Casamento infantil no Brasil: uma análise da Pesquisa Nacional de Saúde

Child marriage in Brazil: an analysis from the National Health Survey

Andressa Souza Cardoso Inaê Dutra Valério Camila Irigonhé Ramos Karla Pereira Machado Sobre os autores

Resumo

O objetivo deste artigo é caracterizar crianças e adolescentes que vivem em situação de casamento infantil utilizando dados da Pesquisa Nacional de Saúde de 2013. Estimou-se a prevalência de casamento infantil (de menores de 18 anos) de acordo com variáveis socioeconômicas, demográficas e de saúde, de acordo com três categorias de idade (10-13; 14-15; 16-17 anos). Razões de prevalências (RP) foram estimadas por meio de regressão de Poisson. A prevalência geral de casamento infantil foi de 3,9% (n = 1.168); 254 (1,8%) apresentavam menos de 14 anos, 285 (3,8%) tinham entre 14 ou 15 anos e 629 (8,1%) de 16 a 17 anos. A maior probabilidade do evento foi observada no sexo feminino, nas faixas etárias 14 a 15 e 16 a 17 anos. Assim como nas crianças e adolescentes que não possuíam vínculo escolar (observada em todas as faixas etárias). Já os indivíduos que moravam junto de quatro pessoas tiveram menor probabilidade de estar em um casamento infantil nas faixas etárias de 14 a 15 e 16 a 17 anos, em relação aos que moravam com uma a duas pessoas. Este estudo discute as implicações dos achados para a prevenção do casamento infantil, focando nas desigualdades de gênero e no acesso a educação e serviços de saúde.

Key words:
Child; Adolescent; Marriage; Violence; Epidemiological surveys

Abstract

This paper aims to characterize children and adolescents in a child marriage situation using data from the National Health Survey of 2013. The prevalence of child marriage (under 18 years old) was estimated according to socioeconomic, demographic, and health variables by three age categories (10-13; 14-15; 16-17 years). Prevalence ratios (PR) were estimated using Poisson regression. The prevalence of child marriage was 3.9% (n=1,168); 254 (1.8%) were under 14 years old, 285 (3.8%) were between 14 or 15 years old and 629 (8.1%) were between 16 and 17 years old. Higher probability of the outcome was observed among girls in the 14-15- and 16-17-years age groups compared to male, and those who did not attend school (observed in all age groups). Children living with four people were less likely to be in child marriage in the 14-15- and 16-17-years’ age group compared to those who lived with one to two people. This study discusses the implications of the findings for preventing child marriage by focusing on gender inequalities and access to education and health services.

Key words:
Child; Adolescent; Marriage; Violence; Epidemiological surveys

Introdução

O casamento infantil é definido como uma união formal ou informal em que o casal ou uma das partes possua idade inferior a 18 anos (período que compreende a infância e adolescência)11 United Nations Children's Fund (UNICEF). Early Marriage: A Harmful Traditional Practice. New York [Internet]; 2005. [acessado 2020 Jul 7]. Disponível em: https://books.google.com/books?id=FOn-h6oSVQwC&pgis=1
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. Os impactos negativos dessa prática são refletidos principalmente em mulheres, em seus filhos, suas famílias e país, demonstrando consequências profundas, como: maiores riscos para a saúde dos envolvidos, violência doméstica, menor escolaridade, renda e autonomia, além de contribuir significativamente para a pobreza na escala coletiva22 World Bank Group. Child Marriage: Girls Education and the Law in Brazil [Internet]; 2019. [acessado 2019 Jul 7]. Disponível em: https://documents1.worldbank.org/curated/pt/657391558537190232/pdf/Casamento-na-Inf%C3%A2ncia-e-Adolesc%C3%AAncia-A-Educa%C3%A7%C3%A3o-das-Meninas-e-a-Legisla%C3%A7%C3%A3o-Brasileira.pdf
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.

Apesar da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher já estabelecer, em 1979, a ilegalidade do casamento infantil e que o mesmo deve ser feito apenas sob livre consentimento de ambas as partes33 Convention on the Elimination of All Forms of Discrimination (CEDAW). Against Women, G.A. [Internet]. Res. 34/180 December 18, 1979, Art. 1 [acessado 2020 Jul 7]. Disponível em: https://www.ohchr.org/en/professionalinterest/pages/cedaw.aspx
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, inquéritos em nível internacional têm evidenciado que a prática do casamento infantil é antiga e possui ocorrência até hoje44 Human Rights Watch. "Our Time to Sing and Play" Child marriage in Nepal [Internet]; 2016. [acessado 2020 Jul 7]. Disponível em: https://www.hrw.org/sites/default/files/report_pdf/nepal0816_web.pdf
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,55 Taylor A, Lauro G, Segundo M, Greene M. "Ela vai no meu barco": casamento na infância e adolescência no Brasil. Rio de Janeiro, Washington D.C.: Instituto Promundo, PromundoUS; 2015..

De acordo com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), em média, uma a cada cinco mulheres se casam antes dos 18 anos no mundo66 United Nations Children's Fundation (UNICEF). Child marriage: latest trends and future prospects [Internet]; 2018. [acessado 2020 Jul 7]. Disponível em: https://data.unicef.org/resources/child-marriage-latest-trends-and-future-prospects/. A estimativa é baseada em levantamentos conduzidos em diversos países e aponta a região do Sul da África como o local com maior prevalência de casamento infantil (44%)66 United Nations Children's Fundation (UNICEF). Child marriage: latest trends and future prospects [Internet]; 2018. [acessado 2020 Jul 7]. Disponível em: https://data.unicef.org/resources/child-marriage-latest-trends-and-future-prospects/. Em números absolutos, a Índia lidera o ranking com mais de 15 milhões de casos, seguido de Bangladesh, Nigéria e Brasil, com mais de três milhões de casos e líder na América Latina55 Taylor A, Lauro G, Segundo M, Greene M. "Ela vai no meu barco": casamento na infância e adolescência no Brasil. Rio de Janeiro, Washington D.C.: Instituto Promundo, PromundoUS; 2015.,66 United Nations Children's Fundation (UNICEF). Child marriage: latest trends and future prospects [Internet]; 2018. [acessado 2020 Jul 7]. Disponível em: https://data.unicef.org/resources/child-marriage-latest-trends-and-future-prospects/.

O estado brasileiro determina que a idade mínima para o casamento seja de 18 anos77 Brasil. Art. 1.520 da Lei n° 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Seção 1, Brasília, DF. Diário Oficial da União 2002; 11 de janeiro., contudo até 2019 o matrimônio era permitido àqueles indivíduos de 17 ou 16 anos mediante autorização dos responsáveis ou a menores de 16 anos mediante ordem judicial especial (em caso de gravidez ou para evitar a imposição de pena criminal). Em 2019, a permissão de casamento a quem não atingiu a idade núbil (16 anos) foi revogada88 Brasil. Art. 1.520 da Lei n° 13.811, de 12 de março de 2019. Institui o Código Civil. Seção 1, Brasília, DF. Diário Oficial da União 2019; 13 de março.. Ainda que o casamento infantil fosse legalmente permitido a menores de 16 anos em certos casos, ter relações sexuais com menores de 14 anos sempre foram consideradas crime sexual contra vulneráveis99 Brasil. Atlas da vulnerabilidade social nos municípios brasileiros [Internet]. Brasília: IPEA; 2015. [acessado 2020 Jul 7]. Disponível em: http://ivs.ipea.gov.br/images/publicacoes/Ivs/publicacao_atlas_ivs.pdf,1010 Souto RMCV, Porto DL, Pinto IV, Vidotti CCF, Barufaldi LA, Freitas MG, Silva MMA, Lima CM. Estupro e gravidez de meninas de até 13 anos no Brasil: características e implicações na saúde gestacional, parto e nascimento. Cien Saude Colet 2017; 22(9):2909-2918.. Apesar dessa conjuntura, estima-se que 877 mil mulheres se casaram antes dos 15 anos no país (11%)66 United Nations Children's Fundation (UNICEF). Child marriage: latest trends and future prospects [Internet]; 2018. [acessado 2020 Jul 7]. Disponível em: https://data.unicef.org/resources/child-marriage-latest-trends-and-future-prospects/.

Ainda que estimativas apontem grande quantidade de casamento infantil no Brasil66 United Nations Children's Fundation (UNICEF). Child marriage: latest trends and future prospects [Internet]; 2018. [acessado 2020 Jul 7]. Disponível em: https://data.unicef.org/resources/child-marriage-latest-trends-and-future-prospects/, são escassos inquéritos que estimem a prevalência no país e/ou que considerem os meninos como partes do casamento infantil, uma vez que a publicação existente se refere a meninas residentes em regiões específicas de alta vulnerabilidade socioeconômica, podendo o contexto favorecer sua ocorrência55 Taylor A, Lauro G, Segundo M, Greene M. "Ela vai no meu barco": casamento na infância e adolescência no Brasil. Rio de Janeiro, Washington D.C.: Instituto Promundo, PromundoUS; 2015.. Além disso, é possível que as estimativas de casamento infantil tenham subnotificação devido à ilegalidade de alguns casos22 World Bank Group. Child Marriage: Girls Education and the Law in Brazil [Internet]; 2019. [acessado 2019 Jul 7]. Disponível em: https://documents1.worldbank.org/curated/pt/657391558537190232/pdf/Casamento-na-Inf%C3%A2ncia-e-Adolesc%C3%AAncia-A-Educa%C3%A7%C3%A3o-das-Meninas-e-a-Legisla%C3%A7%C3%A3o-Brasileira.pdf
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.

Assim, o objetivo deste estudo é caracterizar crianças e adolescentes que vivem em situação de casamento infantil nas 26 capitais brasileiras e no Distrito Federal utilizando dados provenientes da Pesquisa Nacional de Saúde de 2013.

Métodos

Realizou-se estudo transversal usando os dados da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), conduzida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em parceria com o Ministério da Saúde nas 26 capitais brasileiras e no Distrito Federal. Foram utilizados dados de indivíduos menores de 18 anos coletados em 2013 e 2014, totalizando 59.966 indivíduos elegíveis para compor a amostra. A utilização dos dados desse inquérito se justifica por ser a última pesquisa de abrangência nacional que tenha avaliado o evento de interesse (casamento infantil) e por ser de livre acesso.

A amostra da PNS foi selecionada por conglomerados, e para o cálculo de tamanho de amostra foram considerados os seguintes aspectos: nível de precisão desejado para a estimação de proporções com nível de 95% de confiança (IC 95%); efeito do plano de amostragem, por se tratar de amostragem por conglomeração; número de domicílios selecionados por unidades primárias de amostragem (UPA); e proporção de domicílios com pessoas na faixa etária e/ou sexo de interesse.

A PNS utilizou três questionários: um referente às características do domicílio, outro sobre os moradores do domicílio e o terceiro com informações do morador selecionado para participar da pesquisa. Todos os respondentes eram maiores de 18 anos de idade. Logo, as informações dos indivíduos incluídos nesse estudo, crianças e adolescentes, foram relatadas por um indivíduo maior de 18 anos que residia no mesmo domicílio, incluindo as questões que diziam à percepção de saúde da criança/adolescente. Detalhes do plano amostral, de outros aspectos metodológicos e do questionário já foram publicados1111 Damacena GN, Szwarcwald CL, Malta DC, Souza-Junior PRB, Vieira MLFP, Pereira CA, Morais Neto OL, Silva Júnior JB. O processo de desenvolvimento da Pesquisa Nacional de Saúde no Brasil, 2013. Epidemiol Serv Saude 2015; 24(2):197-206.. O questionário encontra-se disponível no endereço eletrônico oficial da PNS (http://www.pns.icict.fiocruz.br).

O desfecho de interesse, prevalência de casamento infantil, foi definido como indivíduos menores de 18 anos de idade que viviam com cônjuge ou companheiro, obtido a partir da pergunta C10 “Vive com cônjuge ou companheiro?” para indivíduos com idade a partir de dez anos. A idade foi relatada de forma contínua e, posteriormente, categorizada em: < 14/14-15/16-17 anos. A construção da categorização da idade considerou o código civil brasileiro em relação ao casamento infantil vigente no período da coleta (2013-2014)77 Brasil. Art. 1.520 da Lei n° 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Seção 1, Brasília, DF. Diário Oficial da União 2002; 11 de janeiro.: (1) relacionamento íntimo com menores de 14 anos era proibido legalmente e considerado estupro de vulneráveis; (2) no momento da coleta dos dados o casamento com adolescentes de 14 e 15 anos não era reconhecido legalmente, salvo em casos de gravidez e para evitar pena criminal; e (3) casamento com adolescentes com 16 e 17 anos também não era reconhecido legalmente, exceto mediante autorização de ambos os pais.

Foram utilizadas como variáveis independentes no presente estudo: sexo; cor da pele (branca/preta/parda/amarela ou indígena); estado civil (solteiro/casado/divorciado ou viúvo); vínculo escolar (sim/não); número de indivíduos que moram no domicílio (1-2/3/4/≥ 5 indivíduos); região do país (Norte/Nordeste/Sudeste/Sul/Centro-Oeste); percepção de saúde (boa ou muito boa/regular/ruim ou muito ruim); período do último contato médico (< 1 ano/1-3 anos/> 3 anos/nunca foi); frequência de visita da Estratégia de Saúde da Família (ESF) (mensal/a cada dois meses/2-4 vezes no ano/uma vez ao ano/nunca recebeu); local que o indivíduo tinha como referência em saúde (farmácia/unidade básica de saúde - UBS/atendimento público/atendimento particular).

As análises foram realizadas no programa estatístico Stata 13.0 (Stata Corporation, College Station, USA). Inicialmente, realizou-se análise descritiva das características sociodemográficas, econômicas e de saúde por meio de frequência absoluta e relativa. O teste do qui-quadrado para heterogeneidade foi utilizado para avaliar as diferenças entre as categorias de idade. Para avaliar fatores associados ao casamento infantil, procedeu-se à análise multivariável, utilizando regressão de Poisson com variância robusta e obtendo os respectivos intervalos de confiança de 95% (IC 95%). As análises foram ajustadas por sexo e cor da pele e estratificadas por categorias de idade. É preciso ressaltar que o presente estudo explorou todas as variáveis disponíveis e referentes aos indivíduos menores de 18 anos, ainda que em número limitado. As demais variáveis abordadas pela PNS continham informações referentes apenas aos indivíduos maiores de 18 anos de idade.

A PNS foi aprovada pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa com Seres Humanos do Ministério da Saúde. O termo de consentimento foi obtido de todos os participantes em todas as etapas da pesquisa.

Resultados

A PNS coletou informações referentes a 59.966 indivíduos menores de 18 anos. Desses, apenas 29.634 indivíduos tinham informações sobre o evento de interesse, compondo a amostra final do presente estudo. A maioria era do sexo masculino (50,7%), com cor da pele parda (58,3%), estado civil solteiro (99,4%) e com vínculo escolar (93,0%). Quanto às questões de moradia, 48,5% dos entrevistados disseram residir com cinco ou mais indivíduos na mesma residência e mais de 60% residiam nas regiões Norte e Nordeste (29,2% e 31,3%, respectivamente). Com relação à percepção de saúde e ao contato com os serviços de saúde, 87,7% tiveram sua saúde classificada como muito boa ou boa, 57,6% tiveram seu último contato médico em menos de um ano anterior à entrevista, a maioria recebia visitas mensais de Agentes Comunitários de Saúde (ACS) ou de profissionais da Estratégia da Saúde da Família (ESF) (45,7%) e procurava o atendimento em UBS quando necessitava de atendimentos à saúde (57,4%) (Tabela 1).

Tabela 1
Descrição da amostra e prevalência de casamento infantil na população brasileira, segundo características sociodemográficas, econômicas e de saúde. Pesquisa Nacional de Saúde. Brasil, 2013.

A prevalência de indivíduos menores de 18 anos que viviam em um casamento infantil foi de 3,9% (n = 1.168). Entre essas crianças e adolescentes, 254 (1,8% da amostra total) tinham menos de 14 anos, 285 (3,8%) entre 14 ou 15 anos e 629 (8,1%) de 16 a 17 anos. Na Tabela 1 são apresentadas as prevalências de casamento infantil geral e estratificadas por idade de acordo com as variáveis sociodemográficas e de saúde. De forma geral, o casamento infantil foi maior entre as meninas (5,7%), naqueles com cor da pele parda (4,2%), que foram classificados como casados (71,3%) e sem vínculo escolar (20,9%). Quanto à situação de moradia, o casamento infantil foi mais comum nas crianças e adolescentes que vivem com uma ou duas pessoas e habitam a região Norte do Brasil. Quanto aos aspectos relacionados à saúde, o evento foi mais prevalente naqueles que tiveram sua saúde considerada como regular (5,3%), que tiveram o último contato médico há menos de um ano anterior à entrevista (4,7%), que recebem a visita da ESF mensalmente (4,4%) e que possuíam como referência de saúde a UBS (14,5%).

A Tabela 2 apresenta a razão de prevalência (RP) bruta e ajustada de indivíduos menores de 18 anos que vivem em casamento infantil conforme as variáveis independentes. Após o ajuste, a prevalência de indivíduos menores de 14 anos que vivem em um casamento infantil foi 4,23 vezes maior entre aqueles que não possuíam vínculo escolar, comparado àqueles que possuíam algum vínculo (IC 95%: 2,55; 7,01); mais de 13 vezes maior naqueles classificados como casados, em relação aos classificados como solteiros (RP 13,42; IC 95%: 4,14; 29,34) e 1,94 vezes maior naqueles residentes na região Sudeste do país, comparados aos residentes da região Centro-Oeste (IC 95%: 1,19; 3,16). A prevalência foi 45% menor nos indivíduos que tiveram seu último contato médico há três ou mais anos anteriores à entrevista, em relação a quem teve há menos de um ano (RP 0,55; IC 95%: 0,30; 0,99).

Tabela 2
Razão de prevalência não ajustada do casamento infantil, segundo características sociodemográficas, econômicas e de saúde. Pesquisa Nacional de Saúde. Brasil, 2013 (n= 1.168).

Quanto aos indivíduos com idade entre 14 a 15 anos, a prevalência daqueles que vivem em um casamento infantil foi 2,64 vezes maior entre os indivíduos do sexo feminino, comparados aos do sexo masculino (IC 95%: 2,04; 3,41), 1,32 vezes maior naqueles com cor da pele parda, em relação àqueles com cor da pele branca (IC 95%: 1,02; 1,71) e 7,02 vezes maior entre aqueles que não possuíam vínculo escolar, comparado àqueles que possuíam algum vínculo (IC 95%: 5,61; 8,80). Aqueles que foram classificados como casados tiveram 16 vezes mais probabilidade de estar em casamento infantil, quando comparados com os que foram classificados como solteiros (RP 16,66; IC 95%: 12,50; 22,20), e aqueles da região Sul apresentaram probabilidade 76% maior em relação aos residentes da região Centro-Oeste, apesar do intervalo de confiança limítrofe (RP 1,76; IC 95%: 1,05; 2,95). A probabilidade de estar em um casamento infantil foi 37% menor naqueles que tiveram o último contato médico há mais de três anos, em comparação aos que tiveram o último contato nos últimos 12 meses (RP 0,63; IC 95%: 0,44; 0,89), e 54% menor naqueles que possuíam o atendimento particular como local de referência em saúde, em comparação com os que possuíam a UBS como referência (RP 0,46; IC 95%: 0,28; 0,76) (Tabela 2).

Quanto aos indivíduos com idade entre 16 a 17 anos, a prevalência daqueles que vivem em um casamento infantil foi 3,95 vezes maior nos indivíduos do sexo feminino, comparados aos de sexo masculino (IC 95%: 3,28; 4,75); 1,30 vezes maior naqueles com cor da pele parda, em relação aos com cor da pele branca (IC 95%: 1,10; 1,54) e 5,0 vezes maior entre aqueles que não possuíam vínculo escolar, comparado aos que possuíam algum vínculo escolar (IC 95%: 4,34; 5,75) (Tabela 2). A probabilidade de estar em um casamento infantil foi 78% menor naqueles que moravam junto a quatro ou mais pessoas, em comparação aos que moravam com uma ou duas pessoas a mais (RP 0,22; IC 95%: 0,17; 0,27) e 8,09 vezes maior naqueles classificados como casados, em relação aos classificados como solteiros (IC 95%: 7,08; 9,24). Apesar do intervalo de confiança limítrofe, os indivíduos que foram considerados como tendo saúde regular tiveram probabilidade 1,23 vezes maior de viver em casamento infantil do que os que foram considerados como tendo saúde boa ou muito boa (IC 95%: 1,01; 1,50); 45% menor naqueles que tiveram o último contato médico há mais de três anos, em comparação aos que tiveram o último contato nos últimos 12 meses (RP 0,55; IC 95%: 0,43; 0,70) e 55% menor nos que possuíam o atendimento particular como local de referência em saúde, em comparação aos que possuíam a UBS como referência (RP 0,45; IC 95%: 0,32; 0,63).

Discussão

O presente estudo é o primeiro levantamento de base populacional em nível nacional sobre a situação de casamento infantil no país, mostrando que 3,9% (n = 1.168) das crianças e adolescentes da amostra vivem em situação de casamento na infância. É necessário ressaltar que a prevalência encontrada é uma estimativa que abrange todas as capitais brasileiras, não apenas em um território específico. Quando a prevalência do casamento infantil é analisada de acordo com as grandes regiões do país, essas apresentam distribuição desigual, chegando ao pico de 31,3% na região Nordeste, por exemplo.

Maiores proporções de casamento infantil também são observadas em outras regiões, como no Sul da Ásia, sendo 12 milhões por ano o número total de meninas que se casam na infância, mesmo que a taxa de casamento infantil tenha diminuído de aproximadamente 50% para cerca de 30% nos últimos dez anos1212 United Nations Children's Fundation (UNICEF). Child marriage - Child marriage is a violation of human rights, but is all too common [Internet]; 2020 [acessado 2020 Out 10]. Disponível em: https://data.unicef.org/topic/child-protection/child-marriage/
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. Na África Subsaariana estão as prevalências mais elevadas do mundo de casamento infantil, 35% das mulheres jovens se casaram antes dos 18 anos1212 United Nations Children's Fundation (UNICEF). Child marriage - Child marriage is a violation of human rights, but is all too common [Internet]; 2020 [acessado 2020 Out 10]. Disponível em: https://data.unicef.org/topic/child-protection/child-marriage/
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No presente estudo, as meninas são a maioria em todas as categorias de faixa etária que vivem em casamento infantil, exceto na faixa de 10 a 13 anos de idade. Dados recentes apontam que uma em cada cinco meninas no mundo se casaram antes dos 18 anos, o que representa mais de 650 milhões de mulheres que foram expostas ao casamento quando crianças1313 Girls Not Brides Org. Child marriage around the world [Internet]; 2020. [acessado 2020 Out 11]. Disponível em: https://www.girlsnotbrides.org/where-does-it- happen/
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. A desigualdade observada entre os sexos na prevalência de casamento infantil pode refletir uma desigualdade de gênero que é imposta de forma estrutural na sociedade1414 Lee-Rife S, Malhotra A, Warner A, Glinski AM. What Works to Prevent Child Marriage: A Review of the Evidence. Stud Fam Plann 2012; 43(4):87-303.. Entende-se como gênero, mulher e homem, os simbolismos sociais para os sexos feminino e masculino e, consequentemente, o que se é esperado do comportamento e decisões de cada categoria1515 Butler J. Gender trouble: feminism and the subversion of identity. New York: Routledge; 2011..

Assim, uma das possíveis explicações para a maior proporção de casamento infantil entre as meninas seria a destinação de seus aspectos biopsicossociais voltados para a criação de uma família55 Taylor A, Lauro G, Segundo M, Greene M. "Ela vai no meu barco": casamento na infância e adolescência no Brasil. Rio de Janeiro, Washington D.C.: Instituto Promundo, PromundoUS; 2015.. Nesse mesmo âmbito, elas são criadas como figuras frágeis e dependentes, tornando necessário a busca por um parceiro íntimo para lhe prover e proteger, sendo esse, majoritariamente, mais velho55 Taylor A, Lauro G, Segundo M, Greene M. "Ela vai no meu barco": casamento na infância e adolescência no Brasil. Rio de Janeiro, Washington D.C.: Instituto Promundo, PromundoUS; 2015.,1616 Greene ME, Perlson SM, Hart J Mullinax M. The centrality of sexuality for understanding child, early and forced marriage [Internet]; 2018 [acessado 2020 Jul 7]. Disponível em: https://share-netinternational.org/centrality-sexuality-child-marriage/
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. Além disso, algumas meninas enxergam o casamento como uma forma de libertação e como garantia de seus direitos sexuais e reprodutivos, assim como de acesso a serviços de saúde e informação1717 Bruce J, Hallman K. Reaching the Girls Left Behind. Gender and Development 2008; 16(2):227-245.,1818 Plan International Brasil. Tirando o véu: estudo sobre casamento infantil no Brasil. Bahia, BA [Internet]; 2019 [acessado 2020 Jul 7]. Disponível em: https://plan.org.br/wp-content/uploads/2019/07/Tirando-o-veu-estudo-casamento-infantil-no-brasil-plan-international.pdf
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. Estudo realizado na Turquia com 246 mulheres com idade entre 18 e 49 anos mostrou que a maioria das expostas ao casamento infantil teve o casamento arranjado pelos familiares, mais da metade afirmou que, por conta do matrimônio, sua família recebeu uma quantia em dinheiro (dote) da família do marido, e quase 50% das mulheres sofreram violência física por parte do marido1919 Seher Durgut, Sezer Kisa. Predictors of marital adjustment among child brides. Arch Psychiatr Nurs 2018; 32(5): 670-676..

Ainda que o casamento infantil seja uma violência que ocorra em maior proporção entre as meninas, é preciso destacar que que também acomete os meninos1818 Plan International Brasil. Tirando o véu: estudo sobre casamento infantil no Brasil. Bahia, BA [Internet]; 2019 [acessado 2020 Jul 7]. Disponível em: https://plan.org.br/wp-content/uploads/2019/07/Tirando-o-veu-estudo-casamento-infantil-no-brasil-plan-international.pdf
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,2020 Josenhans V, Kavenagh M, Smith S, Wekerle C. Gender, rights and responsibilities: the need for a global analysis of the sexual exploitation of boys. Child Abuse Negl 2019; 104291. Disponível em: https://doi.org/10.1016/j.chiabu.2019.104291
https://doi.org/10.1016/j.chiabu.2019.10...
. Estima-se que 115 milhões de meninos e homens se casaram antes dos 18 anos no mundo1212 United Nations Children's Fundation (UNICEF). Child marriage - Child marriage is a violation of human rights, but is all too common [Internet]; 2020 [acessado 2020 Out 10]. Disponível em: https://data.unicef.org/topic/child-protection/child-marriage/
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. Em contraste com as meninas, os países em que a prática do casamento infantil entre meninos é mais comum são distribuídos de forma diversificada, não apresentando um padrão de localização geográfica1212 United Nations Children's Fundation (UNICEF). Child marriage - Child marriage is a violation of human rights, but is all too common [Internet]; 2020 [acessado 2020 Out 10]. Disponível em: https://data.unicef.org/topic/child-protection/child-marriage/
https://data.unicef.org/topic/child-prot...
. Já os países em que o casamento infantil é mais prevalente entre as meninas compartilham de regiões geográficas específicas e majoritariamente demarcadas por desigualdades socioeconômicas, como a região Subsaariana da África e o Sul da Ásia1212 United Nations Children's Fundation (UNICEF). Child marriage - Child marriage is a violation of human rights, but is all too common [Internet]; 2020 [acessado 2020 Out 10]. Disponível em: https://data.unicef.org/topic/child-protection/child-marriage/
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. Para eles é possível que o casamento tenha outras motivações, tais como a melhoria de sua situação socioeconômica e a garantia de “honrar” sua integridade em situações de gravidez2020 Josenhans V, Kavenagh M, Smith S, Wekerle C. Gender, rights and responsibilities: the need for a global analysis of the sexual exploitation of boys. Child Abuse Negl 2019; 104291. Disponível em: https://doi.org/10.1016/j.chiabu.2019.104291
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Em relação à cor, o casamento infantil foi mais prevalente entre os indivíduos de pele parda em todas as faixas etárias acima de 14 anos. Ainda que não tenham sido encontrados estudos que investiguem a prevalência de casamento infantil em relação à cor da pele, as cores parda e preta estão intimamente relacionadas à vulnerabilidade socioeconômica2121 Silva AAM. Monitoring trends in socioeconomic, maternal and child health inequalities. Int J Epidemiol 2019; 48(Supl. 1):1-3., que por sua vez pode predispor a ocorrência de casamento infantil. Segundo a UNICEF, a incidência de casamento infantil é menor nos países mais distantes da linha da pobreza2222 United Nations Children's Fundation (UNICEF). Child marriage - Child marriage threatens the lives, well-being and futures of girls around the world [Internet]; 2020. [acessado 2020 Jul 7]. Disponível em: https://www.unicef.org/protection/child-marriage
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Outra variável correlacionada ao poder aquisitivo2323 Salvato MA, Ferreira, PCG, Duarte AJM. O impacto da escolaridade sobre a distribuição de renda. Estud Econ 2010; 40(4):753-791.,2424 Simões CF, Amaral SCS. A relação entre a escolaridade e a pobreza: uma análise das políticas para democratização do acesso ao ensino superior no Brasil. Revista Brasileira de Ensino Superior 2018; 4(2):21-43. e ao casamento infantil é a escolaridade. No presente estudo, a falta de vínculo escolar foi positivamente associada ao casamento infantil em todas as faixas etárias. Contudo, é preciso cautela na interpretação desse achado, tendo em vista a bidirecionalidade entre casamento infantil e vínculo escolar e a coleta transversal dos dados. Possuir baixa escolaridade e/ou estar excluído da rede escolar pode levar ao menor acesso à informação, por exemplo de saúde2525 Fontes MB, Crivelaro RC, Scartezini AM, Lima DD, Garcia A, Fujioka RT. Fatores determinantes de conhecimentos, atitudes e práticas em DST/Aids e hepatites virais, entre jovens de 18 a 29 anos, no Brasil. Cienc Saude Colet 2017; 22(4):1343-1352. ou legislativa, o que potencializa a chance de esses indivíduos se envolverem em situação vulneráveis ou ilegais, como o casamento infantil. De acordo com o Banco Mundial, os impactos econômicos do casamento infantil são altos2626 World Bank Group. Economic impact of child marriage: global synthesis brief [Internet]; 2017. [acessado 2020 Out 7]. Disponível em: https://documents1.worldbank.org/curated/en/454581498512494655/pdf/116832-BRI-P151842-PUBLIC-EICM-Brief-GlobalSynthesis-PrintReady.pdf
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. Esses custos estão relacionados ao fato de que o casamento infantil restringe o desempenho educacional de meninas que se casam antes dos 18 anos de idade, podendo chegar ao gasto de até 26 bilhões de dólares2626 World Bank Group. Economic impact of child marriage: global synthesis brief [Internet]; 2017. [acessado 2020 Out 7]. Disponível em: https://documents1.worldbank.org/curated/en/454581498512494655/pdf/116832-BRI-P151842-PUBLIC-EICM-Brief-GlobalSynthesis-PrintReady.pdf
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Por outro lado, a falta de vínculo escolar pode ser entendida pela necessidade de trabalhar para prover o sustento do conjunto familiar após o casamento infantil, destacando-se essa motivação principalmente entre os meninos1717 Bruce J, Hallman K. Reaching the Girls Left Behind. Gender and Development 2008; 16(2):227-245.. Estudo realizado no Brasil com 7.425 jovens de 14 a 24 anos de ambos os sexos apontou que administrar exigências laborais em conjunto com as atividades escolares torna a vida dos entrevistados desgastante, e o acúmulo dessas tarefas pode levar à evasão escolar2727 Dutra-Thomé L, Pereira AS, Koller SH. O desafio de conciliar trabalho e escola: Características sociodemográficas de jovens trabalhadores e não-trabalhadores. Psic Teor e Pesq 2016; 32(1):101-109..

Outro fator que pode levar ao abandono escolar é a gestação durante a fase da infância/adolescência, uma motivação majoritariamente entre as meninas, sendo também uma das principais razões para o casamento infantil55 Taylor A, Lauro G, Segundo M, Greene M. "Ela vai no meu barco": casamento na infância e adolescência no Brasil. Rio de Janeiro, Washington D.C.: Instituto Promundo, PromundoUS; 2015.,2828 Silva MJF. Percepções dos professores sobre a gravidez na adolescência e evasão escolar no município de Sumé. [Monografia]. Sumé (PB): Universidade Federal de Campina Grande; 2018.,2929 Rodrigues LS, Silva VOS, Gomes MAV. Gravidez na Adolescência: suas implicações na adolescência, na família e na escola. Revista Educação e Emancipação 2019; 12(2)228-252..

A prevalência de casamento infantil também teve seu cenário avaliado em relação ao número de indivíduos que moram junto ao entrevistado. Com exceção dos menores de 14 anos, conviver com no mínimo três indivíduos na mesma residência mostrou diminuição da probabilidade de casamento infantil. É possível que essas crianças, ao conviverem com mais pessoas, possuam uma maior rede de apoio social, consequentemente aumentando a probabilidade de estarem expostos a figuras bem-sucedidas que os inspirem1414 Lee-Rife S, Malhotra A, Warner A, Glinski AM. What Works to Prevent Child Marriage: A Review of the Evidence. Stud Fam Plann 2012; 43(4):87-303.. Assim, como uma forma de projeção, essas crianças podem encontrar outras perspectivas de futuro que diferem do acontecimento do casamento em uma idade tão precoce.

Em relação à localidade das crianças e dos adolescentes, o presente estudo apontou que, comparado àqueles que residem na região Norte, viver nas regiões Sudeste e Centro-Oeste (entre os maiores de 14 anos) e no Nordeste (entre os menores de 14 anos) corresponde a uma menor probabilidade para a ocorrência de casamento infantil. Ao analisar a prevalência de casamento infantil por grandes regiões com dados do Censo Demográfico Brasileiro de 2010, um estudo verificou que as regiões que possuíam maiores prevalências de casamento infantil apresentavam, paralelamente, menores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH), sendo elas o Norte e o Nordeste3030 Rodrigues NMS. O princípio da proteção integral frente ao casamento infantil [Monografia]. Cacoal (RO): Fundação Universidade Federal de Rondônia; 2018.. Considerando que o IDH é uma medida de renda, educação e saúde, as regiões onde as famílias possuem menores renda, nível educacional e acesso a serviços de saúde tendem a ter maiores níveis de casamento infantil.

Quanto ao acesso aos serviços de saúde, os indivíduos das faixas etárias acima de 14 anos apresentaram um maior contato com o mesmo, então pressupõe-se que esse fato pode ter ocorrido devido a necessidades relacionadas à saúde sexual e reprodutiva, como infecções sexualmente transmissíveis (ISTs) e gravidez3131 Uddin J, Pulok MH, Johnson RB, Rana J, Baker E. Association between child marriage and institutional delivery care services use in Bangladesh: Intersections between education and place of residence. Public Health; 1716-14..

É preciso ressaltar algumas limitações, como a possível subestimação dos dados, uma vez que o questionário não foi feito especificamente para avaliar o casamento infantil. Contudo, a limitação reforça a direção dos resultados encontrados, dado que a aplicação de um questionário adequado poderia encontrar prevalências ainda maiores de casamento infantil. Outras limitações que reforçam os resultados são a condução do estudo apenas nas capitais brasileiras e não mensurar a prevalência em cidades de menor porte, onde o contexto de vulnerabilidade social e violência podem ser maiores e, consequentemente, apresentar maiores prevalências para o desfecho. Outra fonte de possível subnotificação dos resultados se dá por parte dos respondentes (maiores de 18 anos residentes no mesmo domicílio), uma vez que em alguns casos de casamento infantil, sobretudo referente aos menores de 14 anos, ocorreram de forma ilegal, devido à idade insuficiente da criança/adolescente. Apesar da coleta de dados ter ocorrido em 2013, a PNS teve sua última versão publicada em 2014, não havendo uma versão mais atual dos dados em nível nacional até o presente momento. Como ponto positivo, destaca-se que é o primeiro levantamento de casamento infantil em nível nacional que contabiliza e caracteriza a população acometida, assim como integra os meninos como população acometida pelo desfecho.

O presente estudo mostrou que o casamento infantil é uma situação existente no Brasil, e abordá-lo exige o reconhecimento dos fatores que o predispõem. Os impactos do matrimônio infantil podem ser individuais e coletivamente extensivos, e mesmo que as questões que o propiciam variem entre culturas, as desigualdades socioeconômicas, a ausência de vínculo escolar e o acesso limitado aos cuidados em saúde sustentam essa prática. Além disso, existem indícios consideráveis de que a prática do casamento infantil perpetua a discriminação de gênero e põe em risco as chances de saúde e vida, em especial de meninas e mulheres.

Os resultados do presente estudo reforçam a necessidade de que as leis que dispõem sobre a união matrimonial sejam reformuladas de forma mais rígida quanto à idade legal para o casamento. Além disso, faz-se necessária a criação não apenas de políticas públicas, mas de ações locais que conscientizem a população acerca da problemática do casamento infantil e que estimulem a discussão sobre desigualdade de gênero e direitos infantis de maneira articulada com as áreas de saúde e educação.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Fev 2022
  • Data do Fascículo
    Fev 2022

Histórico

  • Recebido
    11 Ago 2020
  • Aceito
    08 Dez 2020
  • Publicado
    10 Dez 2020
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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