Prevenção de riscos e agravos à saúde dos trabalhadores hospitalares à luz da Teoria da Atividade Histórico-Cultural

Beatriz Eliseu Ferreira Rodolfo Andrade de Gouveia Vilela Adelaide Nascimento Ildeberto Muniz de Almeida Manoela Gomes Reis Lopes Daniel Braatz Vivian Aline Mininel Sobre os autores

Resumo

A prevenção de riscos e agravos à saúde dos trabalhadores nos hospitais deve ser foco dos gestores, pois contribui para a qualidade de vida no trabalho e a segurança do paciente. O objetivo deste artigo é compreender a atividade de prevenção de riscos e agravos à saúde dos trabalhadores no contexto hospitalar, a partir das contradições históricas e empíricas do sistema de atividade. Estudo qualitativo exploratório, ancorado na Teoria da Atividade Histórico-Cultural, desenvolvido em um hospital universitário do estado de São Paulo. Os dados foram coletados entre setembro de 2021 e janeiro de 2022 por meio de entrevistas semiestruturadas com nove profissionais do Serviço Especializado em Engenharia de Segurança e Medicina do Trabalho e cinco gestores do hospital; 20 horas de observação de campo; e análise documental. Apesar da expansão do objeto da atividade de prevenção, os demais elementos do sistema de atividade não se adaptaram às novas exigências, evoluindo com incompatibilidades e contradições que comprometeram o alcance dos resultados esperados. As principais ações de resposta observadas ficaram centradas em adequações a exigências de itens de normas, como composição de equipe, exames médicos e outras que pouco atuam na promoção e proteção da saúde.

Palavras-chave:
Saúde do trabalhador; Serviços de saúde do trabalhador; Gestão em saúde; COVID-19; Hospitais

Introdução

Nos serviços de saúde, as categorias assistenciais são as mais expostas aos riscos ocupacionais, em virtude do objeto de trabalho (cuidado direto aos pacientes) e das condições laborais. Estresse, cansaço físico, vulnerabilidade, trabalhos em turnos e sobrecarga são aspectos que contribuem para o adoecimento dos trabalhadores nesse contexto11 Teixeira CFS, Soares CM, Souza EA, Lisboa ES, Pinto IC M, Andrade LR, Espiridião MA. A saúde dos profissionais de saúde no enfrentamento da pandemia de COVID-19. Cien Saude Colet 2020; 25(9):3465-3474.,22 Barros BA, Silva EP, Sandrin PPA, Abreu AM, Freitas VL. Absenteísmo entre profissionais de saúde durante a pandemia de COVID-19: uma revisão integrativa. RSD 2022; 11(8):e28711830694..

A pandemia causada pelo SARS-CoV-2 promoveu grande preocupação nos serviços de saúde quanto à prevenção de riscos e agravos à saúde dos trabalhadores. Apesar da relevância dos equipamentos de proteção individual (EPI), a má gestão desses insumos, a baixa disponibilidade, o uso incorreto e a falta de capacitação contribuíram para a contaminação profissional, somados ao desafio de incorporação de novas tecnologias, trabalho intenso, falta de recursos materiais e de pessoal, despreparo, longas jornadas, sonolência, cansaço e instabilidade clínica do paciente, aspectos que agravaram o cenário33 Almeida IM. Proteção da saúde dos trabalhadores da saúde em tempos de COVID-19 e respostas à pandemia. Rev Bras Saude Ocup 2020; 45:e17.,44 Marziale MHP, Cassenote AJF, Mininel VA, Fracarolli IFL, Santos HEC, Garcia GPA, Robazzi MLCC, Rocha FLR, Palha PF, Terra FS, Ballestero JGA, Fortunato MAB, Lima MM. Risco de COVID-19 em profissionais de saúde da linha de frente e intervenções: uma revisão sistemática. SciELO Preprints 2022. DOI: https://doi.org/10.1590/SciELOPreprints.37455
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Devido ao novo contexto, as instituições de saúde, especialmente os hospitais, precisaram se organizar para implementar um plano de gestão de crise que contemplasse não apenas os cuidados clínicos, mas também de saúde e segurança dos trabalhadores como condição indispensável para a continuidade da assistência. A segurança de trabalhadores e de pacientes passou, em grande parte, a depender de escolhas gerenciais anteriormente adotadas sem a participação da gestão de saúde e segurança no trabalho (SST), considerando a lógica da prevenção em seus diferentes níveis hierárquicos.

Os Serviços Especializados em Engenharia de Segurança e em Medicina do Trabalho (SESMT), no Brasil, são responsáveis por assegurar a saúde ocupacional e a segurança no trabalho55 Brasil. Ministério do Trabalho e Previdência (MTP). Dispõe sobre as Normas Regulamentadoras [Internet]. 2022. [acessado 2023 jun 11]. Disponível em: https://www.gov.br/trabalho-e-emprego/pt-br/assuntos/inspecao-do-trabalho/seguranca-e-saude-no-trabalho/ctpp-nrs/normas-regulamentadoras-nrs
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. No contexto da pandemia nos hospitais, esses serviços precisaram se articular com os demais setores e profissionais para manter os trabalhadores sadios e assegurar a assistência ininterrupta. Contudo, historicamente os SESMT vêm apresentando limitações e dificuldades de atuação, decorrentes da falta de infraestrutura adequada, escassez de materiais e instrumentos, atribuições profissionais desvinculadas da prática de saúde e segurança e voltadas à produtividade e aos lucros das empresas, desconfigurando sua atividade 66 Inoue KSY, Vilela RAG. O poder de agir dos Técnicos de Segurança do Trabalho: conflitos e limitações. Rev Bras Saude Ocup 2014; 39(130):136-149..

Nesse cenário, emergiu a seguinte pergunta de pesquisa: “Como a atividade de prevenção de riscos e agravos à saúde dos trabalhadores foi desenvolvida no contexto hospitalar antes e durante a pandemia de COVID-19?” Assim, esta pesquisa traçou como objetivo compreender a atividade de prevenção de riscos e agravos à saúde dos trabalhadores no contexto hospitalar a partir das contradições históricas e empíricas atuais do sistema de atividade (SA).

Para tanto, ancorou-se nos pressupostos teórico-conceituais da Teoria da Atividade Histórico-Cultural (TAHC), considerando a quarta geração, proposta por Engeström e Sannino (2020)77 Engeström Y, Sannino A. From mediated actions to heterogenous coalitions: four generations of activity-theoretical studies of work and learning. Mind Culture Activity 2020; 28(1):4-23., que mantém as bases do materialismo dialético. Nesta leitura da TAHC, o desafio está em lidar com a transformação complexa e ramificada do objeto da atividade humana, chamado de objeto fugidio (runaway object), que influencia e permeia os objetos de inúmeras atividades, não podendo mais ser tratados como questões isoladas a serem controladas por meios técnicos77 Engeström Y, Sannino A. From mediated actions to heterogenous coalitions: four generations of activity-theoretical studies of work and learning. Mind Culture Activity 2020; 28(1):4-23.. Esta geração compartilha de pressupostos fundamentais das gerações anteriores, ao considerar que o trabalho precisa ser analisado como prática orientada a objetos, mediada por instrumentos e influenciada por contradições, devendo ser entendido em seu constante desenvolvimento e transformação, tornando a aprendizagem um aspecto central77 Engeström Y, Sannino A. From mediated actions to heterogenous coalitions: four generations of activity-theoretical studies of work and learning. Mind Culture Activity 2020; 28(1):4-23..

O SA, entendido como unidade dialética de análise, envolve a interação entre seus elementos (sujeitos, objeto, resultados, regras, instrumentos, divisão do trabalho e comunidade), com o objetivo de dar forma ao objeto compartilhado para qual a atividade, construída coletivamente, está dirigida88 Engeström Y. Expansive LEARNING AT WORK: Toward an activity theoretical reconceptualization. J Educ Work 2001; 14(1):133-156.. Em seu desenvolvimento histórico, essas interações podem gerar contradições, definidas como tensões estruturais e incompatibilidades existentes no SA e/ou entre SAs99 Vilela RAG, Hurtado SLB. Uma leitura da crise da atividade de prevenção: paradoxos atuais e desafios futuros. Cad Bras Ter Ocup 2017; 25(4):917-926.. Distúrbios, problemas, insatisfações, acidentes e adoecimentos são entendidos como manifestações de contradições existentes no SA. Enquanto os primeiros são facilmente identificados, as contradições são invisíveis; são ferramentas analíticas e conceituais essenciais que auxiliam a compreender as origens dos desajustes que perturbam a atividade.

As contradições podem ser classificadas como: primárias - inerentes à forma capitalista e situadas dentro dos elementos do SA; secundárias - surgem entre os elementos do SA, trazendo distúrbios ou impossibilitando os sujeitos a realizar a atividade do mesmo modo, o que os impulsiona a buscar novas soluções, tecnologias ou expansão do objeto; terciárias - com a implantação do novo modelo de atividade, surgem novas contradições, ou seja, novos desajustes entre o velho modelo e os elementos da nova versão expandida; e quaternárias - a implementação do novo modelo pode causar novas disfunções, uma vez que a nova atividade começa a confrontar atividades paralelas que ainda seguem a lógica anterior1010 Querol MAP, Jackson Filho JM, Cassandre MP. Change laboratory: uma proposta metodológica para pesquisa e desenvolvimento da aprendizagem organizacional. Adm Ensino Pesq 2011; 12(4):609-640.. Para apreender as contradições é necessário compreender a evolução do SA na sua história.

Nessa perspectiva, definiu-se como objeto de análise o SA de prevenção de riscos e agravos à saúde dos trabalhadores, bem como o mapeamento de suas contradições para a construção de hipóteses de desafios e a identificação de potencialidades para futuras estratégias de intervenção.

Método

Estudo qualitativo e exploratório, delineado para a geração de dados espelhos (empíricos) e o levantamento de hipóteses das contradições da atividade de prevenção no contexto hospitalar, a serem utilizados em intervenção formativa futura. Teve como foco a atividade desenvolvida pelo SESMT em um hospital universitário (HU) de médio porte do estado de São Paulo, que atende exclusivamente o Sistema Único de Saúde (SUS) e é gerido pela Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH).

Participaram 14 trabalhadores, sendo nove vinculados ao SESMT (um técnico e um engenheiro de segurança do trabalho; dois enfermeiros e dois médicos do trabalho; uma estagiária de enfermagem, além de uma fisioterapeuta do trabalho cedida quatro horas semanais e uma enfermeira do trabalho que atuou na instituição de 2017 a 2019) e cinco gestores gerais do hospital (alta gestão) que atuavam nas áreas de ensino e pesquisa, administração e atenção à saúde.

A coleta de dados, realizada entre setembro de 2021 e janeiro de 2022, foi planejada para atender às premissas da TAHC, que consiste no levantamento de dados e informações históricas e empíricas atuais para melhor compreensão do SA a partir de seus elementos e contradições1111 Jaakko NDV. The change laboratory. Belo Horizonte: Fabrefactum; 2015.. Envolveu três técnicas simultâneas: entrevistas individuais, observação de campo e análise documental.

Os participantes foram convidados presencialmente pelos pesquisadores, que esclareceram os objetivos da pesquisa, entregaram as duas vias do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e combinaram o melhor horário para a realização da entrevista. As entrevistas semiestruturadas tiveram duração média de 40 minutos, foram feitas virtualmente, gravadas em áudio e vídeo e posteriormente transcritas e analisadas por pesquisadores com expertise nesse tipo de abordagem. Incluíram a exploração da atividade de prevenção e promoção da SST antes e no contexto da pandemia de COVID-19, com ênfase: nos seus objetivos, formas de organização e relações com outros serviços e profissionais; demandas que exigem resposta do SESMT; mudanças ao longo do tempo; facilidades e dificuldades; e papel da gestão.

A observação de campo ocorreu em cinco períodos de quatro horas, totalizando 20 horas, respeitando-se as restrições de circulação nas áreas assistenciais impostas pela pandemia. Incluiu o acompanhamento da rotina do SESMT, priorizando as atividades e a organização do processo de trabalho desempenhadas pelos profissionais, o ambiente físico, os fluxos e os atendimentos prestados aos trabalhadores. As anotações das observações foram feitas em diário de campo de forma dialogada com os profissionais do SESMT.

A análise documental incluiu acesso ao website institucional para coleta de informações que pudessem subsidiar a questão de estudo, e a planos de trabalho, fichas de atendimentos, dados de absenteísmo, relatório de plano de contingência da COVID-19 e do Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional (PCMSO).

Os dados originados nas entrevistas, na análise documental e na observação de campo foram submetidos à técnica de análise temática de conteúdo, que perpassa três etapas: pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados obtidos e interpretação1212 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec, Abrasco; 2014.. A pré-análise incluiu a leitura flutuante de todo o material, sistematizando as ideias iniciais e os principais acontecimentos. Para a exploração do material, foram consideradas as falas correspondentes aos núcleos de sentido, a fim de elencar os elementos do SA, as contradições e as hipóteses. O tratamento incluiu a categorização e interpretação dos achados à luz da TAHC e da dialética materialista88 Engeström Y. Expansive LEARNING AT WORK: Toward an activity theoretical reconceptualization. J Educ Work 2001; 14(1):133-156.,1111 Jaakko NDV. The change laboratory. Belo Horizonte: Fabrefactum; 2015., apresentados de forma descritiva (incluindo os excertos das falas, anotações em diário de campo e dados documentais) e ilustrados pelo triângulo do SA.

O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa, sob CAAE nº 44105621.3.0000.5504. Todos os preceitos éticos das resoluções n° 466/2012 e nº 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde foram respeitados e os participantes formalizaram o consentimento por meio da assinatura do TCLE. Em respeito ao sigilo e anonimato dos participantes, o nome do hospital, a cidade de localização e a universidade de vínculo foram omitidos; os nomes dos profissionais do SESMT foram substituídos pela letra P, e os dos gestores pela letra G, seguidas do número de ordem da entrevista.

Resultados e discussão

Os resultados mostraram a evolução da atividade de prevenção de riscos e agravos à saúde dos trabalhadores no contexto hospitalar, evidenciando a expansão do objeto ao longo dos anos e sua incompatibilidade com os demais elementos do SA, que não sofreram transformações para atender a esse novo objeto fugidio, gerando contradições primárias e secundárias (e consequentes distúrbios e perturbações), que serão explicitadas em três categorias: 1) expansão do objeto da atividade de prevenção de riscos e agravos à saúde dos trabalhadores; 2) perturbações (manifestações das contradições) decorrentes da expansão do objeto da atividade de prevenção de riscos e agravos à saúde dos trabalhadores; e 3) hipóteses que podem explicar as contradições do SA de prevenção de riscos e agravos à saúde dos trabalhadores.

Expansão do objeto da atividade de prevenção de riscos e agravos à saúde dos trabalhadores

Apesar de o hospital ter iniciado suas atividades antes de 2015, este será o marco considerado para a análise, uma vez que houve mudança no modelo de gestão (assumida pela EBSERH) e a demissão em massa de trabalhadores para contratação via concurso. O SESMT iniciou suas atividades naquele ano, a partir da contratação de um técnico e um engenheiro de segurança do trabalho (e diversas tentativas sem sucesso de contratação de um médico do trabalho), com ações de segurança ocupacional focadas em questões de infraestrutura física, elétrica e hidráulica. O processo de revitalização hospitalar apresentava problemas estruturais importantes, o que acabou modulando um SA fragmentado e orientando parcialmente ao objeto da atividade, com ênfase na higiene ocupacional.

O SESMT foi estabelecido pela Norma Regulamentadora (NR) 4 e suas ações são norteadas por outras normas, como a NR1, que dispõe sobre a gestão dos riscos ocupacionais, a NR7, que institui o PCMSO, e a NR32, que estabelece as diretrizes básicas para implementação de medidas de proteção à saúde e de segurança dos trabalhadores nos estabelecimentos de saúde66 Inoue KSY, Vilela RAG. O poder de agir dos Técnicos de Segurança do Trabalho: conflitos e limitações. Rev Bras Saude Ocup 2014; 39(130):136-149.. Esse serviço tem papel importante para as organizações, dada a sua capacidade de atuar na prevenção de acidentes e doenças relacionadas ao trabalho e assim contribuir para o melhor desempenho institucional e a diminuição de gastos relacionados a indenizações, afastamentos e prejuízos materiais1313 Lima KM, Canela KGS, Teles RBA, Melo DEB, Belfort LRM, Martins VHS. Management in occupational health: relevance of investigation of work accidents and incidents in health services. Rev Bras Med Trab 2017; 15(3):e18891155..

A despeito da obrigatoriedade do SESMT nas empresas, a interpretação da legislação brasileira acaba por atribuir um caráter mais corretivo e pouco preventivo, predominando ações após a ocorrência dos acidentes de trabalho, com investigações superficiais de suas causas1414 Hurtado SLB, Simonelli AP, Mininel VA, Esteves TV, Vilela RAG, Nascimento A. Políticas de saúde do trabalhador no Brasil: contradições históricas e possibilidades de desenvolvimento. Cien Saude Colet 2022; 27(8):3091-3102.. As normas introduzem a noção de hierarquia de medidas de prevenção de riscos (eliminar, substituir ou reduzir; controles de engenharia e administrativo; e proteção individual), com pouca participação em decisões relacionadas ao topo dessa hierarquia. Tais normas, pautadas na Medicina do Trabalho (MT) - perspectiva individual, unicausal e biologicista - e na higiene e segurança ocupacional (cumprimento de normas e parâmetros mínimos de segurança ocupacional, em que o trabalhador continua como objeto das ações), ainda são pouco orientadas para a saúde do trabalhador (ações de promoção da saúde e prevenção de agravos na perspectiva coletiva, organizacional e da determinação social do processo saúde-doença)1515 Mendes R, Dias EC. Da medicina do trabalho à saúde do trabalhador. Rev Saude Publica 1991; 25(5):341-349.. Esses descompassos podem ser interpretados como uma contradição secundária entre o objeto e os instrumentos e como uma contradição intrínseca ao objeto do serviço99 Vilela RAG, Hurtado SLB. Uma leitura da crise da atividade de prevenção: paradoxos atuais e desafios futuros. Cad Bras Ter Ocup 2017; 25(4):917-926..

Mesmo com a ampliação da equipe em 2017, com a contratação de um enfermeiro do trabalho e a cessão pontual de um médico especializado em MT para dar conta dos exames admissionais, demissionais e periódicos, observa-se que a forma como o serviço foi estruturado é um ponto de partida para a compreensão da origem das contradições históricas que persistem até os dias atuais, principalmente quanto ao pouco protagonismo nas decisões estratégicas do sistema, sobretudo aquelas ligadas à estruturação da equipe e ao topo da hierarquia de controles no hospital.

A estrutura era o mais complicado, porque não tinha médico, então a gente só fazia o básico do básico de saúde do trabalhador. Nem o PCMSO a gente conseguiu cumprir. Vacina era o que a gente conseguia alcançar melhor. A gente ficava mesmo na parte administrativa, a respeito da entrega de atestado; a gente sabia do que ele [trabalhador] estava se afastando, mas a gente tinha um pouco de limitação para atuar em cima daquilo. O que que a gente conseguiu fazer com CID M [Doenças do Sistema Osteomuscular e do Tecido Conjuntivo]: todo funcionário que entregava afastamento relacionava doença osteomuscular, a gente tinha uma parceria com a fisioterapeuta do hospital e ela tinha uma tarde, que era um turno semanal, para fazer ergonomia. A gente encaminhava pra ela, que ia lá analisar o posto de trabalho, fazer orientação do próprio movimento, da própria atividade laboral em si, com alunos (P8).

O setor de saúde e segurança do trabalho ainda atua de forma muito reativa, faltam ainda instrumentos de diagnóstico e de intervenções que sejam mais proativos e que atuem de forma mais preventiva. Hoje ele se atenta muito às normas e legislações, aos periódicos, mas é um setor que ainda precisa se desenvolver (G3).

Os excertos indicam duas contradições secundárias: o subdimensionamento da equipe, que pode ser reflexo da priorização de contratação de profissionais para a atividade-fim (cuidado), inviabiliza o alcance da complexidade da saúde e da segurança dos trabalhadores do hospital (sujeitos x objeto); isso é agravado pela ênfase no cumprimento das normas, que, segundo a percepção dos gestores, são claramente insuficientes para assegurar as necessidades de SST (regras x objeto).

A observação de campo permitiu identificar mais duas contradições: as equipes de saúde (enfermeiro e médico) e de segurança (engenheiro e técnico) ocupavam espaços físicos diferentes, sendo que não havia uma sala específica para atendimento dos trabalhadores (sujeitos x instrumentos). Além do médico do trabalho não ter dedicação exclusiva ao SESMT, o engenheiro tinha outras funções na instituição que ocupavam a maior parte de sua carga horária (sujeitos x divisão do trabalho).

A escassez de pessoal e de infraestrutura para desenvolvimento de ações de vigilância à saúde dos trabalhadores já havia sido sinalizada na literatura tanto na perspectiva das instituições66 Inoue KSY, Vilela RAG. O poder de agir dos Técnicos de Segurança do Trabalho: conflitos e limitações. Rev Bras Saude Ocup 2014; 39(130):136-149. quanto das políticas públicas1616 Pinheiro HA, Barroco CC, Santos GV. A saúde do trabalhador do Sistema Único de Saúde (SUS) em tempos de crise: a realidade do Hospital Universitário Getúlio Vargas (HUGV) no Amazonas. Textos Contextos 2020; 19(1):e36386.. A parceria com a fisioterapeuta demonstra uma tentativa de superação dessa contradição em direção a ações mais integradas, mas ainda de forma pontual, individual e reativa - os encaminhamentos eram feitos após o afastamento e diagnóstico do trabalhador (uma forma de prevenção secundária, uma vez que o dano já aconteceu). A equipe não reconhece, a priori, suas limitações de atuação via ações situadas no topo da hierarquia de controles.

Tais contradições persistiram nos anos de 2018 e 2019, mesmo com a cessão do médico do trabalho por 12 horas semanais. Um aspecto relevante começa a marcar a ampliação do objeto: a mudança do perfil de adoecimento dos trabalhadores, com aumento dos transtornos mentais e comportamentais.

No meio de 2019 a gente conseguiu uma médica do trabalho. A partir daí, a gente conseguiu melhorar a assistência do trabalhador, em relação ao absenteísmo, atestados. A gente conseguia ver mais de perto as causas de afastamento, aí tinha como maior causa de absenteísmo as doenças musculares e o grupo do CID F [doenças mentais e outros transtornos] (P8).

O aumento do adoecimento mental em trabalhadores da saúde antes da pandemia de COVID-19, com ênfase para estresse ocupacional, ansiedade e burnout1717 Papathanasiou IV. Work-related mental consequences: implications of burnout on mental health status among health care providers. Acta Inform Med 2015; 23(1):22-28.

18 Favrod C, Jan du Chêne L, Martin Soelch C, Garthus-Niegel S, Tolsa JF, Legault F, Briet V, Horsch A. Mental health symptoms and work-related stressors in hospital midwives and NICU Nurses: a mixed methods study. Front Psychiatry 2018; 9:364.
-1919 Santos FF, Brito MFSF, Pinho L, Cunha FO, Rodrigues Neto JF, Fonseca ADG, Silva CSO. Common mental disorders in nursing technicians of a university hospital. Rev Bras Enferm 2020; 73(1):e20180513., já dava indícios de uma nova realidade a ser enfrentada pelos profissionais de SST e gestores. Essa expansão do objeto implicaria, necessariamente, a expansão dos instrumentos, a revisão das regras e da divisão de trabalho e a ampliação da comunidade, em uma nova abordagem organizacional99 Vilela RAG, Hurtado SLB. Uma leitura da crise da atividade de prevenção: paradoxos atuais e desafios futuros. Cad Bras Ter Ocup 2017; 25(4):917-926. e sistêmica, ainda distante da realidade de trabalho no país. A Figura 1 apresenta o SA e as contradições antes da pandemia de COVID-19.

Figura 1
Sistema de Atividade de prevenção de riscos e agravos à saúde dos trabalhadores antes da pandemia de COVID-19.

Perturbações (manifestações das contradições) decorrentes da expansão do objeto da atividade de prevenção de riscos e agravos à saúde dos trabalhadores

A pandemia trouxe novas e expandiu velhas necessidades de saúde, implicando diversas mudanças nos hospitais, como reorganização de fluxos, suspensão de atendimentos ambulatoriais, cirurgias eletivas e visitas familiares, definição de alas e leitos específicos para atendimento à doença, ampliação de leitos e criação de leitos exclusivos em unidades de terapia intensiva44 Marziale MHP, Cassenote AJF, Mininel VA, Fracarolli IFL, Santos HEC, Garcia GPA, Robazzi MLCC, Rocha FLR, Palha PF, Terra FS, Ballestero JGA, Fortunato MAB, Lima MM. Risco de COVID-19 em profissionais de saúde da linha de frente e intervenções: uma revisão sistemática. SciELO Preprints 2022. DOI: https://doi.org/10.1590/SciELOPreprints.37455
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,2020 Silva FFV. Atenção integral em saúde do trabalhador: limitações, avanços e desafios. Rev Bras Saude Ocup 2021; 46:e12.. Muitas dessas medidas são de prevenção, relacionadas ao topo da hierarquia de controles e já poderiam ter ensejado debates sobre a participação do SESMT nos respectivos processos decisórios.

Para atender à nova demanda, o HU contratou em caráter emergencial aproximadamente 110 profissionais de saúde, o que impactou significativamente a rotina do SESMT, com aumento dos exames admissionais, mudanças de função (realocação dos trabalhadores em grupos de risco) e monitoramento dos casos suspeitos e confirmados. Para viabilizar tais ações, houve ampliação da equipe (contratação de um médico e um enfermeiro do trabalho em caráter emergencial), suspensão dos exames periódicos, cessão de uma sala exclusiva para a equipe de saúde e apoio do comitê de crise em algumas ações.

Com a possibilidade de dois médicos e dois enfermeiros, hoje a gente tá com o serviço em dia [...], a gente consegue atuar um pouco mais na parte de planejamento e prevenção (P1).

Toda nossa ação de contingência para a pandemia, sempre teve um centro de operação diária que foi instituído por conta da pandemia, a gente tinha reuniões diárias e parte era sempre dedicada a quantos EPIs tinham disponíveis, o que a gente iria fazer para adquirir mais EPIs, como estava o índice de contaminação interna, de afastamentos, e eu posso te dizer com bastante segurança que nenhum dia faltou EPI (G4).

A pandemia acarretou o redesenho do SA de prevenção (Figura 2), com a ampliação da equipe (sujeitos), a criação de novos fluxos, protocolos e rotinas (regras), a cessão de uma sala específica para os atendimentos (ainda com limitações), a redefinição dos processos de trabalho (divisão do trabalho), e o envolvimento de outros profissionais e setores na atividade de prevenção envolvidos na gestão da crise (comunidade). Apesar dos esforços institucionais para atender a esse objeto ampliado, compartilhado (a necessidade dos trabalhadores sadios e aptos ao trabalho deixou de ser uma preocupação exclusiva do SESMT) e fugidio (uma vez que extrapolava o contexto institucional), a atividade de prevenção ainda era limitada, voltada à prevenção de transmissão do vírus no ambiente hospitalar, sendo as mudanças nos elementos do SA também restritas e insuficientes99 Vilela RAG, Hurtado SLB. Uma leitura da crise da atividade de prevenção: paradoxos atuais e desafios futuros. Cad Bras Ter Ocup 2017; 25(4):917-926.. Isso fica evidente na fala do gestor, que enfatiza a importância de provisão de EPI para prevenção da transmissão do vírus.

Figura 2
Sistema de Atividade de prevenção de riscos e agravos à saúde dos trabalhadores no contexto da pandemia de COVID-19.

A dificuldade de comunicação entre a equipe do SESMT e demais trabalhadores foi uma perturbação decorrente de tais contradições. Mesmo com a adoção de novas estratégias, como informes nos relógios de ponto, alertas nos sistemas internos e busca ativa, o baixo alcance desencadeava atrasos no recebimento de exames e atestados médicos, comprometendo a avaliação e o monitoramento de saúde, e consequentemente interferindo no número de dias de afastamento, o que impactava nas escalas das unidades assistenciais.

Da parte de atestado, às vezes vêm atrasados e, dependendo dos casos em relação à COVID, isso pode impactar, porque a gente precisa saber quando começaram os sintomas, quando foi testado.... isso impacta lá dentro, na parte de escala. Às vezes a gente nem tá sabendo que a pessoa está suspeita e demora para chegar aqui, e isso pode impactar (P5).

A efetividade de ações que garantam condições seguras e saudáveis no trabalho, principalmente em situações de crise, depende do diálogo aberto entre empregadores e trabalhadores e de ferramentas de comunicação que permitam a troca de materiais e informações sobre SST2121 International Labour Organization (ILO). Anticipate, prepare and respond to crises: invest now in resilient OSH systems. Geneva: ILO; 2021.. As estratégias de prevenção de infecção pelo SARS-CoV-2 em profissionais da saúde mostraram-se eficientes na redução do contágio, sobretudo devido aos sistemas de vigilância2222 Gallasch CH, Cunha ML, Pereira LAS, Silva-Junior JS. Prevention related to the occupational exposure of health professionals workers in the COVID-19 scenario. Rev Enferm UERJ 2020; 28:e49596.,2323 Cattelan AM, Sasset L, Di Meco E, Cocchio S, Barbaro F, Cavinato S, Gardin S, Carretta G, Donato D, Crisanti A, Trevenzoli M, Baldo V. An integrated strategy for the prevention of SARS-CoV-2 infection in healthcare workers: a prospective observational study. Int J Environ Res Public Health 2020; 17(16):5785., o que pressupõe comunicação efetiva e ação conjunta. Contudo, deram conta apenas de parte das necessidades de saúde apresentadas pelos trabalhadores, ao não incluírem ações direcionadas às outras formas de adoecimento e sofrimento humano, gerando perturbações como aumento do absenteísmo por transtornos mentais comuns ou graves.

A diminuição das internações por COVID-19 no final de 2021 motivou a suspensão dos contratos temporários emergenciais e o SESMT voltou a funcionar com a equipe de saúde mínima (um médico do trabalho 20 horas semanais e uma enfermeira do trabalho 40 horas semanais), gerando acúmulo de trabalho e dificuldades para atendimento das novas demandas, agora predominantemente voltadas à saúde mental.

Uma coisa que eu percebi, até a equipe percebeu, que o tipo de doença também foi mudando. Antes nossos CIDs eram mais osteomuscular, CID M, depois começou a subir bastante a parte de CID F [transtornos mentais e comportamentais] e a parte de síndrome gripal, mas uma coisa que eu vejo que a gente precisa bastante é um suporte, um treinamento, uma equipe para cuidar da parte de saúde mental dos empregados, e agora estão todos cansados, né? Estão afastando e está complicado... (P2).

A gente propôs cursos de capacitação em que a gente comandou isso [...] o GT [grupo de trabalho]de saúde mental e a escolha do grupo foi de comunicação não violenta, então a gente bolou estratégias de capacitação dos colaboradores vinculados a esse tema, para reduzir conflitos, ter mais qualidade de vida no trabalho (G1).

As falas sinalizam dificuldade na aprendizagem da equipe. A distinção clássica entre MT, Saúde Ocupacional (SO) e Saúde do Trabalhador (ST)1515 Mendes R, Dias EC. Da medicina do trabalho à saúde do trabalhador. Rev Saude Publica 1991; 25(5):341-349. já ressaltava que a emergência de doenças relacionadas ao trabalho tinha em suas origens contribuições da organização do trabalho, cuja prevenção e manejo exigiam instrumentos distintos daqueles da MT e da SO. A pandemia ampliou e deu contornos dramáticos a esse problema, que continuou sendo pensado de modo restrito às suas manifestações.

Os trabalhadores de saúde enfrentaram situações de estresse resultantes do aumento da carga de trabalho, jornadas mais longas e períodos de descanso reduzidos2121 International Labour Organization (ILO). Anticipate, prepare and respond to crises: invest now in resilient OSH systems. Geneva: ILO; 2021., além do medo e das incertezas a respeito da doença2424 Sullivan AB, Kane A, Roth AJ, Davis BE, Drerup ML, Heinberg LJ. The COVID-19 crisis: a mental health perspective and response using telemedicine. J Patient Exp 2020;7(3):295-301., gerando novas demandas que colocam em xeque o preparo do SESMT, que não foi concebido ou instrumentalizado para dar conta da complexidade e subjetividade da saúde dos trabalhadores. Com o intuito de superar essa contradição, um gestor ligado à administração geral do hospital aponta a criação de um grupo de trabalho direcionado à promoção da saúde mental no trabalho, demonstrando que o objeto fugidio enseja a articulação de outros sistemas de atividade.

Os desafios de intervenções voltadas à prevenção do adoecimento mental no trabalho foram evidenciados em revisão de literatura que mostrou que, entre os 117 estudos incluídos, apenas quatro relataram intervenções educacionais, porém com nível baixo de confiabilidade2525 Serrano-Ripoll MJ, Meneses-Echavez JF, Ricci-Cabello I, Fraile-Navarro D, Fiol-deRoque MA, Pastor-Moreno G, Castro A, Ruiz-Pérez I, Zamanillo Campos R, Gonçalves-Bradley DC. Impact of viral epidemic outbreaks on mental health of healthcare workers: a rapid systematic review and meta-analysis. J Affect Disord 2020; 277:347-357.. Isso aponta para a necessidade de investimentos da gestão frente às demandas psicossociais dos trabalhadores, a fim de contribuir para a prevenção do adoecimento e do sofrimento psíquico, assim como para a promoção da qualidade de vida no trabalho e o bem-estar organizacional.

Hipóteses que podem explicar as contradições do SA de prevenção de riscos e agravos à saúde dos trabalhadores

As mudanças geradas pela pandemia foram enfrentadas por elementos de SA pré-existentes e inadequados para achatar a curva de transmissão, oferecer assistência adequada a casos graves e proteger os trabalhadores. Considerando somente o SA de prevenção no hospital, são apresentadas algumas hipóteses que podem explicar tais contradições.

A primeira hipótese está associada à contradição primária histórica identificada, referindo-se à redução ou limitação do objeto da atividade de prevenção, ainda voltada aos fatores visíveis e normatizados dos riscos e à atuação sobre os indivíduos, focada em treinamentos e conscientizações, baseada nas abordagens da MT e higiene ocupacional. Limitar os aspectos ambientais e os fatores de risco aos preconizados pela legislação é muito pouco frente às necessidades sociais de tornar o trabalho seguro e saudável. Tais abordagens desconsideram os determinantes e o processo de trabalho como objeto de intervenção, representando limitações para uma prevenção de riscos e agravos mais efetivas. Mesmo quando os entrevistados citam intervenções ergonômicas, por exemplo, estas estão associadas aos aspectos físicos dos postos de trabalho e à educação postural do indivíduo, sem considerar as questões organizacionais e cognitivas ou as estratégias operatórias desenvolvidas tanto individualmente quanto no coletivo que visam superar os desafios e dificuldades enfrentados.

A segunda hipótese diz respeito ao próprio perfil do SESMT, criado para responder a parâmetros de segurança e diretrizes normativas que não dão conta da subjetividade e complexidade que envolve a saúde dos trabalhadores nessas novas conformações do trabalho. Se as normas não dão conta desse objeto fugidio, tampouco a formação dos profissionais que atuam nesses serviços, que seria ainda muito tecnicista e com pouca visão sistêmica.

O subdimensionamento quanti-qualitativo do SESMT pode ser apontado como terceira hipótese. Para superar a insuficiência numérica durante a pandemia, o HU contratou um enfermeiro e um médico do trabalho de 20 horas para compor a equipe nos dois anos iniciais da pandemia de COVID-19, situação revertida no início de 2022, demonstrando a transitoriedade da medida. Em termos qualitativos, não houve nova configuração da equipe, que segue o disposto na norma, diferentemente de outros países, que têm exigido equipe multidisciplinar, a depender da natureza do serviço e tipos de atividades envolvidas, podendo incluir psicólogos, ergonomistas, fisioterapeutas e educadores em saúde, como ocorre em países como Alemanha, França, Reino Unido e Japão2626 Jain A, Hassard J, Leka S, Di Tecco C, Iavicoli S. The role of occupational health services in psychosocial risk management and the promotion of mental health and well-being at work. Int J Environ Res Public Health 2021; 18(7):3632..

Uma quarta hipótese se refere à falta de priorização institucional às atividades realizadas pelo SESMT, que por vezes não tem espaço e infraestrutura adequada para atendimento aos trabalhadores1616 Pinheiro HA, Barroco CC, Santos GV. A saúde do trabalhador do Sistema Único de Saúde (SUS) em tempos de crise: a realidade do Hospital Universitário Getúlio Vargas (HUGV) no Amazonas. Textos Contextos 2020; 19(1):e36386. ou não tem suas demandas atendidas com a mesma celeridade que outros serviços, como os assistenciais. Considerando que a atividade-fim de um hospital é o cuidado de qualidade e que este só é possível a partir de trabalhadores saudáveis em seu sentido ampliado, negligenciar as condições de trabalho e de saúde dos trabalhadores significa inviabilizar o alcance dos resultados desejados.

A pandemia de COVID-19 acentuou contradições históricas decorrentes da expansão e do compartilhamento do objeto de prevenção face às características dos elementos que compõem este (e outros) SA que, ainda que tenham se expandido, não conseguem alcançar os resultados desejáveis, resultando em perturbações como altas taxas de absenteísmo, presenteísmo, turnover e restrições, que geram impactos de múltiplas ordens à instituição, além da prejuízos ao próprio trabalhador, a familiares e sociedade.

A expansão do objeto implica rever outros mediadores do SA, como as regras que regem a atuação dos sujeitos, que por vezes estão defasadas e não suportam as necessidades do objeto ampliado, restringindo as ações e repercutindo em falhas na obtenção dos resultados desejados1010 Querol MAP, Jackson Filho JM, Cassandre MP. Change laboratory: uma proposta metodológica para pesquisa e desenvolvimento da aprendizagem organizacional. Adm Ensino Pesq 2011; 12(4):609-640.. Inclui, também, a revisão dos níveis de autonomia da equipe do SESMT para uma atuação mais independente, com poder de agir na organização e flexibilidade para atuar para além dos limites que constam nas NR.

Por fim, a quinta e última hipótese diz respeito ao não reconhecimento da atividade de prevenção como um objeto compartilhado que enseja a articulação entre os diferentes SA, com intervenções integradas em vários níveis para reconhecer antecipadamente o curso das ações e os riscos associados e mitigar resultados indesejados. Isso implica a reflexão de que o objeto de prevenção também é de interesse da gestão institucional, que deve reunir práticas, políticas, metas e ações com vistas a alcançar seus resultados com eficiência. Essa abordagem organizacional deve ampliar seu objeto em busca de uma ação antecipatória sobre os determinantes do trabalho, sobrepondo os fatores individuais para uma ação coletiva, por meio de métodos e instrumentos participativos capazes de prever os sinais precocemente, ou seja, antes que ocorra o acidente ou adoecimento.

O presente estudo apresentou como limitações o fato de ter entrevistado apenas profissionais do SESMT e gestores do hospital, não incluindo outros trabalhadores, o que pode ter influenciado os resultados e restringido a identificação de contradições. Como esta fragilidade foi identificada no final deste estudo, os autores optaram por realizar as entrevistas incluindo os trabalhadores em investigação subsequente. Outra limitação se refere à impossibilidade de imersão no campo para um estudo mais aprofundado da atividade de prevenção, decorrente das restrições impostas pela pandemia.

Considerações finais

A atividade de prevenção no contexto hospitalar é compreendida como atribuição do SESMT, que mantém suas práticas embasada na higiene ocupacional e MT, com pouca convergência com a complexidade do objeto ampliado. No campo estudado, o efetivo se mostra insuficiente face às demandas, com atuação reativa e muito atrelada às NR, com poucas ações de prevenção e intervenção precoce relacionadas ao adoecimento e a acidentes de trabalho. Chamou atenção a não participação do SESMT em decisões gerenciais estimuladas por lógicas de organização de resposta à pandemia com impactos de prevenção, conforme princípios de hierarquia de controles de risco. Em geral, seu papel é alinhado ao disposto nos dispositivos legais (prescrito), mas fica aquém das reais e complexas necessidades apresentadas pelos trabalhadores (real), com ações majoritariamente iniciadas após a exacerbação dos problemas.

O estudo teve como objeto de análise a atividade de prevenção de riscos e agravos à saúde dos trabalhadores desempenhada pelo SESMT, porém, conforme evidenciado nos próprios resultados, esta atividade está além desse serviço e tem interface com vários setores do hospital, ou seja, outros SA que se interrelacionam e precisam ser analisados para uma visão sobre o objeto de atividade de prevenção dos trabalhadores como um todo. Ainda, é um objeto compartilhado com a gestão institucional, que deve ter como finalidade, além do cuidado aos usuários e familiares, o cuidado com os trabalhadores, condição sine qua non para a qualificação dos serviços prestados.

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  • Financiamento

    Agence Nationale de la Recherche - 19-CE26-0021. Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - 2019/13525-0.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    Maio 2024

Histórico

  • Recebido
    17 Fev 2023
  • Aceito
    24 Jul 2023
  • Publicado
    26 Jul 2023
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br