O debate nas Ciências do Trabalho: do que estamos falando?

Debate on Work Sciences: what are we talking about?

Raoni Rocha Sobre o autor

Resumo

O debate sobre o trabalho tem ocupado, nos últimos anos, um espaço importante nas abordagens das Ciências do Trabalho, principalmente naquelas desenvolvidas pelo CNAM-Paris (Conservatoire National des Arts et Métiers) ou inspiradas por essa escola. Disciplinas como a Ergonomia, a Psicodinâmica do Trabalho ou a Clínica da Atividade têm apresentado métodos que desenvolvem o debate do e no trabalho, de maneira a compreender a atividade realizada, bem como contribuir com transformações das situações de trabalho. Apesar disso, a literatura é relativamente escassa no que concerne às particularidades do debate em cada uma dessas disciplinas e de seus métodos. Com isso, o objetivo deste ensaio é buscar compreender o que compõe o debate nas abordagens das Ciências do Trabalho e também qual o seu potencial, identificando as particularidades inerentes a cada uma delas. É possível notar que existem semelhanças - como a centralidade analítica das contradições no debate - mas também muitas singularidades entre as disciplinas e seus métodos, tais como o funcionamento dos espaços em que o debate ocorre e a maneira com a qual ele é capaz de analisar a atividade e transformar o trabalho. Por fim, defendemos a necessidade de incorporação das especificidades do debate nas pesquisas sobre o tema, evitando assim cacofonias sobre o assunto.

Palavras-chave:
Espaços de Discussão; Debate sobre o Trabalho; Atividade; Ciências do Trabalho

Abstract

The debate on work has occupied, in recent years, an important space in the approaches to Labor Sciences, especially those developed by CNAM-Paris (Conservatoire National des Arts et Métiers) or inspired by this school. Disciplines such as Ergonomics, Psychodynamics of Work, or Activity Clinic have presented methods that develop the debate of and at work, to understand the activity performed, and to contribute to the transformation of work situations. Despite this, the literature is scarce regarding the particularities of the debate in each of these disciplines and their methods. Thus, the objective of this essay is to seek to understand what makes up the debate in the approaches of the Work Sciences and its potential, identifying the particularities inherent to each one of them. It is possible to notice that there are similarities - such as the analytical centrality of the contradictions in the debate - but also many singularities between the disciplines and their methods, such as the functioning of the spaces in which the debate takes place and the way in which it is able to analyze the activity and transform work situations. Finally, we defend the need to incorporate the specificities of the debate in research on the subject, thus avoiding cacophonies on the subject.

Keywords:
Discussion Spaces; Debate on Work; Activity; Work Sciences

Introdução

O debate sobre o trabalho tem ocupado, nos últimos anos, um espaço importante nas pesquisas e intervenções. A partir dos anos 1980, disciplinas das Ciências do Trabalho11O termo "Ciências do Trabalho", ou "Ciências Sociais do Trabalho", embora frequentemente utilizado na literatura, não possui uma definição explícita. Com base no uso do termo, vamos considerá-lo como um campo disciplinar envolvendo disciplinas que buscam compreender o trabalho real e a sua relação com os indivíduos e a organização. , sobretudo dos laboratórios do Conservatoire National des Arts et Métiers (CNAM), em Paris, passam a se preocupar com o debate do e no trabalho, desenvolvendo métodos de intervenção nos quais a fala do(s) trabalhador(es), individualmente, e entre si, ocupa lugar central.

Esse movimento, que dá voz aos trabalhadores na gestão dos processos produtivos, surge em contraposição à Organização Científica do Trabalho que, no início do século XX, buscava eliminar a iniciativa dos indivíduos e impor uma maneira rigorosa pela qual o trabalho deveria ser executado. Em seus princípios, Taylor dissocia o processo de trabalho - definido por políticas gerenciais - das especialidades dos trabalhadores, assim como separa concepção de execução, acreditando na existência de um trabalho mental e outro manual. Assim sendo, o modelo taylorista cria a noção de tarefa, que “especifica não apenas o que deve ser feito, mas como deve ser feito e o tempo exato permitido para isso” (Braverman, 1980BRAVERMAN, H. Trabalho e capital monopolista: a degradação do trabalho no século XX. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1980., p. 108).

As Ciências do Trabalho surgem, então, como oposição ao Taylorismo, trazendo os trabalhadores para o centro da reflexão. Nelas, o interesse passa a ser sobretudo a análise da diferença entre o trabalho antecipado e planejado daquele efetivamente realizado. Com isso, a fala dos indivíduos e o debate entre eles passa a ganhar cada vez mais espaço em disciplinas como a Ergonomia da Atividade (Wisner, 1996WISNER, A. Questions épistémologiques em ergonomie et en analyse du travail In: F. Daniellou (Dir.), L’ergonomie en quête de ses príncipes: débats épistémologiques. Toulouse: Octarés Éditions, 1996.), a Psicodinâmica do Trabalho (Dejours, 2000DEJOURS, C. Travail, usure mentale. Paris: Bayard Éditions, 2000) e a Clínica da Atividade (Clot, 2001CLOT, Y. Psychopathologie du travail et clinique de l’activité. Éducation permanente, Paris, n. 146, p. 35-51, 2001.). Tais disciplinas, desenvolvidas no CNAM, influenciaram pesquisas em todo o mundo, inspirando abordagens como a Ergologia (Schwartz, 1987SCHWARTZ, Y. Reconnaissances du travail: pour une approche ergologique. Paris: Presses Universitaires de France, 1987), além de métodos22Nesse trecho, foram respeitados os termos definidos pelos próprios autores quando se referem a “disciplina”, “abordagem” ou “método”, em seus estudos originais. Por questões de clareza de texto, no seguimento deste artigo adotaremos o termo “abordagem” para se referir também a disciplina ou método. específicos, como a Análise Coletiva do Trabalho (Ferreira, 1993FERREIRA, L L. A análise coletiva do trabalho. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, n. 78, v. 21, p. 7-19, 1993.) ou o Laboratório de Mudanças33No caso do Laboratório de Mudanças, há mais uma base epistemológica semelhante, fundamentada nos estudos vygotskyanos sobre atividade, do que uma influência direta entre disciplinas e/ou métodos. (Engeström et al., 1996ENGESTRÖM, Y. et al. The Change laboratory as a tool for transforming work. Lifelong Learning in Europe, [s.l.], v. 1, p. 10-17, 1996.).

Essas abordagens se desenvolvem tendo como objetivo potencializar a fala dos indivíduos no interior de grupos sociais em trabalho e analisar o diálogo, a discussão e o debate44No dicionário Aulete, diálogo é uma “conversação entre duas ou mais pessoas”; discussão é a “ação ou resultado de discutir, de debater sobre um assunto ou tema”, podendo também ser uma “disputa verbal violenta e ruidosa”(Diálogo, 2007); debate é definido como uma “discussão em que se apresentam argumentos a favor ou contra alguma coisa, visando a uma conclusão” ou uma “discussão em torno de opiniões diversas, nem sempre antagônicas, sobre um tema” (Debate, 2007). Como as três palavras são frequentemente utilizadas na literatura das Ciências do Trabalho, neste artigo as adotaremos como sendo sinônimos, mas privilegiando o uso do termo “debate”, por considerar que representa melhor a ideia que defendemos: uma discussão entre dois ou mais indivíduos sobre as contradições vividas no trabalho, visando uma conclusão que não precisa necessariamente ser convergente entre eles. resultantes desse processo. No entanto, apesar do debate sobre o trabalho ter se tornado uma tendência nas Ciências do Trabalho (Lima et al, 2020LIMA, F. P. A et al. Análise do curso de ação e do projeto antropocêntrico: contribuições para a concepção de sistemas automatizados, Laboreal, [s. l.], p. 16 , n. 2, p. 1-37, 2020.), nenhuma distinção sobre os seus tipos possíveis entre as referidas abordagens ainda foi feita na literatura. Qual o seu conteúdo e objetivos? Como funcionam os espaços onde ele ocorre? Qual é a sua capacidade em analisar a atividade e transformar efetivamente o trabalho?

A resposta a essas perguntas nos ajuda a compreender as especificidades do debate sobre o trabalho, evitando, assim, incorrer em erros e ambiguidades ao abordar o tema. Com este fim, o objetivo deste ensaio é buscar responder às perguntas acima, tomando como referência de análise o debate sobre o trabalho desenvolvido principalmente nas abordagens das Ciências do Trabalho do CNAM.

Para isso, este ensaio está estruturado da seguinte forma: iniciamos com um breve histórico sobre a centralidade do debate nas principais abordagens das Ciências do Trabalho, quais sejam, a PDT, a Clínica da Atividade, a Ergonomia da Atividade, a Ergologia, a Análise Coletiva do Trabalho e o Laboratório de Mudanças. Em seguida, discorremos sobre o conteúdo, objetivos e funcionamento do debate sobre o trabalho nas diferentes abordagens supracitadas. A partir disso, discutimos a capacidade do debate em analisar e transformar o trabalho dos indivíduos e da organização, bem como a necessidade de se afinar o debate e evitar cacofonias nessa temática55Como poderá ser observado ao longo do artigo, sempre que possível é trazida a citação literal do autor do estudo, com vistas a evitar distorções do argumento original..

Breve histórico sobre o lugar do debate nas Ciências do Trabalho

Christophe Dejours, inspirado na Psicanálise e na teoria da ação comunicacional de Habermas, desenvolve nos anos 1970 a Psicodinâmica do Trabalho (PDT), buscando compreender as consequências da organização sobre a saúde dos trabalhadores, bem como as suas estratégias psíquicas para lidar com o sofrimento no trabalho. Assim, o autor publica o célebre livro Travail: usure mentale. Essai de psychopathologie du travail, com sua primeira edição em 198066Traduzido no Brasil sob o nome de “A Loucura do Trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho”, em 1987.. Posteriormente, Dejours vai mostrar a necessidade da existência de espaços abertos à discussão dos indivíduos, os quais denomina como “espaços de discussão” (Dejours, 2002DEJOURS, C. O fator humano. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getulio Vargas, 2002.) ou “espaços de deliberação” (Dejours; Gernet, 2012DEJOURS, C.; GERNET, I. Psychopathologie du travail. Paris: Elsevier Masson, 2012.). Para ele, estes são locais onde os trabalhadores podem expressar a sua voz e a sua subjetividade, uma vez que é “essencialmente passando pela fala dos sujeitos que se torna possível acessar a vivência subjetiva do trabalho” (Dejours; GernetDEJOURS, C.; GERNET, I. Psychopathologie du travail. Paris: Elsevier Masson, 2012., p. 47, tradução livre). Como consequência da expressão verbal do trabalho, as práticas e regras podem ser coletivamente transformadas, no sentido de se preservar e desenvolver a saúde dos indivíduos presentes na organização.

Já Yves Clot (2001CLOT, Y. Psychopathologie du travail et clinique de l’activité. Éducation permanente, Paris, n. 146, p. 35-51, 2001.), baseado nos trabalhos de A. Wisner, L. Vigotski, L. Le Guillant e I. Oddone, propõe a Clínica da Atividade (CA), disciplina que busca desenvolver condições para uma “coanálise” do trabalho, ou seja, um processo de análise no qual o trabalhador ocupa lugar central. Baseado em métodos desenvolvidos nos anos 1960, o autor preconiza uma intervenção fundada em técnicas que buscam recolocar o indivíduo em situação de trabalho, para que ele reflita e verbalize sobre isso. Assim, propõe a releitura de métodos anteriores - como a “Instrução ao Sósia” -, bem como a apropriação e o desenvolvimento de outros métodos - como as “Confrontações” -, nos quais as falas e os diálogos entre os participantes são objetos de análise deles próprios e de analistas externos. Esse processo de coanálise é amparado, sobretudo, na confrontação da percepção dos trabalhadores em relação às suas imagens, reproduzidas em vídeos durante o trabalho, de maneira a “elucidar para o outro e para si mesmo as questões que surgem no desenrolar de sequências de atividades mostradas” (Clot, 2010CLOT, Y. Trabalho e poder de agir. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010., p. 143). Clot (2010CLOT, Y. Trabalho e poder de agir. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010., p. 144) chama de “autoconfrontação simples”, quando o próprio sujeito vê e comenta as suas imagens; e “autoconfrontação cruzada”, quando pelos menos dois sujeitos se veem e debatem sobre os vídeos. Neste último caso, principalmente, o debate entre os participantes da confrontação se torna objeto central de análise para a compreensão do trabalho e para o desenvolvimento do poder de ação sobre o ambiente e sobre si mesmos.

Alain Wisner (1996WISNER, A. Questions épistémologiques em ergonomie et en analyse du travail In: F. Daniellou (Dir.), L’ergonomie en quête de ses príncipes: débats épistémologiques. Toulouse: Octarés Éditions, 1996.) explica que, inicialmente, a Ergonomia da Atividade77Não será retomada aqui toda a história da Ergonomia e as suas diferentes origens, já bastante discutidas na literatura. Para isso, vide por exemplo o livro “A evolução histórica da ergonomia no mundo e seus pioneiros”, de José Carlos Plácido da Silva e Luís Carlos Paschoarelli (orgs.) e o documentário “Histoire(s) de l’Ergonomie” da SELF. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=mkRT4S_hUxE). se desenvolveu em duas correntes principais. Uma delas é a Teoria do Curso da Ação, cujo autor principal, Jacques Theureau, defende a construção de dados sobre a atividade humana, por meio de métodos de observação e registro do comportamento dos atores, bem como métodos de verbalização que objetivam a expressão de uma “consciência pré-reflexiva”, ou da experiência vivida pelo indivíduo em sua atividade (Theureau, 2014THEUREAU, J. O curso da ação: método elementar. Belo Horizonte: Fabrefactum , 2014.). A outra corrente foi desenvolvida por Jacques Leplat e Véronique De Keyser, na qual a análise da atividade “não se limita ao estudo do Curso da Ação, mas tende a explorar o que podemos considerar como a camada subjacente da cognição, ou seja, a representação” (Wisner, 1996WISNER, A. Questions épistémologiques em ergonomie et en analyse du travail In: F. Daniellou (Dir.), L’ergonomie en quête de ses príncipes: débats épistémologiques. Toulouse: Octarés Éditions, 1996., p. 49, tradução livre). Essas representações “constituem o plano de fundo das comunicações que tem lugar na situação de trabalho” (Wisner, 1996WISNER, A. Questions épistémologiques em ergonomie et en analyse du travail In: F. Daniellou (Dir.), L’ergonomie en quête de ses príncipes: débats épistémologiques. Toulouse: Octarés Éditions, 1996., p. 50, tradução livre). Cada uma das duas correntes produziu métodos próprios. Theureau (2014THEUREAU, J. O curso da ação: método elementar. Belo Horizonte: Fabrefactum , 2014.) desenvolveu as técnicas de autoconfrontação, dando ênfase à análise dos dados verbais, até então negligenciados nas análises devido à “uma longa tradição experimental que proibia suscitar ou mesmo anotar as verbalizações” (Wisner, 1996WISNER, A. Questions épistémologiques em ergonomie et en analyse du travail In: F. Daniellou (Dir.), L’ergonomie en quête de ses príncipes: débats épistémologiques. Toulouse: Octarés Éditions, 1996., p. 39, tradução livre). Já a corrente de Leplat e De Keyser, se desdobra no método denominado “Análise Ergonômica do Trabalho” (AET), que busca compreender a atividade através de observações in loco e técnicas de entrevistas (Guérin et al., 1997GUÉRIN, F. et al. Compreender o trabalho para transformá-lo: a prática da ergonomia. São Paulo: Blucher, 1997.). Contudo, seja pela complexidade teórico-metodológica, seja pela incapacidade de gerar resultados práticos duradouros, ambas as correntes se arrefeceram ao longo do tempo, até mesmo na França, seu país de origem. Assim, ao longo dos anos 1980, parte das pesquisas da Ergonomia francesa passa a se questionar sobre os modelos de uma “intervenção ergonômica” que, além da “construção técnica”, deveria se debruçar também sobre uma “construção social” (Daniellou, 2006DANIELLOU, F. Entre expérimentation réglée et expérience vécue : Les dimensions subjectives de l’activité de l’ergonome en intervention. Activités, [s.l.], v. 3, n. 1, p. 5-18, 2006.). Com isso, diferentes modelos de intervenção ergonômica se desenvolveram, com a preocupação de construí-la socialmente e de, efetivamente, dar voz aos trabalhadores. Como consequência desse processo, os espaços de debate sobre o trabalho ganharam lugar nas pesquisas e consultorias em ergonomia nos últimos anos, como forma de auxiliar a análise da atividade e a transformação do trabalho. Tomaremos como exemplo a pesquisa de Rocha (2014ROCHA, R. Du silence organisationnel au débat structuré sur le travail: les effets sur la sécurité et sur l’organisation. 2014. 265 f. Thèse (Doutoramento) - Universidade de Bordeaux, Bordeaux, 2014.) que, ao desenvolver o “Debate Estruturado sobre o Trabalho” (DET), método baseado na “construção de espaços de debate organizados de acordo com o princípio da subsidiariedade” (Rocha, 2014ROCHA, R. Du silence organisationnel au débat structuré sur le travail: les effets sur la sécurité et sur l’organisation. 2014. 265 f. Thèse (Doutoramento) - Universidade de Bordeaux, Bordeaux, 2014., p. 202, tradução livre), defende a construção social como um “pilar metodológico” da pesquisa em ergonomia. (Rocha, 2014ROCHA, R. Du silence organisationnel au débat structuré sur le travail: les effets sur la sécurité et sur l’organisation. 2014. 265 f. Thèse (Doutoramento) - Universidade de Bordeaux, Bordeaux, 2014., p. 187).

Nos anos 1990, observamos o aparecimento da Ergologia, abordagem desenvolvida por Yves Schwartz (1997) e seu grupo de pesquisadores da Université de Provence. Influenciado pelos estudos de Georges Canguilhem, Ivar Oddone e Alain Wisner, Schwartz define a atividade de trabalho como um debate de normas, entre as antecedentes ou planejadas, e aquelas renormalizadas pelos trabalhadores em ação. O debate sobre o trabalho, portanto, está na origem da Ergologia. Posteriormente, com o intuito de colocar em debate os diferentes tipos de saberes, sejam eles constituídos, investidos na atividade ou relacionados à organização do debate, Pierre Trinquet desenvolve os “Grupos de Encontro de Trabalho” (Groupes de Rencontres du Travail ou GRT), definindo-os como “processos socráticos com duplo sentido, resultando em conhecimentos e soluções” (Trinquet, 2010TRINQUET, P. Trabalho e educação: o método ergológico. Histedbr On-line, Campinas, v. 10, n. 38e, p. 93-113, 2010., p. 104, tradução livre). Trata-se, portanto, de um método dialógico que visa responder a uma demanda de busca de soluções, definidas por um conjunto de indivíduos confrontados em suas percepções sobre o trabalho. Dessa forma, os GRT’s se constituem como um “debate de normas e de transgressões” (Trinquet, 2010TRINQUET, P. Trabalho e educação: o método ergológico. Histedbr On-line, Campinas, v. 10, n. 38e, p. 93-113, 2010., p. 96, tradução livre), possibilitando dar visibilidade a maneiras alternativas de agir, para exercer um ofício em um dado contexto.

Inspirada pela Ergonomia da Atividade, Leda Leal Ferreira (1993FERREIRA, L L. A análise coletiva do trabalho. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, n. 78, v. 21, p. 7-19, 1993.) desenvolve, no Brasil, a Análise Coletiva do Trabalho (ACT), método no qual “quem analisa o trabalho são os próprios trabalhadores [...] guiados por uma questão condutora que é ‘o que você faz no seu trabalho?’” (Ferreira, 2015FERREIRA, L L. Análise Coletiva do Trabalho: Quer ver? Escuta! Revista Ciências do Trabalho, São Paulo, no 4, p. 125-137, 2015., p. 126). Dessa maneira, um grupo de trabalhadores se encontra fora da situação de trabalho, para que a pergunta acima seja respondida o mais exaustivamente possível, até que todos os participantes, sejam eles trabalhadores ou pesquisadores, compreendam os pormenores do que está sendo debatido. O debate sobre o trabalho é, portanto, o elemento central do método, que leva os participantes (trabalhadores e analistas) a uma compreensão aprofundada da atividade. Desde o seu surgimento, a ACT vem sendo aplicada em diversos campos pelo grupo de Ferreira (2015FERREIRA, L L. Análise Coletiva do Trabalho: Quer ver? Escuta! Revista Ciências do Trabalho, São Paulo, no 4, p. 125-137, 2015., p. 131), como com “pilotos da aviação comercial; operadores de refinarias de petróleo da Petrobras; operários e operárias metalúrgicas; cortadores de cana”, etc., mas também por diversos outros pesquisadores em distintas áreas do trabalho humano.

Por fim, assim como Yves Clot funda a CA baseando-se, entre outras, na Teoria da Atividade de Vygotsky, os pesquisadores finlandeses Engeström, Virkkunen, Helle, Pihlaja e Poikela (1996ENGESTRÖM, Y. et al. The Change laboratory as a tool for transforming work. Lifelong Learning in Europe, [s.l.], v. 1, p. 10-17, 1996.) também o fazem, apresentando o Laboratório de Mudanças (LM) como um método de intervenção formativa, que busca soluções de baixo para cima para problemas desafiadores e transformações complexas. Neste método, são desenvolvidas diversas sessões, entre pesquisadores e trabalhadores de diferentes níveis hierárquicos da organização em estudo, destinadas a repensar o trabalho através de uma “uma visão dialética acerca do desenvolvimento” (Virkkunen; Newnham, 2015VIRKKUNEN, J.; NEWNHAM, D. S. O Laboratório de Mudança: uma ferramenta de desenvolvimento colaborativo para o trabalho e a educação. Belo Horizonte: Fabrefactum , 2015., p. 82), para que as pessoas e o trabalho possam ser transformados. Desde a sua origem, as sessões destinadas a compreender e transformar o trabalho são referidas como “discussion groups” (Engeström et al., 1996ENGESTRÖM, Y. et al. The Change laboratory as a tool for transforming work. Lifelong Learning in Europe, [s.l.], v. 1, p. 10-17, 1996., p. 5). Com isso, um dos objetivos centrais do LM é “construir novas relações dialógicas entre os atores que habitam […] mundos separados horizontal e verticalmente e entre as suas diferentes perspectivas” (Virkkunen; Newnham, 2015VIRKKUNEN, J.; NEWNHAM, D. S. O Laboratório de Mudança: uma ferramenta de desenvolvimento colaborativo para o trabalho e a educação. Belo Horizonte: Fabrefactum , 2015., p. 47). A partir desses espaços criados pelo LM, Engeström et al. (1996)ENGESTRÖM, Y. et al. The Change laboratory as a tool for transforming work. Lifelong Learning in Europe, [s.l.], v. 1, p. 10-17, 1996. defendem a produção de “intervenções formativas”, ou aquelas capazes de gerar uma aprendizagem expansiva nos trabalhadores, protagonistas do debate.

Debate sobre o trabalho: conteúdo, objetivos e funcionamento

Uma vez discutida a centralidade do debate nas diferentes disciplinas das Ciências do Trabalho, discorremos sobre elementos fundamentais considerados em cada uma delas, acerca do conteúdo, objetivos e funcionamento do debate.

Um conteúdo baseado na contradição do trabalho

Ao analisar o conteúdo do debate presente nas diferentes abordagens, é possível perceber um elemento transversal em todas elas: a valorização das contradições presentes no trabalho. Mesmo considerando o desdobramento específico ao objeto de análise de cada uma dessas abordagens, o conteúdo do debate é comumente direcionado às contradições das práticas de trabalho percebidas pelos seus participantes.

É assim que, nos espaços de discussão de Dejours, normalmente são “reformuladas livremente e sobretudo publicamente as opiniões eventualmente contraditórias” (Dejours, 2002, p. 57DEJOURS, C. O fator humano. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getulio Vargas, 2002.), em termos de sofrimento no trabalho. A busca da contradição e da controvérsia está também “na origem da autoconfrontação cruzada” (Clot, 2010CLOT, Y. Trabalho e poder de agir. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010., p. 256). Na Ergonomia da Atividade, Falzon (2013FALZON, P. Ergonomie Constructive. Paris: Presses Universitaires France, 2013., p. 7, tradução livre) defende que “as exigências prescritas podem entrar em contradição com os desejos dos operadores” - cabendo então aos espaços de debate tratar dessas contradições -, assim como Rocha (2014ROCHA, R. Du silence organisationnel au débat structuré sur le travail: les effets sur la sécurité et sur l’organisation. 2014. 265 f. Thèse (Doutoramento) - Universidade de Bordeaux, Bordeaux, 2014., p. 81, tradução livre) argumenta que os espaços de debate aparecem como “uma maneira de instituir os conflitos pela confrontação das divergências dos trabalhadores”. Trinquet (2010TRINQUET, P. Trabalho e educação: o método ergológico. Histedbr On-line, Campinas, v. 10, n. 38e, p. 93-113, 2010., p. 106) ressalta que o objetivo dos GRT’s “não é colocar todos os protagonistas de acordo em relação a tudo”, mas levá-los a discutir a atividade, que se apresenta como uma dinâmica de contradições potenciais (Schwartz, 2000SCHWARTZ, Y. Comunidade científica ampliada de pesquisa e o regime de produção de saberes. [S.l.: s. n.], 2000.). Na ACT, por fim, não se pode esperar que o trabalho “seja expresso sem contradições” (Ferreira, 2015FERREIRA, L L. Análise Coletiva do Trabalho: Quer ver? Escuta! Revista Ciências do Trabalho, São Paulo, no 4, p. 125-137, 2015., p. 135), enquanto no LM as raízes sistêmicas de distúrbios no trabalho são conceituadas como “contradições internas do sistema de atividade” (Engeström et al., 1996ENGESTRÖM, Y. et al. The Change laboratory as a tool for transforming work. Lifelong Learning in Europe, [s.l.], v. 1, p. 10-17, 1996., p. 3).

Objetivos do debate: analisar a atividade e transformar a organização

O primeiro e mais conhecido objetivo pelo qual o debate ganha espaço nas Ciências do Trabalho está relacionado à necessidade de melhor compreensão da atividade pelos seus participantes, sejam eles os próprios trabalhadores, gestores ou interlocutores externos envolvidos.

Inicialmente, Dejours caracteriza a atividade “essencialmente por sua parte ‘subjetiva’ e ‘viva’, a saber as iniciativas, a engenhosidade, a inventividade” (Dejours; Gernet, 2012DEJOURS, C.; GERNET, I. Psychopathologie du travail. Paris: Elsevier Masson, 2012., p. 17), utilizando mais frequentemente o termo “trabalho real” para se referir ao engajamento subjetivo do trabalhador em ação. Os seus espaços de discussão têm a função, então, de revelar parte da subjetividade - e assim da atividade -, o que explica as estratégias defensivas e o desenvolvimento do prazer e do sofrimento no trabalho. Para Clot, compreender e explicar os mecanismos do desenvolvimento da atividade sempre passa “por uma adequada apreciação da importância dos diálogos nesse desenvolvimento” (Clot, 2010CLOT, Y. Trabalho e poder de agir. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010., p. 147). É assim que, oferecendo condições favoráveis ao debate, a atividade poderá “ser retrabalhada e portanto, revelada” (Clot, 2010CLOT, Y. Trabalho e poder de agir. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010., p. 136-137). A Ergonomia se serve do debate para contribuir com a análise da atividade, desde que as confrontações foram incorporadas em seu método. Com o desenvolvimento de espaços de debate como método de análise, estes passaram a contemplar a “atividade de trabalho real e os conflitos e injunções que ela coloca em certas situações de trabalho” (Falzon, 2013FALZON, P. Ergonomie Constructive. Paris: Presses Universitaires France, 2013., p. 39, tradução livre). Mais recentemente, Van Belleghem (2016VAN BELLEGHEM, L. Eliciting activity: a method of analysis at the service of discussion. Le Travail Humain, [s. l.], v. 79, n. 3, p. 285-305, 2016.) mostra que a convocação e a análise da atividade passam, necessariamente, pelo debate sobre o trabalho. Na Ergologia, “nenhuma atividade humana é pensável sem debate de normas” (Schwartz; Durrive, 2016SCHWARTZ, Y.; DURRIVE, L. (Org.). Trabalho e ergologia (II): diálogos sobre a atividade humana. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2016., p. 39) e cabe aos GRT’s revelar essa atividade pelo debate, uma vez que este método “entra pela atividade de trabalho” (Schwartz; Durrive, 2016SCHWARTZ, Y.; DURRIVE, L. (Org.). Trabalho e ergologia (II): diálogos sobre a atividade humana. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2016., p. 229). Ferreira (2011FERREIRA, L L., A Psicodinâmica do Trabalho e a Análise Coletiva do Trabalho. Travailler, [s. l.], v. 1, n. 25, p. 109-118, 2011. DOI: 10.3917/trav.025.0109
https://doi.org/10.3917/trav.025.0109...
, p. 5), ao comparar a ACT com a PDT, afirma que “ambas se baseiam na fala e na escuta para se compreender o trabalho”. Também com o intuito de aprofundar a compreensão dos indivíduos sobre o próprio trabalho, o LM privilegia “debates a respeito do desenvolvimento da atividade” (Virkkunen; Newnham, 2015VIRKKUNEN, J.; NEWNHAM, D. S. O Laboratório de Mudança: uma ferramenta de desenvolvimento colaborativo para o trabalho e a educação. Belo Horizonte: Fabrefactum , 2015., p. 131) ou do “sistema de atividades”, que são “relações múltiplas de mediação cultural da atividade humana” (Virkkunen; Newnham, 2015VIRKKUNEN, J.; NEWNHAM, D. S. O Laboratório de Mudança: uma ferramenta de desenvolvimento colaborativo para o trabalho e a educação. Belo Horizonte: Fabrefactum , 2015., p. 88).

Além de compreender a atividade, o debate pretende transformar o trabalho. A PDT e a CA dão foco à transformação, que começa pelo próprio indivíduo, visto que, ao se expressar para um colega, ele estabele “uma dupla relação dialógica: entre o sujeito e o outro, ou entre o sujeito e ele mesmo” (Clot, 2010CLOT, Y. Trabalho e poder de agir. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010., p. 135). Após essa experiência, os sujeitos “não percebem e nem pensam da mesma forma” (Dejours, 2000DEJOURS, C. Travail, usure mentale. Paris: Bayard Éditions, 2000, p. 248, tradução livre). Assim, a subjetivação do vivido pela fala e pelo debate leva o indivíduo a um melhor conhecimento do seu trabalho e, consequentemente, a uma melhor condição de desempenhar uma transformação da situação. Trata-se de uma transformação sobretudo da experiência psíquica, o que, para esses autores, pode ser ainda mais importante do que a materialidade da transformação concreta. Por isso, Clot (2010CLOT, Y. Trabalho e poder de agir. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010., p. 208) objetiva a “transformação indireta do trabalho dos sujeitos”, gerada por esse processo de co-análise, que leva ao desenvolvimento do poder de agir. Da mesma forma, para Dejours e Gernet (2012DEJOURS, C.; GERNET, I. Psychopathologie du travail. Paris: Elsevier Masson, 2012., p. 137) “a pesquisa em psicodinâmica do trabalho não visa, como primeira intenção, transformações objetivas das situações de trabalho (...) mas uma transformação da relação subjetiva do trabalho”.

A ACT segue a lógica da PDT e da CA, defendendo a produção de resultados “mais gerais” (Ferreira, 1996FERREIRA, L L. Dois estudos sobre o trabalho dos petroleiros. Production, São Paulo, v. 6, n. 1, p. 7-32, 1996. DOI: 10.1590/S0103-65131996000100001
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, p. 9), em termos de transformações das situações, já que o foco do método se concentra numa profunda compreensão da atividade.

As demais abordagens também visam transformações individuais provocadas pelo debate, mas defendem igualmente a transformação das situações de trabalho. O debate na Ergonomia busca desenvolver “os recursos internos e externos à atividade” (Falzon, 2013FALZON, P. Ergonomie Constructive. Paris: Presses Universitaires France, 2013., p. 39, tradução livre), possibilitando, através disso, a negociação destes recursos e, consequentemente, o desenvolvimento da autonomia dos indivíduos junto às instâncias hierárquicas para a transformação de situações concretas (Rocha, 2014ROCHA, R. Du silence organisationnel au débat structuré sur le travail: les effets sur la sécurité et sur l’organisation. 2014. 265 f. Thèse (Doutoramento) - Universidade de Bordeaux, Bordeaux, 2014.). Para Schwartz (1997), as transformações do trabalho são o produto de uma colaboração entre os atores e os pesquisadores/especialistas do trabalho. Assim, tais transformações são sempre provenientes de uma dialética entre dois polos, ou duas formas de saber, quais sejam: o saber codificado, em “desaderência” com a realidade, e o saber empírico. Assim, os GRT’s podem “alcançar soluções e não somente discussões” em relação a dialética imposta por estes polos (Trinquet, 2010TRINQUET, P. Trabalho e educação: o método ergológico. Histedbr On-line, Campinas, v. 10, n. 38e, p. 93-113, 2010., p. 106). Nesse mesmo sentido, o LM busca propor tanto uma “mudança e desenvolvimento da atividade e dos indivíduos” (Virkkunen; Newnham, 2015VIRKKUNEN, J.; NEWNHAM, D. S. O Laboratório de Mudança: uma ferramenta de desenvolvimento colaborativo para o trabalho e a educação. Belo Horizonte: Fabrefactum , 2015., p. 267), quanto um “tratamento aberto e colaborativo das causas sistêmicas de problemas” (Virkkunen; Newnham, 2015, p. 395VIRKKUNEN, J.; NEWNHAM, D. S. O Laboratório de Mudança: uma ferramenta de desenvolvimento colaborativo para o trabalho e a educação. Belo Horizonte: Fabrefactum , 2015.). Para isso, os autores defendem uma “agência transformadora”, quando os participantes assumem “cada vez mais sua responsabilidade de desenvolver novas soluções” (Virkkunen; Newnham, 2015VIRKKUNEN, J.; NEWNHAM, D. S. O Laboratório de Mudança: uma ferramenta de desenvolvimento colaborativo para o trabalho e a educação. Belo Horizonte: Fabrefactum , 2015., p. 269).

Funcionamento dos espaços: momentos, participantes e condições

Embora muitos autores discorram sobre a necessidade da presença do debate nas organizações, poucos deles apresentam as características dos espaços que o abrigam, como os locais, momentos, interlocutores ou as condições do seu funcionamento.

A PDT e a Ergonomia refletem sobre os momentos nos quais o debate ocorre. Dejours e Gernet (2012DEJOURS, C.; GERNET, I. Psychopathologie du travail. Paris: Elsevier Masson, 2012.) argumentam que, além dos espaços formais e planejados, o debate também acontece em espaços informais, uma vez que estes últimos têm “um papel fundamental na coesão, na manutenção da cooperação e na construção da confiança no seio do coletivo de trabalho” (Dejours; Gernet, 2012DEJOURS, C.; GERNET, I. Psychopathologie du travail. Paris: Elsevier Masson, 2012., p. 46, tradução livre). Já Rocha (2014ROCHA, R. Du silence organisationnel au débat structuré sur le travail: les effets sur la sécurité et sur l’organisation. 2014. 265 f. Thèse (Doutoramento) - Universidade de Bordeaux, Bordeaux, 2014.), se inspirando em Detchessahar (2013DETCHESSAHAR, M. Faire face aux risques psycho-sociaux: quelques éléments d’un management par la discussion. Négociations, Paris, n. 19, p. 57-80, 2013.), defende que, para gerar transformações concretas, os espaços de debate devem ser institucionalizados pela organização, em locais suficientemente estruturados por ferramentas, arquitetura ou sistemas de informação que objetivem sustentar, facilitar ou informar a discussão. Dessa forma, o debate deve ser preparado, com a definição e o papel dos seus participantes, bem como o desenvolvimento de uma agenda de planejamento. Ao mesmo tempo, o autor mostra que os espaços de debate podem se desenvolver de forma ordinária e extraordinária. Isso porque existem espaços já institucionalizados nas organizações, tais como os chamados “Diálogos Diários de Segurança”, mas há igualmente outros, frequentemente criados por agentes externos, notadamente pesquisadores ou consultores, que são temporários, utilizados para algum fim específico. Assim, o autor privilegia a utilização dos espaços ordinários, ao invés de extraordinários, para que o debate se desenvolva e se perenize na organização.

As abordagens analisadas também trazem elementos acerca dos participantes. Com o intuito de buscar a livre circulação da palavra, a PDT, a CA, a ACT e os GRT’s privilegiam espaços com a presença exclusiva dos trabalhadores que tem a sua atividade analisada. A Ergologia, através dos GRT’s, propõe, inclusive, uma “horizontalidade na tomada de decisão e uma recusa da verticalidade” (Ropert, 2018ROPERT, L. Les Groupes de Rencontres du Travail (GRT): De la petite histoire à la grande histoire… In S. Mahlaoui, & J.-P. Cadet, La demarche ergologique, una contribution originale à la comprehension des relations entre la formation et l’emploi. Actes du Séminaire d’Analyse du Travail (SEMAT) du Céreq. Marseille: Céreq, 2018., p. 61). Já o LM não propõe separação hierárquica. O seu critério de seleção para participação nas sessões privilegia indivíduos que lidem “com o mesmo objeto em seu trabalho diário e envolvidos na realização do mesmo resultado final, a despeito de diferenças em ocupação, tarefa ou posição hierárquica” (Virkkunen; Newnham, 2015VIRKKUNEN, J.; NEWNHAM, D. S. O Laboratório de Mudança: uma ferramenta de desenvolvimento colaborativo para o trabalho e a educação. Belo Horizonte: Fabrefactum , 2015., p. 134). Nesse sentido, o DET também não restringe a presença de gestores no debate, tendo com isso o intuito, quando necessário, de dar tratativa às situações discutidas (Rocha, 2014ROCHA, R. Du silence organisationnel au débat structuré sur le travail: les effets sur la sécurité et sur l’organisation. 2014. 265 f. Thèse (Doutoramento) - Universidade de Bordeaux, Bordeaux, 2014.).

Por fim, em termos de condições para que o debate aconteça, notamos que ele deve estar protegido da lógica punitivista presente nas organizações contemporâneas. Assim argumentam, pelo menos, Clot (2010CLOT, Y. Trabalho e poder de agir. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010.), Dejours e Delory-Momberger (2010DEJOURS, C.; DELORY-MOMBERGER, C. Le travail entre souffrance individuelle, intelligence collective et promises d’émancipation. Entretien avec Christine Delory-Momberger. L’Harmattan, Paris, v. 1, p. 59-72, 2010.), Detchessahar (2019DETCHESSAHAR, M. L’énigme de la responsabilité dans les organisations : l’enjeu du dialogue. Sociologie du travail, [s.l.], v. 61, n. 2, 2019. DOI: 10.4000/sdt.17693
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) e Rocha (2014ROCHA, R. Du silence organisationnel au débat structuré sur le travail: les effets sur la sécurité et sur l’organisation. 2014. 265 f. Thèse (Doutoramento) - Universidade de Bordeaux, Bordeaux, 2014.). Como exemplo, Dejours e Delory-Momberger (2010DEJOURS, C.; DELORY-MOMBERGER, C. Le travail entre souffrance individuelle, intelligence collective et promises d’émancipation. Entretien avec Christine Delory-Momberger. L’Harmattan, Paris, v. 1, p. 59-72, 2010., p. 69, tradução livre) defendem que é somente com essa condição que o espaço de deliberação poderá ser construído como um “espaço público” ou um “espaço democrático”. Clot (2010CLOT, Y. Trabalho e poder de agir. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010., p. 138) é ainda mais preciso: “o objetivo consiste em criar um espaço-tempo diferente, em que as condições do desenvolvimento, do movimento dialógico não se confundam - ou, pelo menos, não tenham a possibilidade de se confundir - com os outros quadros, ou seja, aqueles em que se aplicam habitualmente as regras que discriminam o verdadeiro do não verdadeiro, o congruente do incongruente, o correto do incorreto; quadros, também, em que se manifestam as coerções sociais imediatas, os efeitos dos status sociais dos atores, as relações hierárquicas e as inibições vinculadas à situação”.

Capacidade do debate em analisar e transformar o trabalho

Diante das particularidades do debate nas diferentes abordagens das Ciências do Trabalho, podemos nos perguntar: qual a capacidade do debate analisar e transformar o trabalho? Os tópicos seguintes buscam abordar essa questão.

Análise da atividade por meio do debate

Como discutido acima, o referencial teórico avaliado traz o debate para o centro da análise do trabalho, mostrando não ser possível analisar a atividade sem que, em algum momento, o debate seja convocado. Compreender a atividade, portanto, passa necessariamente pelo debate sobre o trabalho. Mas será que o debate, por si só, é capaz de analisar a atividade?

Uma forma de responder a essa pergunta pode ser a partir da defesa que fazem os autores do referencial teórico analisado, acerca da (in)dependência do debate em relação à uma fase etnográfica prévia. Algumas das abordagens o associam à construção dessa fase, através da presença dos pesquisadores/consultores no campo, para que possa alimentá-lo posteriormente, enquanto outras a dispensam, defendendo a fala e o debate como capazes, per si, de analisar a atividade.

O espaço de discussão da PDT, por vezes, “necessita de uma análise prévia da demanda” (Dejours; Gernet, 2012DEJOURS, C.; GERNET, I. Psychopathologie du travail. Paris: Elsevier Masson, 2012., p. 136), incluindo pré-enquetes, visitas ao campo e uma observação clínica do trabalho (Dejours, 2000DEJOURS, C. Travail, usure mentale. Paris: Bayard Éditions, 2000). Sob o mesmo ângulo, a confrontação da CA pode contemplar “um longo trabalho de observação das situações e dos meios profissionais afim de produzir concepções compartilhadas com os trabalhadores” (Clot et al., 2001CLOT, Y. Psychopathologie du travail et clinique de l’activité. Éducation permanente, Paris, n. 146, p. 35-51, 2001., p. 21). Contudo, para essas intervenções “clínicas”, ou seja, aquelas que “consideram os profissionais como protagonistas da investigação e excluem a pesquisa de regras e generalidades ao benefício da transformação das situações por e para os ‘coletivos’ associados ao processo” (Faïta, 2017FAÏTA, D. Le dialogue em autoconfrontation au servisse de l’analyse des activités de travail. In: BARBIER, J. M.; DURAND, M. (Dir.), Encyclopédie d’analyse des activités. Paris: Presses Universitaires France , 2017. p. 121-138., p. 122), a ênfase nos espaços dialógicos será sempre mais importante do que a fase etnográfica. Assim, a PDT e a CA, embora defendam em alguns momentos a realização de fases etnográficas prévias, concentram a maior parte dos seus esforços na análise do debate sobre o trabalho. A fase etnográfica entraria, então, de forma coadjuvante nesse processo.

Clot (2010, p. 139CLOT, Y. Trabalho e poder de agir. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010.) argumenta que o aspecto mais importante da análise reside, sem dúvida, “no que o sujeito descobre a respeito de sua atividade” sendo que ela - a atividade - somente “se realiza no discurso endereçado a outrem” (Clot et al., 2001, p. 53, tradução livreCLOT, Y. Psychopathologie du travail et clinique de l’activité. Éducation permanente, Paris, n. 146, p. 35-51, 2001.). Dessa forma, Clot defende explicitamente um método de “co-análise” das atividades, dado que essas, ao se transformarem em linguagem, “se reorganizam e se modificam” (Clot et al., 2001, p. 53, tradução livreCLOT, Y. Psychopathologie du travail et clinique de l’activité. Éducation permanente, Paris, n. 146, p. 35-51, 2001.). A atividade é, então, constantemente re-concebida entre os próprios trabalhadores, através das suas falas e do debate por elas promovido, de forma independente de uma análise externa.

Dejours é ainda mais categórico, ao afirmar que o mais importante para a PDT é a vivência subjetiva materializada através da fala do indivíduo, e não a descrição prévia da realidade pelo analista ou até mesmo pelo próprio trabalhador. Assim, ele mostra claramente que o seu interesse não está na concretude do trabalho, mas no que provoca na constituição dos indivíduos:

Nós não nos interessamos demasiadamente à realidade dos fatos do trabalho, nem mesmo à descrição dada pelos trabalhadores do próprio trabalho. Nosso objetivo não é desnudar a realidade do trabalho humano, nas suas dimensões físicas e cognitivas. Nossa pesquisa porta essencialmente sobre a vivência subjetiva, de maneira que nós nos interessamos sobretudo à dimensão do comentário: comentário que inclui concepções subjetivas, hipóteses sobre o porquê e o como da relação vivida no trabalho, as interpretações, ou mesmo os comentários de caráter anedótico, etc. (Dejours, 2000DEJOURS, C. Travail, usure mentale. Paris: Bayard Éditions, 2000, p. 201, tradução livre).

Sob este mesmo prisma, a Ergologia e a ACT defendem que a compreensão da atividade ocorre essencialmente pela análise dos sujeitos que a vivenciam cotidianamente. A análise da atividade se desenvolveria, então, do ponto de vista daquele que trabalha, enquanto o pesquisador/consultor se centra sobre a relação que a pessoa estabelece com o meio no qual ela está engajada. Esse é um necessário “desconforto intelectual” defendido pela Ergologia, ou a necessidade de “admitir que generalidades e modelizações trazidas pelos especialistas possam ser reapreciadas no contato com as experiências vivas dos trabalhadores” (Schwartz, 2000SCHWARTZ, Y. Comunidade científica ampliada de pesquisa e o regime de produção de saberes. [S.l.: s. n.], 2000., p. 6). Da mesma forma, a ACT dispensa a análise etnográfica, já que ocorre inteiramente “fora da situação de trabalho” (Ferreira, 1996FERREIRA, L L. Dois estudos sobre o trabalho dos petroleiros. Production, São Paulo, v. 6, n. 1, p. 7-32, 1996. DOI: 10.1590/S0103-65131996000100001
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, p. 9) e postula “conhecer a atividade dos trabalhadores como objetivo final” (Ferreira, 1993FERREIRA, L L. A análise coletiva do trabalho. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, n. 78, v. 21, p. 7-19, 1993., p. 26). Assim, Ferreira (1996FERREIRA, L L. Dois estudos sobre o trabalho dos petroleiros. Production, São Paulo, v. 6, n. 1, p. 7-32, 1996. DOI: 10.1590/S0103-65131996000100001
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, p. 8) faz questão de enfatizar que a ACT, embora inspirada na AET, “dela se distancia na medida em que propõe que a análise seja feita pelos próprios trabalhadores que executam a atividade estudada”.

O LM e a Ergonomia, por outro lado, não reivindicam o mesmo lugar que as demais abordagens nessa reflexão.

Com o intuito de gerar dados das práticas de trabalho dos participantes, ou “dados-espelho”, o LM defende como parte importante do processo “a observação etnográfica da interação dos profissionais com o objeto de seu trabalho” e “entrevistas com eles no local de trabalho” (Virkkuen; Newnham, 2015, p. 142VIRKKUNEN, J.; NEWNHAM, D. S. O Laboratório de Mudança: uma ferramenta de desenvolvimento colaborativo para o trabalho e a educação. Belo Horizonte: Fabrefactum , 2015.). Nesse caso, analisar um sistema de atividade passa, necessariamente, pela construção de dados-espelho, através da presença prévia do pesquisador-interventor no campo. Por isso, “a colaboração entre os pesquisadores-interventores e os profissionais começa antes da primeira sessão, nas discussões e entrevistas com os participantes e representantes da organização-cliente, bem como na coleta de dados etnográficos acerca da atividade, necessária para a preparação do processo” (Virkkuen; Newnham, 2015, p. 66VIRKKUNEN, J.; NEWNHAM, D. S. O Laboratório de Mudança: uma ferramenta de desenvolvimento colaborativo para o trabalho e a educação. Belo Horizonte: Fabrefactum , 2015.).

A Ergonomia, ao contrário da maior parte das abordagens avaliadas, nasce e se desenvolve como uma disciplina etnográfica, postulando a presença do pesquisador/ consultor no campo, do início ao fim do método de análise (Guérin et al., 1997GUÉRIN, F. et al. Compreender o trabalho para transformá-lo: a prática da ergonomia. São Paulo: Blucher, 1997.). Mais tarde, a palavra do trabalhador, emitida no curso do trabalho, passou a ser cada vez mais valorizada, sendo considerada como um “comportamento carregado de sentido” (Wisner, 1996WISNER, A. Questions épistémologiques em ergonomie et en analyse du travail In: F. Daniellou (Dir.), L’ergonomie en quête de ses príncipes: débats épistémologiques. Toulouse: Octarés Éditions, 1996., p. 44, tradução livre). Os espaços de debate foram, então, associados às intervenções ergonômicas, mas, apesar disso, o processo etnográfico permaneceu central, de maneira que, para a Ergonomia, não é possível uma compreensão aprofundada da atividade desprovida de contribuição gerada pelo olhar técnico do ergonomista. É neste sentido que Van Belleghem (2016VAN BELLEGHEM, L. Eliciting activity: a method of analysis at the service of discussion. Le Travail Humain, [s. l.], v. 79, n. 3, p. 285-305, 2016., p. 287) defende que o processo de análise da atividade “deve começar bem antes da discussão”. É assim também que a pesquisa de Rocha (2014ROCHA, R. Du silence organisationnel au débat structuré sur le travail: les effets sur la sécurité et sur l’organisation. 2014. 265 f. Thèse (Doutoramento) - Universidade de Bordeaux, Bordeaux, 2014.) mostra uma longa fase etnográfica prévia de “análise do trabalho de técnicos e gestores locais” (Rocha; Mollo; Daniellou, 2019ROCHA, R.; MOLLO, V.; DANIELLOU, F. Contributions and conditions of structured debates on work on saf/ety construction. Safety Science, Amsterdam, v. 113, p. 192-199, 2019., p. 193, tradução livre), composta por “análise dos documentos da empresa, observações da atividade e entrevistas com os trabalhadores” (Rocha, 2014ROCHA, R. Du silence organisationnel au débat structuré sur le travail: les effets sur la sécurité et sur l’organisation. 2014. 265 f. Thèse (Doutoramento) - Universidade de Bordeaux, Bordeaux, 2014., p. 88). As demais pesquisas em Ergonomia que abordam a temática têm igualmente mantido uma estreita articulação entre a fase etnográfica e o processo posterior de coanálise entre especialistas e trabalhadores nos espaços de debate.

As abordagens, portanto, se dividem quanto à capacidade de análise da atividade provocada pelo debate. Se as disciplinas clínicas sustentam um debate capaz de analisar a atividade per si, o LM e a Ergonomia defendem a importância de fase etnográfica, mostrando que o limite do debate está no alcance que tem a subjetivação do saber empírico através da fala. A ausência do “olhar do outro” impossibilitaria enxergar a relação do trabalho operacional com os “determinantes que pesam sobre as ações dos trabalhadores” (Jackson Filho; Lima, 2015JACKSON FILHO, J. M.; LIMA, F. P. A. Análise Ergonômica do Trabalho no Brasil: transferência tecnológica bem-sucedida? Revista Brasileira de Saúde Ocupacional , São Paulo, v. 40, n. 131, p. 12-17, 2015. DOI: 10.1590/0303-7657AP0113115
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, p. 14), sejam eles de ordem organizacional ou social.

O debate e seu potencial em transformar o trabalho

Tão necessário quanto refletir a respeito da capacidade do debate em analisar a atividade, é buscar compreender o seu potencial para transformar as situações de trabalho.

Como visto anteriormente, todos os autores do referencial teórico analisado buscam a transformação das situações e são unânimes em considerar que sem o debate não há participação e sem participação não há transformação ou, pelo menos, que perdure ao longo do tempo. Mas, se todos concordam que o debate deve contemplar trabalhadores diversos, poucos parecem efetivamente se preocupar sobre como essa transformação se dá ou como ela se pereniza ao longo do tempo. Na verdade, a única disciplina que parece ir mais longe nessa reflexão é a Ergonomia, já que, para ela, “o desenvolvimento real da intervenção está longe de ser redutível à implantação de um protocolo” (Daniellou, 2006DANIELLOU, F. Entre expérimentation réglée et expérience vécue : Les dimensions subjectives de l’activité de l’ergonome en intervention. Activités, [s.l.], v. 3, n. 1, p. 5-18, 2006., p. 12, tradução livre) e, dessa forma, as transformações consequentes do debate, para que sejam implantadas e perenizadas, irão sempre depender de uma construção social associada a elas, ou seja, de relações socialmente construídas de forma a sustentar a efetividade da construção técnica (Rocha et al., 2022ROCHA, R. et al. Social construction as a means of ergonomic intervention. Gestão & Produção, São Carlos, v. 29, e5022, 2022. DOI: 10.1590/1806-9649-2022v29e5022
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).

Dessa forma, a construção social passa por um acompanhamento junto aos gestores, no intuito de garantir que o produto do conteúdo discutido seja adequadamente tratado pela gestão. Com essa reflexão, Rocha et al. (2019ROCHA, R.; MOLLO, V.; DANIELLOU, F. Contributions and conditions of structured debates on work on saf/ety construction. Safety Science, Amsterdam, v. 113, p. 192-199, 2019.), baseados em Detchessahar (2013DETCHESSAHAR, M. Faire face aux risques psycho-sociaux: quelques éléments d’un management par la discussion. Négociations, Paris, n. 19, p. 57-80, 2013.), trazem questões teóricas e metodológicas sobre o assunto, primeiramente mobilizando o conceito de “subsidiariedade” para as organizações, que se baseia em três pilares principais: o nível hierárquico superior é proibido de tratar situações que o nível hierárquico inferior é capaz de tratar; o nível hierárquico superior é obrigado a tratar situações que o nível hierárquico inferior não é capaz de tratar; as situações devem ser tratadas nos níveis mais baixos possíveis da organização. Assim, Detchessahar (2013DETCHESSAHAR, M. Faire face aux risques psycho-sociaux: quelques éléments d’un management par la discussion. Négociations, Paris, n. 19, p. 57-80, 2013.) e Rocha (2014ROCHA, R. Du silence organisationnel au débat structuré sur le travail: les effets sur la sécurité et sur l’organisation. 2014. 265 f. Thèse (Doutoramento) - Universidade de Bordeaux, Bordeaux, 2014.) articulam a noção de espaços de discussão com o tratamento das situações discutidas nos diferentes níveis hierárquicos de uma organização. Rocha et al (2019ROCHA, R.; MOLLO, V.; DANIELLOU, F. Contributions and conditions of structured debates on work on saf/ety construction. Safety Science, Amsterdam, v. 113, p. 192-199, 2019.) operacionalizam essa reflexão numa pesquisa-ação, acrescentando que não basta que os gestores deem tratamento às questões produzidas pelo debate, mas é também necessário que eles desenvolvam o poder de agir dos indivíduos, tanto da base operacional, quanto da cadeia hierárquica gerencial. É preciso, assim, para cada questão tratada, que o escalão hierárquico superior se questione sobre como oferecer poder de agir aos operadores de campo ou ao gestor de nível hierárquico inferior que sinalizou o problema. Um “Debate Estruturado do Trabalho”, que é aquele alimentado por uma análise prévia da atividade e sustentado pelo poder de agir sistêmico, poderia então ser desenvolvido. Nesse sentido, o mais importante não é o debate em si, mas o que vem antes (análise da atividade) e depois dele (desenvolvimento da autonomia). Para Detchessahar (2019DETCHESSAHAR, M. L’énigme de la responsabilité dans les organisations : l’enjeu du dialogue. Sociologie du travail, [s.l.], v. 61, n. 2, 2019. DOI: 10.4000/sdt.17693
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), essa é a forma que a ergonomia encontrou para finalmente integrar a gestão e direção das empresas com as pesquisas.

É neste sentido que Daniellou (2006DANIELLOU, F. Entre expérimentation réglée et expérience vécue : Les dimensions subjectives de l’activité de l’ergonome en intervention. Activités, [s.l.], v. 3, n. 1, p. 5-18, 2006.) propõe uma visão da intervenção como uma construção social, coletiva e progressiva, entre a gestão do projeto na empresa e os intervencionistas, resultando em ciclos de feedback entre as diferentes fases do processo. Dessa maneira, trazendo a construção social como elemento central da intervenção, a Ergonomia parece ser a abordagem que mais avança no que concerne às transformações das situações de trabalho proporcionadas pelo debate.

Necessidade de afinar o debate e evitar cacofonias

As particularidades desenvolvidas em cada uma das abordagens devem ser levadas em conta, de maneira que o debate tenha mais chance de chegar ao objetivo que foi inicialmente proposto em cada uma delas. Desconsiderar essas diferenças interdisciplinares pode levar a discussões ambíguas e entendimentos imprecisos ou superficiais sobre o tema.

Lima, Ribeiro, La Guardia e Nagem (2020LIMA, F. P. A et al. Análise do curso de ação e do projeto antropocêntrico: contribuições para a concepção de sistemas automatizados, Laboreal, [s. l.], p. 16 , n. 2, p. 1-37, 2020.), por exemplo, ao fazerem uma defesa legítima acerca da necessidade de sistematização mais rigorosa da atividade real, acabam negligenciando as muitas diferenças e minúcias entre o DET, a ACT e os GRT’s caracterizando-os conjunta e indistintamente como “espaços de expressão”. Os autores ainda incluem a PDT e Clínica da Atividade nesse mesmo bojo, afirmando que essas abordagens “acabam limitando a contribuição dos analistas do trabalho na solução de problemas mais complexos, que exigem análises que possam apreender a dinâmica da atividade real em situações concretas” (Lima et al., 2020LIMA, F. P. A et al. Análise do curso de ação e do projeto antropocêntrico: contribuições para a concepção de sistemas automatizados, Laboreal, [s. l.], p. 16 , n. 2, p. 1-37, 2020., p. 3).

Ora, a boa intenção dos autores em defender uma análise da atividade mais sistematizada pelas abordagens das Ciências do Trabalho, em contraposição àquelas que também valorizam o debate como forma de análise, esbarra em pelos menos dois problemas centrais. Primeiro, a desconsideração das especificidades do debate nas diferentes abordagens, bem como a sua capacidade de compreensão da atividade e transformação do trabalho, conforme discutido ao longo deste artigo. Não há limites precisos para a compreensão da atividade ou para a resolução de problemas nas intervenções desenvolvidas pelos diferentes autores das Ciências do Trabalho, indo de questões menores àquelas de alta complexidade. Lima et al. (2020LIMA, F. P. A et al. Análise do curso de ação e do projeto antropocêntrico: contribuições para a concepção de sistemas automatizados, Laboreal, [s. l.], p. 16 , n. 2, p. 1-37, 2020.), no entanto, defendem esse limite, embora não o especifique, e confundem as diferentes abordagens, fazendo uma análise precipitada da forma como o debate se apresenta em cada uma delas. O segundo problema está na contradição dos autores ao propor, como solução a esse contexto, a Teoria do Curso da Ação, mas apresentar um estudo de caso que não aplica o método em sua totalidade, apenas parte dele88Embora os autores afirmem que signos tetrádicos, base de análise da Teoria do Curso da Ação, sejam compostos “além dos representamens pela Instância de Referencial e pelo Aberto” (Lima et al., 2020, p. 11), no estudo de caso mostrado apenas o representamen é analisado. (Rocha, 2023Rocha, R. Qual o limite da análise da atividade nas Ciências do Trabalho? Artigo-resposta à Lima, Ribeiro, La Guardia e Nagem (2020). Laboreal , v. 19, n. 1, 2023.).

Passar a régua nas muitas especificidades que o debate apresenta em cada uma das abordagens das Ciências do Trabalho, além de qualificá-las como espaços de expressão, não parece adequado e não contribui com o debate mais amplo sobre o tema. Ao contrário disso, negligenciar, nas Ciências do Trabalho, as particularidades que tem o debate - sua forma e conteúdo, sua relação com a atividade e a transformação - gera cacofonia sobre o tema e traz a reflexão mais para a superfície. Para evitar isso, faz-se necessária a incorporação, nas pesquisas, da singularidade do debate no desenvolvimento do assunto.

Considerações finais

Este artigo oferece uma reflexão inicial sobre o lugar do debate nas Ciências do Trabalho. A partir do material analisado, é possível observar que o debate apresenta idiossincrasias em sua forma e conteúdo, de acordo com a disciplina, abordagem ou método no qual ele nasce e se desenvolve, principalmente em relação à forma com que se aproxima da atividade e às possibilidades de transformação do trabalho.

Embora as Ciências do Trabalho tratem do debate de diferentes maneiras ao longo do tempo, uma problematização mais importante sobre o lugar que ele ocupa em cada uma de suas abordagens não havia ainda sido feita. Acreditamos que essa primeira tentativa pode ajudar a entender sobre o que estamos falando quando abordamos o tema. E se isso for verdade, então o debate sobre o debate está aberto. Novas vozes certamente contribuirão para fazer ecoar o assunto em outros meios e, assim, evitar cacofonias no debate sobre o trabalho.

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  • 1
    O termo "Ciências do Trabalho", ou "Ciências Sociais do Trabalho", embora frequentemente utilizado na literatura, não possui uma definição explícita. Com base no uso do termo, vamos considerá-lo como um campo disciplinar envolvendo disciplinas que buscam compreender o trabalho real e a sua relação com os indivíduos e a organização.
  • 2
    Nesse trecho, foram respeitados os termos definidos pelos próprios autores quando se referem a “disciplina”, “abordagem” ou “método”, em seus estudos originais. Por questões de clareza de texto, no seguimento deste artigo adotaremos o termo “abordagem” para se referir também a disciplina ou método.
  • 3
    No caso do Laboratório de Mudanças, há mais uma base epistemológica semelhante, fundamentada nos estudos vygotskyanos sobre atividade, do que uma influência direta entre disciplinas e/ou métodos.
  • 4
    No dicionário Aulete, diálogo é uma “conversação entre duas ou mais pessoas”; discussão é a “ação ou resultado de discutir, de debater sobre um assunto ou tema”, podendo também ser uma “disputa verbal violenta e ruidosa”(Diálogo, 2007DIÁLOGO. In: DICIONÁRIO Calda Aulete. Rio de Janeiro: Lexicon, 2007.); debate é definido como uma “discussão em que se apresentam argumentos a favor ou contra alguma coisa, visando a uma conclusão” ou uma “discussão em torno de opiniões diversas, nem sempre antagônicas, sobre um tema” (Debate, 2007DEBATE. In: DICIONÁRIO Calda Aulete. Rio de Janeiro: Lexicon, 2007.). Como as três palavras são frequentemente utilizadas na literatura das Ciências do Trabalho, neste artigo as adotaremos como sendo sinônimos, mas privilegiando o uso do termo “debate”, por considerar que representa melhor a ideia que defendemos: uma discussão entre dois ou mais indivíduos sobre as contradições vividas no trabalho, visando uma conclusão que não precisa necessariamente ser convergente entre eles.
  • 5
    Como poderá ser observado ao longo do artigo, sempre que possível é trazida a citação literal do autor do estudo, com vistas a evitar distorções do argumento original.
  • 6
    Traduzido no Brasil sob o nome de “A Loucura do Trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho”, em 1987.
  • 7
    Não será retomada aqui toda a história da Ergonomia e as suas diferentes origens, já bastante discutidas na literatura. Para isso, vide por exemplo o livro “A evolução histórica da ergonomia no mundo e seus pioneiros”, de José Carlos Plácido da Silva e Luís Carlos Paschoarelli (orgs.) e o documentário “Histoire(s) de l’Ergonomie” da SELF. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=mkRT4S_hUxE).
  • 8
    Embora os autores afirmem que signos tetrádicos, base de análise da Teoria do Curso da Ação, sejam compostos “além dos representamens pela Instância de Referencial e pelo Aberto” (Lima et al., 2020LIMA, F. P. A et al. Análise do curso de ação e do projeto antropocêntrico: contribuições para a concepção de sistemas automatizados, Laboreal, [s. l.], p. 16 , n. 2, p. 1-37, 2020., p. 11), no estudo de caso mostrado apenas o representamen é analisado.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    13 Ago 2022
  • Revisado
    13 Ago 2022
  • Aceito
    06 Out 2022
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
E-mail: saudesoc@usp.br