OPINIÃO

 

Epidemia de suicídio entre os Guaraní-Kaiwá: indagando suas causas e avançando a hipótese do recuo impossível

 

The Guaraní-Kaiwá suicide epidemic: investigating its causes and suggesting the impossible return hypothesis

 

 

Anastácio F. Morgado

Escola Nacional de Saúde Pública/Fiocruz, Depto. de Epidemiologia, rua Leopoldo Bulhões, 1480, 8º andar, Manguinhos, 21041, Rio de Janeiro, RJ

 

 


RESUMO

O suicídio de seis jovens Guaraní-Kaiwá num período de duas semanas é por si só suficiente para preencher qualquer critério de epidemia. Em uma população de aproximadamente 7.500 indígenas, há informações de que foram registrados 52 suicídios de 1987 até agosto de 1991; a epidemia é mais dramática entre o subgrupo Kaiwá: 14 de seus membros suicidaram-se no ano de 1990, e uns tantos outros suicídios já ocorreram no 1º semestre de 1991. Predomina entre jovens de 12 a 20 anos de idade, atingindo igualmente rapazes e moças. Para explicar uma epidemia desse tipo, propõe-se a hipótese do recuo impossível, onde se verifica o esgotamento de qualquer possibilidade de recuar no espaço, diante da "civilização ocidental", e, simultaneamente, seus valores de dignidade humana são aviltados. Não há mais uma só opção de ir para uma floresta e foram virtualmente capturados pela cidade (a aldeia dos Kaiwá fica no perímetro urbano de Dourados), mas sem chances de qualquer inserção ocupacional — só restando-lhes alguma forma de prostituição. Em tal situação de desvalia extrema, a auto-imolação é a última forma de ainda sobreviver a sua cultura. Houve epidemias de suicídio em indígenas de outros países, mas esses encontravam-se também em limite de recuo e sem chances de inserção na civilização ocidental. No Brasil e no exterior, outras tribos indígenas foram urbanizadas, sem tragédias como a experimentada pelos Kaiwá, porque tiveram alguma inserção socialmente condigna.


ABSTRACT

The suicide of six young Guaraní-Kaiwá Indians within the timespan of two weeks is enough to fulfill any criteria to define an epidemic. In a total population of 7,500 individuals, the available data account for 52 cases of suicide between 1987 and August 1991. The epidemic is more dramatic among the Kaiwá subgroup among which 14 individuals died in 1990 and a number of suicides were reported for the first semester of 1991. For both sexes, most deaths were observed in the age group 12-20 years.
The author advances the hypothesis of the impossible return according to which, under extreme pressure exerted by western society, they see no possibility of returning to their traditional way of living.
Under circumstances of extreme self-devaluation, suicide becomes the last alternative for the survival of their culture. Suicide epidemics have been reported among Amerindians in other countries suffering from the same kind of pressure. In Brazil and also in other countries, other tribes have been urbanized and yet did not experience the tragedy which the Kaiwá are going through because they had some kind of acceptable insertion in the national society.


 

 

A FALTA DE UM BALANÇO QUANTITATIVO

A imprensa tem feito uma razoável cobertura dos problemas sofridos pelos indígenas, notadamente sobre a epidemia de suicídio entre os Guaraní-Kaiwá. Em flagrante contraste com isso, há penúria de informação especializada: o número de suicídios ostensivos entre os referidos indígenas não se encontra disponível nem mesmo em um relatório. Há, pois, que se contentar com cifras imprecisas, publicadas pela imprensa leiga, e as oriundas de "informação pessoal".

O fato de seis jovens Kaiwá terem-se enforcado num período curtíssimo (duas semanas) é por si só suficiente para preencher qualquer critério de epidemia. Em uma população de aproximadamente 7.500 indígenas, De Paula informa que, de 1987 até agosto de 1991, foram registrados 52 suicídios, mas não se sabe o número ocorrido em cada ano para que se possa calcular a taxa de mortalidade anual. O número acima deve estar subestimado, pois o indígena evita falar de suicídio, o que um estudo de Ogden et al. (1970) documentou com clareza.

Sabe-se que a epidemia em pauta é mais dramática entre o subgrupo Kaiwá: 14 de seus membros suicidaram-se no ano de 1990, e uns tantos outros suicídios já ocorreram no 1º semestre de 1991. A epidemia predomina nos jovens de 12 a 20 anos de idade, atingindo igualmente rapazes e moças. O feitio do suicídio é sui generis: com um laço curto, garroteia-se o pescoço, sem que o corpo fique dependurado (às vezes os pés ficam arrastando-se ao solo). Não é um gesto cego, impulsivo e repentino, como pretendem apresentar, e sim um rito com vestígios na mitologia indígena que é encenado em circunstâncias agonizantes.

 

O CONTEXTO GEOGRÁFICO E SÓCIO-ECONÔMICO DAS ALDEIAS

Tão importante quanto os suicídios são os dados que dizem respeito ao espaço físico, aos meios de subsistência e à situação geográfica das aldeias dos Guaraní-Kaiwá, entre os quais destacam-se os seguintes:

1 - É um grupo indígena que mantém contato intenso com a população de grandes cidades: a aldeia dos Kaiwá é contígua ao perímetro urbano de Dourados (150 mil habitantes), que dista 200 Km de Campo Grande, capital de Mato Grosso do Sul;

2 - Estão privados da coleta extrativa, o meio de subsistência básico de sua cultura, e, ao mesmo tempo, há, na prática, um paredão culturalmente intransponível, de cerca de 20 milhões de anos, para que se possa ter uma inserção mínima em qualquer área produtiva do mercado ocidental.

 

AS PSEUDOCAUSAS E SUAS CARACTERÍSTICAS

Com freqüência ouve-se atribuir o suicídio daqueles indígenas a certos cultos protestantes, consumo de álcool, desagregação da família, etc. Tal atribuição mostraremos ser enganosa, ficando claro que não se trata de causas, e sim de pseudocausas. Estas são eleitas como sendo causas por terem as seguintes características:

a) Estão associadas, no espaço e no tempo, com as pessoas que cometem suicídio, satisfazendo-se o critério de antecedente constante;

b) Serem manifestações ostensivas, muito notórias e passíveis de serem apresentadas ao grande público como se fossem práticas negativas e morbígenas, e, por isso, indesejáveis;

c) Serem arroladas em um pensamento lógico-causal que dê aparência de produzir o efeito suicídio.

Por hipótese, as pseudocausas mencionadas acima funcionam como variáveis ocultantes (confundir) por estarem associadas à causa verdadeira, mas não terem efeito real sobre o suicídio, ou por terem este efeito, porém independentemente da causa verdadeira. É provável que haja muitas variáveis desses dois tipos na epidemia em pauta (p. ex., presença de médicos, enfermeiras, pesquisadores), mas, para elas, não se produz a necessidade do critério B acima. O critério C é uma justificativa teórica que se exige para a inclusão "moralista" no critério B. De fato, são estes dois critérios (B e C) que acirram o debate. Não há dúvidas de que as dificuldades em alcançar o eixo da causa verdadeira também contribuem para apegar-se a pseudocausas.

 

OS CULTOS EVANGÉLICOS ENGENDRARIAM SUICÍDIO?

O pensamento lógico-causal que aparentemente produz o efeito suicídio nessa suposta causa exprime-se por duas variantes explicativas, pouco diferentes uma da outra. A primeira, e a mais difundida, é, em suma, o chavão batido que se segue. Prometendo a "salvação", os pastores desses cultos pregariam uma espécie de aversão para com a vida terrena e que os sacrifícios passados aqui na terra seriam recompensados no além, depois da morte. Ao mesmo tempo, tais pastores inculcariam uma interpretação pecaminosa da vida sexual, em que "saciar o prazer carnal" fosse algo bestial, uma afronta aos desígnios do Senhor; tal desobediência levaria os indígenas a padecerem de remorso e sentimento de culpa implacáveis. Diante desse choque frontal da vida terrena com os desígnios do Senhor e com a promessa daquela do além, o jovem indígena ficaria num impasse fatal. Nesta lógica, o suicídio seria, então, uma forma aceitável para o indígena resolver as agruras de sua vida aqui na terra, além de adquirir a salvação eterna de sua alma.

É óbvio que esta lógica presta-se bem para explicar a epidemia de suicídio, sobretudo num meio sujeito à sanha da catequese por parte dos mais divergentes credos religiosos, uns mais consentidos que outros no seio da população externa à comunidade indígena. A este respeito, foi cheio de significado ver na TV um programa sobre a deplorável situação dos Guaraní-Kaiwá, em que o líder de uma religião incitava repetidamente os indígenas a "surrar esses pastores".

Além da inclusão nas três características acima, a suposta causa do culto evangélico revela-se paradoxal num contexto mais amplo. Isto porque considera-se que a fé religiosa valoriza a vida de cada um e fortalece a coesão do grupo, e, ao contrário, a ausência de fé deixa a pessoa à mercê das frustrações ao longo da exclusiva busca de prazer pessoal.

A segunda variante explicativa do suposto efeito nocivo das missões evangélicas é do domínio da demonologia. Uma boa descrição dela é feita por Grumberg (1991), a propósito do "suicídio em cadeia" entre os Guaraní-Kaiwá do Paraguai. Por essa lógica, as referidas missões desagregariam a unidade cultural indígena e considerariam ser o suicídio decorrente da "influência do satanás e de Xamãs endemoniados"; frente a isso, o remédio seria a conversão, o abandono das práticas xamânicas e o rompimento de relações e de comunicação com o grupo que preserva a tradição. Como a unidade indígena é o grupo inteiro, tal ruptura desagregaria irremediavelmente os Guaraní-Kaiwá. A perda de um subgrupo (dos convertidos) seria intolerável para eles; matar-se seria então uma forma de protestar contra isso e, assim, funcionaria como um último recurso para manter a coesão da comunidade. Nessa lógica, converter-se para a religião dos brancos seria uma submissão extrema, restando só o suicídio como forma de protesto.

Importa observar que na lógica acima há, de saída, uma premissa que se transpõe direta e linearmente à conclusão — o que torna o argumento muito frágil — uma vez que a ocorrência de suicídio faz parte da desagregação cultural que precede o "suicídio em cadeia".

Mas a associação causai desse autor não resiste à análise de rastreio de fatores potencialmente causais que normalmente se faz quando se trata de epidemia. Assim, argumenta Grumberg (1991) que de 38 comunidades indígenas, quatro vinham cometendo "suicídio em cadeia", entre as quais havia missão evangélica em três. Deste modo, não se explicou a ocorrência do fenômeno suicídio na 4ª comunidade — aquela sem a presença das missões. Esta diferença é de suma importância por testemunhar condições comparáveis no mesmo perímetro geográfico das três comunidades com presença das referidas missões. A situação descrita eqüivale à privação do fator de risco em um grupo experimental — que, no caso, refutou o hipotético fator de risco (missões evangélicas), porque o efeito continuou a ser produzido na 4ª comunidade. Note-se que em estudos populacionais é raro encontrar tal conjunto de situações que configure uma "experiência mental" que, sozinha, tenha força para descartar um suposto fator de risco. A propósito, esta é a principal limitação dos cânones de J. S. Mill para investigar, fora de laboratório, o antecedente constante e incondicional (causa) de um dado efeito.

Não fosse a alegada imputação ser refutada pelo robusto método da diferença, há falta de concordância, tanto contemporânea quanto histórica, que a torna inverossímil. Assim, trabalhos sobre epidemias de suicídio em indígenas de países outros que os latino-americanos, como os de Berlin (1987), Dizmang et al. (1974), Jarvis & Boldt (1982), Levy & Kunitz (1971), Ogden et al. (1970), Hislop et al. (1987) e Ward & Fox (1977), nem fazem alusão à alegada causa religiosa. E tudo indica que no Canadá e nos EUA os cultos religiosos predominantes entre suas tribos indígenas sejam similares aos cultos no banco dos réus nas aldeias dos Guaraní-Kaiwá (no Brasil e Paraguai, pelo menos). Longitudinalmente, a explicação via possessão demoníaca, que Grumberg endossa sem qualificá-la enquanto tal, é inconsistente ao longo da história dos povos latino-americanos. Sabe-se que esse fenômeno remonta à chegada de religiosos à América do Sul, cujas pregações Southey (1862, p. 2) registrou para o Brasil: tribus... não reconhecendo rei nem Deus, adorando o diabo n'este mundo e votadas a elle eternamente no outro... . Pelo que esse historiador descreve, a demonologia pregada pelos jesuítas aos indígenas dos séculos XVIII e XIX não contém diferenças em relação à supostamente pregada pelos evangélicos aos indígenas de hoje. Por que um mesmo fator seria maligno agora e benigno nos séculos de então?

 

ÁLCOOL E SUICíDIO - UMA VELHA QUESTÃO

No problema em pauta, destaca-se logo o fato de que muitos dos que cometeram suicídio não consumiam álcool em excesso; isso é particularmente verdadeiro para o grande contingente de jovens. Embora não haja dados precisos, as informações pessoais dos que conhecem a região indicam que os adolescentes indígenas tinham um consumo ocasional, pequeno e, muito importante, num contexto socializado do grupo.

É muito duvidoso que tal padrão de consumo alcoólico desempenhe algum papel no suicídio desses jovens, mesmo que a associação entre suicídio/consumo de álcool (beber isolado, sozinho) seja verdadeira no contexto geral. Mesmo que fosse isso, o consumo não seria uma variável independente de transtornos psiquiátricos, particularmente depressão, transtorno anti-social da personalidade e esquizofrenia.

Poder-se-ia afirmar que fosse de um baixo limiar para suicídio o padrão de consumo alcoólico dos jovens indígenas, o que é uma hipótese interessante. Mas, além do já citado consumo não geral pelo grupo, houve um outro dado que depõe contra essa hipótese. Trata-se de informação de um programa de TV (não o já citado acima) em que o dono de um bar da aldeia era coagido pelo repórter a confessar que vendia "cachaça" aos indígenas Kaiwá. Firme e pausadamente, o referido vendedor comparou o consumo dos indígenas em pauta com o de outras aldeias, que a seu ver não era diferente, e acrescentou: "mas os outros não estão pondo fim à vida".

A desagregação cultural apresentada de maneira inconsistente, fora de um contexto teórico consistente com os fatos, também é pseudocausa; entretanto, quando contextualizada, é muito provável que ela seja um aspecto ou uni grande sintonia da causa verdadeira, como será visto a seguir.

 

A PROVÁVEL CAUSA VERDADEIRA

A maior parte da presente opinião foi destinada a descartar pseudocausas — fruto de pré-julgamentos do senso comum e de amplificação pelos mass media. Os dados quantitativos e o contexto resumidos acima podem contribuir positivamente para conhecer melhor a origem da epidemia em questão. Mais especificamente, indigenistas, antropólogos, epidemiologistas e profissionais de Saúde Pública em geral reconhecem que problemas de saúde/degradação cultural dos indígenas são duas coisas indissociáveis. Tudo indica que, no início da instalação desse processo, o antecedente constante e incondicional era a degradação cultural; mas, depois, torna-se um círculo vicioso em que os problemas de saúde agravam aquela degradação. Um bom exemplo dessa determinação en retour é descrito por Verani & Morgado (1991). Alguns antropólogos têm falado em "morte cultural" — um grau extremo da mencionada degradação cultural, enquanto os indigenistas preferem falar em "ausência de perspectivas" — como sendo o fator determinante da epidemia em apreço; adianto, desde logo, que a causa verdadeira aqui assumida não se opõe a nenhuma dessas duas colocações. Não obstante isso, preferimos considerar esse processo causal pela hipótese do recuo impossível, caracterizada pela ocorrência simultânea de dois tipos de sujeição máxima da pessoa:

1) Total esgotamento de opção para recuar ou mudar, sem nenhuma possibilidade de território para os indígenas viverem, enquanto povo com identidade própria. Até recentemente podia-se recuar; agora, isso acabou, e para sempre;

2) Degradação extrema de condições universais de dignidade do ser humano, que independe da pessoa ser um indígena ou não; liquidar o patrimônio material e cultural, corromper os costumes e aviltar a pessoa é ruim para qualquer grupo de indivíduos.

Este 2º tipo de sujeição aproxima-se da já mencionada morte cultural dos indígenas, que, em nossa hipótese, é do gênero humano em geral. O 1º tipo de sujeição pode ser visto como próximo da hipótese de limitação geográfica da Antropologia, mas esta não fixa a necessidade absoluta de impossibilidade de recuar, de limite intransponível.

Tudo indica que a degradação é mais que cultural, e ela tem sido progressiva e inexorável desde a época de Cabral. Em nossa história, a expressão "descoberta do Brasil" nega características psicológicas fundamentais aos povos que já habitavam este solo — até mesmo a de testemunhar conhecimento da existência da matéria, da geografia e do tempo; os primeiros missionários negaram as religiões e cultura dos indígenas, empenhando-se em convertê-los para o catolicismo. Enfim, era como se eles fossem privados não do conhecimento da Escola de Sagres, e sim do conhecimento imediato dado pelos cinco sentidos! Nestes quase cinco séculos, o recuo das tribos indígenas do litoral/meio urbano para o interior tem sido uma constante; embora com inúmeros percalços, eles têm conseguido manter viva sua cultura. Agora pergunto: há pelo menos uma chance dos Guaraní-Kaiwá recuarem para algum outro espaço? Não, não há. Recuaram até não poder mais; foram definitivamente desterrados de seu habitat natural. Se o mundo deles é viver junto à natureza rústica e tosca, para eles chegou o fim do mundo. Ninguém expressou melhor este triste fim como o Cacique dos Kaiwá (Sr. Irênio): Hoje não tem mais passarinho, precisa criar galinha; não tem mais anta, precisa ter vaca (revista Isto É, 24/10/90). É óbvio que os Kaiwá não têm recursos para que possam ter carne bovina à mesa — na melhor das hipóteses, uma família inteira terá aos domingos um frango para temperar um almoço festivo. Em suma, eles perderam a anta e em seu lugar ficou a fome e um vazio que jamais será preenchido. De certa forma, os Kaiwá foram capturados pela cidade, sem chances de qualquer inserção ocupacional para garantir-lhes uma sobrevivência essencial; na cidade só lhes resta alguma forma de prostituição. A hipótese do recuo impossível é o extremo de situações que obrigam a um recuo intermediário, ao qual chamamos de movimentos migratórios - uma expressão geral que inclui desde iniciativas pessoais para mudar de uma boa coisa para outra melhor, até à virtual expulsão do território em que um grupo se encontra. Pithan e cols. (1991) descrevem nesta revista uma situação vivenciada pelos Yanomámi em que estes ficam obrigados a um recuo intermediário, se por acaso não demarquem logo seu território. Hernandez (1991) mostrou que a malária graça epidêmica e incessantemente nos Yanomámi do Brasil, associada à afluência de garimpeiros; essa doença nos Yanomámi do lado da Venezuela segue um perfil endêmico há várias décadas. A propósito, Yanomámi quer dizer "eu sou gente", e Kaiwá, "habitante da floresta". Portanto, o cognome dessas duas comunidades indígenas significa que o Kaiwá é gente que habita a floresta; é esse seu mundo. O suicídio, malária, etc são coisas ruins que vêm de um outro mundo.

Houve epidemias de suicídio em indígenas de outros países, mas encontravam-se também em limite de recuo e com chances escassas de inserção na civilização ocidental. Ainda em outros países, e mesmo no Brasil, tribos indígenas foram urbanizadas, sem tragédias como a experimentada pelos Kaiwá, porque tiveram alguma inserção socialmente condigna. Sem tal inserção, por mínima que seja, os tuchaua Kaiwá, de cultura tão dispare da nossa, ficam capturados no meio urbano. Tal situação, de desvalia extrema, de recuo impossível, faz vir à tona um rito não encenado em condições normais, o de auto-imolar-se como uma última forma de fazer sobreviver sua cultura e outras dimensões igualmente fundamentais.

Há representações culturais que, ao olhar ocidental, são patogênicas, como observa Sperber (1975). Esse tipo de representação sobre a morte é descrito por vários antropólogos na mitologia indígena, a qual desempenharia o papel de fator predisponente da auto-imolação. Em suma, a morte não é um aniquilamento do sujeito, e pode ser uma derradeira forma de manter viva a cultura, ou do sujeito continuar vivo sob outra forma. Haveria, então, um ritual da auto-imolação, celebrado em situações de desvalia incontornável. Surpreendeu-se (revista Isto É, 24/10/90) esse ritual, entoado com tristes canções, no início de sua encenação: três adolescentes entre 13—14 anos foram surpreendidas num ritual macabro; abraçavam-se e choravam em um quarto. Acima da cama, as blusas de lã amarradas a um caibro, com os nós já preparados, anunciavam um enforcamento tríplice; estavam despedindo-se, quando alguém ouviu os ruídos, entrou no quarto e conseguiu evitar a tragédia.

De fato, pouco se acrescenta à causa verdadeira; antropólogos e indigenistas conhecem-na há muito tempo, e o cacique das vítimas, que tem um aparelho mental similar ao de seus antepassados à época de Cabral, sabe bem qual ela é. Mas há uma vasta maioria que prefere o sensacionalismo das pseudocausas. Infelizmente, não são poucos os que negligenciam o conhecimento oriundo de longo e duro trabalho dos que incansavelmente amanham o terreno. É como se alguém fosse implantar um programa de prevenção da tuberculose entre os indígenas e não se desse ao trabalho de verificar o que Nutels (1952) fêz nesse sentido. O que fica de importante a investigar, fora do objetivo da presente opinião, é dissecar a necessidade que leva ao afã de apegar-se a pseudocausas, e se a hipótese do recuo impossível se restringe a indígenas.

A este respeito, a tragédia de Jonestown, na Guiana, em novembro de 1978, é exemplo único em que 923 pessoas (negros em sua maioria) cometeram suicídio em conjunto. Os que opinaram sobre sua causa atribuíram-na a insanidade mental ou a um presumível poder sugestivo e despólico de Jim-Jones, líder daquelas 923 pessoas, ou então que fora um ato de protesto contra a marginalização do negro nos EUA. Essas explicações são muito inespecíficas, emocionais, teoricamente frágeis e inconsistentes. Esse tipo de atribuição foi mantido, mesmo na literatura científica, fora da esfera anglo-saxônica, como é o caso do trabalho de Reverzky & Soubrier (1979).

Achamos que a referida tragédia, embora fora do contexto indígena, se explique melhor pela hipótese do recuo impossível. Eles não chegaram a um limite de recuo, como os Guaraní-Kaiwá, mas chegaram à beira dele. Eram pessoas que, nos EUA, estavam no limbo da marginalização. Os negros fizeram projeto para retornarem ao original solo africano. Enfim, recuaram para a Guiana. Mais do que isso seria embrenharem-se na floresta, isto é, recuar a um tribalismo indígena. O governo norte-americano estava no encalço de Jim-Jones; algumas autoridades foram até Jonestown, sendo que o senador Leo Ryan fazia diligências na área e foi ali mesmo assassinado, na véspera da tragédia. Nesse mesmo dia, o próprio Jim-Jones declarou: Não vamos suicidar-nos e sim praticar um ato revolucionário. Jim sabia que estava prestes a ser capturado e levado para os EUA; enfim, estavam acuados e próximos do fim do mundo, isto é, chegaram à beira do recuo impossível. A declaração acima indica que Jim-Jones, tal qual as três adolescentes Kaiwá surpreendidas no ritual descrito anteriormente, estava consciente e de posse das faculdades mentais. Isto é, sob o aspecto psicológico, as epidemias dos Kaiwá e a de Jonestown têm um similar padrão psicológico. É importante reexplicar a referida tragédia, por ter antecedentes parecidos e efeitos, até prova em contrário, idênticos aos dos Guaraní-Kaiwá. Além disso, enfraquece uma certa valorização que alguns psicólogos e antropólogos estão dando ao "fator predisponente do suicídio": as representações sobre a morte na mitologia indígena. Seria muito pouco provável que a comunidade sediada em Jonestown também tivesse tal predisposição. Se admiti-la, então ela carece de valor específico, porque aí ela seria do gênero humano em geral. Essas considerações permitem concluir que grupos humanos em condições de recuo impossível prescindem de representações específicas sobre a morte para virem a praticar ato de auto-imolação.

Ao que se conhece, situações de impossibilidade de recuar, levando a efeitos coletivos como os descritos acima, são acontecimentos relativamente recentes na humanidade. Com a progressiva restrição de espaço, não será surpresa se eventos dramáticos como os citados acima venham a ocorrer com maior freqüência. No Brasil de hoje, não há, por exemplo, mais tribos de indígenas isoladas do homem branco; todas elas são conhecidas, visitadas e estudadas. Enfim, o homem branco chega cada vez mais perto delas. A questão é sobretudo de espaço, pois desde um remoto passado aconteceram situações em que agrupamentos humanos inteiros foram subjugados, submetidos a condições desumanas e até mesmo escravizados. Mas, em geral, conseguia-se algum jeito de escapar, deixando-nos heróicas descrições do êxodo e das diásporas: sempre libertam-se de algum jugo terrível e, com glória, vão-se estabelecer em outras plagas, às vezes em longínquos espaços.

 

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