Vivência e trabalho: percepção de profissionais de Medicina e Enfermagem que atuaram durante a pandemia em uma universidade pública mineira

Experience and work: perceptions of medical and nursing professionals working in a public university in Minas Gerais during the pandemic

Vivencia y trabajo: percepción de profesionales de medicina y enfermería que actuaron durante la pandemia en una universidad pública del Estado de Minas Gerais

Gabriela Mariano Bruno David Henriques Sílvia Almeida Cardoso Andréia Guerra Siman Sobre os autores

Resumos

O artigo buscou compreender a percepção de servidores públicos de uma instituição federal de ensino superior acerca do trabalho realizado em colaboração com a prefeitura municipal, na atuação assistencial durante a pandemia de Covid-19. Trata-se de uma pesquisa com abordagem qualitativa que realizou entrevistas com 15 profissionais. Na análise dos dados, utilizou-se Análise de Conteúdo, apoiada pelo software Iramuteq, e deles emergiram duas categorias temáticas: “Sentimento em relação ao deslocamento momentâneo da função” e “Compreensão sobre postura institucional para que as atividades acontecessem”, cada uma com suas subcategorias. O estudo aponta que, mesmo com fatores de proteção e motivação para o trabalho realizado, os momentos críticos que envolveram a saúde pública causaram danos emocionais nos profissionais que atuaram nessas circunstâncias e a busca por apoio psicológico deve ser sempre encorajada e disponibilizada em caso de necessidade.

Palavras-chave
Sentidos do trabalho; Saúde mental; Covid-19; Servidores de ensino em saúde; Universidade pública


This study sought to understand the perceptions of civil servants working in a federal higher education institution about working in collaboration with the city council in the development of care activities during the Covid-19 pandemic. We conducted a qualitative study based on interviews with 15 professionals. The data were analyzed using content analysis and the software Iramuteq. Two core thematic categories emerged from the analysis, each with their subcategories: feelings regarding the temporary displacement of the function; and understanding of institutional posture towards activities. The findings show that, despite protective factors and motivation for the work undertaken, critical moments involving public health caused emotional damage to the professionals and that seeking help for mental health problems should always be encouraged and support should be on hand as and when needed.

Keywords
Feelings towards work; Mental health; Covid-19; Health education workers; Public university


El artículo buscó comprender la percepción de servidores públicos de una institución federal de enseñanza superior sobre el trabajo realizado en colaboración con la municipalidad, en la actuación asistencial durante la pandemia de Covid-19. Investigación con abordaje cualitativo y entrevista a 15 profesionales. En el análisis de los datos se utilizó el Análisis de Contenido apoyado por el Software Iramuteq y de ellos surgieron dos categorías temáticas: Sentimiento con relación al desplazamiento momentáneo de la función y Comprensión sobre la postura institucional para que las actividades sucedieran, cada una con sus subcategorías. El estudio señala que incluso con factores de protección y motivación para el trabajo realizado, los momentos críticos que envolvieron la salud pública causaron daños emocionales en los profesionales que actuaron y la búsqueda de apoyo psicológico siempre debe incentivarse y ponerse a disposición en caso de necesidad.

Palabras clave
Sentidos del trabajo; Salud Mental; Covid-19; Funcionarios de enseñanza de salud; Universidad pública


Introdução

No do ano de 2019, a Organização Mundial de Saúde (OMS) foi alertada acerca de um novo vírus que apresentava vários casos de pneumonia na China, denominado coronavírus 2, da síndrome respiratória aguda grave (SARS-CoV-2), e causador da doença denominada como Covid-1911 World Health Organization. COVID 19 Public Health Emergency of International Concern (PHEIC) global research and innovation fórum [Internet]. Geneva: WHO; 2020 [citado 10 Out 2021]. Disponível em: http:// https://www.who.int/publications/m/item/covid-19-public-health-emergency-of-international-concern-(pheic)-global-research-and-innovation-forum
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Em 30 de janeiro de 2020, a OMS declarou que o surto de Covid-19 constituía uma emergência de saúde pública de importância internacional, o mais alto nível de alerta, conforme previsto no Regulamento Sanitário Internacional11 World Health Organization. COVID 19 Public Health Emergency of International Concern (PHEIC) global research and innovation fórum [Internet]. Geneva: WHO; 2020 [citado 10 Out 2021]. Disponível em: http:// https://www.who.int/publications/m/item/covid-19-public-health-emergency-of-international-concern-(pheic)-global-research-and-innovation-forum
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. No Brasil, em 25 de fevereiro de 2020, foi registrado o primeiro caso.

Devido à pandemia, um elevado número de pessoas no país e no mundo foram infectadas e levadas a óbito, situação que acarretou mudanças drásticas na rotina da população em todo o planeta. Esse processo também desencadeou transformações nas condições de trabalho; no convívio social; nas relações familiares; e na condição física e emocional das pessoas devido ao distanciamento e isolamento22 Cluver L, Lachman JM, Sherr L, Wessels I, Krug E, Rakotomalala S, et al. Parenting in a time of COVID-19. Lancet. 2020; 395(10231):e64. doi: 10.1016/S0140-6736(20)30736-4.
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Para os profissionais da área de Saúde que permaneceram em atividade atuando em hospitais, unidades de pronto atendimento e outras formas de assistência, os riscos foram ainda maiores. Além de estarem expostos à possibilidade de contaminação, ficaram sujeitos a situações de estresse no atendimento, em função da epidemiologia da doença e das condições precárias de trabalho, acarretando medo, insegurança e incerteza33 Teixeira CFS, Soares CM, Souza EA, Lisboa ES, Pinto ICM, Andrade LR, et al. A saúde dos profissionais de saúde no enfrentamento da pandemia de Covid-19. Cienc Saude Colet. 2020; 25(9):3465-74. doi: 10.1590/1413-81232020259.19562020.
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Taylor44 Taylor S. The psychology of pandemics: preparing for the next global outbreak of infectious disease. Newcastle: Cambridge Scholars Publishing; 2019. afirma que os profissionais costumam experienciar no contexto de pandemias alguns estressores, a saber: risco aumentado de ser infectado, adoecer e morrer; possibilidade de inadvertidamente infectar outras pessoas; sobrecarga e fadiga; exposição a mortes em larga escala; frustração por não conseguir salvar vidas, apesar dos esforços; ameaças e agressões propriamente ditas, perpetradas por pessoas que buscam atendimento e não podem ser acolhidas pela limitação de recursos; e afastamento da família e de amigos.

Contudo, é válido ressaltar que o trabalho, sobretudo na esfera a que se refere o objeto deste estudo, pode ser considerado fonte de satisfação, na medida em que permite a participação no tecido social, e fonte de prazer, quando propicia a realização de objetivos úteis à comunidade. “Por meio do trabalho o indivíduo sai da representação e participa do mundo produzindo e criando, o que possibilita participar da vida material e cultural”55 Oliveira SRD, Piccinini VCA. A constituição do trabalho na sociedade moderna. In: Piccinini VC, Almeida MLD, Oliveira SRD, editores. Sociologia e administração: relações sociais nas organizações. Amsterdam: Elsevier; 2011. p. 203-17. (p. 215).

Sabidamente, as pessoas passam a maior parte do seu tempo em um local de trabalho, que se constitui como o seu costumeiro habitat66 Chiavenato I. Gestão de pessoas: o novo papel dos recursos humanos nas organizações. 4a ed. Barueri: Manole; 2014.. Esse ambiente se caracteriza por condições físicas, materiais, psicológicas e sociais intimamente relacionadas. No caso dos profissionais de Saúde, esse tempo nas atividades foi acentuado e ganhou complexidade. Outro elemento envolvido por questões emocionais é a dificuldade em tomar decisões por se tratar de uma doença ainda desconhecida para o tempo77 Castro BLG, Oliveira JBB, Morais LQ, Gai MJP. COVID-19 e organizações: estratégias de enfrentamento para redução de impactos. Rev Psicol Organ Trab. 2020; 20(3):1059-63. doi: 10.17652/rpot/2020.3.20821.
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Diante do exposto e entendendo a realidade do cotidiano dos profissionais envolvidos na cooperação entre a universidade federal, por meio do Departamento de Medicina e Enfermagem e a prefeitura municipal durante a pandemia, emergiu o interesse em compreender as experiências desses servidores acerca dos impactos trazidos pelo deslocamento momentâneo de suas atividades. Além das atribuições rotineiras desses profissionais no contexto educacional, as atividades envolveram o acolhimento de suspeitos e atendimento de casos leves de infectados pelo coronavírus na Unidade Covid-19; testagem; atividades de conscientização sobre as ações de prevenção individual e coletivas; acompanhamento em teleatendimento de casos sintomáticos e posteriormente vacinação da população local, entre outras. Todas as ações descritas foram implementadas para que os serviços da região, como Unidades de Saúde da Família e hospitais, pudessem se preparar e organizar melhor o fluxo e a execução dos atendimentos.

O departamento em que este estudo se realizou foi criado em 2010 e integra o Centro de Ciências Biológicas e da Saúde. Oferece os cursos de Enfermagem e Medicina, programas de Residência Médica e Mestrado Profissional em Ciências da Saúde. Trata-se de uma unidade responsável pelo ensino, pesquisa e extensão na cidade e região, operando por meio de convênios com hospitais e prefeituras e contando atualmente com aproximadamente 160 servidores de diversas áreas de atuação e formação88 Universidade Federal de Viçosa. Departamento de medicina e enfermagem [Internet]. Viçosa: UFV; 2023 [citado 28 Jul 2023]. Disponível em: https://dem.ufv.br/apresentacao/
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Nesses cenários de trabalho marcados por intensas adversidades e estressores, que podem trazer implicações negativas para os sentidos e para o desenvolvimento do trabalho, pesquisas apontam a importância de implementar novas iniciativas de apoio psicossocial e de investimentos em promoção, prevenção e assistência à saúde mental para acompanhamento de seguimento dos profissionais que desempenharam alguma função na pandemia da Covid-1999 Ramos-Toescher AM, Tomaschewisk-Barlem JG, Barlem ELD, Castanheira JS, Toescher RL. Saúde mental de profissionais de enfermagem durante a pandemia de COVID-19: recursos de apoio. Esc Anna Nery Rev Enferm. 2020; 24:e20200276. doi: 10.1590/2177-9465-EAN-2020-0276.
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A pesquisa se justifica, uma vez que a articulação ensino-serviço é fundamental para o fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS). Em consonância, a atenção à saúde mental é relevante e necessária, especialmente em um panorama com impactos imensuráveis em diversos aspectos, sobretudo por se tratar de uma população que, em um momento de crise em saúde pública, ofereceu sua força de trabalho, deslocando-se da função de ensino e se unindo a frentes de atuação estritamente assistenciais em conjunto com a prefeitura municipal. Além disso, pressupõe-se que os referidos servidores demonstraram maior vulnerabilidade e condições de transtorno emocional devido tais atividades. Disso advém a importância de discussões e reflexões que, além de trazerem o reconhecimento e a valorização do servidor, podem fomentar estratégias de cuidado que minimizem os impactos da pandemia no contexto social e na saúde mental das pessoas.

Assim, o artigo busca compreender a percepção de servidores públicos de uma instituição federal de ensino que atuam na formação superior em Medicina e Enfermagem acerca do trabalho realizado em colaboração com a prefeitura municipal, com atuação assistencial durante a pandemia de Covid-19.

Metodologia

Trata-se de uma pesquisa qualitativa, pois trabalha com características subjetivas dos sujeitos participantes. Esse tipo de pesquisa se propõe a compreender o universo dos significados, dos motivos, das crenças, dos valores e das atitudes dos sujeitos diante de uma determinada experiência vivida, bem como contribui para a diminuição da distância entre o conhecimento e a prática. Além disso, auxilia na compreensão dos sentimentos das pessoas, explicando suas ações diante de uma dada situação1010 Minayo MCS. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 28a ed. Petrópolis: Vozes; 2009..

Este estudo foi realizado com servidores de um curso de Medicina e Enfermagem de uma universidade federal localizada em Viços, MG, Brasil. A população desta pesquisa foi composta pelos profissionais que atuam na formação em ensino superior na área de Saúde: docentes em Medicina e de Enfermagem; médicos; enfermeiros; e técnicos e auxiliares de Enfermagem.

Para ser incluído como participante na pesquisa, era necessário ser um servidor que tenha estado na linha de frente no combate à pandemia de Covid-19 na cooperação entre a universidade e a gestão municipal, seja desenvolvendo atividades na Unidade Covid-19, no serviço de telessaúde ou na vacinação. Para isso, foi feita uma busca na unidade de gestão da instituição e um levantamento da natureza das atividades prestadas pelos profissionais.

Não foram incluídas na pesquisa pessoas com idade menor que 18 anos, aquelas que no período da coleta de dados estivessem ausentes por motivo de afastamento e/ou férias, as que recusaram a assinar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e as que não quiseram participar.

Para caracterizar o perfil dos participantes e compreender seu processo de trabalho e as especificidades das atividades desenvolvidas, foram realizadas entrevistas orientadas por um roteiro semiestruturado, que, em seu início, foi composto de questões fechadas, seguidas por questões abertas, que direcionaram a entrevista.

A entrevista foi escolhida por ser um método de coleta que possibilita ao participante a oportunidade de falar sobre suas experiências a partir do deslocamento momentâneo de suas atividades, que é o foco principal, além de proporcionar uma entrega, de maneira livre e espontânea, de outras questões sobre sua vivência e expectativas que perpassaram o momento.

Minayo1111 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec Abrasco; 2010. esclarece que a “entrevista semiestruturada combina perguntas fechadas e abertas na qual o entrevistado tem a possibilidade de discorrer sobre o tema em questão sem se prender à indagação formulada” (p. 64).

Utilizou-se o método de saturação teórica, que consiste no encerramento das entrevistas no momento em que novos participantes não trouxerem mais informações diferentes que, de alguma forma, pudessem contribuir para a construção de saberes inerentes a este estudo, não sendo considerado relevante persistir na coleta de dados. Dessa maneira, 15 servidores foram entrevistados, chegando à saturação. Esse método, amplamente utilizado em pesquisas qualitativas, é operacionalmente definido como a suspensão de inclusão de novos participantes quando os dados obtidos passam a apresentar, na avaliação do pesquisador, uma certa redundância ou repetição1212 Glaser BG, Strauss AL. The discovery of grounded theory: strategies for qualitative research. New York: Aldine de Gruyter; 1967..

Para a análise dos dados, foi realizada a Análise de Conteúdo proposta por Laurence Bardin, considerada uma técnica para o tratamento de dados coletados que visa identificar o que está sendo dito a respeito de determinado tema1313 Vergara SC. Métodos de pesquisa em administração. 3a ed. São Paulo: Atlas; 2008..

Com intuito de ultrapassar as incertezas e enriquecer a leitura dos dados coletados, as entrevistas foram gravadas e transcritas na íntegra, o que viabilizou o processo de análise. Cabe destacar o quanto é importante que o pesquisador, ao analisar as entrevistas, tenha a oportunidade de extrair sentimentos escondidos nas falas1414 Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2016., sendo consideradas não só as informações verbais, mas também as informações e expressões não verbais.

As respostas do questionário aberto sobre a percepção a respeito da atividade, da pandemia e da visão sobre a postura institucional foram analisadas com o auxílio do software livre de Interface de R para Análise Multidimensionais de textos e questionários (IraMuTeQ)1515 Camargo BV, Justo AM. IRAMUTEQ: um software gratuito para análise de dados textuais. Temas Psicol. 2013; 21(2):513-8. doi: 10.9788/TP2013.2-16.
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. Esse recurso possibilita análises estatísticas sobre corpus textuais – ou seja, as entrevistas – e possui, entre suas funcionalidades, a Classificação Hierárquica Descendente (DHC) e a nuvem de palavras, utilizadas neste estudo.

Segundo Creswell e Clark1616 Creswell JW, Clark VLP. Pesquisa de métodos mistos. 2a ed. São Paulo: Penso; 2013., entre as vantagens no processo de análise dos dados por meio de softwares estão o auxílio na organização e separação de informações, o aumento na eficiência do processo e a facilidade na localização dos segmentos de texto, além da agilidade no processo de codificação. Nesta pesquisa, as análises manual e do software foram feitas de maneira concomitante, sendo uma complementar à outra.

De acordo com a Resolução n. 466/20121717 Brasil. Ministério da Saúde. Resolução n° 466, de 12 de Dezembro de 2012 [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2012 [citado 25 Jun 2023]. Disponível em: https://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2012/Reso466.pdf
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, o projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisas com Seres Humanos (CEP) de uma universidade pública, conforme parecer n. 5.574.187, e todos os aspectos éticos foram respeitados.

Para a preservação de informações pessoais, cada participante foi identificado com as iniciais PS – Profissional de Saúde, seguido de uma numeração, que corresponderá à ordem em que sua participação na pesquisa se deu, método que confere garantia de total privacidade e estrito anonimato de todos.

Resultados e discussão

Foram entrevistados 15 profissionais, sendo dois homens e 13 mulheres, com faixa etária acima de 25 anos, docentes em Enfermagem e Medicina; médicos; enfermeiros; e técnicos de enfermagem. Identificou-se que a grande maioria dos participantes entrevistados – 67% – trabalha na instituição há mais de 11 anos. Durante a pandemia, 40% dos participantes relataram trabalhar entre 31 e 40 horas semanais e outros 40% realizaram entre 21 e 30 horas semanais de atividades laborais. Apenas um dos participantes afirmou não ter se sentido bem paramentado durante a jornada, nem bem-informado em relação ao desenvolvimento do cenário pandêmico.

Figura 1
Dendrograma com a organização de classes com base na Classificação Hierárquica Descendente, Viçosa, MG, 2023.

O corpus analisado por meio da Classificação Hierárquica Descendente (CHD) foi constituído pelas 15 entrevistas, separadas em 395 segmentos de texto (ST), dos quais 325 foram aproveitados (82,28%). Emergiram 13.932 ocorrências (palavras, formas ou vocábulos), sendo que 2.197 destas eram palavras distintas.

Com o intuito de apresentar as principais evocações e proporcionar uma melhor visualização da distribuição do corpus de análise, apresenta-se a seguir a demonstração da CHD oferecida pelo software Iramuteq, que deu origem a duas categorias temáticas e cinco classes, de acordo com o dendrograma apresentado na figura 1, com demonstração em percentual de cada classe/subcategoria.

O conteúdo foi previamente identificado de acordo com as questões norteadoras e as categorias temáticas principais foram: a) Sentimento em relação ao deslocamento momentâneo da função, que compreendeu 64% do corpus textual proposto e correspondeu às classes 2, 1 e 5; e b) Compreensão sobre postura institucional para que as atividades acontecessem, representado por 36% do referido corpus textual, sendo composta pelas classes 3 e 4 e também demonstrado no dendrograma de barras, figura 1.

A primeira categoria refere-se às percepções e experiências despertadas nos servidores por, no momento da pandemia, disponibilizarem sua força de trabalho e colaborarem com atividades assistenciais tanto na Unidade Covid-19 quanto na aplicação das vacinas ou no telessaúde. Já a segunda categoria tem como foco as sensações e a relação de entendimento deste servidor sobre a postura da instituição.

A partir da primeira categoria, foram denominadas as seguintes subcategorias temáticas: a.1) Adversidades encontradas diante das atividades na pandemia, a.2) Expressões positivas a partir da vivência profissional e a.3) Reflexões acerca de outras realidades de trabalho na pandemia. Já a partir da segunda categoria, as subcategorias temáticas que surgiram foram: b.1) Reconhecimento de ações baseadas em conhecimento científico e b.2) Necessidade e experiência voluntária na participação.

Na figura 2, tem-se um diagrama com a lista de palavras evidenciadas separadas de acordo com as classes identificadas pelo software. Apresenta-se também a composição de cada uma dessas classes, definida a partir do teste qui-quadrado, que verifica a associação entre as palavras dentro de cada classe, tendo como ponto de corte de x2 > 3,84, além da frequência que cada uma delas aparece no corpus textual.

Figura 2
Diagrama das classes integrantes do dendrograma do corpus textual, com apresentação lexical com base na Classificação Hierárquica Descendente, Viçosa, MG, 2023.

Sentimento em relação ao deslocamento momentâneo da função

a.1) Adversidades encontradas diante das atividades na pandemia

No início das ações, as sensações negativas se avultaram. Dentre os desafios encontrados pelos participantes, destacaram-se sentimentos como medo, insegurança e angústia, que, na maioria das vezes, eram atribuídos ao desconhecimento acerca do patógeno e à escassez de estudos a respeito:

Foi desafiante. Como eu relatei, a questão da angústia, da insegurança, porque era uma doença que a gente tinha pouco conhecimento. (PS04)No início foi assustador devido ao número de mortes e a gente não sabia o que esperar também. Não tinha idade certa para a morte, muita morte, muitas dúvidas, ninguém sabia de nada, notícias, muita tragédia e só aparecia morte, morte. Então eu acho que foi bem pavoroso no início. (PS10)

Em um cenário em que as pessoas ainda tinham muitas dúvidas e incertezas, o principal meio de veiculação de informações – a mídia – trazia um excesso de informações negativas em relação ao desenvolvimento da doença. Na Covid-19, otimismo irrealista e emoções negativas podem ser desencadeados como consequência da influência midiática em torno da pandemia1818 Brooks SK, Webster RK, Smith LE, Woodland L, Wessely S, Greenberg N, et al. The psychological impact of quarantine and how to reduce it: rapid review of the evidence. Lancet. 2020; 395(10227):912-20. doi: 10.1016/S0140-6736(20)30460-8.
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A própria mídia não dava informações contundentes, informações seguras. Na verdade, eu acho que ninguém sabia muito bem como lidar com aquela situação; preocupou bastante, incomodou bastante. (PS03)

Além disso, a necessidade do distanciamento e do isolamento social foi considerada como agravante para situações de angústia e de preocupação por algumas pessoas. O risco de uma possível contaminação poderia trazer consequências tanto para o próprio servidor quanto para as pessoas que habitam com ele, tais como filhos, cônjuges e genitores.

Organizar a condição da família, que também estava em casa, os filhos, como deixá-los, com quem deixá-los. E, antes de tudo, o medo da doença, de me contaminar. Foi bem angustiante, fiquei muito preocupada. (PS04)

Esse fato foi corroborado por um outro estudo qualitativo, que buscou compreender as emoções de profissionais de Enfermagem frente à pandemia e identificou que a exposição viral no ambiente de trabalho se relacionava a sentimentos de tensão e preocupações quanto a disseminar o vírus e infectar familiares, sendo esses fatos responsáveis pelo agravamento do quadro de saúde mental dos profissionais1919 Eleres FB, Abreu RNDC, Magalhães FJ, Rolim KMC, Cestari VRF, Moreira TMM. A infecção por coronavírus chegou ao Brasil, e agora? Emoções das enfermeiras. Rev Bras Enferm. 2021; 74 Supl 1:e20201154. doi: 10.1590/0034-7167-2020-1154.
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a.2) Expressões positivas a partir da vivência profissional

Os participantes, apesar de experimentarem sensações por vezes negativas – sobretudo no início das atividades –, apontaram também satisfação e gratidão em colaborar, inclusive quando as vacinas puderam ser administradas, ação citada como fonte de alegria e excitação. Outra questão otimista apontada e que é reafirmada na literatura é a valorização do trabalho na volta da execução de algumas atividades primárias da área de formação do servidor.

A vacinação foi um movimento de muita alegria quando as vacinas chegaram, porque foi um servir de esperança. Então a gente levava esperança, a gente via nos olhos das pessoas esperança. (PS12)

Poder contribuir, ajudar, cooperar com colegas de trabalho, de pensar que estava fazendo algo para o município que acolhe a universidade. (PS04)

Me senti enfermeira de novo. A gente fica na academia, na docência, só na sala de aula, ou como pesquisadora, orientando, produzindo artigo, e se afasta um pouco da assistência. Me senti mais útil para a população, foi um sentimento o tempo todo prazeroso e de recompensa. (PS14)

Para Hackman e Oldham2020 Hackman JR, Oldham GR. Motivation through the design of work: test of a theory. Organ Behav Hum Perform. 1976; 16(2):250-79. doi: 10.1016/0030-5073(76)90016-7.
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, um trabalho tem sentido para uma pessoa quando ela o acha importante, útil e legítimo. Essa colaboração em relação ao atendimento na Unidade Covid-19 foi, de fato, entendida como importante e útil pelos entrevistados, uma vez que ofereceu tanto a estrutura física quanto os recursos humanos aos profissionais e proporcionou certo tempo para que a prefeitura municipal articulasse a organização de hospitais e unidades de atendimento e recebesse a população.

O trabalho realizado em uma equipe multiprofissional com experiências, formação e habilidades distintas foi apontado como fonte de aprendizado e tornou mais valorosa a realização das atividades, sobretudo na unidade de atendimento dos casos sintomáticos leves.

A realização do trabalho em equipe é de suma importância, obtendo melhores e mais eficientes resultados quando comparado ao trabalho realizado individualmente, ao passo que os integrantes podem desenvolver uma interação interpessoal agradável; habilidades; e sentimentos de pertencimento e igualdade, o que gera um ambiente saudável, fornecendo bem-estar profissional2121 Laccort AA, Oliveira GB. A importância do trabalho em equipe no contexto da enfermagem. UNINGA Rev [Internet]. 2017 [citado 28 Jul 2023]; 29(3):6-10. Disponível: https://revista.uninga.br/uningareviews/article/view/1976
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Trabalhar como uma equipe foi muito bom para desenvolver, para desempenhar minhas habilidades e também interagir com outros profissionais que eu não tinha oportunidade de trabalhar. Então foi uma oportunidade, crescimento profissional, atualização de conhecimento, busca de novos conhecimentos, atualizações constantes, porque a gente tinha que ficar estudando. (PS04)

Dessa maneira, o ambiente de trabalho pode permitir espaço de reflexão sobre práticas, anseios e demais aspectos presentes nas vivências dos profissionais, possibilitando, por meio de estratégias relacionais e ajuda mútua, o desenvolvimento de fortalezas e potencialidades2222 Costa IP, Moreira DA, Brito MJM. Sentidos do trabalho: articulação com os mecanismos de risco e proteção para resiliência. Texto Contexto Enferm. 2020; 29:e20190085. doi: 10.1590/1980-265X-TCE-2019-0085.
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a.3) Reflexão sobre outras realidades de trabalho durante a pandemia

A visão positiva do trabalho atribuída pelos participantes não se refere apenas à capacidade de resiliência, ao otimismo ou ao conhecimento científico que embasavam as decisões, mas também ao cenário e às condições de trabalho em que eles estavam inseridos, que, se comparado aos demais profissionais de saúde – que atuavam em hospitais, centros de terapia intensiva e atendimento a casos críticos –, era considerado confortável e seguro, já que havia insumos suficientes, equipamentos de proteção individual (EPI), escalas de revezamento, descanso semanal remunerado e tranquilidade no fluxo de atendimento.

Aumentar a força de trabalho não só reduz a sobrecarga, mas também pode permitir à gestão oferecer dias de folga para aliviar o cansaço físico e mental decorrente da ação. Além disso, a ampliação da equipe permite introduzir pausas durante os plantões, tão necessárias para a recuperação e alimentação2323 Ornell F, Schuch JB, Sordi AO, Kessler FHP. “Pandemic fear” and COVID-19: mental health burden and strategies. Braz J Psychiatry. 2020; 42(3):232-5. doi: 10.1590/1516-4446-2020-0008.
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A gente sabe que, em outras realidades, as outras pessoas não tinham os equipamentos de proteção, a gente se sentia seguro com isso e também com as questões dos treinamentos. (PS04)

Minha saúde mental foi beneficiada por ser uma profissional de saúde do ensino superior. Mas a de quem estava lá dentro de um hospital, com toda aquela pressão de atendimento, com certeza era outra saúde mental. Estavam em um cenário de guerra. É diferente. (PS14)

Aqui a gente tinha um mínimo de condição de segurança, a gente tinha EPI, tinha fluxo de atendimento de pacientes. (PS12)

Corroborando este estudo, Dantas2424 Dantas ESO. Saúde mental dos profissionais de saúde no Brasil no contexto da pandemia por Covid-19. Interface (Botucatu). 2021; 25 Supl 1:e200203. doi: 10.1590/Interface.200203.
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afirma que os profissionais de saúde já vivenciam, cotidianamente, o desgaste emocional por terem de lidar com fatores estressores no ambiente de trabalho, mas que estes se exacerbam em momentos de epidemias e pandemias associados a condições precárias.

Outro estudo realizado afirmou que equipes de profissionais de saúde na linha de frente de atendimento de casos de Covid-19 apresentaram exaustão física e mental, dificuldades na tomada de decisão, dor de perder pacientes e colegas, bem como risco de infecção e a possibilidade de transmitir o vírus para familiares2525 Medeiros EAS. A luta dos profissionais de saúde no enfrentamento da COVID-19. Acta Paul Enferm. 2020; 33:e-EDT20200003. doi: 10.37689/acta-ape/2020EDT0003.
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. Dessa forma, o desgaste psicológico e a sobrecarga de trabalho promovem situações de medo e angústia, que podem vir a gerar patologias como depressão e ansiedade2323 Ornell F, Schuch JB, Sordi AO, Kessler FHP. “Pandemic fear” and COVID-19: mental health burden and strategies. Braz J Psychiatry. 2020; 42(3):232-5. doi: 10.1590/1516-4446-2020-0008.
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O próprio treinamento em relação aos EPIs, considerado uma recomendação essencial2626 Heliotério MC, Lopes FQRS, Sousa CC, Souza FO, Pinho PS, Sousa FNF, et al. Covid-19: por que a proteção da saúde dos trabalhadores e trabalhadoras da saúde é prioritária no combate à pandemia? Trab Educ Saude. 2020; 18(3):e00289121. doi: 10.1590/1981-7746-sol00289.
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, era uma preocupação constante para esses profissionais devido à escassez de tais equipamentos não só no Brasil, mas em todo o mundo.

Compreensão sobre postura institucional para que as atividades acontecessem

b.1) Reconhecimento de treinamento e ações baseadas em conhecimento científico

A ciência é fundamental para produção e manutenção do conhecimento. Em um cenário obscuro e duvidoso, as ações pautadas em pesquisa científica proporcionaram maior segurança para que as mais variadas frentes de atuação pudessem, naquele momento, trabalhar, tendo aqui uma rotina que foi construída para minimizar os riscos de um contágio. Tal cenário se difere de outros, uma vez que a maioria dos profissionais, que escolheram proporcionar o cuidado, não teve acesso a treinamentos rotineiros para enfrentar situações de crise em pandemias e pode não ter preparo, nem tempo disponível, para acompanhar a grande quantidade de trabalhos científicos publicados atualmente2727 World Health Organization. Report of the WHO-China joint mission on coronavirus disease 2019 (COVID-19) [Internet]. Geneva: WHO; 2020 [citado 10 Out 2023]. Disponível em: https://www.who.int/docs/default-source/coronaviruse/who-china-joint-mission-oncovid-19-final-report.pdf
https://www.who.int/docs/default-source/...
.

A gente conseguiu ter uma gestão bastante sensata e comprometida com a ciência, acho que isso é inegável. E o papel da universidade nas ações com relação à pandemia foi impressionantemente modificador do panorama da cidade. (PS02)

Nenhuma decisão foi tomada com base no achismo, tudo o que foi feito foi com estudos, discutindo prós e contras, ouvindo as pessoas, as partes interessadas, e toda vez que a gente tomou uma decisão, ela estava sempre embasada. (PS05)

Dessa maneira, o treinamento e o preparo técnico, além de favorecerem confiança e segurança ao profissional, proporcionaram, segundo participantes, uma realidade mais calma e mais confortável para cidade e região. Em consonância com o achado, uma revisão narrativa que trata das estratégias de resiliência para gerenciar sofrimento psíquico entre profissionais de saúde durante a pandemia de Covid-19 demonstrou que o preparo técnico-científico é capaz de minimizar as afetações psicológicas causadas pela incerteza, insegurança e medo de tomar condutas erradas ou inadequadas, favorecendo o alcance da resiliência pela equipe2828 Heath C, Sommerfield A, Von Ungern-Sternberg BS. Resilience strategies to manage psychological distress among healthcare workers during the COVID‐19 pandemic: a narrative review. Anaesthesia. 2020; 75(10):1364-71. doi: 10.1111/anae.15180.
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.

Além disso, a preocupação com o uso de EPIs e treinamentos, sobretudo em relação à biossegurança, fazia parte do cotidiano desses profissionais:

Os equipamentos de proteção individual hora nenhuma faltaram. Essa parte de equipamento, treinamento, logística, isso tudo foi muito bem pensado para todos nós, servidores. (PS03)

Era muito treinamento, capacitação relacionada à biossegurança, aos profissionais de saúde da rede municipal, dos hospitais, estudantes, que estavam em atividade. (PS13)

Entre as recomendações e orientações para reduzir o sofrimento mental dos trabalhadores durante a pandemia está a disponibilização de treinamento em relação aos EPIs33 Teixeira CFS, Soares CM, Souza EA, Lisboa ES, Pinto ICM, Andrade LR, et al. A saúde dos profissionais de saúde no enfrentamento da pandemia de Covid-19. Cienc Saude Colet. 2020; 25(9):3465-74. doi: 10.1590/1413-81232020259.19562020.
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,2626 Heliotério MC, Lopes FQRS, Sousa CC, Souza FO, Pinho PS, Sousa FNF, et al. Covid-19: por que a proteção da saúde dos trabalhadores e trabalhadoras da saúde é prioritária no combate à pandemia? Trab Educ Saude. 2020; 18(3):e00289121. doi: 10.1590/1981-7746-sol00289.
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, garantindo o cumprimento das orientações da OMS.

b.2) Necessidade e experiência voluntária e na participação

Esta vivência durante a pandemia se dividiu sendo apontada com características negativas e positivas, mas sempre citado como um voluntariado, como uma necessidade percebida e passível de doação da força de trabalho:

Quando falou-se de abrir a unidade eu mesma me prontifiquei a trabalhar, me ofereci pra trabalhar, eu achava importante, achava que era uma responsabilidade minha enquanto profissional de saúde. (PS09)

Nós entendíamos que tínhamos um compromisso enquanto universidade, enquanto papel social da universidade, que extrapolava os muros e que precisava da gente naquele momento. (PS12)

Os profissionais se sentiram estimulados a participa tanto da gestão de atividades, de insumos e de pessoas quanto dos treinamentos e das capacitações oferecidas.

Matherson2929 Matheson C, Robertson HD, Elliott AM, Iversen L, Murchie P. Resilience of primary healthcare professionals working in challenging environments: a focus group study. Br J Gen Pract. 2016; 66(648):e507-15. doi: 10.3399/bjgp16X685285.
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afirma que um ambiente de trabalho saudável estimula os trabalhadores a lidar com as condições adversas, por meio de atitudes positivas e perseverantes, de modo a permitir o equilíbrio dinâmico durante e após as circunstâncias desfavoráveis.

Alguns autores afirmam que uma das características que contribui para dar sentido ao trabalho pode ser chamada de “significado do trabalho”, entendida como a capacidade de um trabalho ter um impacto significativo sobre o bem-estar ou sobre o trabalho de outras pessoas, seja na sua organização, seja no ambiente social1919 Eleres FB, Abreu RNDC, Magalhães FJ, Rolim KMC, Cestari VRF, Moreira TMM. A infecção por coronavírus chegou ao Brasil, e agora? Emoções das enfermeiras. Rev Bras Enferm. 2021; 74 Supl 1:e20201154. doi: 10.1590/0034-7167-2020-1154.
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Além das subcategorias apresentadas a partir das evocações identificadas pelo software Iramuteq, é imprescindível elucidar, neste momento, que a imersão nas falas e a visualização das expressões gestuais dos entrevistados possibilitou apontar uma terceira temática, uma vez que, em relação ao acompanhamento institucional em termos de bem-estar e qualidade de vida, os entrevistados apontaram algumas lacunas e faltas importantes, que, apesar de não serem identificadas como uma subcategoria desconectada das demais, são trazidas dessa forma, além de estarem intensamente presentes na literatura, quando se trata de contexto pós-pandêmico. Por isso, esta temática deve receber destaque, uma vez que está vinculada à compreensão sobre a postura institucional para que as atividades acontecessem.

b.3) Percepção da necessidade de atenção à saúde mental durante as ações

No momento da coleta dos dados, 40% dos entrevistados estavam em tratamento em saúde mental, apenas 27% deles possuíam histórico de diagnóstico anterior de problema de saúde mental e, durante o período de análise, 67% dos voluntários perceberam condição desfavorável no que tange à saúde mental, neste sentido, com a atuação na pandemia.

Por meio da nuvem de palavras gerada pelo Iramuteq, alguns léxicos desta subcategoria foram identificados e se apresentam com posicionamento e tamanho das palavras de acordo com a frequência – ou seja, a quantidade de evocações – em que aparecem. Conforme figura 3, as palavras “sentir” e “abandonado”, interpretadas como sentimentos durante a execução das ações na pandemia, ganharam destaque nas falas dos entrevistados.

Figura 3
Nuvem de palavras da necessidade de atenção à saúde mental, Viçosa, MG, 2023.

As falas a que se referem a esta subcategoria aludem tanto o período em que as ações estavam acontecendo, quanto os que circundaram o processo de trabalho. E neste contexto, o apoio psicológico parece ter feito falta para os trabalhadores e algumas ações de prevenção, promoção e conscientização sobre saúde mental foram apontadas como relevantes, necessárias, mas que, por algum motivo, não foram realizadas.

Eu me senti abandonada, enquanto trabalhador, por quem tinha que tomar cuidado do meu trabalho, nem vir aqui pra saber se estava tudo bem, se os equipamentos estavam aqui, se as pessoas estavam sabendo usar os equipamentos. (PS05)

Diante do cenário vivido pelos profissionais de saúde na pandemia de Covid-19, inúmeras seriam as possibilidades de prestação e manutenção do cuidado em saúde mental. Um estudo recente trata da importância da implementação assertiva de ações, da documentação e da divulgação de resultados das ações implementadas com objetivo de promoção e proteção da saúde mental, que visam ao aprimoramento e à consolidação dessas iniciativas como parte da atenção à saúde de cada profissional envolvido, que se doa ao outro e que, por isso, necessita de atenção para a própria saúde mental2424 Dantas ESO. Saúde mental dos profissionais de saúde no Brasil no contexto da pandemia por Covid-19. Interface (Botucatu). 2021; 25 Supl 1:e200203. doi: 10.1590/Interface.200203.
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Há reconhecimento acerca da necessidade de prover apoio psicológico e de investir em comunicação contínua e incentivo com os trabalhadores, em um esforço para mapear e divulgar as ações de cuidado com a saúde mental e física disponíveis em cada local2626 Heliotério MC, Lopes FQRS, Sousa CC, Souza FO, Pinho PS, Sousa FNF, et al. Covid-19: por que a proteção da saúde dos trabalhadores e trabalhadoras da saúde é prioritária no combate à pandemia? Trab Educ Saude. 2020; 18(3):e00289121. doi: 10.1590/1981-7746-sol00289.
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Investir em um processo de educação continuada, dar mais visibilidade às questões de saúde, cursos mais específicos e com um maior apoio à saúde física e emocional das pessoas, para terem mais acesso, se familiarizarem mais e ter mais calma, menos medo, mais segurança e confiança. (PS03)

Deveria ter um preparo psicológico, algum tipo de atenção nesse sentido. Porque eu percebi que tinha uma atenção com a contaminação e transmissão, mas poderia ter tido mais atividades com a parte de bem-estar, de qualidade de vida dessas pessoas que estavam envolvidas. (PS06)

Outras questões que favoreceram a saúde mental e a resiliência psicológica dos profissionais de saúde, durante e após o período pandêmico, são as capacitações sobre psicoeducação, manejo do estresse, construção de momentos de escuta e cuidados coletivos durante os plantões2424 Dantas ESO. Saúde mental dos profissionais de saúde no Brasil no contexto da pandemia por Covid-19. Interface (Botucatu). 2021; 25 Supl 1:e200203. doi: 10.1590/Interface.200203.
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Apesar do medo e da incerteza, os profissionais de saúde se comprometeram excepcionalmente com a população que acolhe a universidade e com a saúde pública em geral. Eles colocaram em prática medidas de prevenção, como o uso de EPIs e o distanciamento social, para proteger a si mesmos e aos outros. Além disso, também acreditaram no papel social envolvido nas ações de colaboração e permaneceram trabalhando.

Considerações finais

Este estudo permitiu dar voz e entender os sentimentos percebidos pelos profissionais de ensino que atuam na formação superior em Medicina e Enfermagem de uma universidade pública federal e que trabalharam em colaboração com a prefeitura durante a pandemia de Covid-19. Os métodos utilizados facultaram, ainda, levantar questões que impulsionaram novos sentidos e interpretações acerca do trabalho, da saúde mental do profissional e da integração do ensino com o serviço em tempos de crise.

A pesquisa evidenciou, por meio das falas dos participantes, sentimentos dicotômicos nas diferentes fases deste trabalho. Medo e insegurança em relação à contaminação, à transmissão e à evolução negativa da doença se misturavam e davam espaço para satisfação e gratidão em colaborar com a população e com a cidade que acolhe a universidade, por meio de um atendimento de qualidade e humanizado. Em contrapartida, vivenciaram a sensação de bem-estar por levar esperança, alegria e alívio às pessoas, sobretudo por meio da vacina.

O papel da instituição nas ações de enfrentamento à pandemia foi apontado como necessário e um importante modificador do panorama da cidade. De forma voluntária, a maioria dos servidores, mesmo com um pouco de preocupação, sobretudo no início da atuação, sentiu-se protegida e segura, do ponto de vista físico e biológico, em relação às barreiras de proteção individual e coletiva, e sentiu-se tranquilo por ter jornadas flexíveis de trabalho e descansos semanais remunerados.

Reflexões sobre outras realidades de trabalho durante a pandemia – nas falas, comparadas a cenários de guerra –, somadas ao fato de que as ações institucionais se motivavam estritamente em ciência e em conhecimento científico, possibilitaram entender os motivos pelos quais, apesar de se sentirem vulneráveis emocionalmente, os servidores se sentiram satisfeitos em participar das atividades assistenciais.

Os achados da pesquisa demonstraram que, mesmo com fatores de proteção e motivação sendo satisfeitos, momentos críticos que envolvam saúde pública, sobretudo com importância mundial, podem causar danos emocionais significativos nos profissionais que atuam na área da saúde; e a busca por apoio psicológico deve ser encorajada e disponibilizada sempre que necessário pelas organizações que acolhem o trabalhador.

Diante dos resultados encontrados, percebe-se que a instituição de ensino, por meio do setor responsável pela gestão de pessoas, saúde ocupacional e qualidade de vida, deve empenhar-se para criar ambientes de trabalho que promovam o bem-estar emocional e físico dos profissionais, reconhecendo a importância da resiliência tanto durante quanto após períodos desafiadores.

Por fim, a crença na ciência e a dedicação ao cuidado do outro foram fatores fundamentais que ajudaram esses profissionais a permanecerem firmes durante a pandemia, apesar das dificuldades e dos desafios emocionais que enfrentaram.

Assim, a confiança na ciência e na pesquisa se mostrou como fator motivador para que esses profissionais se mantivessem firmes em meio à crise. Eles confiaram nas orientações das organizações de saúde pública, que forneceram informações atualizadas com base nas melhores evidências disponíveis, além das condições de trabalho, capacitações e biossegurança satisfeitas pelos esforços despendidos pela universidade.

Como limitação deste estudo, aponta-se que os achados aqui apresentados são significativos para a realidade em que a pesquisa foi realizada, sendo recomendados outros estudos, em realidades distintas, porém, com profissionais que apresentem as mesmas características laborais.

Agradecimentos

À Universidade Federal de Viçosa, pela oportunidade de realizar a pós-graduação, que, por sua vez, teve como um dos resultados este artigo.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    06 Nov 2023
  • Aceito
    27 Dez 2023
UNESP Botucatu - SP - Brazil
E-mail: intface@fmb.unesp.br