Câncer: precariedade e vulnerabilidade em Delhi

Cancer: precariousness and vulnerability in Delhi

Catarina Figueiredo Sobre o autor

BANERJEE, D. Enduring cancer: life, death, and diagnosis in Delhi. Durham: Duke University Press, 2020., de autoria de Dwaipayan Banerjee, aborda a vulnerabilidade estrutural de pacientes com câncer na cidade de Deli, Índia. Trata-se de um livro dividido em seis capítulos, nos quais o autor explora, sobretudo, as dificuldades associadas ao estatuto socioeconômico, as negociações sociais necessárias para aceder ao sistema de saúde precário e carente de inúmeros recursos, bem como a luta constante para um diagnóstico e tratamento eficazes. Temáticas, porventura, abordadas por autores como Susan Sontag (2007SONTAG, S. Doença como metáfora / Aids e suas metáforas. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.), no famoso livro Doença como metáfora / Aids e suas metáforas; Julie Livingston (2012LIVINGSTON, J. Improvising medicine: an African oncology ward in an emerging cancer epidemic. Durham: Duke University Press , 2012.) em Improvising medicine: an African oncology ward in an emerging cancer epidemic; Julie Armin, Nancy Burke e Laura Eichelberger (2019ARMIN, J. S.; BURKE, N. J.; EICHELBERGER, L. Negotiating structural vulnerability in cancer control. Santa Fe: School for Advanced Research Press; Albuquerque: University of New Mexico Press, 2019.) em Negotiating structural vulnerability in cancer control; e S. Lochlann Jain (2013JAIN, S. L. Malignant: how cancer becomes us. Berkeley: University of California Press, 2013.), em Malignant: how cancer becomes us.

A escrita do livro a que se refere este texto teve por base o trabalho etnográfico realizado em duas instituições: o principal hospital público da Índia em Deli e a organização CanSupport, a maior organização não governamental (ONG) na cidade, que apoia doentes com câncer. Com base no seu trabalho em campo, o autor vai demonstrar o impacto colossal de falhas estruturais que alimentam e acentuam o sofrimento em indivíduos com câncer. Banerjee discute o impacto deste diagnóstico sobre aqueles que se encontram mais vulneráveis, não só física, mas também socialmente, devido a sua posição socioeconômica e às desigualdades estruturais características do sudeste asiático. O argumento do autor é discutido com base em perspectivas diversas: a visão do doente, das suas redes de contato (família, amigos e médicos), e, ainda, os discursos de entidades mediadoras, como os trabalhadores da ONG.

O autor aborda, ao longo dos capítulos, a fragilidade das relações sociais e a vulnerabilidade estrutural acentuada por um diagnóstico tardio que, na maioria das vezes, revela-se mortal. Dessa forma, o livro explora fatores como a precariedade do sistema médico, a pobreza, questões de gênero, violência e a complexidade e instabilidade das relações sociais e matrimoniais. Todos estes contribuem para o acentuar da vulnerabilidade. Banerjee analisa estas problemáticas a partir de três campos, cada um desenvolvido respectivamente em dois capítulos. O primeiro diz respeito à prudência nos discursos relativos ao câncer, isto é, à prerrogativa de escolher a quem contar sobre a doença, o que ajuda o paciente a ter um senso de continuidade e até independência na sua vida. O segundo campo analisado é referente à dor. Tendo em conta que se trata de um contexto onde os diagnósticos surgem numa fase tardia, gerir a dor trata-se de uma das principais questões para o sistema de saúde. No último campo, explora as possibilidades da representação estética do câncer, especialmente em filmes e memórias, analisando outras investigações que tentaram pesquisar os efeitos sociais do câncer. O autor conclui que se tratam de relatos pedagógicos que podem ajudar o paciente a responder positivamente à doença, mas que também podem acarretar o perigo de apagar o risco e vulnerabilidade diárias sentidas pelos doentes.

O segundo capítulo é um dos que melhor exemplificam o ponto de vista do autor: “Cancer conjugality”. Trata-se de um capítulo bem estruturado, bem explorado e envolvente para o leitor, e, portanto, seu conteúdo merece algum destaque nesta resenha. Nele, abordam-se as problemáticas relativas aos cuidados paliativos, conjugalidade e câncer. As relações conjugais previamente frágeis devido a um contexto de desigualdades de gênero, violência e obrigações matrimoniais (saliente-se que muitos casamentos partem de “arranjos” familiares) ficam expostas a mais um desafio: o câncer. O autor aborda especificamente o câncer em homens e discute de que forma a doença acentua as disparidades e problemas entre marido e mulher. Surpreendentemente, também discute o papel dos trabalhadores de ONGs como moderadores destas problemáticas, demostrando a flexibilidade dos cuidados fornecidos, que não só visam a cuidados médicos, mas também sociais. Este capítulo introduz ainda a problemática da ética. As relações matrimoniais são complexas e, em muitas, existe um ambiente de violência doméstica, particularmente contra a mulher. O aparecimento do câncer deixa o paciente homem numa posição médica frágil e vulnerável, muitas vezes dependendo dos cuidados oferecidos pela esposa, vítima de maus-tratos durante anos. O autor é claro e explicita que esta vulnerabilidade adquirida não apaga as agressões e violências realizadas na vida matrimonial, adensando assim as relações sociais entre marido e mulher e mesmo dentro do núcleo familiar.

A fragilidade das relações sociais são exploradas através de uma ligação entre a vulnerabilidade de pacientes com câncer e a sua realidade social e cultural cotidiana. As temáticas abordadas (como questões de gênero, violência ou a representação estética do câncer), apesar de serem abundantemente discutidas em ciências sociais, raramente foram relacionadas aos desafios associados ao câncer. O autor discorre sobre a fragilidade e vulnerabilidade, conceitos que saem do campo da medicina e afetam as esferas sociais de todos os atores. Os objetivos que Banerjee se propõe a analisar são bem explorados, apresentando as vozes dos vários intervenientes. Contudo, o enquadramento do contexto sociocultural e das desigualdades (sociais, salariais, de gênero e econômicas) fica por vezes aquém do necessário para problematizar as questões e elucidar os leitores para um seguimento lógico da interligação entre os âmbitos micro e macro. Ademais, seria importante incorporar outras perspectivas e discutir em pormenor outros fatores, nomeadamente questões históricas e ecológicas que podem contribuir para o acentuar da vulnerabilidade face a problemas epidemiológicos. Não obstante, este livro apresenta-se como uma boa leitura para estudantes, investigadores e profissionais de saúde, de saúde pública, antropologia e sociologia que pretendam explorar os aspectos sociais relativos a doenças oncológicas.

Referências

  • ARMIN, J. S.; BURKE, N. J.; EICHELBERGER, L. Negotiating structural vulnerability in cancer control. Santa Fe: School for Advanced Research Press; Albuquerque: University of New Mexico Press, 2019.
  • BANERJEE, D. Enduring cancer: life, death, and diagnosis in Delhi. Durham: Duke University Press, 2020.
  • JAIN, S. L. Malignant: how cancer becomes us. Berkeley: University of California Press, 2013.
  • LIVINGSTON, J. Improvising medicine: an African oncology ward in an emerging cancer epidemic. Durham: Duke University Press , 2012.
  • SONTAG, S. Doença como metáfora / Aids e suas metáforas. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    01 Fev 2022
  • Revisado
    16 Nov 2021
  • Revisado
    01 Fev 2022
  • Aceito
    20 Set 2022
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