Reescrever saúde global11Este artigo é uma versão atualizada e revista do capítulo original “Escrever saúde global”, publicado em Di Giulio, Ventura e Ribeiro (2023). Agradeço às organizadoras do livro pela autorização para publicação.

João Nunes Sobre o autor

Resumo

O conceito de saúde global popularizou-se mesmo com suas origens sendo alvo de um escrutínio crítico: nomeadamente, suas origens na medicina colonial, suas ligações com a proteção do comércio internacional e da exploração capitalista, seus pressupostos orientalistas. Até que ponto o conceito é, ainda, adequado ou proveitoso? Será possível reescrever a saúde global de forma a reconhecer e contrariar as suas múltiplas violências? Reflito sobre a potencialidade do conceito de saúde global a partir de uma ética da escrita que pretende ser analítica (respeitante à sua capacidade para refletir as tensões sociais, a multiplicidade de experiências, as justificações e reivindicações dos atores, a opressão e o potencial não realizado); crítica (respeitante à sua capacidade de identificar a contradição entre aquilo que os arranjos sociais ostensivamente proclamam e o que produzem de facto); e política (respeitante ao seu potencial emancipatório e de reparação das injustiças históricas). Identifico cinco vertentes importantes para um esforço de reescrever o conceito de saúde global: o global como planetário; o global como coletivo; o global como público; o global como periférico; e o global como cotidiano.

Palavras-chave:
Saúde Global; Saúde Planetária; Emancipação; Teoria Crítica

Uma questão de origem

O conceito de “saúde global” popularizou-se nas últimas décadas, mas, ao mesmo tempo, tem sido alvo de escrutínio intenso. Suas origens têm sido problematizadas à medida que se reconhecem linhas de continuidade entre a saúde global e o colonialismo. Os primórdios do que hoje conhecemos como saúde global estão na medicina colonial ou tropical, um dos primeiros exemplos do “internacionalismo” na medicina e na saúde pública (Roemer, 1994ROEMER, M. I. Internationalism in medicine and public health. In: PORTER, D. (Ed.). The History of Public Health and the Modern State. Leiden: Brill, 1994. p. 403-423.). Por sua vez, a medicina colonial emergiu como uma parte importante de um projeto de dominação e expropriação (Anderson, 2006ANDERSON, W. Colonial pathologies: american tropical medicine, race, and hygiene in the Philippines. New York: Duke University Press, 2006.). A medicina foi um instrumento de violência no contexto da colónia, em especial através da colonização dos corpos (Arnold, 1993ARNOLD, D. Colonizing the body: state medicine and epidemic disease in nineteenth-century India. Berkeley: University of California Press, 1993.). No centro da medicina colonial está uma ansiedade relativa à preservação do corpo do colonizador perante um ambiente desconhecido e inóspito, no contexto de um encontro com o corpo do colonizado. À luz de um ideário de superioridade racial, este último é entendido como inerentemente ameaçador. O corpo do colonizado é também algo a ser preservado, tendo em vista a maximização da sua utilidade económica. A dimensão “internacional” da medicina adquiriu, assim, um duplo propósito: o de segregação, pelo qual o contacto era cuidadosamente gerido e se mantinha a separação entre a “cidade europeia” e as habitações nativas; e a contenção, pela qual a circulação (de pessoas e mercadorias) era submetida à triagem para prevenir as doenças nos espaços reservados aos colonizadores e na metrópole.

Como parte do império, portanto, a saúde internacional buscava sustentar objetivos econômicos, ou seja, extração de recursos e troca fluida de bens (e de pessoas-como-mercadorias). Em outras palavras, o internacionalismo em saúde está, desde as suas origens, ligado à manutenção de um determinado status quo. Segundo Nicholas King (2002KING, N. B. Security, disease, commerce: ideologies of postcolonial global health. Social Studies of Science, Thousand Oaks, v. 32, n. 5-6, p. 763-789, 2002. DOI: 10.1177/030631270203200507
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), o comércio e a segurança dos mecanismos que sustentam esse comércio são centrais na formação da saúde internacional. Isso continua, segundo o autor, no período pós-colonial. As Conferências Sanitárias Internacionais, realizadas a partir do século XIX, ao colocarem a ênfase na uniformização das medidas de contenção, tendo em vista a proteção dos fluxos internacionais, mostram como o objetivo de proteger a saúde pública fazia parte de um propósito mais amplo de proteger uma economia global hierarquizada. Os atuais Regulamentos Sanitários Internacionais revelam esta preocupação com a salvaguarda da circulação económica em caso de epidemias. Através da aposta nos sistemas de notificação e na capacidade de vigilância nas fronteiras, enfatizam a circunscrição e contenção de surtos provenientes da periferia da economia mundial.

A saúde global também tem sido questionada por conta da sua associação com a emergência e consolidação do neoliberalismo enquanto organização dominante da economia mundial (Keshavjee, 2014KESHAVJEE, S. Blind spot: how neoliberalism infiltrated global health. Berkeley: University of California Press, 2014.). O neoliberalismo significou o esvaziamento de uma visão da saúde como um bem público global, sustentado por uma abordagem horizontal para abordar os determinantes da doença, bem como sua substituição por intervenções voltadas para a contenção e controle de doenças específicas. Ao participar deste projeto, a saúde global seria, na melhor das hipóteses, uma versão empobrecida do ideal abrangente de saúde que esteve na origem da Organização Mundial da Saúde (OMS). Este ideal teve seu expoente máximo nas propostas de ampliação do escopo dos mecanismos internacionais de saúde, em torno das metas de atenção primária à saúde, promoção da saúde e “saúde pelo povo” presentes na Conferência de Alma Ata de 1978 sobre Atenção Primária à Saúde. Logo, porém, esses objetivos enfrentaram uma reação negativa. Acusada de ter se tornado muito politizada, a OMS refreou as suas ambições face ao poderio crescente de outras organizações internacionais (como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial) e financiadores não-estatais. Na pior das hipóteses, portanto, a saúde global seria cúmplice deste esvaziamento da cooperação, da solidariedade e da universalidade em saúde.

Esta problematização das origens da saúde global aponta para um dilema. Falamos sobre isso num momento em que a “globalidade” é, ela mesma, alvo de questionamento. Em alguns setores de esquerda, cada vez mais o global deixa de ser visto como convergência e harmonia. Pelo contrário, os conflitos e hierarquias que subjazem ao global são cada vez mais escancarados. Também existe, por parte de alguns setores da direita, uma crítica a um suposto “globalismo” enquanto projeto político de subversão dos valores tradicionais. Finalmente, num contexto de emergência climática, o global é visto por alguns como demasiadamente centrado na experiência humana e não suficientemente sintonizado aos desafios colocados pelo Antropoceno. O próprio conceito de saúde global começa a ser ameaçado pelo surgimento de outros, como saúde planetária e Saúde Única (One Health). Dadas estas múltiplas violências presentes ao longo da sua trajetória, e perante estes novos desafios, terá chegado o momento de abandonar a saúde global?

Os mundos que escrevemos

Proponho que nos detenhamos no conceito de saúde global, explorando as suas potencialidades, em vez de o substituir por outro qualquer. Cada conceito é uma tentativa de representar o mundo, sendo que este avança por meio dos conceitos que criamos. Gosto da palavra mundividência para caraterizar este processo de ver o mundo, que é também um ato de o fazer visível, de uma certa forma. Ao contrário de uma visão estática (presente em worldview, ou “visão de mundo” da tradução em inglês), a palavra mundividência evoca movimento. Algo que transforma o conceito numa atuação inacabada e inacabável. Uma relação incompleta com o mundo. Muitas vezes, desenvolvemos conceitos com o intuito de descrever o mundo, capturar o seu sentido e encapsulá-lo. Mas os conceitos são apenas formas de ir vendo e atuando no mundo com os nossos olhares e gestos humanos, necessariamente limitados e transitórios. Utilizamos os conceitos para ver e agir no mundo, até que eles próprios se tornam mundo - o que muitas vezes nos faz confundir nossas ideias com uma suposta realidade.

A literatura sobre saúde global avançou muito no reconhecimento deste processo com a adoção de uma abordagem construtivista. Segundo esta abordagem, o mundo é socialmente construído, ou seja, feito de fatos sociais, resultados (mais ou menos precários) de disputas e negociações. Neste contexto, Colin McInnes e Kelley Lee (2012)MCINNES, C.; LEE, K. Global health and international relations. Cambridge: Polity Press, 2012. trouxeram o conceito de enquadramento (aqui, uma vez mais, a língua portuguesa é mais feliz ao traduzir frame por enquadramento, o processo dinâmico de enquadrar, e não por quadro). Para McInnes e Lee (2012, p. 18)MCINNES, C.; LEE, K. Global health and international relations. Cambridge: Polity Press, 2012., um enquadramento é “baseado num conjunto de normas, privilegia certas ideias, interesses e instituições […] tem determinadas respostas para as questões de quem ou o quê é importante na saúde global, e porquê”. Os autores referem-se a enquadramentos que têm sido utilizados para descrever a realidade esquiva da saúde global: desenvolvimento, direitos humanos, economia, a medicina baseada em evidências, a segurança. Estes diferentes enquadramentos estão presentes, e frequentemente interagem, ao longo da trajetória da saúde global. Simon Rushton e Owain Williams (2012RUSHTON, S.; WILLIAMS, O. D. Frames, paradigms and power: global health policy-making under neoliberalism. Global Society, London, v. 26, n. 2, p. 147-167, 2012.) complementam esta ideia, mostrando como os enquadramentos, enquanto estruturas ideacionais, estão também ligados a uma dimensão material e, especificamente, a uma economia política. Para Rushton e Williams, certos enquadramentos ganham relevância através da sua ressonância com o paradigma neoliberal predominante.

Cada enquadramento é um processo por meio do qual a saúde global é construída. Delimita o espaço da saúde global, estabelece um conjunto de pressupostos para a sua interpretação e uma eventual intervenção. Fá-lo estabelecendo o que existe e o que deve existir, ou seja, quais aspetos da realidade são evidentes ou prioritários, bem como quais direções a realidade deve ser encaminhada. Os enquadramentos são instrumentos analíticos - que nos permitem interpretar uma realidade complexa - e normativos -permitindo-nos pensar as intervenções no mundo à luz das nossas interpretações.

Tomemos o exemplo da segurança, que se tornou um enquadramento importante nas discussões académicas e políticas sobre a saúde global. O enquadramento da segurança estabelece uma mundividência da saúde global por meio da qual determinados problemas de saúde - nomeadamente as doenças infeciosas, “emergentes” ou “re-emergentes” (Garrett, 1996GARRETT, L. The Return of Infectious Disease. Foreign Affairs, New York, v. 75, n. 1, p. 66-79, 1996.) - são apresentados como problemas prioritários, na medida em que têm o potencial de provocar desordem e conflito. Esta mundividência preconiza ainda que, enquanto problemas que têm um impacto potencialmente militar, as doenças devem também, em alguns casos, ser objeto de uma intervenção que recorra aos métodos e racionalidades do militarismo. Daí a crescente mobilização de meios militares para gerir e conter crises sanitárias, como ficou evidente em 2014-2016 durante o surto de Ébola na África Ocidental. Daí, também, a interconexão entre a linguagem da saúde e a da segurança, visível no uso de metáforas de guerra para descrever as doenças e a nossa resposta a elas (Sontag, 2002SONTAG, S. Illness as Metaphor and AIDS and its Metaphors. London: Penguin Books, 2002.).

A questão da linguagem é uma das razões por que o enquadramento da saúde global através da segurança é particularmente interessante enquanto relação com o mundo e como tentativa de construí-lo. O melhor exemplo é a teoria da securitização (Buzan; Wæver; Wilde, 1998BUZAN, B.; WÆVER, O.; WILDE, J. Security: a new framework for analysis. Boulder: Lynne Rienner Publishers, 1998.), que se tornou um elemento importante nas discussões acerca do nexo saúde-segurança (Ventura, 2016VENTURA, D. F. L. (2016). Do Ebola ao Zika: as emergências internacionais e a securitização da saúde global. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 32, n. 4. DOI: 10.1590/0102-311X00033316
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). De acordo com esta teoria, as ameaças não são realidades objetivas e evidentes, mas o resultado de processos intersubjetivos de construção de significado. Um assunto é transformado em questão de segurança através de um processo no qual um ou mais agentes securitizadores apresentam esse assunto enquanto ameaça à existência de um determinado referente (um Estado ou uma comunidade, por exemplo). Na securitização, o caráter existencial da ameaça exige a implementação de medidas excecionais, ou seja, medidas para além dos procedimentos políticos normais.

Evocar segurança muda o caráter dos problemas e o cenário político no qual eles surgem. Enquanto relação intersubjetiva entre um agente securitizador e uma audiência, a securitização é, em si, uma reconstrução de mundo, que eventualmente abre as portas a determinadas opções políticas. Uma prova da potência da segurança é a dificuldade em desfazer processos de securitização a partir do momento em que eles são bem-sucedidos. Como a segurança adquire essa força? Entre as explicações apresentadas está o fato de estar relacionada com questões existenciais, ou seja, com a relação dos humanos com a morte e a finitude (Huysmans, 1998HUYSMANS, J. Security! What do you mean? From concept to thick signifier. European Journal of International Relations, Thousand Oaks, v. 4, n. 2, p. 226-255, 1998.). O fato de a segurança também mobilizar o medo, uma emoção humana com um enorme potencial de instrumentalização para fins políticos, pode também ser parte da explicação.

Muita da literatura de securitização foca na identificação de atos discursivos - as palavras que são ditas ou escritas. Porém, alguns autores têm defendido que o processo de securitização é menos um ato do que um processo contínuo, no qual os assuntos não precisam obrigatoriamente ser explicitamente apresentados como ameaça (Bigo, 2008BIGO, D. Security: a field left fallow. In: DILLON, M.; NEAL, A. W. (Ed.), Foucault on politics, security and war. London: Palgrave Macmillan, 2008. p. 93-114.). Por exemplo, a imigração (Huysmans, 2006HUYSMANS, J. The politics of insecurity: fear, migration and asylum in the E.U. Abingdon: Routledge, 2006.) é frequentemente associada de forma sub-reptícia ou implícita a outras ameaças, como a criminalidade transnacional ou o terrorismo. Aqui, o mundo é construído não propriamente pela palavra dita ou escrita, mas antes pela não dita, pela sugestão ou insinuação - ou pela invocação ou reativação de significados partilhados ou pré-existentes. Um outro exemplo relevante dos limites da teoria da securitização nos é dado pela literatura que olha para o poder das imagens, defendendo a necessidade de uma abordagem visual aos processos de construção de “ameaças” e “inimigos” (Hansen, 2011HANSEN, L. Theorizing the Image for Security Studies: Visual Securitization and the Muhammad Cartoon Crisis. European Journal of International Relations, Thousand Oaks, v. 17, n. 1, p. 51-74, 2011.).

Trago esta discussão sobre os limites da securitização para a reflexão sobre saúde global porque ela aponta também para um limite do meu argumento. Apresento aqui uma discussão sobre a saúde global enquanto processo e produto de construção de mundo. Privilegio a palavra escrita, e o ato de escrever, enquanto elementos centrais dessa construção. Mas a saúde global não é feita apenas através da escrita. Ela é construída também por intermédio de imagens, como tive oportunidade de estudar numa análise da representação visual dos agentes comunitários de saúde pela Organização Mundial de Saúde (Medcalf; Nunes, 2018MEDCALF, A.; NUNES, J. Visualising primary health care: World Health Organization representations of community health workers, 1970-89. Medical History, Oxford v. 62, n. 4, p. 401-424, 2018.). Estou também ciente que o enfoque na palavra escrita privilegia uma determinada mundividência, uma predisposição para o mundo que assenta na tentativa de controlar e fixar o seu significado. A obsessão com a fixação de significado é uma violência feita à complexidade, inefabilidade e beleza do mundo. A compulsão para o controlo, que campeia nas nossas sociedades, ameaça levar-nos à extinção - como a emergência climática demonstra. A escrita está nesta situação ambígua: ela é parte da civilização que nos trouxe até este momento-limite. Mas é também, no seu potencial emancipatório, um dos caminhos de salvação que nos resta. Voltarei a este último ponto no final deste ensaio.

Por ora, gostaria de dizer que tenho ainda muito a aprender com outras mundividências de criação do mundo, que escapam ao propósito de controlo inerente à escrita. Pelo que sei, os aborígenes do território a que hoje chamamos Austrália acreditam na criação do mundo através da música. Esta tradição é mencionada por Steve Smith (2004SMITH, S. Singing our world into existence: International relations theory and September 11. International Studies Quarterly, New York, v. 48, n. 3, p. 499-515, 2004.) que, por sua vez, buscou-a no livro The Songlines de Bruce Chatwin. Na leitura de Chatwin, os aborígenes acreditam que a linguagem começou como música. O mundo e todas as suas coisas foram criados através das canções dos ancestrais. Acho bela a ideia da música como criadora de mundo. Porém, estou inserido na civilização da escrita, tão diferente das tradições assentes na oralidade. Pertenço aos Povos do Livro. Sou uma pessoa, um homem, homem branco, educado no cristianismo, que escreve. Ainda não aprendi a cantar.

Até onde a luz chega

Escrevemos para construir o mundo, mas também para lhe dar sentido. Ordenamos e simplificamos o mundo para que ele nos seja percetível e inteligível. Ao delimitar uma fronteira entre o que fica dentro e o que fica fora, o enquadramento também define os limites do que chega até nós. Isto significa que a escrita é também uma forma de apagamento - não só no que fica por dizer, mas também no que é efetivamente retirado da página, ou impedido de nela aparecer.

Em saúde, fala-se frequentemente em problemas ou doenças invisíveis - a saúde mental é um exemplo - e em populações invisíveis, como migrantes. Alguns preferem falar em processos de invisibilização, reconhecendo que a invisibilidade não é uma caraterística permanente, associada a uma determinada doença ou grupo, mas sim um processo por meio do qual essa doença ou grupo é retirada da esfera de atenção e consideração. De forma semelhante, terminologias relacionadas à escuta, ao silêncio ou ao silenciamento também são utilizadas quando falamos de problemas de saúde.

Esta terminologia dificulta a identificação de situações em que o problema não é propriamente a “invisibilização” ou o “silenciamento”. Um assunto pode ser altamente visível ou audível na esfera pública e ainda assim não ser alvo de tentativas de resolução ou de uma resolução efetiva. As emergências de saúde pública são um caso paradigmático. Trata-se de problemas que recebem um nível elevado de atenção política e mediática - e, ainda assim, é possível detectar dimensões que não recebem a atenção que mereceriam. A relativa desatenção que foi dada a questões de saúde mental durante a pandemia de covid-19 demonstra isso. A utilização da categoria da invisibilidade (ou similares) é, portanto, redutora. Não se trata de uma questão invisível ou silenciada, mas da estrutura de inteligibilidade através da qual essa questão é percecionada pelos atores sociais e inserida (ou não) numa agenda de política pública. Dito de outra forma, quando falamos da “atenção” dada a um problema, é importante considerar sua qualidade, e não tanto a quantidade. Um assunto pode ser muito discutido nos meios de comunicação social, ou constar da lista de prioridades dos decisores políticos e, ainda assim, ser abordado de uma forma superficial, infrutífera ou contraproducente.

Prefiro, em vez disso, falar de negligência (Nunes, 2016NUNES, J. "Ebola and the production of neglect in global health." Third World Quarterly. v. 37, n. 3, p. 542-556, 2016.). A negligência em saúde pode ser definida como um processo político por meio do qual uma determinada questão é apartada dos mecanismos conducentes a uma efetiva resolução - mecanismos esses que incluem um reconhecimento da sua importância por parte dos atores com a capacidade para influenciar decisivamente os resultados, a existência de conhecimento científico suficiente, políticas públicas eficazes e um controlo social sobre elas. A negligência pode incluir doenças, mas vai muito além delas. É possível que uma doença seja priorizada (por exemplo, com políticas focadas na sua erradicação ou no controlo dos seus vetores) ao mesmo tempo que são negligenciados os seus determinantes socioeconómicos ou as experiências de determinados grupos com ela (Hotez, 2013HOTEZ, P. J. Forgotten people, forgotten diseases: the neglected tropical diseases and their impact on global health and development. 2nd. ed. Washington, DC: ASM Press, 2013.; Oliveira, 2018OLIVEIRA, R. G. Meanings of Neglected Diseases in the Global Health agenda: the place of populations and territories. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 23, n. 7, p. 2291-2302, 2018.).

O foco em populações é importante porque, para a mesma doença, podem ocorrer situações de negligência relacionadas com a forma como ela é experienciada num contexto socioeconómico, cultural ou histórico - sejam em processos de vulnerabilização quando determinados grupos se encontram mais expostos que outros, seja na ausência de políticas públicas direcionadas para as necessidades e especificidades desses grupos, seja na falta de reconhecimento de dinâmicas históricas que se traduzem em iniquidades. O foco em populações negligenciadas é também importante porque aponta para a dimensão relacional do problema. A negligência é uma relação política e social, através da qual determinados grupos são colocados em situação de vulnerabilidade perante o adoecimento ou impedidos de ter acesso aos melhores cuidados. Subjacente à negligência está, portanto, o poder - um poder que estabelece hierarquia e leva à desvantagem, à desigualdade e ao dano (Nunes, 2014NUNES, J. "Questioning health security: Insecurity and domination in world politics." Review of International Studies. v. 40, n. 5, p. 939-960, 2014.). A negligência é uma manifestação da dominação, acompanhando as dinâmicas destrutivas do capitalismo, do racismo, da misoginia, do capacitismo e da LGBTQ-fobia, entre outros.

Pensar a negligência das populações é importante, mas não suficiente, dados os desafios de pensar o adoecimento num contexto planetário. Por um lado, um aspecto importante da negligência é o caráter sindémico dos padrões de doença, isto é, as interações que se estabelecem entre doenças e agravos, com cadeias de causalidade que podem potenciar efeitos, provocar mutações e alterar os padrões de transmissibilidade. É necessário também considerar as interações entre doenças e comportamentos humanos que, uma vez mais, podem produzir importantes alterações - um exemplo é a resistência antimicrobiana, que está em parte relacionada com a forma como os antibióticos são usados e abusados. Ao mesmo tempo, a transmissibilidade inter-espécies também coloca desafios para uma discussão sobre negligência. Até que ponto, por exemplo, a manutenção dos padrões dominantes na indústria alimentar pode ser considerada uma situação de negligência, dado que nesta indústria a automatização, a ganância e a crueldade são mobilizadas para satisfazer as necessidades de uma população humana crescente, e animais mais-que-humanos são criados, transportados e comercializados em condições fitossanitárias frequentemente duvidosas? A devastação do planeta, com a perda da biodiversidade, a destruição dos biomas e ecossistemas, a desertificação, a poluição dos oceanos, entre outros efeitos, coloca em evidência o cenário de tensionamento das relações entre seres humanos e seres mais-que-humanos - cenário esse que, em última instância, coloca em risco a própria sobrevivência humana. Tudo considerado, a negligência relaciona-se não apenas com as experiências de doença de determinados grupos negligenciados, mas sim, de forma mais abrangente, com cenários de insalubridade ou adoecimento nos quais a determinação das doenças, vista numa perspetiva planetária, é exponenciada por dinâmicas de dominação que atingem determinados grupos com especial intensidade, impactando as suas vidas de forma devastadora e dificultando suas possibilidades de reação.

A invisibilidade pode ser uma camada da negligência ou um caminho para isso, mas não é a única. Um assunto pode ser visível mas ao mesmo tempo não ser considerado importante. Teríamos, neste caso, uma situação não de invisibilidade, mas de apatia - a negação da importância de um determinado problema, ou dos grupos que estão expostos a esse problema. Também é possível que o assunto seja considerado importante mas não seja pautado na lista de objetivos políticos - neste caso teríamos uma negação de agenda ou de política. Finalmente, é possível que um assunto seja alvo de políticas que, por sua vez, se mostram ineficazes, no seu desenho, implementação ou monitorização, para resolver o problema de forma sustentada - neste caso estaríamos perante uma negação do cuidado, entendido de forma mais abrangente.

Posto isto, é possível concluir que a negligência não significa apenas omissão. Ela é produzida. Acontece na sequência de escolhas políticas que promovem invisibilização, menorizam a importância, negam política pública ou restringem a responsabilização política de tal forma que o cuidado não acontece. Todavia, ao pensar a intencionalidade da negligência, seria demasiado apressado e simplista assumir que, por detrás dela, está necessariamente um projeto de negligenciar. Por vezes existe de fato essa intenção, seja por interesse económico ou estratégico, seja por racismo, egoísmo, má-fé ou outra qualquer motivação. Nestes casos, a negligência pode acontecer através de um conjunto de ações, omissões e obstruções - a resposta do governo federal brasileiro à pandemia de covid-19 é um bom exemplo (Nunes, 2022NUNES, J. "Neglect and resistance in Brazil’s pandemic." Current History. v. 121, n. 832, p. 50-56, 2022.). Noutros casos, a negligência não depende de um agente humano específico - ainda que, como é óbvio, não esteja desligada da ação humana em sentido lato. Aqui, a negligência decorre da forma como a sociedade está organizada, isto é, das estruturas (leis, instituições, formas de organização do trabalho e da produção) que nela se consolidaram, assim como das relações e parâmetros de ação que estas estruturas induzem ou tornam possíveis. A negligência pode, assim, dizer-se estrutural, sistemática ou mesmo institucional - ou seja, a produção da negligência pode estar inscrita nas instituições, inclusive naquelas que visam aliviá-la. Neste contexto, a negligência torna-se impessoal. Ela não necessita necessariamente de uma vontade de negligenciar; pode até ocorrer como efeito secundário ou consequência não intencionada do funcionamento de instituições ou da implementação de políticas.

Um outro mal-entendido acerca da negligência relaciona-se com a sua eventual superação. Existirá uma situação de não-negligência, em que os todos os mecanismos que produzem negligência foram eliminados? Num mundo de recursos limitados, a definição de agendas políticas implica escolhas e priorização. Haverá sempre algo ou alguém que está a ser relegado para segundo plano. A política existe exatamente por causa da impossibilidade de que tudo seja feito sobre tudo a todo o momento. O contrário da negligência é, portanto, a política. Mas não se trata da política da competição, do interesse próprio e da vantagem sobre os outros ou da negação deles. Não me refiro à política do curto-prazo, paroquial, virada para si mesma, para o próprio grupo ou espécie. Pelo contrário, um caminho político a partir da negligência começa pelo reconhecimento que um certo grau de negligência necessariamente resulta da interação humana. Reconhecer a permanente produção de negligência é um primeiro passo necessário para aprendermos a mitigar os seus efeitos mais perversos.

O caminho a partir da negligência passa por uma política com um propósito emancipatório. Inspirado por Ken Booth (2007BOOTH, K. Theory of world security. Cambridge: Cambridge University Press, 2007.), entendo emancipação como as escolhas políticas concretas que abrem espaço para que cada vez mais pessoas tenham a capacidade de tomar decisões e agir em questões respeitantes à sua própria vida; e que permitem que a vida dos humanos se paute por uma relação de respeito com outras formas de vida mais-que-humanas e com o planeta como um todo. A emancipação não é uma narrativa grandiosa e utópica, da liberdade absoluta do Homem que conquista a Natureza. Trata-se de aliviar (e, se possível, eliminar) os obstáculos que impedem as pessoas de perspetivar as suas vidas, a sua relação com os outros e com aquilo que as rodeia, ou que as impedem de ter alguma influência sobre a sua trajetória de vida. Como defende Booth, em cada conjuntura política há uma escolha mais emancipatória do que as outras. Em todas as questões, das locais às planetárias, há caminhos que permitem que mais pessoas possam ascender da luta pela sobrevivência e perseguir as suas próprias versões de uma vida boa. Há também caminhos que permitem que a boa vida dos humanos seja compatibilizada com os direitos de animais mais-que-humanos e com a preservação do planeta.

A política contra a negligência deve também promover a reparação de injustiças históricas, que se liga à emancipação. É necessário ir além das conjunturas e das escolhas pontuais, trabalhando no desmantelamento ou na reconstrução das estruturas que, ao longo do tempo, propiciaram e legitimaram as negligências sistemáticas. A necessidade de ações reparadoras, e especificamente de políticas de ação afirmativa orientadas para a equidade, ajuda a justificar formas “benignas” de negligência, ainda que temporárias. Perante as violências cometidas ao longo da história (um exemplo seria o colonialismo e o esclavagismo), através das quais alguns adquiriram riqueza, vantagem e conforto à custa de outros que foram espoliados, cerceados e destruídos, é legítimo que aqueles que ainda sofrem os efeitos dessa injustiça sejam agora privilegiados. Também é legítimo esperar que aqueles que ainda usufruem das vantagens adquiridas de forma injusta assumam a sua responsabilidade histórica nesse processo reparador.

Em suma, repensar os sentidos da saúde global implica lidar com os efeitos da construção de mundo em termos da produção da negligência - um dilema insolúvel que aponta para a necessidade de um permanente trabalho político, emancipatório e de reparação.

O eu que escreve

Assim como as histórias que contamos sobre o mundo nunca fazem justiça à sua complexidade e beleza, também as palavras que escrevo sempre me parecem inadequadas. A minha relação com o ato de escrever é ambígua. Sei que apenas consigo arranhar a superfície do que quero dizer e do que é possível ser escrito. Ao mesmo tempo, sigo a máxima de Joan Didion (2006DIDION, J. We Tell Ourselves Stories in Order to Live: Collected Nonfiction. London: Everyman's Library, 2006.) de que, afinal, “contamo-nos histórias a nós próprios para viver” (“we tell ourselves stories in order to live”).

A forma como navego entre idiomas é um exemplo dessa ambiguidade. Sinto-me em casa ao escrever em português, mas passo grande parte do meu tempo a ler, falar e pensar em inglês. Transito entre as duas línguas no meu dia-a-dia, fazendo milhares de pequenas escolhas subconscientes, seguindo, para isso, critérios de eficácia ou gosto. Enquanto cidadão português que, à data de escrever este ensaio, residia e trabalhava numa universidade do Reino Unido, passo grande parte do tempo a escrever num lugar que poderia ser chamado de exílio, apartado da minha língua-mãe. Isso significa uma distância acrescida entre mim e os meus textos académicos. “Health” é, para mim, mais frio e mais distante do que “saúde”. Escrever este texto é um momentâneo regresso a casa.

Existe ambiguidade também na forma como me posiciono enquanto homem europeu que estuda o Brasil e escreve sobre a realidade brasileira. Trata-se de uma realidade muito diferente da minha. A realidade sobre a qual escrevo é atravessada de formas de desigualdade, violência e injustiça que não posso, na minha existência privilegiada e protegida, sequer começar a compreender. Sei que a minha visão é a de um estrangeiro. Sei também que, como português, oriundo da terra de Pedro Álvares Cabral e educado num sistema de ensino que me transmitiu uma versão higienizada e beatífica da colonização, corro o risco de ter meu olhar e a minha escrita chegando impregnados das emanações dos pântanos do império. A escrita também se faz, nesse risco e nessa negociação ética, permanente questionamento. Considero que há um valor crítico nessa distância, nesse sair de mim e tentar empatizar com uma realidade que não é a minha, sem pretender reduzi-la ao que me é familiar.

Em resultado desta tensão no meu posicionamento, vejo a escrita como uma questão de dever - literalmente. Quando escrevo pago uma dívida, mas, ao mesmo tempo, contraio mais dívidas - a todos os que me inspiraram, ensinaram, mostraram como olhar, todos os que me deixaram entrar nas suas casas e nos seus dias e me permitiram ver os seus mundos, todos os que partilharam as suas ideias comigo, todos os que me acompanharam na jornada. As minhas palavras não são só minhas. Eu nunca escrevi nada sozinho. E esta dívida que contraio impele-me a escrever mais, a escrever de novo, a tentar que a minha escrita seja também reescrita. Além disso, escrever é um dever no sentido de compromisso. Procuro usar o meu privilégio para ser aliado numa política emancipatória e de reparação. Tenho acesso a recursos e espaços que outros não têm. Mas não sou testemunha de nada, nem porta-voz de ninguém, pois sei que não devo pretender falar em nome de outros. Ao escrever, ao fazer disso a minha vida, sou acima de tudo um devedor.

É relevante aqui discutir a suposta separação entre o eu que escreve e o mundo sobre o qual escrevo. A Teoria Crítica lembra-nos da impossibilidade de separar o sujeito de um suposto “objeto” de pensamento (Held, 1990HELD, D. Introduction to critical theory: Horkheimer to Habermas. Cambridge: Polity Press, 1990.). Isto é particularmente relevante quando abordamos uma realidade política e social na qual inevitavelmente participamos. Não somos observadores neutros e o conhecimento não é imparcial ou objetivo. Pelo contrário, através da noção de interesses constitutivos do conhecimento (Linklater, 2007LINKLATER, A. The achievements of Critical Theory. In: LINKLATER, A. (Ed.), Critical theory and world politics: citizenship, sovereignty and humanity. Abingdon: Routledge, 2007. p. 45-59.), a Teoria Crítica diz-nos que o conhecimento deriva do nosso posicionamento na sociedade, assim como das agendas, pressupostos, interesses, desejos e preconceitos que trazemos ao ato de conhecer. Isso sublinha a importância de assumirmos um interesse emancipatório e de reparação histórica no ato de construir conhecimento. A “escrita do mundo”, enquanto forma de construir conhecimento, é também uma intervenção no mundo que está além da escrita.

Esta questão entronca com a ideia de uma abordagem crítica à saúde global (Biehl; Petryna, 2013BIEHL, J.; PETRYNA, A. Critical global health. In: BIEHL, J.; PETRYNA, A. (Ed.), When people come first: critical studies in global health. Princeton: Princeton University Press, 2013. p. 1-20.). Esse tipo de abordagem começa por um momento reflexivo, no qual nos reconhecemos enquanto intervenientes do mundo que estudamos e sobre o qual escrevemos. Através desse momento reflexivo, assumimos uma responsabilidade. Ao contrário de alguns seguidores da Teoria Crítica, não vou ao ponto de dizer que o conhecimento ou questiona o status quo ou acaba por ser, ele mesmo, cúmplice de sua manutenção. Um dos propósitos da Teoria Crítica é exatamente a crítica imanente, ou seja, a crítica feita a partir do interior das estruturas de dominação, que identifica contradições e falhas nos arranjos existentes para expor a sua hipocrisia, insuficiência e contingência - e, assim, abrir as portas à sua transformação (Antonio, 1981ANTONIO, R. J. Immanent critique as the core of critical theory: its origins and developments in Hegel, Marx and Contemporary Thought. British Journal of Sociology, New York, v. 32, n. 3, p. 330-345, 1981. DOI: 10.2307/589281
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). É este o tipo de abordagem que proponho: uma crítica imanente da saúde global, que aponte o dedo às múltiplas violências e as exponha como hipocrisias, ao mesmo tempo que ajude a alavancar as potencialidades já existentes.

Uma questão de lugar

Este capítulo começou com uma história de origens: o internacionalismo em saúde que esconde um legado colonial. Refletindo sobre este internacionalismo, Didier Fassin (2012FASSIN, D. That Obscure Object of Global Health. In: INHORN, M. C.; WENTZELL, E. A. (Ed.), Medical anthropology at the intersections: histories, activisms, and futures. New York: Duke University Press, 2012. p. 95-115.) discute a saúde global para além da constatação de uma suposta dissolução de fronteiras. Para ele, a saúde global é também um “poderoso analisador das sociedades contemporâneas” (Fassin, 2012, p. 103)FASSIN, D. That Obscure Object of Global Health. In: INHORN, M. C.; WENTZELL, E. A. (Ed.), Medical anthropology at the intersections: histories, activisms, and futures. New York: Duke University Press, 2012. p. 95-115.. O seu significado reflete os parâmetros da sociedade e permite-nos fazer um comentário crítico sobre elas. Temos muito a ganhar em ter isto em conta quando discutimos o que é saúde global e, mais especificamente, o que é o “global” em relação à saúde. O global é mais do que “sem-fronteirismo”, a ideia de que a saúde e a doença acontecem num mundo sem fronteiras. Esta ideia é altamente duvidosa, dada a persistência de desigualdades e divisões, não só em termos de geografia mas também de género, racialização, condição socioeconómica, idade, deficiência, entre outras caraterísticas. Vivemos ainda num mundo de múltiplas fronteiras, interligadas entre si.

Neste contexto, proponho pensar o global em saúde não como dado empírico já alcançado, mas como promessa - um horizonte em movimento, mas que funciona como ponto de referência para a crítica de políticas concretas. Esta promessa, que visa recuperar um sentido do global em saúde face às múltiplas críticas que este tem recebido nos últimos anos, parte do pressuposto de que, em vez de descrever um mundo no qual as fronteiras se teriam esbatido, a saúde global deve estar ativamente envolvida na luta contra as várias fronteiras que se reproduzem diariamente. Esta luta tem cinco vertentes - cinco formas de reescrever o global em saúde. A primeira é o global-planetário. Nela, o global significa a totalidade do planeta, as suas diferentes espécies e ecossistemas que sustêm a vida e que têm uma dignidade independente da sua utilidade para os humanos. Entender a saúde global desta forma implica reconhecer a interconexão profunda entre a saúde dos humanos e todo o planeta mais-que-humano, do qual os humanos não podem ser separados.

A segunda vertente é o global-coletivo. Nesta, o global significa um compromisso com uma visão focada, não em indivíduos abstraídos do seu contexto, mas em coletividades inseridas num cenário de relações sociais e políticas, nas quais as doenças emergem e adquirem o seu significado (Paim; Almeida Filho, 1998PAIM, J. S.; ALMEIDA FILHO, N. Saúde coletiva: uma" nova saúde pública" ou campo aberto a novos paradigmas? Revista de saúde Pública, São Paulo, v. 32, n. 4, p. 299-316, 1998.). A ideia de saúde coletiva, que se fortaleceu nos debates sobre saúde pública e medicina social na América Latina, contém esta ideia de globalidade em saúde enquanto projeto de transformação social.

A terceira vertente é o global-público. Aqui, refiro-me a público no sentido de responsabilidade e gestão. A saúde deve ser vista como um direito universal que deve ser garantido por órgãos públicos motivados unicamente pelo bem de cada um e de todos, órgãos esses que dependem da participação e controlo social dos cidadãos no desenho, implementação e monitorização de políticas. Os conselhos de saúde, presentes no Sistema Único de Saúde do Brasil, são, apesar das suas várias insuficiências, um passo nessa direção (Pereira Neto, 2012)PEREIRA NETO, A. F. Conselho de favores. Controle social na saúde: a voz de seus atores. Rio de Janeiro: Garamond Universitária, 2012., assim como os mecanismos de participação previstos na Constituição brasileira de 1988.

A quarta vertente é o global-periférico. O global tem de vir das margens, ou melhor, dos saberes e mundividências que foram historicamente marginalizados - da periferia que durante séculos foi contida e controlada através do aparato legislativo e securitário da saúde global de inspiração colonialista. Precisamos de uma saúde global descentrada, cada vez mais ocupada por estes conhecimentos, línguas e modos de pensar distintos e ricos, porque são baseados numa experiência distinta das relações e estruturas de poder. Este movimento de ocupação deve ter propósitos emancipatórios e de reparação histórica, constituindo um processo de descolonização subversiva dos lugares de origem da saúde global. É importante notar que o periférico não se resume aos países e regiões do chamado “Sul Global” - embora abordagens à saúde global vindas do Sul sejam parte do que é necessário (Ventura et al., 2020VENTURA, D. F. L. et al (2020). Desafios da pandemia de COVID-19: por uma agenda brasileira de pesquisa em saúde global e sustentabilidade. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 36, n. 4, 2020. DOI: 10.1590/0102-311X00040620
https://doi.org/10.1590/0102-311X0004062...
). É necessário, ao mesmo tempo, complicar o que se entende por “Sul Global”, reconhecendo a presença de saberes e mundividências periféricos também nos centros de poder do “Norte”, e resistindo à tentação de criar categorias estanques, imutáveis e geograficamente determinadas.

A quinta e última vertente é o global-cotidiano. O conceito de vida cotidiana, presente nas críticas marxista e feminista, permite-nos pensar na transversalidade entre o que normalmente se designa por global e local (Lefebvre, 1991LEFEBVRE, H. Critique of everyday life: Introduction. London: Verso, 1991.; Smith, 1987SMITH, D. E. The everyday world as problematic: a feminist sociology. Boston: Northeastern University Press, 1987.). Os autores que trabalham com este conceito recusam descartar a vida cotidiana como algo de trivial ou inconsequente. Pelo contrário, o cotidiano revela a atomização de relações, a mercantilização, burocratização, urbanização e especialização do trabalho, intrínsecas à organização global do capitalismo (Gardiner, 2000GARDINER, M. E. Critiques of everyday life. Abingon: Routledge, 2000.). É nas relações concretas da vida cotidiana que se observa a reprodução global da desigualdade, vulnerabilização e negligência. O conceito de vida cotidiana também permite pensar possibilidades de resistência. Isto porque a vida cotidiana não é apenas o terreno da alienação, mas também a plataforma para a realização das potencialidades humanas. O cotidiano revela múltiplas dimensões da existência humana, incluindo a “poética, irracional, corpórea, ética e afetiva” (Gardiner, 2000, p. 19)GARDINER, M. E. Critiques of everyday life. Abingon: Routledge, 2000. e, dessa forma, pode tornar-se uma arena privilegiada para a transformação da realidade.

A vida cotidiana é também o local onde pode ser negociada uma ética da escrita. Falo de uma escrita que pretende ser analítica (investigando e refletindo as tensões sociais, a multiplicidade de experiências, as justificações e reivindicações dos atores, a opressão e o potencial não realizado); crítica (identificando contradições entre aquilo que os arranjos sociais ostensivamente proclamam e o que produzem de facto); e política (orientada para a emancipação e a reparação das injustiças históricas). O ato cotidiano de escrever, por mais inconsequente que possa parecer, faz parte dessa construção reiterada de mundo que subjaz a todos os nossos esforços para dar sentido à saúde global. É isso que faço, é assim que começo.

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    Este artigo é uma versão atualizada e revista do capítulo original “Escrever saúde global”, publicado em Di Giulio, Ventura e Ribeiro (2023)DI GIULIO, G.; VENTURA, D. F. L.; RIBEIRO, H. (Eds.), As múltiplas dimensões da crise de Covid-19: perspectivas críticas da Saúde Global e Sustentabilidade. São Paulo: Faculdade de Saúde Pública da USP, 2023.. Agradeço às organizadoras do livro pela autorização para publicação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    29 Jun 2023
  • Aceito
    04 Set 2023
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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