Sentidos de (des)regulação do mercado de trabalho no setor da saúde em Portugal

Ana Paula Marques Sobre o autor

Resumo

Reconhece-se a escassez de investigação sobre o mercado de trabalho do setor da saúde. Com a ampliação dos fenómenos de precarização objetiva e subjetiva, decorrente da agenda neoliberal de mercadorização do valor do trabalho e das reformas gestionárias da saúde, a “atipicidade” dos vínculos laborais e a “insegurança” de vida dos profissionais de saúde têm introduzido lógicas de segmentação e polarização do mercado de trabalho. Este deixa de ser palco apenas de mercados protegidos, passando a incluir mercados desregulados e “híbridos”. Neste artigo pretende-se explorar os sentidos, com implicações desiguais, da (des)regulação do mercado de trabalho no setor da saúde em Portugal. Parte-se de fontes secundárias e de investigação qualitativa suportada em 32 entrevistas semiestruturadas feitas com profissionais de saúde, que atestam o fenômeno da crescente individualização e subcontratação laboral. Propõe-se um modelo conceitual que capte os sentidos de (des)regulação, num continuum de regulação social e mobilidade profissional, traduzindo mercados protegidos (profissionais e internos) e mercados híbridos (terciarizados e secundários) a serem testados por confronto empírico e investigação futura.

Palavras-chave:
Portugal; Profissionais de Saúde; Precarização Objetiva e Subjetiva; Mercados de Trabalho; (Des)regulação

Introdução

Neste artigo pretende-se explorar os sentidos, com implicações desiguais, da (des)regulação do mercado de trabalho verificada no setor da saúde em Portugal. Tradicionalmente, o mercado de trabalho estrutura-se por meio da fixação de jurisdições profissionais consolidadas na credencial e na exclusividade do monopólio do “ato profissional”.11Reconhecem-se as tradições anglo-saxônicas e francófonas na literatura estabilizada da sociologia das profissões. Neste artigo, assume-se o conceito de monopólio profissional como o controle do acesso à profissão pelo domínio de uma expertise, sob a alçada do Estado, e a constituição de um mercado específico, com a base de fechamento social (closure social) originalmente proposta por Weber. Nesse mercado profissional dominante tem vindo a ser patente a constituição de mercados segmentados constituídos pela presença de vínculos contratuais precários, mesmo em países com forte tradição sindical. Igualmente, novos arranjos organizacionais, articulados com a difusão de plataformas digitais, introduzem “zonas cinzentas” ou regimes “híbridos” de trabalho no setor da saúde (OPSS, 2022OPSS - OBSERVATÓRIO PORTUGUÊS DOS SISTEMAS DE SAÚDE. Relatório de primavera 2022: e agora?. [S. l.]: OPSS, 2022. Disponível em <Disponível em https://www.opssaude.pt/wp-content/uploads/2022/06/RELATORIOPRIMAVERA-2022.pdf >. Acesso em: 20 nov. 2022.
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).

Na base dessa fragmentação da vinculação laboral do profissional de saúde estão as reformas gestionárias e a empresarialização dos modelos de governação, o maior protagonismo do setor privado e, mais recentemente, das empresas de trabalho temporário. Essas tendências têm potencializado novas formas de desregulamentação laboral e instabilidade das condições de trabalho, ameaçando os alicerces da socialização e da cultura de trabalho do Serviço Nacional de Saúde (SNS), equitativo e inclusivo.

Por sua vez, assiste-se a uma pressão muito forte e recente do setor privado, que, beneficiando-se da escassez desses profissionais e da situação pandêmica, tem conseguido atrair os melhores profissionais, sobretudo aqueles com carreiras construídas a partir de uma aprendizagem longa em hospitais públicos. As disrupções dos serviços por falta de profissionais suficientes para as equipes funcionarem, a elevada taxa de absentismo e a excessiva rotatividade provocada pelos que saem para o setor privado estão na base da degradação das condições de trabalho.

Adicionalmente, faltam profissionais de saúde em hospitais e centros de saúde de cuidados primários, em parte porque muitos emigraram na primeira década do século XXI (Amaral; Marques, 2014AMARAL, S.; MARQUES. Emigração portuguesa de profissionais de saúde: (di)visões em torno de um fenómeno emergente. In: MARTINS, M. I. C. et al. (Org.). Trabalho em saúde, desigualdades e políticas públicas. Braga: Cics; Rio de Janeiro: Fiocruz, 2014. p. 141-158.),22No período entre 2011 e 2015, conhecido pela crise da austeridade, com a intervenção do Fundo Monetário Internacional, do Banco Central Europeu e da Comissão Europeia, Portugal registrou um número elevado de saídas de profissionais de saúde para o estrangeiro (Amaral; Marques, 2014). em razão do congelamento das carreiras e da difusão dos modelos gestionários e empresariais no setor da saúde. Essa “fuga”33O fenômeno de brain drain ou “fuga de cérebros” de trabalhadores do setor da saúde é particularmente presente nos países do sul da Europa (Wismar et al., 2011). tem provocando dificuldades na gestão dos recursos humanos dedicados ao SNS (hospitais e centros de saúde).

Reflexo da crise pandêmica, da incapacidade de antecipar necessidades formativas e competências digitais para fazer face aos desafios de uma “saúde digital” (OPSS, 2022OPSS - OBSERVATÓRIO PORTUGUÊS DOS SISTEMAS DE SAÚDE. Relatório de primavera 2022: e agora?. [S. l.]: OPSS, 2022. Disponível em <Disponível em https://www.opssaude.pt/wp-content/uploads/2022/06/RELATORIOPRIMAVERA-2022.pdf >. Acesso em: 20 nov. 2022.
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) e do rejuvenescimento dos profissionais de saúde, as recentes contestações sociais visam melhorar as condições de trabalho. Além de revisões salariais e estabilidade de carreira, sintomas de insatisfação profissional e burnout ganham visibilidade face à intensificação do ritmo de trabalho agudizado em contexto de pandemia.

Neste artigo, assume-se a multidimensionalidade do processo de precarização do trabalho transversal aos grupos de profissionais de saúde.44Nessa precarização incluem-se médicos, enfermeiros, dentistas, farmacêuticos, radiologistas, fisioterapeutas, dentre outros, que exercem sua atividade profissional nos diversos contextos organizacionais (públicos e privados). No quadro vigente de ideologia neoliberal, pretende-se desocultar fraturantes erosões dos “monopólios” dos mercados de trabalho da saúde, pautados também por processos de precarização, desregulação e vigilância oculta. Por sua vez, ao convocar a literatura especializada sobre precarização objetiva e subjetiva (Choonara; Murgia; Carmo, 2022CHOONARA, J.; MURGIA, A.; CARMO, R. Faces of precarity: critical approaches to precarity: work, subjectivities and movements, Bristol: Bristol University Press , 2022.), é possível dar conta do movimento de fundo das múltiplas faces da crise do trabalho ampliadas pela pandemia (Marques, 2020MARQUES, A. P. Regresso ao trabalho em tempos pandémicos: urgência de vinculação social. In: MARTINS, M.; RODRIGUES, E. (Ed.). A Universidade do Minho em tempos de pandemia: projeções. Braga: UMinho Editora, 2020. p. 127-151.). Para sua operacionalização, apoiamo-nos em fontes secundárias, que atestam o fenômeno crescente de individualização e subcontratação laboral, bem como recorremos a investigação qualitativa.

Este artigo organiza-se a partir das seguintes seções: primeiro, dá-se conta da urgência da reflexão sobre o (des)valor do trabalho perante os movimentos de fundo de precarização objetiva e subjetiva do capitalismo neoliberal, que, tal como uma mancha de óleo, a todos e a tudo chega. Em seguida, enquadram-se as tendências de transformação do setor da saúde em Portugal. Na terceira e na quarta secções, mobilizam-se evidências empíricas de investigação em curso, ilustrando os sentidos de (des)regulação do mercado de trabalho no setor da saúde. Nas notas finais, avança-se um modelo conceitual sobre o mercado de trabalho no setor da saúde, na expetativa de alavancar uma investigação futura.

Precarização objetiva, subjetiva e hibridização do trabalho

São profundas as alterações das condições de produção e reprodução dos atores sociais nos interstícios da “sociedade de risco digital” (Lupton, 2019LUPTON, D. Digital risk society. In: BURGESS, A.; ALEMANNO, A.; ZINN, J. (Ed.). The routledge handbook of risk studies. London: Routledge , 2019. p. 301-309.), da “pandemia do capital” (Antunes, 2020ANTUNES, R. Coronavírus: o trabalho sob fogo. São Paulo: Boitempo, 2020.) e da “pandemia da precarização” (Choonara; Murgia; Carmo, 2022CHOONARA, J.; MURGIA, A.; CARMO, R. Faces of precarity: critical approaches to precarity: work, subjectivities and movements, Bristol: Bristol University Press , 2022.). Como tal, importa dar conta da urgência da reflexão sobre o (des)valor do trabalho, tomando por referência os movimentos de fundo de precarização objetiva e subjetiva do capitalismo neoliberal.

Sem que seja possível traçar uma definição precisa e consensual dos conceitos de “precário”, “precaridade” e “precarização”, estes há muito aparecem nas investigações e nos estudos realizados sobre as metamorfoses do mundo do trabalho, registrando-se, nas últimas décadas, uma sistematização da literatura a partir de duas abordagens principais (Armano; Morini; Murgia, 2022ARMANO, E.; MORINI, C.; MURGIA, A. Conceptualizing precariousness: a subject-oriented Approach. In: CHOONNARA, J.; MURGIA, A.; CARMO, R. M. (Ed.). Faces of precarity: critical approaches to precarity: work, subjectivities and movements. Bristol: Bristol University Press, 2022. p. 29-43., p. 29). Uma delas nos remete à precarização objetiva, ao incluir jornadas de trabalho irregulares ou de tempo parcial, pagamento por hora, contratos temporários ou de curto prazo e contratos de prestação de serviços. Mais recentemente, por força da utilização das plataformas digitais, emergem formas de emprego sob designações novas, como “nômadas digitais” ou freelancers, que replicam a ausência de traços de regulação da força de trabalho. Trata-se de formas de emprego divergentes da “relação de trabalho padrão”, baseada no contrato permanente, de tempo integral e com proteção social e laboral, que se desenvolveu sob a égide do compromisso social fordista, em particular nas economias de capitalismo avançado (Antunes, 2018ANTUNES, R. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviço na era digital. São Paulo: Boitempo , 2018.; Kalleberg; Vallas, 2018KALLEBERG, A. L.; VALLAS, S. P. (Ed.). Precarious work: book series: research in the sociology of work. Bingley: Emerald, 2018.). Como tal, essa linha de estudos centra-se nas transformações das condições objetivas do emprego e em suas consequências em termos de proliferação de empregos mal pagos e com más condições de trabalho. “Good jobs, bad jobs” (Kalleberg, 2011KALLEBERG, A. L. Good jobs, bad jobs: the rise of polarized and precarious employment systems in the United States, 1970s-2000s. New York: Sage, 2011.) expressa, portanto, posições e relações de poder desiguais entre os que se encontram num mercado regulado, primário e protegido, por oposição aos que são pressionados para mercados secundários, periféricos e desregulados.

Por sua vez, muitos trabalhadores “instalados” na precariedade laboral exteriorizam fenômenos de desqualificação, exploração, burnout, desânimo, incapacidade e desconfiança (inter)pessoal no futuro, remetendo-nos a uma reflexão mais profunda da reconversão sociocultural na contemporaneidade. A enfâse na precarização subjetiva (Armano; Bove; Murgia, 2017ARMANO, E.; BOVE, A.; MURGIA, A. (Ed.). Mapping Precariousness, labour insecurity and uncertain livelihoods: subjectivities and resistance. London: Routledge, 2017.) dá-nos conta da extensão das condições de progressão profissional individualizadas, precárias e incertas nas trajetórias de vida dos atores sociais. O foco nas representações sociais, nos recursos cognitivos e emocionais e na capacidade de mobilização no nível dos contextos de ação e interação nos remete a aspetos ontológicos e existenciais da vida e da ação coletiva. Ou seja, na linha de Bourdieu (1998BOURDIEU, P. La précarité est aujourd’hui partout. In: BOURDIEU, P. Contre-feux. Paris: Liber Raisons D’Agir, 1998. p. 95-101.), a “precariedade está em toda parte” e envolve as condições sociais de produção e reprodução dos atores sociais. Nessa vertente, associa-se a precarização subjetiva ao enfraquecimento e à corrosão dos laços sociais e de proteção laboral, à vulnerabilidade e à incerteza na projeção de futuros profissionais e, no limite, à responsabilização individual da “sorte ou azar” do ator social enquanto empresário de si próprio. Este assume-se autor de seu destino, interiorizando o ônus da responsabilidade pela sua existência, incorporando um éthos precário muitas vezes acompanhado por identidades incertas e negativas. Ao instigar o ator social a sua (auto)exploração e servidão (in)voluntária (Antunes, 2018ANTUNES, R. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviço na era digital. São Paulo: Boitempo , 2018.), reitera-se o ideário de “sacralização” do mercado e reforça-se a tese da mercadorização do valor do trabalho e sua incrustação nos circuitos de acumulação do capital.

Nessa dinâmica de precarização,55Importa considerar os fenómenos de precarização a partir dos processos de historicização e relativização relacional, que conferem densidade e especificidade às análises sociológicas dos espaços sociais de trabalho. que atinge cada vez mais grupos alargados de trabalhadores, importa ainda dar conta da emergência de arranjos “híbridos” ou “cinzentos” de trabalho (Azaïs, 2019AZAÏS, C. Hybridation. In: BUREAU, M.-C. et al. (Ed.). Les zones grises des relations de travail et d’emploi: un dictionnaire sociologique. Buenos Aires: Teseo, 2019. p. 213-225.; Bureau et al., 2019BUREAU, M.-C. et al. (Dir.). Les zones grises des relations de travail et d’emploi: un dictionnaire sociologique. Buenos Aires: Teseo , 2019.; Murgia et al., 2020MURGIA, A. et al. Hybrid areas of work between employment and self-employment: emerging challenges and future research directions. Frontiers in Sociology, Lausanne, v. 86, n. 4, p. 1-8, 2020. DOI: 10.3389/fsoc.2019.00086
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), que potenciam a instabilidade e a desregulamentação social e laboral nas dimensões objetivas e subjetivas explanadas.

Com efeito, o trabalho mediado por plataformas digitais66Ainda que as plataformas digitais sejam uma temática recente, elas estão em franco desenvolvimento e assumem diversas configurações, pelo que não se encontra (ainda) totalmente estabilizada sua definição. Para uma sistematização do conhecimento sobre essa temática, conferir o recente relatório da ILO (2021). tem vindo a envolver trabalhadores heterógenos, com conteúdos e estatutos muito diversificados. Pode representar “nômades digitais”, contratados diretamente pelas empresas ou trabalhando por conta própria, como empresários ou freelancers em regime de subcontratação. Tanto pode conduzir a uma retaylorização do trabalho, a uma desqualificação e perda de autonomia por parte dos trabalhadores, como a novas formas de controle indireto e algorítmico, que contribui para gerir e instrumentalizar os trabalhadores. Essa intensificação da vigilância oculta e constante sobre o trabalhador, com recurso a técnicas de gestão algorítmica, em que os dados são o ativo principal na acumulação do capital, reforça o pressuposto neoclássico que concebe o trabalho apenas como fator de produção dissociado da esfera reprodutiva (Huws, 2019HUWS, U. Labour in contemporary capitalism: what next?. London: Palgrave, 2019.). Nesse sentido, estão em causa situações de trabalho, posicionamentos e relações sociais distintas e desiguais, pelo que as plataformas digitais não são facilitadores técnicos neutros. Pelo contrário, reforçam desigualdades econômicas, políticas e sociais, fundadas em dicotomias de gênero, classes, idade, etnia e outras que emergem dos registos de trabalho formal e informal, objetivo e subjetivo, ampliados e agudizados pela digitalização da economia, da sociedade e da pandemia de covid-19.

Derivadas gestionárias como tendências de fundo no setor da saúde

O setor da saúde em Portugal tem sido alvo de transformações significativas na agenda político-económica, por força da implementação de modelos organizativos próximos da gestão privada e da difusão de formas precárias na contratação de recursos humanos. Diversos autores têm identificado um (re)fortalecimento do neoliberalismo e do neoconservadorismo, contribuindo para a erosão dos valores de solidariedade, que são base dos sistemas de saúde e de proteção social. Considerando os países do sul da Europa (Marques, 2018MARQUES, A. P. Reformas de saúde nos países do sul da Europa, razão gestionária e profissionalismo. In: GOMES, S. et al. (Org.). Desigualdades sociais e políticas públicas. Ribeirão: Húmus, 2018. p. 415-434.; Falleiros; Marques, 2017MARQUES, A. P.; FALLEIROS, I. Metamorfoses na política, valores empresariais e governação em saúde em Portugal. Configurações, Braga, n. 19, p. 72-88, 2017. DOI: 10.4000/configuracoes.4009
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; Marques; Macedo, 2018MARQUES, A. P.; MACEDO, A. P. Health policies in Southern Europe and deregulation of labour relations: a glimpse of Portugal. Ciência & Saúde Coletiva, Manguinhos, v. 23, n. 7, p. 2253-2264, 2018. DOI: 10.1590/1413-81232018237.09282018
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; Marques; Rosário; Macedo, 2021MARQUES, A. P.; ROSÁRIO, H. R. V.; MACEDO, A. P. Dilemas do exercício profissional no setor da saúde em Portugal. In: SILVA, P. F.; SOARES, D. (Ed.). Saúde coletiva: avanços e desafios para a integralidade do cuidado. São Paulo: Editora Científica Digital, 2021. v. 3, p. 198-215. DOI: 10.37885/211006378
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), as transformações do welfare state e sua relação com a “sociedade-providência” explicam o recrudescimento de conflitos sociolaborais dos grupos de profissionais de saúde que se confrontam com mercados de trabalho segmentados, lógicas de intensificação de ritmos de trabalho e desqualificação das condições de trabalho e carreira. Adicionalmente, esses profissionais têm vindo a ser subjugados por imperativos organizacionais assentes em pressupostos de produtividade, eficiência e eficácia. Como tal, podem ser identificadas três tendências de fundo de derivadas gestionárias no setor da saúde.77Além das tendências de fundo sinalizadas, é importante atender à crescente participação da mulher na força de trabalho e na institucionalização do trabalho de “cuidar” (por exemplo, Portugal viu aprovado, em 2021, o estatuto de “cuidador informal”), bem como a importância das competências digitais e exigências da “saúde digital”, que já se faziam sentir antes, mas que foram ampliadas na pandemia (OPSS, 2022).

A primeira, resulta da generalização dos princípios de mercado e de um discurso gestionário assente na lógica de resultados, qualidade e avaliação da New Public Management (Bezes et al., 2011BEZES, P. et al. New public management et professions dans l’État: au-delà des oppositions, quelles recompositions. Sociologie du Travail, Amsterdam, v. 53, n. 3, p. 294-305, 2011. DOI: 10.1016/j.soctra.2011.06.003
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). A sua difusão no setor da saúde (Muzio; Kirkpatrick, 2012MUZIO, D.; KIRKPATRICK, I. Professions and organizations: a conceptual framework. Current Sociology, New York, v. 59, p. 389-405, 2011. DOI: 10.1177/0011392111402584
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; Numerato; Salvatore; Fatorre, 2011NUMERATO, D.; SALVATORE, D.; FATTORE, G. The impact of management on medical professionalism: a review. Sociology of Health & Illness, v. 34, n. 4, p. 626-644, 2011. DOI: 10.1111/j.1467-9566.2011.01393.x
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) tem contribuído, em grande medida, para o aumento da mobilidade e migração dos profissionais de saúde na Europa e em Portugal, reforçando desequilíbrios na distribuição dos mesmos pelos países e regiões, e em função dos sistemas de saúde (público e privado) (Wismar et al., 2011WISMAR, M. et al. (Ed.). Health professional mobility and health systems: evidence from 17 European countries. Copenhagen: WHO, 2011.).

A privatização, empresarialização e externalização (subcontratação) do setor da saúde surge como uma segunda grande tendência desde o início do século XXI, com avanço a partir de 2011, coincidindo, não por acaso, com a crise da austeridade (Marques; Macedo, 2018MARQUES, A. P.; MACEDO, A. P. Health policies in Southern Europe and deregulation of labour relations: a glimpse of Portugal. Ciência & Saúde Coletiva, Manguinhos, v. 23, n. 7, p. 2253-2264, 2018. DOI: 10.1590/1413-81232018237.09282018
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). As reformas implementadas pelos governos constitucionais de Portugal (Falleiros; Marques, 2017MARQUES, A. P.; FALLEIROS, I. Metamorfoses na política, valores empresariais e governação em saúde em Portugal. Configurações, Braga, n. 19, p. 72-88, 2017. DOI: 10.4000/configuracoes.4009
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) têm sido orientadas para a privatização de serviços de prestação da saúde e para o desenvolvimento de uma cultura organizacional baseada no modelo empresarial de gestão e de controle do trabalho. Concretamente, assistiu-se: (1) à passagem de uma parte significativa dos hospitais públicos para Entidades Públicas Empresariais (EPE);88A aproximação entre o funcionamento dos serviços públicos de saúde e o direito privado materializou-se na Lei nº 27/2002, que criou o estatuto jurídico designado “hospital EPE” e definiu o funcionamento do setor público com base nas regras concorrenciais de mercado. (2) à transformação da maior parte dos centros de saúde que integram redes de cuidados de saúde primários e continuados em modelos de gestão contratualizados por objetivos e incentivos financeiros;99Segundo dados recentes disponibilizados pela Entidade Reguladora da Saúde (ERS), o Portugal continental apresenta uma rede de centros de saúde constituída por 603 Unidades de Saúde Familiar (USF) responsável por garantir o acesso aos cuidados de saúde primários. (3) ao subfinanciamento crônico de serviços diversos sob tutela do Estado, com cortes nas transferências dos orçamentos públicos para o SNS; e (4) à valorização dos cuidados de saúde privados ou concessionados como resposta às persistentes “listas de espera” para cirurgia e consultas e à falta de médico de família.

A proliferação de tipos de contratos diversificados no setor da saúde constitui a terceira grande tendência de fundo. Esta relaciona-se, por um lado, com o movimento de cortes e congelamentos decorrente da crise de austeridade que atingiu Portugal entre 2011 e 2015, e, por outro lado, com o não planejamento de carreiras competitivas face ao setor privado. A atratividade por melhores condições de trabalho e salários tem resultado na migração de profissionais de saúde e, em certos contextos, de equipes completas de médicos, do setor público para o privado, contribuindo para a desqualificação e o sangramento do serviço nacional de saúde. Ao mesmo tempo, perante uma população portuguesa envelhecida e com multimorbilidades, o SNS é obrigado a pagar serviços ao setor privado para assegurar a satisfação das necessidades mais prementes, criando problemas de eficiência e sustentabilidade. Ou seja, de forma paradoxal, o próprio Estado está criando condições para que o setor privado seja uma alternativa para os profissionais de saúde, dada a persistente desmotivação e degradação da resposta do SNS.

Assim, os fluxos migratórios do setor público para o privado têm alavancado estratégias de desregulação que, ao se reunirem em regimes “híbridos” (Azaïs, 2019AZAÏS, C. Hybridation. In: BUREAU, M.-C. et al. (Ed.). Les zones grises des relations de travail et d’emploi: un dictionnaire sociologique. Buenos Aires: Teseo, 2019. p. 213-225.; Murgia et al., 2020MURGIA, A. et al. Hybrid areas of work between employment and self-employment: emerging challenges and future research directions. Frontiers in Sociology, Lausanne, v. 86, n. 4, p. 1-8, 2020. DOI: 10.3389/fsoc.2019.00086
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), potenciados pelas plataformas digitais, e zonas “cinzentas” (Bureau et al., 2019BUREAU, M.-C. et al. (Dir.). Les zones grises des relations de travail et d’emploi: un dictionnaire sociologique. Buenos Aires: Teseo , 2019.), por meio de subcontratação e contratos individuais, são percebidas como mais vantajosas para os profissionais de saúde. É emblemático dessas novas (velhas) formas de desregulação de relações contratuais, ainda que já conhecidas, para fazer face à falta de médicos no SNS em pleno contexto de pandemia, que as empresas de recrutamento (externalizadas) disponibilizem médicos “tarefeiros” com valores por hora que ultrapassam os valores dos médicos internos dos hospitais.

Como já referido, a menor capacidade de endogeneização dos profissionais de saúde no mercado interno de trabalho, ainda que sendo necessária, resulta numa precarização objetiva e subjetiva. Na próxima seção, damos conta do “lastro” da corrosão das condições de trabalho e de vida dos profissionais de saúde, ao serem relatados fenômenos de intensificação do ritmo de trabalho, desmotivação e exaustão física e emocional.

Investigação em curso: contributos do trabalho de campo

Reconhece-se a escassez de investigação sobre essa temática e, em especial, sobre o mercado de trabalho do setor da saúde (Pavolini; Kuhlmann, 2016PAVOLINI, E.; KUHLMANN, E. Health workforce development in the European Union: A matrix for comparing trajectories of change in the professions. Health Policy, Amsterdam, v. 120, n. 6, p. 654-664, 2016. DOI: 10.1016/j.healthpol.2016.03.002
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). A sistematização de fontes secundárias, complementada com entrevistas semiestruturadas feitas com profissionais de saúde, potencia a triangulação de dados e a subsequente análise do fenômeno da crescente individualização e subcontratação laboral, bem como suas consequências nas condições de trabalho e vida.

Com relação às fontes secundárias, além das fontes estatísticas disponíveis, analisou-se o Plano Nacional de Saúde (PNS) 2012-2016, mas revisto e alargado até 2020, bem como o atual PNS, Plano nacional de saúde 2021-2030: saúde sustentável de tod@s para tod@s. Foram também consultados documentos legislativos e os últimos relatórios do Observatório Português dos Sistemas de Saúde (OPSS): 20 Anos de Relatórios Primavera (2001-2021) (2021) e o Relatório de primavera 2022: e agora? (2022).

Se são patentes as mudanças no mercado do setor da saúde, nas condições de trabalho e, consequentemente, na qualidade de vida dos profissionais, o que se acentuou com a pandemia, é oportuno ilustrar tais mudanças mediante testemunhos recolhidos diretamente no quadro da investigação que concluiu uma primeira etapa de seu desenho de pesquisa.1010Trata-se de uma investigação em curso que contou no seu desenho de pesquisa com uma fase exploratória e de aproximação aos profissionais de saúde. Seus principais resultados já foram publicados (Marques; Macedo, 2018; Marques; Rosário; Macedo, 2021). Pretende-se, numa fase subsequente ao rescaldo da pandemia, reforçar o número de entrevistas aos profissionais de saúde, bem como alargá-las para responsáveis institucionais, de forma a enquadrar as tendências de fundo identificadas neste estudo. Privilegiou-se uma metodologia qualitativa, de caráter exploratório, que passou pela “entrada no terreno” a partir da realização de 32 entrevistas, intencionalmente aplicadas aos profissionais de saúde. As entrevistas foram suportadas por um roteiro semiestruturado orientado para os seguintes tópicos, desenvolvidos no decorrer da apuração das informações: (1) formação e acesso à profissão/emprego; (2) profissão e mudanças no quadro da política portuguesa; e (3) perspectivas face ao futuro do trabalho. As entrevistas ocorreram entre dezembro de 2017 e janeiro de 2018, tendo sido possível realizar 32 entrevistas semiestruturadas: nove com profissionais de saúde em hospitais da zona norte de Portugal (um hospital de gestão de parceria pública privada e um hospital com estatuto de empresa) e 23 entrevistas com profissionais dos Cuidados de Saúde Primários (CSP) do norte, centro e sul do país.1111Seguiram-se os procedimentos regulados pelos princípios éticos, tal como estabelecido em normas consensuais de defesa da dignidade e da integridade humanas. Isto é, após obter as autorizações dos participantes, foi-lhes explicado e eles ficaram cientes de que os dados obtidos poderiam ser divulgados para a comunidade acadêmica, respeitando o carácter confidencial das identidades.

Destapar a concorrência desigual público-privado: tendências e relatos

A saúde é o principal desafio global para o futuro da União Europeia, seguida das alterações climáticas, motivo pelo que o atual PNS (2021-2030) se estrutura em três pilares centrais: (1) o valor social da saúde enquanto objetivo maior na vida das pessoas; (2) o papel central da saúde, como “ponto de partida” e “ponto de chegada”, para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável 2030; e (3) o planejamento estratégico na saúde de base populacional, enquanto instrumento metodológico com seus diversos componentes e etapas.1212Disponível em: <https://pns.dgs.pt/pns-2021-2030/> Acesso em: 23 out. 2023. Perante os desafios elencados, são apresentadas as estratégias a seguir, com particular destaque para a necessidade de assegurar o “universalismo proporcional” e a “qualidade do planejamento em saúde, abrangendo infraestruturas e recursos humanos”.

Com efeito, o contexto de pandemia destapou, com maior crueza, o desafio dos recursos humanos que resulta desse contexto crónico de subfinanciamento e de concorrência entre público e privado (OPSS, 2022OPSS - OBSERVATÓRIO PORTUGUÊS DOS SISTEMAS DE SAÚDE. Relatório de primavera 2022: e agora?. [S. l.]: OPSS, 2022. Disponível em <Disponível em https://www.opssaude.pt/wp-content/uploads/2022/06/RELATORIOPRIMAVERA-2022.pdf >. Acesso em: 20 nov. 2022.
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). Ficam patentes a desmotivação e a pouca atratividade para os médicos recém-formados, além da destruição de equipes de profissionais de saúde com longa trajetória no setor público. Com a aprovação em 2019 da reforma da Lei de Bases da Saúde, os compromissos inscritos no capítulo “Satisfação dos profissionais de saúde” - reforçar a política de recursos humanos do Serviço Nacional de Saúde - visam promover: “motivação pelo trabalho no SNS, o equilíbrio entre a vida familiar e profissional e a contínua evolução científico-profissional, com foco na melhoria das carreiras profissionais como elemento essencial na construção de um projeto profissional”.1313Disponível em: <https://www.portugal.gov.pt/pt/gc23/governo/programa-do-governo> Acesso em: 23 out. 2023

Com base nos dados recentes retirados do Portal da Transparência do SNS e do INE, é possível atestar as seguintes tendências de fundo inscritas na revisão de literatura realizada. Primeiro, o recorrente relato da falta de profissionais ao longo das sistematizações do Observatório Português dos Sistemas de Saúde (OPSS, 2021OPSS - OBSERVATÓRIO PORTUGUÊS DOS SISTEMAS DE SAÚDE. 20 anos de relatórios de primavera: percurso de aprendizagem. [S. l.]: OPSS, 2021. Disponível em <Disponível em https://www.ensp.unl.pt/wp-content/uploads/2021/06/rp-2021v2.pdf >. Acesso em: 20 nov. 2022.
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). Todavia, entre 2016 e 2022, registrou-se um aumento do número de profissionais no SNS, que passou de 122.722 (março de 2016) para 157.257 (março de 2022), persistindo, todavia, as assimetrias da distribuição desses profissionais pelo território nacional, acompanhada de saídas maciças para o setor privado (OPSS, 2022OPSS - OBSERVATÓRIO PORTUGUÊS DOS SISTEMAS DE SAÚDE. Relatório de primavera 2022: e agora?. [S. l.]: OPSS, 2022. Disponível em <Disponível em https://www.opssaude.pt/wp-content/uploads/2022/06/RELATORIOPRIMAVERA-2022.pdf >. Acesso em: 20 nov. 2022.
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).

Segundo, apesar do aumento extraordinário de horas de trabalho de 11,2 milhões para 21,9 milhões entre 2016 e 2021 (OPSS, 2022OPSS - OBSERVATÓRIO PORTUGUÊS DOS SISTEMAS DE SAÚDE. Relatório de primavera 2022: e agora?. [S. l.]: OPSS, 2022. Disponível em <Disponível em https://www.opssaude.pt/wp-content/uploads/2022/06/RELATORIOPRIMAVERA-2022.pdf >. Acesso em: 20 nov. 2022.
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, p. 39), assistiu-se a uma “erosão da produtividade” no SNS. Isso poderá ser explicado, em grande medida, porque as equipes centraram-se no tratamento de doentes de covid-19, adiando ou cancelando consultas e cirurgias. Todavia, considera-se que esse problema já ocorria antes da pandemia, com a “disrupção das equipes” por força da introdução das 35 horas por semana, o que obrigou à contratação de novos profissionais mais jovens e menos experientes, mas também pelo aumento da taxa de absentismo, que passou de 11,2% para 12,4%, e que durante a pandemia chegou a 20%. As causas para esse absentismo também são antigas: “Se alguns argumentam a falta de controlo da assiduidade, ou a falta de incentivos […] outros apontam o nível elevado de desgaste dos profissionais, esgotados pelas horas extraordinárias e as condições de trabalho pouco satisfatórias” (OPSS, 2020, p. 40).

Terceiro, a concorrência do setor privado por recursos humanos, que são limitados, tanto pela limitação da capacidade formativa desses profissionais como pela menor atratividade no mercado internacional. A migração de profissionais para o serviço privado pode explicar a tendência de mudança do padrão público-privado no sistema de saúde português. Por um lado, entre 2012 e 2019, registra-se uma relativa estagnação do número de camas, consultas, cirurgias, médicos e enfermeiros no setor público, o que contrasta com o aumento verificado no setor privado (OPSS, 2022OPSS - OBSERVATÓRIO PORTUGUÊS DOS SISTEMAS DE SAÚDE. Relatório de primavera 2022: e agora?. [S. l.]: OPSS, 2022. Disponível em <Disponível em https://www.opssaude.pt/wp-content/uploads/2022/06/RELATORIOPRIMAVERA-2022.pdf >. Acesso em: 20 nov. 2022.
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, p. 41-42). Por outro lado, o setor privado tem se envolvido em intervenções relativamente menos complexas, tais como ortopedia (52%), oftalmologia (72%), medicina física e reabilitação (85%), medicina dentária (212%), ginecologia/obstetrícia (63%) e otorrinolaringologia (64%) (OPSS, 2022OPSS - OBSERVATÓRIO PORTUGUÊS DOS SISTEMAS DE SAÚDE. Relatório de primavera 2022: e agora?. [S. l.]: OPSS, 2022. Disponível em <Disponível em https://www.opssaude.pt/wp-content/uploads/2022/06/RELATORIOPRIMAVERA-2022.pdf >. Acesso em: 20 nov. 2022.
https://www.opssaude.pt/wp-content/uploa...
).

Quarto, em decorrência daquela alteração do padrão público-privado, há vários fatores de agudização da concorrência no nível das condições salariais e de trabalho, reforçando a maior atratividade do setor privado para os profissionais de saúde. Ao contrário do SNS, o setor privado goza de maior facilidade de contratação (novas ou substituições) e pode negociar contratos com total liberdade (remunerações e horários de trabalho), independentemente do estatuto ou da carreira do profissional. Para o OPSS (2022OPSS - OBSERVATÓRIO PORTUGUÊS DOS SISTEMAS DE SAÚDE. Relatório de primavera 2022: e agora?. [S. l.]: OPSS, 2022. Disponível em <Disponível em https://www.opssaude.pt/wp-content/uploads/2022/06/RELATORIOPRIMAVERA-2022.pdf >. Acesso em: 20 nov. 2022.
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, p. 41), apesar da relativa flexibilização registrada durante a pandemia, o SNS:

confronta-se com fortes constrangimentos em termos de contratação (que passam por um sistema complexo e demorado de autorizações), de remunerações e horários (fixados por tabelas). Em particular, o sistema de concursos não permite contratar médicos, enfermeiros e outros profissionais para o quadro (porque entrariam como despesas de pessoal) garantindo equipas coesas, a continuidade de cuidados e combater a disrupção das equipas.

Em sentido contrário, o setor privado (OPSS, 2022OPSS - OBSERVATÓRIO PORTUGUÊS DOS SISTEMAS DE SAÚDE. Relatório de primavera 2022: e agora?. [S. l.]: OPSS, 2022. Disponível em <Disponível em https://www.opssaude.pt/wp-content/uploads/2022/06/RELATORIOPRIMAVERA-2022.pdf >. Acesso em: 20 nov. 2022.
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, p. 40):

aproveitou as dificuldades do público para atrair utentes e profissionais e, por outro lado, tem havido uma consolidação do setor, com a diminuição progressiva dos pequenos consultórios, cuja viabilidade financeira foi posta em causa durante a Grande Recessão e fortalecimento dos grandes grupos, capazes de fazer face às perdas de rendimento pontuais e de absorver clínicas de menor dimensão.

Ora, as restrições orçamentárias e os congelamentos dos concursos públicos pressionaram o SNS para a contratação de profissionais, por meio de fornecimentos e serviços externos a empresas de trabalho temporário, contribuindo para a erosão e a disrupção das equipes de trabalho, com custos substancialmente maiores. A presença de empresas de recrutamento ajudou a inflacionar o valor por hora a ser cobrado. Com o pagamento por hora mais elevado na base de contratos temporários ou na prestação de serviços, esses prestadores de serviço criam clivagens e desigualdades nas equipes de saúde vinculadas ao setor público. Igualmente, para atenuar a rigidez na contratação pública, os hospitais do SNS têm tentado recorrer ao “pagamento no ato”, generoso, das consultas e cirurgias em produção adicional, e do pagamento de horas extras. Também aqui a clivagem entre médicos prestadores de serviço e médicos do hospital fica patente no pagamento de horas extras. Aliás, essa desigualdade remuneratória foi tão pronunciada durante a pandemia e tão amplamente noticiada na mídia1414Por exemplo, foi amplamente noticiado que o hospital público das Caldas da Rainha chegou a pagar 85 euros por hora para evitar o encerramento dos serviços (Schreck, 2022). que instigou o poder Legislativo a aprovar o Decreto-Lei nº 50-A, de 25 de julho de 2022. Ainda assim, apesar do esforço de regulação ao estabelecer um teto de horas a serem pagas (50 a 70 euros por hora), as diferenças persistem, podendo os hospitais pagarem até 90,56 euros por hora aos médicos prestadores de serviço para assegurarem o funcionamento das urgências.

Essas mudanças no mercado do setor da saúde, nas condições de trabalho e consequentemente na qualidade de vida dos profissionais apresentam um lastro que remete a situações e experiências de trabalho que vêm de trás. A dinâmica de precarização objetiva está patente nos seguintes excertos:

Penso que o caminho laboral tem sido feito na direção de mais precariedade sob uma capa de flexibilidade, jargões muito em moda como “produtividade” e “competitividade” desequilibraram a relação laboral em desfavor do trabalhador e muitas vezes ironicamente com o consentimento deste. (E1, médico, 40 anos)

No quadro da política Portuguesa apesar do grande investimento em formação existe um claro desinvestimento na carreira destes profissionais que se encontra estagnada há mais de 18 anos. Este desinvestimento verifica-se também no recrutamento, apesar da carência cada vez mais acentuada destes profissionais no SNS. (E3, técnico de diagnóstico e terapêutica, 50 anos)

Mas também estão presentes os fenômenos de precarização subjetiva que os entrevistados revelam quanto às percepções de “injustiça”, “gestão que engole a profissão” e “burnout” face à pressão recorrente das hierarquias para realizarem horas extras e suprirem a falta de médicos e enfermeiros.

Vejo a minha evolução profissional como uma injustiça contínua. […] Com todas as alterações e estagnação da carreira de enfermagem, continuo a ganhar menos que qualquer funcionário público licenciado que integre hoje a função pública. […] Isto tem tido efeito direto sobre as relações interprofissionais, gerando conflitos desnecessários. (E22 - enfermeira USF Modelo B, 43 anos)

As mudanças foram muitas - por um lado a introdução das Parcerias Pública e Privada e, por outro lado, o congelamento das carreiras da função Pública. […] o foco situou-se nos processos de gestão, no controlo de produção, no controlo de custos, na criação e acompanhamento de múltiplos indicadores, trouxe uma nova realidade para os hospitais. […] costumo dizer que a gestão engoliu a saúde. (E5, enfermeira gestora, 42 anos)

Passei pela dificuldade de adaptação aos vários programas informáticos, sem formação adequada […] Quanto ao horário de trabalho desde que passei de interna para especialista que o meu vínculo de 42 horas é ultrapassado. […] O controlo da assiduidade passou do livro de ponto para o controlo biométrico. […] O sistema informático é grande gerador de burnout. Várias aplicações diferentes, não interligadas, com palavras-passe diferentes, e falha recorrente nas mesmas com impacto muito negativo nas consultas. (E20, médica de uma USF, 45 anos)

Deve-se assinalar, igualmente, a tomada de posição e/ou resistência coletiva nesse quadro de precarização objetiva e subjetiva, que exprime um movimento de proteção das jurisdições profissionais:

Na minha equipa o número de elementos por turno foi reduzido, constituída por 60 enfermeiros, eu e mais duas pessoas fizemos uma queixa à Ordem dos Enfermeiros decorrente daquilo que seria a redução de horas de cuidados a prestar aos doentes, outrora utentes e agora denominados de “clientes” da instituição. Não obstante o serviço ter ficado com a redução de elementos fomos trocados de local de trabalho pelo atrevimento. (E4, enfermeiro delegado sindical, 40 anos)

Mais recentemente ocorrem os movimentos de contestação social de enfermeiros e médicos internos aos hospitais (por exemplo na área de ginecologia e obstetrícia em todo o país),1515Foi enviada uma carta à ex-ministra da Saúde, Marta Temido, em pleno mês de agosto, assinada por uma centena de médicos internos (ou seja, vinculados a hospitais), que solicitaram “escusa” face ao decreto-lei que estipula as horas extras e respectivas remunerações. A Ordem dos Médicos referiu que esse comportamento é um “grito de alerta” para mudanças no SNS, tendo já recebido 230 pedidos de escusa de responsabilidade até junho de 2022 (Ordem dos Médicos, 2022). que declaram formalmente “escusa de responsabilidade” do ato profissional, por entenderem não estarem asseguradas as condições adequadas na prestação dos cuidados de saúde, ou seja, não existirem profissionais suficientes.

Considerações finais

Nas seções precedentes apresentaram-se argumentos que desafiam as principais dicotomias, pelas quais o mercado de trabalho tem sido interpretado desde a era fordista, e que propõem espaços de visibilidade de formas de emprego emergentes, com recurso a fenómenos de “hibridização” e “zonas cinzentas”, potenciadas pela fragmentação e desregulamentação dos vínculos de trabalho. O esforço encetado visa repensar as categorias interpretativas de trabalho e emprego, nomeadamente a oposição binária histórica entre emprego e autoemprego, formas de trabalho padrão e não padronizadas, formais e informais. Esse esbatimento de fronteiras permitiu captar as múltiplas características, direções e sentidos no mercado de trabalho que parecem resistir e escapar a representações dicotômicas e estáticas.

Ressata-se a importância de considerar as dimensões de autonomia, poder e prestígio das profissões nos mercados profissionais, nas suas conceitualizações mais clássicas. Pretende-se, ainda assim, dar conta da diversidade de que se revestem as lógicas e estruturas de funcionamento daqueles mercados (trans)nacionais em que os profissionais de saúde circulam, incluindo as mobilidades registradas entre o setor público e o privado. Como tal, para os alicerces de uma agenda europeia da investigação sobre a força de trabalho na saúde (Kuhlmann et al., 2018KUHLMANN, E. et al. A call for action to establish a research agenda for building a future health workforce in Europe. Health Research Policy and Systems, New York, v. 16, n. 52, p. 1-8, 2018. DOI: 10.1186/s12961-018-0333-x
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), parece ser crucial analisar os sentidos de (des)regulação do mercado de trabalho no setor da saúde em Portugal. Para tanto, mobiliza-se o potencial heurístico de dois eixos analíticos, a saber: (1) o poder de regulação social e fixação de jurisdições; e (2) a mobilidade dos profissionais em contexto inter/intraorganizacional. Daí resultam quatro “tipos ideais” inscritos num continuum, que podem variar entre maior ou menor regulação e entre mobilidade voluntária ou involuntária, a serem testados por confronto empírico e investigações futuras: (1) mercados protegidos nas suas modalidades de “mercados profissionais” (regulação por força do monopólio profissional) e “mercados internos” (regulação por força do direito de trabalho); e (2) mercados híbridos, nas modalidades de “mercados terciarizados” (mobilidade voluntária como oportunidade salarial) e “mercados secundários” (mobilidade involuntária por força da cessação/não renovação do vínculo laboral).

Intencionalmente inscrito num ensaio tipológico, esse modelo em construção sistematiza contributos de uma sociologia das profissões e do mercado de trabalho (Pavolini; Kuhlmann, 2016PAVOLINI, E.; KUHLMANN, E. Health workforce development in the European Union: A matrix for comparing trajectories of change in the professions. Health Policy, Amsterdam, v. 120, n. 6, p. 654-664, 2016. DOI: 10.1016/j.healthpol.2016.03.002
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). Pretende captar a heterogeneidade dos mercados de trabalho no setor da saúde, categorias emergentes e seus sentidos. Não obstante, reconhece-se que a visibilidade de novos (e velhos) arranjos de trabalho e organização ocorre a par da opacidade, instabilidade e desregulamentação social e laboral nas dimensões objetivas e subjetivas. Além disso, esse exercício de matização de vários segmentos da força de trabalho no setor da saúde poderá reforçar estratégias de resistência perante a degradação de condições de trabalho, instabilidade de carreiras e futuros ameaçados de trabalho. Resistir à precarização pressupõe incorporar disposições e orientações sociovalorativas, que expressam margens de liberdade num dado momento da história pessoal e coletiva e delimitam campos possíveis de escolha e agência social.

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  • WISMAR, M. et al. (Ed.). Health professional mobility and health systems: evidence from 17 European countries. Copenhagen: WHO, 2011.

  • 1
    Reconhecem-se as tradições anglo-saxônicas e francófonas na literatura estabilizada da sociologia das profissões. Neste artigo, assume-se o conceito de monopólio profissional como o controle do acesso à profissão pelo domínio de uma expertise, sob a alçada do Estado, e a constituição de um mercado específico, com a base de fechamento social (closure social) originalmente proposta por Weber.
  • 2
    No período entre 2011 e 2015, conhecido pela crise da austeridade, com a intervenção do Fundo Monetário Internacional, do Banco Central Europeu e da Comissão Europeia, Portugal registrou um número elevado de saídas de profissionais de saúde para o estrangeiro (Amaral; Marques, 2014AMARAL, S.; MARQUES. Emigração portuguesa de profissionais de saúde: (di)visões em torno de um fenómeno emergente. In: MARTINS, M. I. C. et al. (Org.). Trabalho em saúde, desigualdades e políticas públicas. Braga: Cics; Rio de Janeiro: Fiocruz, 2014. p. 141-158.).
  • 3
    O fenômeno de brain drain ou “fuga de cérebros” de trabalhadores do setor da saúde é particularmente presente nos países do sul da Europa (Wismar et al., 2011WISMAR, M. et al. (Ed.). Health professional mobility and health systems: evidence from 17 European countries. Copenhagen: WHO, 2011.).
  • 4
    Nessa precarização incluem-se médicos, enfermeiros, dentistas, farmacêuticos, radiologistas, fisioterapeutas, dentre outros, que exercem sua atividade profissional nos diversos contextos organizacionais (públicos e privados).
  • 5
    Importa considerar os fenómenos de precarização a partir dos processos de historicização e relativização relacional, que conferem densidade e especificidade às análises sociológicas dos espaços sociais de trabalho.
  • 6
    Ainda que as plataformas digitais sejam uma temática recente, elas estão em franco desenvolvimento e assumem diversas configurações, pelo que não se encontra (ainda) totalmente estabilizada sua definição. Para uma sistematização do conhecimento sobre essa temática, conferir o recente relatório da ILO (2021ILO - INTERNATIONAL LABOUR ORGANIZATION. World employment and social outlook 2021: the role of digital labour platforms in transforming the world of work. Geneva: ILO, 2021. Disponível em <Disponível em http://www.ilo.org/global/research/global-reports/weso/2021/WCMS_771749/lang--en/index.htm >. Acesso em: 30 set. 2021.
    http://www.ilo.org/global/research/globa...
    ).
  • 7
    Além das tendências de fundo sinalizadas, é importante atender à crescente participação da mulher na força de trabalho e na institucionalização do trabalho de “cuidar” (por exemplo, Portugal viu aprovado, em 2021, o estatuto de “cuidador informal”), bem como a importância das competências digitais e exigências da “saúde digital”, que já se faziam sentir antes, mas que foram ampliadas na pandemia (OPSS, 2022OPSS - OBSERVATÓRIO PORTUGUÊS DOS SISTEMAS DE SAÚDE. Relatório de primavera 2022: e agora?. [S. l.]: OPSS, 2022. Disponível em <Disponível em https://www.opssaude.pt/wp-content/uploads/2022/06/RELATORIOPRIMAVERA-2022.pdf >. Acesso em: 20 nov. 2022.
    https://www.opssaude.pt/wp-content/uploa...
    ).
  • 8
    A aproximação entre o funcionamento dos serviços públicos de saúde e o direito privado materializou-se na Lei nº 27/2002, que criou o estatuto jurídico designado “hospital EPE” e definiu o funcionamento do setor público com base nas regras concorrenciais de mercado.
  • 9
    Segundo dados recentes disponibilizados pela Entidade Reguladora da Saúde (ERS), o Portugal continental apresenta uma rede de centros de saúde constituída por 603 Unidades de Saúde Familiar (USF) responsável por garantir o acesso aos cuidados de saúde primários.
  • 10
    Trata-se de uma investigação em curso que contou no seu desenho de pesquisa com uma fase exploratória e de aproximação aos profissionais de saúde. Seus principais resultados já foram publicados (Marques; Macedo, 2018MARQUES, A. P.; MACEDO, A. P. Health policies in Southern Europe and deregulation of labour relations: a glimpse of Portugal. Ciência & Saúde Coletiva, Manguinhos, v. 23, n. 7, p. 2253-2264, 2018. DOI: 10.1590/1413-81232018237.09282018
    https://doi.org/10.1590/1413-81232018237...
    ; Marques; Rosário; Macedo, 2021MARQUES, A. P.; ROSÁRIO, H. R. V.; MACEDO, A. P. Dilemas do exercício profissional no setor da saúde em Portugal. In: SILVA, P. F.; SOARES, D. (Ed.). Saúde coletiva: avanços e desafios para a integralidade do cuidado. São Paulo: Editora Científica Digital, 2021. v. 3, p. 198-215. DOI: 10.37885/211006378
    https://doi.org/10.37885/211006378...
    ). Pretende-se, numa fase subsequente ao rescaldo da pandemia, reforçar o número de entrevistas aos profissionais de saúde, bem como alargá-las para responsáveis institucionais, de forma a enquadrar as tendências de fundo identificadas neste estudo.
  • 11
    Seguiram-se os procedimentos regulados pelos princípios éticos, tal como estabelecido em normas consensuais de defesa da dignidade e da integridade humanas. Isto é, após obter as autorizações dos participantes, foi-lhes explicado e eles ficaram cientes de que os dados obtidos poderiam ser divulgados para a comunidade acadêmica, respeitando o carácter confidencial das identidades.
  • 12
    Disponível em: <https://pns.dgs.pt/pns-2021-2030/> Acesso em: 23 out. 2023.
  • 13
    Disponível em: <https://www.portugal.gov.pt/pt/gc23/governo/programa-do-governo> Acesso em: 23 out. 2023
  • 14
    Por exemplo, foi amplamente noticiado que o hospital público das Caldas da Rainha chegou a pagar 85 euros por hora para evitar o encerramento dos serviços (Schreck, 2022SCHRECK, I. Hospitais pagam mais de dois mil euros por 24 horas a médicos tarefeiros. Jornal de Notícias, Porto, 26 ago. 2022. Disponível em: <Disponível em: https://www.jn.pt/nacional/hospitais-pagam-mais-de-dois-mil-euros-por-24-horas-a-medicos-tarefeiros-15116139.html/ >. Acesso em: 26 set. 2023.
    https://www.jn.pt/nacional/hospitais-pag...
    ).
  • 15
    Foi enviada uma carta à ex-ministra da Saúde, Marta Temido, em pleno mês de agosto, assinada por uma centena de médicos internos (ou seja, vinculados a hospitais), que solicitaram “escusa” face ao decreto-lei que estipula as horas extras e respectivas remunerações. A Ordem dos Médicos referiu que esse comportamento é um “grito de alerta” para mudanças no SNS, tendo já recebido 230 pedidos de escusa de responsabilidade até junho de 2022 (Ordem dos Médicos, 2022ORDEM DOS MÉDICOS. Escusas de responsabilidade são “um grito de alerta” para mudanças urgentes no SNS. Ordem dos Médicos, Lisboa, 9 jun. 2022. Disponível em: <Disponível em: https://ordemdosmedicos.pt/escusas-de-responsabilidade-sao-um-grito-de-alerta-para-mudancas-urgentes-no-sns/ >. Acesso em: 26 set. 2023.
    https://ordemdosmedicos.pt/escusas-de-re...
    ).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    21 Nov 2022
  • Aceito
    30 Dez 2022
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