dos interlocutores.
  • 4
    Ao analisar a engenharia de tecidos e sua capacidade para construção de partes do corpo que supostamente podem ser plenamente integradas pelo organismo receptor, partindo especificamente do caso das válvulas cardíacas, Derksen e Hortstam (2008)DERKSEN, M.-H. G.; HORSTMAN, K. Engineering flesh: towards an ethics of lived integrity. Medicine, Health Care and Philosophy, [S.l.], v. 11, n. 3, p. 269-283, 2008. argumentam que elas não deveriam ser tomadas como superiores às válvulas mecânicas unicamente por serem compostas de “carne”. Se por um lado podem ser moralmente boas, por serem “cópias da Natureza”, por outro lado são moralmente condenáveis por desafiá-la. Por isso sugerem: “Instead of stressing the differences between bionic technologies and Tissue Engineneering, and making either type of technology more innocent or more dangerous, a phenomenological analysis demonstrates that TE is no special, and can be analysed in terms similar to those used in other technologies” (Derksen; Hortstam, p.270). O entendimento de uma boa corporificação para a avaliação das tecnologias é pautada na noção de “lived integrity”, que procura avançar o debate sobre a “transparência” do corpo. Pensando criticamente sobre seu desenvolvimento na fenomenologia, e o modo como toma negativamente a percepção da experiência do corpo doente, eles argumentam: “for a notion of ‘lived integrity’ that does justice to experiences of being this hurting or changing body, which are often central during illness. ‘Lived integrity’ refers to the achievement of living illness, body change and technological additions as oneself” (Derksen; Hortstam, p. 270)
  • 5
    Cabe destacar que há variações entre os distintos corpos biônicos produzidos a partir de tecnologias diferentes, como os dispositivos de fluxo contínuo, que serão aqui investigados, mas também os mecanismos que mimetizam a natureza fisiológica do órgão, e que estabilizam outras corporalidades, além da tecnologia brasileira, cuja originalidade é uma proposta híbrida que se apoia no coração nativo e o replica. Porém não caberá no escopo desse trabalho trabalhar exaustivamente essas diferenças.
  • 6
    Os pseudônimos aqui adotados são inspirados em nomes de heróis e personagens da mitologia grega, exceto pelos pacientes, seguindo a lógica da tese de doutoramento de Marini.
  • 7
    O corpo emergiu como problemática central nas etnografias das terras baixas nas análises de antropólogos americanistas. Tais trabalhos evidenciaram questões que as teorias melanésias e africanistas não davam conta de responder. O olhar atento à fabricação dos corpos por etnólogos brasileiros representou uma virada no pensamento, sobretudo seu aspecto não trabalhado por Clastres e Levi-Strauss, que destacaram, respectivamente, a inscrição de condições sociais no corpo como dispositivo de tortura e como superfície para a criação de arte, obras fugazes acopladas aos corpos (Seeger et al., 1979SEEGER, A.; DA MATTA, R.; DE CASTRO, E. B. V. A construção da pessoa nas sociedades indígenas brasileiras. Boletim do Museu Nacional, Rio de Janeiro, n. 32, p. 2-19, 1979.).
  • 8
    Gostaríamos de agradecer a leitura da professora Marina Vanzolini Figueiredo, que nos ajudou a pensar essa aproximação entre multiplicidade ontológica e multinaturalismo, tema que lhe é familiar.
  • 9
    Esses movimentos ressoam as proposições políticas e analíticas que ativamente reivindicam o reconhecimento não só de outras epistemologias, mas de uma multiplicidade ontológica que implica em uma proliferação de mundos, como expressa na proposição de pluriverso (Cadena; Blaser, 2018DE LA CADENA, M.; BLASER, M. (ed.). A world of many worlds. Durham: Duke University Press, 2018.) e na crítica ao problema do “mundo único” (Law, 2015LAW, J. What’s wrong with a one-world world?, Distinktion: Journal of Social Theory, [S.l.], v. 16, n. 1, p. 126-139, 2015.).
  • 10
    Os reajustamentos morais podem também ser reconhecidos na equipe médica e entre os familiares de doadores, embora sejam de outra ordem. Se hoje temos protocolos devidamente instituídos a respeito da determinação da ocorrência da morte, isso não significa que a convenção da morte cerebral e a retirada de órgãos de pacientes nessa condição clínica não produzam dilemas morais. A condição de “cadáveres vivos” (Lock, 2002LOCK, M. Twice Dead: Organ Transplants and the Reinvention of Death. Berkeley: Univ of California Press, 2002.) pode produzir confusões e desconfortos, porque os pacientes com morte cerebral continuam tendo sinais vitais, continuam respirando e quentes, desafiando a percepção de que estão mortos. Em sua etnografia, Lock evidencia que o transplante de coração é uma opção menos estável do que se supõe e que produz dificuldades e desajustes de ordens distintas.
  • 11
    Marini et al (2020)MARINI, M.; OLIVEIRA, J.; WANKE, G. Deslizando entre escalas. Sobre corpos fluidos, fronteiras porosas e curto-circuitos imunológicos. Climacom. Dossiê Epidemiologias, Campinas, n. 19, 2020 | desenvolveram mais profundamente tais narrativas em que o sistema imunológico opera como uma espécie de máquina de produção de fronteira entre o corpo/eu e o mundo. É dessa fronteira que emergem as estratégias hostis ao que não é reconhecido como parte daquele mundo. A discussão inclui a proposição de Roberto Esposito de paradigma imunitário, que evidencia a íntima conexão entre imunidade e comunidade, cuja constituição negativa inviabiliza a reciprocidade. Ou seja, a imunidade é um estado de privação da comunidade, o que se faz possível com a emergência de uma soberania moderna que permite a emergência de indivíduos isolados.
  • 12
    Procedimento de circulação artificial de líquidos em um corpo durante procedimentos cirúrgicos, com propósito de filtrar e oxigenar o sangue que é reinjetado.
  • 13
    Há um coração artificial produzido no Brasil que coloca-se entre essas duas classificações. Trata-se de um dispositivo total, com aparência de coração fisiológico, pulsátil, que foi projetado para ser implantado junto ao órgão nativo. O argumento de seu desenvolvedor apostava na segurança que a presença do órgão nativo oferecia, caso o dispositivo apresentasse falhas. Tudo se passa como se a natureza performada se apresentasse a um só tempo auxiliar, mas também apoiada na própria fisiologia nativa, passível de confiança até mesmo quando comprometida, doente, falha. Cada um desses sistemas falha de modos e por razões diversas, e por isso podem se apoiar e se complementar. Embora não tenha sido implantado em pacientes, a projeção é que a pulsatilidade do dispositivo entrelaçado ao órgão nativo produza um segundo pulso, um eco. Em termos de corporalidade, nos perguntamos se seria demasiadamente ruidoso em comparação ao silenciamento promovido pelos dispositivos de fluxo contínuo. Ruído e silêncio não se referem apenas às experiências auditivas, mas a sensações mais amplas e desafios de incorporação que não se limitam ao incômodo de ouvir novos barulhos ou perder a capacidade de ouvir o próprio órgão.
  • 14
    Sabe-se pouco sobre as dificuldades e especificidades de incorporação e instituição de corpos biônicos. No Brasil os pacientes implantados não passam de uma dúzia. O acesso a eles nem sempre é facilitado e possível, uma vez que se trata de um hospital privado, que não tem publicado os dados sobre esses implantes. Mesmo nos Estados Unidos, os dados encontrados na base Intermacs sobre os cerca de vinte mil pacientes implantados dizem pouco sobre a corporalidade, exceto sobre o tempo de sobrevida e causas da morte.
  • 15
    Corpos Instáveis é um projeto audiovisual que aborda a utilização de corações artificiais, os dilemas e transformações produzidas por essas tecnologias. Disponível no YouTube: < https://www.youtube.com/watch?v=R0L4AhYYYFo >. Acesso em 20 abr. 2022.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    27 Abr 2022
  • Revisado
    27 Abr 2022
  • Aceito
    07 Maio 2022
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
E-mail: saudesoc@usp.br