A Profissão Médica em Questão (1922): Dimensão Histórica e Sociológica
The Medical Profession at Issue (1922): A Historical and Sociological View

André de F. Pereira-Neto [1]

 

 

PEREIRA-NETO, A. F. The Medical Profession at Issue (1922): A Historical and Sociological View. Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 11 (4): 600-615, Oct/Dec, 1995.
Can a profession become the subject of historical or sociological study? Such an undertaking can only be possible if one avoids the meaning ascribed to the word profession and begins to give it a conceptual statue. Based on this concern, we present theoretical postulates introduced by several North American sociologists in their attempts to define profession as a concept, distinguishing it from occupation. We are interested in identifying the role played by knowledge and control of the labor market control. We make use of this reference to analyze a specifical case, the medical profession, in a particular place, Brazil, and in a given historical context, the early 20th century, specifically at the "National Congress of Practitioners" (1922). From this empirical, historical analysis, we make three comments on our theoretical frame of reference. The first refers to the constitutive heterogeneity of a professional body, the second to the historical meaning of the professional process, and the third to coercion as a means for eliminating competitors and establishing one's self as a professional in the labour market. The purpose is to show that historical and sociological study of the medical profession is legitimate, relevant, and extremely opportune.
Key words: Medical Profession; Medical Labor Market; Medical Knowledge; History of Medicine; History of Health

 

 

INTRODUÇÃO

Uma profissão pode se tornar um objeto de estudo histórico ou sociológico? No nosso entender, este empreendimento só é possível se conseguirmos escapar do significado comum atribuído à palavra profissão e passarmos a atribuir-lhe um estatuto conceptual.

Acompanhando esta preocupação, estamos partindo do conjunto de postulados que orientaram os trabalhos de alguns sociólogos norte-americanos, tais como Wilensky (1970), Moore (1970) e Goode (1969). Eles estabeleceram uma diferenciação entre dois conceitos: ocupação e profissão. A primeira se expressaria nas diversas atividades do mundo do trabalho. A profissão seria um tipo especial de ocupação. De uma maneira geral, poderíamos afirmar que estes três autores identificaram, pelo menos, dois elementos que caracterizariam uma profissão: o domínio de um certo conhecimento e o controle do mercado de trabalho.

Apresentaremos inicialmente como estes autores fundamentam esta definição conceptual. Em, seguida, utilizaremos estas referências para analisar um caso específico: a profissão médica, em um espaço particular: o Brasil, em uma conjuntura histórica definida: o início do século XX, particularmente no "Congresso Nacional dos Práticos" (1922). A partir desta análise empírica, de cunho histórico, pretendemos introduzir algumas considerações sobre a concepção teórica que nos serviu de referência.

Assim estaremos perseguindo algumas das preocupações que orientaram os trabalhos de Marinho (1986) e Machado (1991).

Outros estudos, que associaram esta dimensão teórica com um bem elaborado trabalho empírico de cunho histórico, trouxeram significativas contribuições para este debate. Pedro M. dos Santos (1993), inspirando-se na obra de Wilensky, seguiu os passos da história da profissão médica no Estado de Pernambuco, desde o período colonial até os dias de hoje. Soraia A. Belisário (1993), amparada na mesma perspectiva, entende que os sanitaristas jamais constituíram-se enquanto uma "profissão", sendo apenas uma "ocupação". Maria Ruth dos Santos (1993) acompanhou o processo de profissionalização e de desprofissionalização que os farmacêuticos sofreram ao longo de sua história.

Esperamos que este breve artigo, de caráter meramente introdutório, seja capaz de demonstrar a legitimidade (Barbosa,1993), a relevância e a oportunidade de investigações que associem a dimensão histórica à sociológica na análise da profissão médica.

 

O CONCEITO: PROFISSÃO

Para os autores que nos serviram de referência neste trabalho, o conhecimento em uma profissão deve ser complexo, sistematizado, institucionalizado, aplicável por poucos e de utilidade reconhecida pela clientela.

Wilensky (1970) considera o domínio sobre determinada área do conhecimento um dos fatores determinantes na diferenciação entre uma profissão e uma ocupação. Ele afirma que "a base do conhecimento ou doutrina para a profissão é resultado de uma combinação de conhecimento prático e intelectual, parte do qual é explícito (livros, leituras, demonstrações), parte implícito". Para ele, o “conhecimento profissional, como todo conhecimento, é algo relativamente tácito, dando às profissões estabelecidas sua ‘aura de mistério’” (Wilensky, 1970: 494).

Segundo Goode (1969), uma profissão torna-se um produto supervalorizado no "mercado de prestígio" graças, em parte, ao alto nível de sua formação. O profissional é alguém que "sabe tanto que pode comunicar somente uma peguena parte disto" (Wilensky, 1970: 493). Em geral, ele aprende muito mais do que utiliza na prática. Este sobretreinamento é considerado uma garantia parcial de que pode manipular, com facilidade, um conjunto de problemas. Para Goode (1969), o conhecimento e a habilidade devem ser abstratos e organizados em um corpo codificado de princípios. Assim, a profissão passa a ter o poder de criar, transmitir e organizar seu próprio conhecimento. As pessoas que queiram alcançar o estatuto profissional devem se submeter a um rígido e longo treinamento, orientado por um currículo padronizado (Wilensky, 1970). O estabelecimento institucional do conhecimento é um requisito imprescindível para integrar uma profissão, na medida em que constitui a base para a reivindicação de exclusiva jurisdição sobre tal habilidade. Assim estariam estabelecidas, por exemplo, algumas das diferenças existentes entre a ocupação dos carpinteiros e a profissão dos advogados.

Este conhecimento esotérico, inacessível ao cidadão comum, deve ser aplicável e conter altos índices de resolutibilidade. O corpo de conhecimento que uma profissão domina deve ser, então, de extrema relevância. Assim a sociedade concordará em investir grandes somas de capital nas escolas de treinamento e na capacitação profissional. Para Moore (1970), uma ocupação torna-se uma profissão quando os responsáveis criam e utilizam sistematicamente um conhecimento geral acumulado, como solução para problemas colocados pela clientela. Neste sentido, a medicina e a engenharia adquirem uma relevância particular. Estas profissões trazem consigo todo um projeto de resolução de problemas concretos da vida dos cidadãos.

Esta aplicabilidade e resolutibilidade não se consolidam abstratamente. O profissional deve empreender todo um conjunto de estratégias de convencimento da clientela. A sociedade deve acreditar.que apenas o profissional tem condições de resolver seus problemas. Não é necessário que ele os solucione. O público precisa continuar acreditando, no entanto, nesta capacidade. A profissão detém o monopólio sobre determinada atividade porque persuade a sociedade a crer que ninguém mais, salvo o profissional, pode fazer este trabalho com sucesso. Para Wilensky (1970), o profissional deve ser capaz de dominar certa base de conhecimento para que tenha condições de convencer a clientela de sua importância, único modo de alcançar o prestígio e o poder almejados. Por esta razão, o consumidor de serviços deve ser alguém nem muito organizado socialmente, nem muito informado, para que receba, sem contestar, as determinações do profissional, podendo ser, devido a isso, mais facilmente convencido. Se estas estratégias derem certo, a clientela passará a reconhecer a utilidade da profissão.

Moore (1970) concebe o peso do conhecimento na configuração da profissão como algo dinâmico. Para ele, o "crescimento de um novo conhecimento é fonte para uma nova profissão" (Moore, 1970: 56). Neste sentido, a profissionalização adquire uma dimensão de processo. Um exemplo, a propósito, pode ser dado com o ato de parir. Até meados deste século, a ajuda às parturientes era uma atribuição das parteiras ou sages femmes. Aos poucos, foi se constituindo uma área de saber – a ginecologia e obstetrícia – que se tornou complexa, sistematizou-se, institucionalizou-se, elitizou-se e convenceu a clientela da exclusiva jurisdição sobre esta habilidade. Configurava-se, deste modo, uma especialidade profissional dentro da medicina. As parteiras foram passando, paulatinamente, a ocupar um papel secundário nesta tarefa.

O domínio do conhecimento, dentro dos marcos teóricos assinalados, apesar de imprescindível, não é considerado, pelos autores citados anteriormente, um elemento suficiente para a definição do conceito profissão. A coletividade de pares que a compõe precisa que a conduta profissional seja padronizada. Assim, os clientes passariam a ter condições de distinguir, pelo comportamento, se tal ou qual atitude é ou não compatível com a atividade profissional. A auto-regulação se formaliza por intermédio de um Código de Ética. Seu objetivo é persuadir o conjunto da profissão e agir segundo os padrões instituídos coletivamente. Quando for necessário, métodos coercitivos também estão previstos. Um Código de Ética busca padronizar a conduta e o relacionamento dos componentes de uma profissão em três níveis: interpares, com seus concorrentes e com seus clientes (Pereira & Rocha, 1995). As ocupações, em geral, prescindem de qualquer código normativo formal para regular sua atividade e padronizar sua conduta. Neste caso, cabe lembrar que todas as atividades do mundo do trabalho trazem consigo uma ética, que, apesar de informal, regula a relação entre os componentes de uma mesma ocupação. As profissões, por outro lado, sobrevivem e conquistam prestígio junto à clientela se conseguem impor normas aceitáveis pelo conjunto da categoria, institucionalizadas por intermédio de um código que se torna instrumento de pressão e de persuasão sobre seus componentes.

Para os sociólogos que foram nossa referência para esta reflexão preliminar, não basta dominar certo conhecimento e submeter-se às regras impostas pela coletividade dos pares. A profissão deve ser capaz de estabelecer estratégias que busquem conquistar o monopólio do exercício de sua atividade no mercado de trabalho. Neste sentido, a profissão se organiza em associações e pressiona o Estado. Mais uma vez, a distinção entre ocupação e profissão se impõe. As associações de ocupações se preocupariam exclusivamente com os problemas relacionados com as condições do exercício do trabalho (salário, regime de trabalho, férias, condições de trabalho, etc.). As associações de profissões, além de se ocuparem com este tipo de reivindicação, comprometem-se ainda com a habilitação e formação de seus futuros integrantes e com a relação que estabelecem entre si e com seus clientes.

A garantia da manutenção da autonomia é considerada, pela maioria dos autores analisados, parte integrante do processo de conquista de hegemonia da profissão no mercado de trabalho. Garantindo sua autonomia, o profissional passa a ter autoridade e liberdade para se auto-regular e atuar em sua esfera de competência.

Não se trata de associar a garantia da autonomia com o exercício da profissão em moldes exclusivamente liberais (Schraiber, 1993). Tanto o profissional liberal quanto o assalariado são vulneráveis a perder a autonomia quando a demanda por serviços for baixa e a dependência em relação ao poder dos clientes ou patrões, não receptivos ao julgamento profissional independente, for alta. Em organizações complexas e burocráticas, regidas por rotinas de trabalho, a autonomia profissional pode ficar seriamente comprometida. A autonomia se consolida quando o profissional se torna capaz de decidir as necessidades de seu cliente, não permitindo que ele imponha seu próprio julgamento.

Uma outra dimensão de autonomia associa este conceito à possibilidade de o profissional julgar a si e a seus procedimentos. Assim, só ele seria capaz de invalidar o serviço do leigo, comprometer-se com a organização de efetivo controle de admissão ocupacional, instituir uma educação especializada através da qual a sociedade possa distinguir o profissional do homem experiente e estabelecer normas que assegurem competência técnica.

 

O CONGRESSO NACIONAL DOS PRÁTICOS (1922)

Desde o final do século XIX até a metade do século XX, a profissão médica passou, no Brasil, por uma crise que continha pelo menos duas marcas: a redefinição da base cognitiva da medicina e a reestruturação do mercado de serviços de assistência médica (Donnangelo, 1975). Os sinais desta crise podem ser percebidos em diferentes fontes documentais. A fonte primária em discussão foi escolhida por encerrar uma rica documentação que, ainda não foi explorada. Nela as questões do monopólio do conhecimento e do domínio do mercado de trabalho médico se evidenciaram. Este evento situa-se em uma conjuntura histórica em que o debate sobre o sentido e o limite da atuação do Estado na área da assistência médica começava a ocupar o cenário político (Hochman, 1993).

O "Congresso Nacional dos Práticos", realizado no Rio de Janeiro de 30 de setembro a 8 de outubro de 1922, foi um forum onde as questões relacionadas com a reordenação do trabalho médico foram debatidas. A Imprensa Nacional publicou seus 63 relatórios, contendo os mais variados assuntos, em suas "Actas e Trabalhos". Seu orador oficial, Oscar Silva Araújo, distinguiu este congresso dos anteriores, afirmando que nele não seriam discutidos os "grandes problemas médicos e as questões controversas da ciência", mas sim a "crise (grifo nosso) muito séria e com tendência a se agravar cada vez mais" por que passavam os médicos (Actas, 1923: 17).

Uma breve comparação entre os anais dos congressos médicos promovidos pela Academia Nacional de Medicina e pela Sociedade de Medicina e Cirurgia no final do século XIX e início do século XX, com este realizado em 1922, leva-nos a concordar com a primeira parte das considerações feitas pelo Dr. Silva Araújo. O mesmo orador apontou a causa e a solução para a denominada crise que entendia estar ocorrendo na profissão médica, afirmando: "Em uma época em que os adversários da profissão são as coletividades (grifo nosso), faz-se mister que o sindicato que se organiza contra elas sinta-se forte, coeso, capaz de agir e vencer" (Actas, 1923: 18). A classificação das "coletividades" que reivindicavam um sistema de assistência médica como "adversários da profissão (médica)" evidencia a pouca ou nenhuma aceitação dessa ação coletiva pelo orador.

O termo coletividades refere-se, neste caso, às organizações mutualistas e filantrópicas da sociedade civil que se multiplicaram no início do século no Brasil. Não se trata da medicina estatal, expressa inicialmente com a implementação das "Caixas de Aposentadoria e Pensão (CAPS) que passaram a se constituir com a promulgação da lei Eloy Chaves (1923).

O relator Felício Torres, por sua vez, não só defendeu a constituição de um sindicato médico, como também propôs que esta organização adotasse "as resoluções do atual congresso no que se refere aos diplomas estrangeiros, à limitação das matrículas, à luta contra o curandeirismo, contra o charlatanismo profissional, instituindo, por exemplo, um comitê para a denúncia dos indignos e indesejáveis" (Actas, 1923: 157). Como podemos observar, a agenda das lutas que a associação profissional médica deveria empreender diferia em muito daquela que estava sendo implementado por seus contemporâneos anarquistas ou comunistas. Além disso, a organização dos interesses profissionais dos médicos envolvia questões relacionadas com o domínio do conhecimento e com o monopólio do mercado de serviços de assistência médica que entendiam estar abalado.

Fernando Magalhães apresentou, ao encerrar o evento, "as bases para a organização da futura associação". Esta associação deveria "pugnar pela garantia do exercício clínico digno e próspero". Segundo consta nos Anais do Congresso, "esta proposta foi recebida com entusiásticos aplausos e geral aprovação do Congresso" (Actas, 1923: 618).

Reunindo boa parte da elite médica, o "Congresso Nacional dos Práticos" (1922) nos parece ser uma fonte apropriada para a compreensão mais precisa do debate que estava sendo travado, no seio da categoria médica, a respeito das alterações que sua base cognitiva a que seu mercado de trabalho estavam sofrendo com a iminente entrada do Estado na gestão dos serviços de assistência médica. A profissão médica passava, então, por um processo de reestruturação. Uma das estratégias encetadas por parte da elite profissional, resistente à ação das coletividades, manifestou-se com a criação do "Sindicato Médico Brasileiro", cinco anos mais tarde (Pereira & Maio, 1992).

 

A CONJUNTURA HISTÓRICA

Até o final do século XIX e início deste, o modelo hegemônico de prática médica era caracterizado, em geral, no Brasil, por um tratamento global, que associava as condutas clínicas às morais (Luz, 1982). A relação médico-paciente era individualizada e não contava com nenhum intermediário que estipulasse tempo, forma ou valor da consulta. A habilidade e a sensibilidade eram os principais atributos para o exercício desta atividade. O clínico geral percebia o corpo do paciente como um todo indivisível.

No início do século XX o processo de trabalho médico estava sendo alterado nos dois elementos definidores de uma profissão: o conhecimento e o mercado.

Por um lado, o desenvolvimento científico foi promovendo a especialização do conhecimento médico segundo a área do corpo ou o tratamento a determinada doença. Este processo de especialização pode ser observado nas reformas que o ensino médico sofreu no final do século passado (Edler, 1992). Além disso, a base cognitiva foi sendo alterada com a introdução da tecnologia na produção do diagnóstico e com a incorporação dos avanços da bacteriologia e da medicina experimental. Tudo isto foi gerando uma certa dependência do médico em relação à tecnologia. O diagnóstico de certas enfermidades começou a ser feito, em certos casos, cada vez mais, com a intermediação de um forte aparato técnico. Um grande capital em máquinas e equipamentos foi se tornando necessário para o exercício da atividade. A bacteriologia contribuiu para elevar a precisão na elaboração do diagnóstico. As teorias miasmáticas, que muitas vezes comportavam julgamentos morais sobre a vida do cliente, estavam em lenta decadência. A subjetividade e a sensibilidade do profissional, preponderantes na relação médico-paciente até então, começavam aos poucos a assumir um plano secundário. O médico especialista e o diagnosticador ameaçavam, respectivamente, a relação individualizada e a intuição predominantes na prática profissional até aquele momento. Donnangelo (1975) denominou esta nova maneira de fazer medicina de "tecnológica", referindo-se a este tipo de intermediação que trouxe a precisão no diagnóstico diminuindo o papel das subjetividades que caracterizavam a relação médico-paciente.

O debate sobre a questão do conhecimento estava assim organizado: para alguns médicos, este processo de especialização e de introdução da tecnologia elevariam o status da profissão; para outros, a despersonalização da relação médico-paciente contribuía para a perda da autonomia da profissão, gerando ainda a dependência do profissional perante a tecnologia. Como podemos perceber, o debate estava lançado e a base cognitiva da medicina começava a passar, no início deste século, por um processo de redefinição.

Por outro lado, a concentração urbana e industrial e a constituição da classe operária levaram à implementação de certas medidas relacionadas com a medicina preventiva, a higiene pública e a assistência médica e previdenciária para as coletividades (Labra, 1985). Este conjunto de medidas na área da saúde foi implementado, no início deste século, tanto pelo poder público quanto pelo setor privado (Benchimol, 1990).

Aos poucos, o mercado de trabalho médico se tornava mais complexo e a relação assalariada começava a ser introduzida. O médico que balizava sua relação com seu paciente de forma individualizada e liberal via seu espaço de prestígio e poder, no mercado de trabalho, ser ameaçado pelo médico funcionário público, trabalhando em um hospital. Esta instituição foi deixando, aos poucos, de ser o asilo dos pobres, imprestáveis e incuráveis, aguardando a morte, para tornar-se o espaço da ciência, da racionalidade, da capitalização e da recuperação para a vida. A profissão médica integrou, desta maneira, o processo de parcialização do trabalho que se desenvolvia nas demais atividades produtivas. Começava a se restringir o lugar do médico que vivia exclusivamente do exercício liberal de sua atividade.

Tendemos assim a concordar com Gadelha (1982), quando identifica, no início deste século, uma modificação significativa do processo de trabalho médico com a incorporação de tecnologia e o surgimento de uma nova modalidade de produção privada e depois estatal de serviços de saúde. A presença do Estado nos serviços de saúde tem na promulgação da lei Eloy Chaves (1923) um momento de inflexão. Esta lei é considerada por Oliveira & Teixeira (1986) e por Malloy (1986) uma expressão do abandono das atitudes liberais que o Estado vinha adotando frente à problemática trabalhista e social.

Estes autores não se referem, entretanto, à Reforma Luis Barbosa (1921). Ela introduziu o complexo pronto-socorro - dispensário integrado ao sistema filantrópico liberal. Assim, o Estado elegia a urgência como prioridade da assistência médica municipal e se esforçava por afirmar a medicina científica/oficial frente às práticas populares. Alguns de seus postulados foram propostos pela Fundação Rockfeller. Ela pregava o combate à doença como pré-requisito para o desenvolvimento econômico, a associação do tratamento preventivo com o curativo e a centralização dos serviços. A higiene deveria ser uma atribuição federal. A organização dos serviços de saúde, na gestão Luis Barbosa, comportava três níveis de atendimento: as "casas de saúde" – para os abastados; os "serviços de urgência" – gratuitos para os indigentes; e o "atendimento geral" – para funcionários do Estado. Com a "Doutrina Pronto-Socorrista" de Luis Barbosa, o Estado expande seu atendimento médico mas não rompe com o modelo filantrópico-liberal, pois resguardava sua hegemonia no mercado de serviços de saúde (Gadelha, 1982).

O "Congresso Nacional dos Práticos" (1922) situa-se exatamente um ano depois da Reforma Luis Barbosa e um ano antes da promulgação da Lei Eloy Chaves.

O debate sobre a questão do mercado de trabalho estava organizado em torno de sua restrição ou ampliação. Para alguns médicos, o assalariamento era visto como uma ameaça à sobrevivência da profissão, pois comprometia a liberdade do profissional em estabelecer o valor de sua consulta. Além disso, os estabelecimentos públicos de assistência médica eram vistos como agentes captadores de uma clientela que detinha poder aquisitivo suficiente para ser atendida no consultório particular. O mercado de trabalho parecia se restringir. Para outros, a entrada do Estado na organização de uma rede de assistência médica promovia a ampliação do mercado de trabalho, já que oferecia seus serviços a uma clientela não alcançada pelo sistema liberal. Além disso, esta introdução representava uma renda fixa que o médico passaria a ter. O debate estava claramente instaurado e o mercado de trabalho começava a se modificar, no início deste século, de forma significativa.

Como acabamos de observar, o conhecimento e o mercado de trabalho médico estavam, no início deste século, passando por um processo de transformação. Um dos objetivos deste artigo é identificar como os médicos, reunidos no "Congresso Nacional dos Práticos" (1922), reagiram a este conjunto de modificações. A partir das constatações empíricas pretendemos, ainda, introduzir alguns elementos que sirvam para a reflexão sobre os marcos conceituais assinalados.

 

O MERCADO DE TRABALHO MÉDICO EM CRISE

Lendo e analisando os anais do "Congresso Nacional dos Práticos" (1922), tivemos condições de perceber pelo menos três maneiras distintas de enfrentar a questão do domínio do mercado de trabalho e da conquista da autonomia; aceitação, resistência e conciliação.

No "Congresso Nacional dos Práticos" (1922), existiam aqueles que consideravam positivo o incremento de instituições prestadoras de assistência médica. Entre eles, destaca-se o Dr. Neves da Rocha. No seu entender, "o prodigioso desenvolvimento das cooperativas, das associações de títulos diversos de empregados e de funcionários tem forçado os médicos a aceitar, em lugar de honorários pagos por visita, por consulta ou por trabalho feito, honorários pagos por contrato, fixos, para equilibrar sua receita (grifo nosso)" (Actas, 1923: 492). O Dr. Felício Torres corrobora esta opinião, afirmando que "a socialização tem pelo menos a vantagem (grifo nosso) de proporcionar trabalho a um número enorme de médicos" (Actas, 1923: 152). A ampliação do mercado de trabalho e a garantia de uma renda fixa para o médico eram vistos como argumentos suficientes para a defesa da presença destas instituições.

Havia, por outro lado, os que condenavam o avanço das instituições prestadoras de serviços de assistência médica às coletividades. Segundo um deles, estes serviços "desprestigiavam, hostilizavam e criavam embaraços aos médicos, comprimindo sua ação e restringindo (grifo nosso) seu campo de atividade" (Actas, 1923: 80). A incidência maior de críticas a estas instituições se deu pelo fato de serem consideradas limitadoras do mercado de trabalho do médico, pois atraíam uma clientela que, potencialmente, pertencia ao profissional liberal. Em geral, estas organizações prestavam serviços de forma gratuita ou a partir de irrisória contribuição. Para o Dr. Bastos Tavares, a alteração do perfil do mercado de trabalho era considerada um elemento que restringia o campo de ação do médico profissional liberal na medida em que atendia a "indivíduos abastados, ricos mesmo, que fugiam da clínica particular (grifo nosso) para esses estabelecimentos" (Actas, 1923: 73).

A polêmica entre os que aceitavam e os que resistiam à ampliação dos serviços de assistência médica residia exatamente na avaliação feita sobre as conseqüências que este incremento provocaria no mercado de trabalho médico, até então, hegemonizado pelo modelo liberal.

As resistências também se baseavam em uma acirrada crítica centrada em argumentos preocupados com a manutenção da autonomia no exercício da atividade. Nas organizações complexas, como as que estavam se estruturando no Brasil, muitos médicos defensores do modelo de relação individualizada, sem intermediários com o paciente, viam sua autoridade e liberdade de se auto-regular ameaçadas. No nosso entender, a visão exposta pelo Dr. Eduardo Meirelles resume o conjunto de críticas que estavam sendo feitas naquela oportunidade. Na sua opinião, "estas associações prejudicam os médicos na sua reputação (grifos nossos) – não examinando o doente, não sabendo ao certo o que ele sofre; na sua educação profissional – levando só em conta anamneses ligeiras, abandonando os meios propedêuticos; na sua moral – já que a sua conduta não está de acordo com os sãos princípios da boa ciência; na sua ética – pois cientes dos seus defeitos são condescendentes com o seu silêncio; no seu amor próprio – recebendo exíguo vencimento e receitando muito" (Actas, 1923: 169). Assim, a burocracia organizacional era vista como um fator que impedia que o médico tivesse autonomia suficiente para o pleno exercício profissional. No interior desta estrutura institucional o atendimento deveria ser feito rapidamente. Isto se justifica na medida em que a atividade não era determinada pelo médico e sim por um terceiro elemento. Esta sobredeterminação era vista como um fator que tolhia o espaço de ação do médico limitando sua atividade, fazendo com que ele não conseguisse atuar de forma plena. O pagamento, considerado irrisório, era outro fator que, nas palavras do Dr. Meirelles "lesava a independência do médico" (Actas, 1923: 170).

No decorrer do mesmo evento tivemos condições de identificar uma terceira via para solucionar este problema. Esta perspectiva procurava contemporizar a manutenção do atendimento liberal com a ampliação do atendimento de massa. Para a resolução desta equação, o Governo deveria normatizar o atendimento, garantindo que apenas o paciente de baixo poder aquisitivo tivesse acesso às instituições de assistência médica pública e/ou privada. Além disso, o Estado teria que remunerar o profissional de forma satisfatória. Assim estaria, por um lado, assegurada a ampliação do mercado de trabalho: o médico teria garantias de não estar perdendo clientela para estas instituições, preservando, portanto, a competitividade dos consultórios particulares. Por outro lado, ele receberia honorários que não denegrissem sua imagem de profissional bem remunerado. Dentre os oradores que se pronunciaram neste sentido podemos citar o Dr. José Mendonça, Moncorvo Filho, então chefe do Serviço de Pediatria da Policlínica Geral do Rio de Janeiro, e Miguel Couto, na época presidente da Academia Nacional de Medicina (Ribeiro, 1964). O primeiro propôs que o "serviço não fosse incondicionalmente gratuito, mas retribuído na medida das possibilidades de cada um" (Actas, 1923: 42). Para operacionalizar o funcionamento deste tipo de estabelecimento, os outros dois sugeriram a criação de "escritórios de profilaxia" para o registro dos pobres (Actas, 1923: 180) ou mesmo para a "verificação da indigência" (Actas, 1923: 583).

Muitos médicos, presentes neste Congresso pretendiam, através de propostas desse tipo, delimitar formalmente o mercado de trabalho, garantindo que o incremento de instituições prestadoras de serviços de saúde não representasse uma ameaça ao modelo liberal. Ele deveria significar uma garantia de sua manutenção e a ampliação do mercado de trabalho do médico. Este regime de trabalho deveria ainda firmar ampla autonomia para o exercício da atividade e remunerar o profissional em níveis compatíveis com o valor desta mão-de-obra no mercado. No nosso entender, este modelo de assistência médica pode ser denominado de liberal-excludente. Ele aceitava o sistema de assistência hospitalar gratuito, contanto que garantisse a fatia do mercado dos consumidores com alto poder aquisitivo ao profissional liberal. Os serviços de assistência médica oferecidos por instituições públicas, de caridade ou pelas "mutualidades" eram admitidos, desde que fosse assegurada a autonomia técnica. O julgamento do profissional deveria ser independente. Não poderia existir uma estrutura burocrática que cerceasse esta liberdade.

Em termos de modelo de assistência médica coletiva, havia uma tendência ao estabelecimento de uma organização que não oferecesse o mesmo serviço e todos os cidadãos: a assistência médica não deveria ser um direito de todos; ela variaria de acordo com o poder aquisitivo de cada cidadão.

Todas estas visões do problema da manutenção da autonomia e do controle do mercado de trabalho exemplificam de forma bastante nítida os conflitos internos existentes dentro da corporação médica.

Longe de apresentar uma visão coerente e consensual, este "Congresso Nacional dos Práticos" (1922) pode ser considerado um palco apropriado para a identificação de algumas das principais polêmicas e tendências que dividiam a profissão médica no início deste século. Lendo esta documentação histórica, temos condições de sugerir, a título de hipótese preliminar, que as estratégias para o domínio do mercado de trabalho e para a garantia da autonomia não representaram um consenso entre a elite médica. Foram, isto sim, um objeto de controvérsia.

 

O DOMÍNIO DO CONHECIMENTO EM CRISE

Um dos temas mais reincidentes nos relatórios apresentados ao longo do "Congresso Nacional dos Práticos" (1922) relacionava-se com a reivindicação médica de exclusividade na "arte de curar". Neste sentido tivemos condições de perceber, neste fórum, duas estratégias diferentes e complementares: alguns oradores combatiam o "charlatanismo", enquanto outros procuravam estabelecer uma hierarquia entre os profissionais da saúde.

Combater o "Charlatanismo"

Alguns oradores buscavam reafirmar os "sãos princípios e verdadeiros dogmas científicos" (Actas, 1923: 73), para criar argumentos fortes o suficiente para combater o que denominavam de "charlatanismo". O objetivo era persuadir o público de que apenas os médicos, por dominarem o conhecimento científico e academicamente organizado, tinham a autoridade para o exercício da prática de saúde. Neste sentido, o então professor catedrático de Clínica Obstétrica, posteriormente diretor da Faculdade Nacional de Medicina e depois Reitor da Universidade do Brasil, Dr. Fernando Magalhães, Presidente do "Congresso Nacional dos Práticos", afirmou: "É tão acentuada a diferença entre a posição de um médico e a de um charlatão, que seria preciso, para o encontro de forças, que o médico descesse de seu pedestal de honra e glória, (grifos nossos) a ele não daria esta confiança ao charlatão, ou este subisse da lama em que chafurda para alcançar o médico, o que não passaria de uma pretensão irrealizável" (Actas, 1923: 447).

O domínio de um conhecimento complexo, sistematizado e institucionalizado era considerado, por alguns oradores, fator imprescindível para a correta prática de cura. Cabe lembrar que um dos elementos estruturais e históricos presentes na configuração da profissão médica no Brasil está associado à concorrência que manteve, e ainda mantém, com as práticas de cura leigas de origem ameríndia a africana. O prestígio que a profissão médica poderia auferir originava-se exatamente do fato de conseguir convencer a clientela de que só o médico, academicamente formado, detinha as condições para o exercício pleno desta atividade.

Para atingir este objetivo, alguns relatores tomavam a rota da persuasão. O médico se colocava em uma posição hierarquicamente superior, amparado no domínio exercido sobre o campo do conhecimento científico e acadêmico. Os outros agentes, que não haviam percorrido o mesmo ritual institucional, apesar de muitas vezes aliviarem a dor e a doença do próximo, eram considerados "charlatães". Esta via desqualificava o "charlatão", mas também descredenciava o cliente. No entender de alguns oradores, os "charlatães" obtinham sucesso pois se amparavam na "ingenuidade humana", exploravam os "incautos", "turvavam a mentalidade das massas incultas". Por esta razão, alguns médicos se autoproclamavam "defensores do público contra o charlatanisnto e as explorações nocivas dos indesejáveis" (Actas, 1923: 246). Amparados no domínio da ciência oficial, alguns médicos se propuseram a combater o "charlatão" e defender o cliente, que era concebido como alguém que não deveria ser muito bem informado a respeito de seu tratamento. Alguns oradores partiam do princípio de que, diante da ignorância do cliente e dos métodos "curandeiros", só haveria uma alternativa: defender seu paciente atacando o "charlatão" rival. O paciente era visto como alguém que deveria se submeter, sem contestar, às determinações do médico. A perspectiva era convencer que só o médico credenciado oficialmente teria condições de solucionar satisfatoriamente os problemas de saúde e doença do cidadão.

Se a persuasão não fosse suficiente, métodos coercitivos estavam previstos. O Dr. Ernesto Thibau Jr., por exemplo, denuncia que "no Brasil nunca houve uma guerra sistemática (grifo nosso) ao exercício leigo da medicina e ao charlatanismo médico" (Actas, 1923: 240). O Dr. Bastos Tavares propõe que "a profilaxia e a repressão como armas de combate aos vícios do charlatanismo sejam de competência dos poderes públicos, por intermédio dos orgãos prepostos à fìscalização do exercício da medicina" (Actas, 1923: 87). Neste sentido, o Dr. Bonifácio Costa "deplora que, embora a Inspetoria de Medicina venha cumprindo o seu dever, multando os curandeiros e os médiuns espíritas, ainda continuem o Centro Espírita Redentor e a Federação a ostentar uma força estranha contra o regulamento sanitário e o código penal" (Actas, 1923: 246).

Alguns oradores comprometeram-se publicamente com a disputa de hegemonia no "mercado de prestígio" (Goode, 1969) junto a seus clientes e à sociedade como um todo. Neste caso, a via da persuasão foi predominante. Muitas vezes, as articulações com o Estado puderam ser observadas de forma explícita. Desta feita, tratavam-se de métodos coercitivos. A delação de lugares e pessoas que infringiam o Código Penal, por praticar atos de cura sem o estatuto de acadêmico, foi uma prática identificada entre os oradores do "Congresso Nacional dos Práticos" (1922).

Estabelecer uma Hierarquia

O domínio do conhecimento esotérico da medicina também serviu para estabelecer uma diferenciação entre as diversas atividades na área da saúde. No momento em que o hospital se tornava um locus privilegiado de trabalho em equipe, alguns médicos, presentes no "Congresso Nacional dos Práticos" (1922), procuravam definir a abrangência da área de conhecimento e de trabalho dos que atuavam junto a ele. Alguns oradores buscavam destacar a medicina das demais atividades da area da saúde, estabelecendo entre elas uma hierarquia. Referindo-se à profissão médica, o Dr. Alcides Figueiredo afirmava: "Nenhuma profissão poderá prestar tantos e tão relevantes serviços à humanidade como a nossa" (Actas, 1923: 90).

Os médicos se achavam com autoridade, outorgada por seu estatuto científico e acadêmico, para definir o conteúdo dos cursos de formação e delimitar o espaço para o exercício das diferentes atividades na área da saúde. A intenção era fazer com que os outros saberes se tornassem menos complexos e misteriosos que o do médico, estabelecendo-se assim uma hierarquia com farmacêuticos, parteiras, enfermeiras.

Um dos casos que ocupou a atenção dos congressistas foram as rivalidades existentes entre farmacêutico e médico. O Dr. Bonifácio Costa afirmava que "o que se faz mister é a permanência do farmacêutico na farmácia como colaborador do médico, e nunca como seu concorrente" (Actas, 1923: 245). O pronunciamento do Dr. Portocarrero foi mais detalhado. Ele disse: "O farmacêutico não pode gerir mais de uma farmácia, anunciar cura de doenças incuráveis, dar consultas médicas, aviar receitas de médicos cujo diploma não esteja registrado, vender remédios derrancados ou falsificados, nem substituir drogas nas prescrições dos médicos" (Actas, 1923: 366). A evocada superioridade da medicina em relação à farmácia transformava-se em argumento suficiente para credenciar o médico na tarefa de delimitar seu campo de ação no mercado de trabalho.

Sobre a questão da relação entre médico e farmacêutico, gostaríamos de fazer dois comentários. Em primeiro lugar, cabe ressaltar que, na década de 20/30, havia "um significativo número de médicos empregados em laboratórios e fábricas de produtos farmacêuticos" (Gadelha, 1982: 93). Estes profissionais, de baixo poder aquisitivo, não tinham outra opção: só conseguiam instalar seus consultórios acoplados às farmácias. Assim, a questão da separação entre a farmácia e a clínica preteria, ao mesmo tempo, os farmacêuticos e os médicos menos abastados. Em segundo lugar, devemos lembrar que, no início deste século, a arte de manipular e formular sofreu enorme metamorfose com o advento das modernas indústrias de medicamentos. A postura dos médicos, restringindo o campo de ação do farmacêutico, tanto contribuía para descaracterizar a farmácia como locus científico quanto desqualificava o profissional como um produtor de qualidade. A disputa por prestígio a clientela entre médicos clínicos e farmacêuticos revestiu-se de uma dimensão bem mais ampla. O posicionamento observado no decorrer do "Congresso Nacional dos Práticos" (1922) procurava, por um lado, subjugar o farmacêutico e a farmácia ao médico e, por outro lado, colocava-os paulatinamente sob a tutela das indústrias de remédios. Estes produtos passariam a ser produzidos e comercializados a partir da intermediação do clínico. A farmácia iria se tornar simples estabelecimento de revenda de artigos.

Com relação às parteiras, o Dr. Arnaldo de Moraes propõe, por exemplo, que sua formação não seja feita em uma faculdade ou curso completo, mas apenas em uma "cadeira de obstetrícia para as alunas". Em seu relatório final propôs que "se cuide do preparo profissional de modo a pô-lo a resguardo da exploração e da concorrência desleal" (Actas, 1923: 612). Ele estaria se referindo, possivelmente, à pratica feita pelas denominadas "curiosas".

O Dr. Arnaldo de Moraes dedicou sua formação e especialização à obstetrícia. Em 1924, tornou-se livre docente de clínica obstétrica da Faculdade Nacional de Medicina. Sua biografia completa-se com uma série de cursos, experiências profissionais e publicações no Brasil e no exterior sobre esta área do conhecimento médico. O intuito em definir a área de domínio do conhecimento da parteira se explica na medida em que delimita esferas da atividade profissional entre médicos obstetras e parteiras. A preocupação do conferencista era reafirmar a soberania da profissão médica, a partir do reconhecimento, pelas outras atividades afins, de que o saber médico era mais extenso e abrangente do que os demais.

O Dr. Fontenelle, em 1920, era membro do Departamento Nacional de Saúde Pública. Sua trajetória de vida profissional foi voltada para a área da higiene e administração sanitária. Entre suas preocupações, encontrava-se a de instituir um curso para "enfermeiras visitadoras de saúde pública". No seu relatório durante este Congresso, Fontenelle afirmou: "A profissão de enfermeira precisa ser colocada no devido nível, (grifo nosso) para o que é mister o governo criar um padrão de escola de enfermeiras e fiscalizar esta profissão". No seu entender, as enfermeiras eram imprescindíveis, mas deveriam ser "guiadas e dirigidas pelos médicos" (Actas, 1923: 446). O relator pretendia colocar a enfermeira em seu "devido nível", ou seja, submetida ao médico, em termos de domínio do conhecimento e do exercício da prática de saúde.

Podemos constatar, a partir da análise empírica do caso investigado, que uma profissão não cria, transmite e organiza apenas sua área de conhecimento, como afirma Goode (1969). Temos condições de sugerir que uma profissão também tem condições de definir, numa estratégia relacional, sua área de conhecimento e intervenção social estabelecendo as mesmas características em outra atividade. A delimitação da abrangência do conhecimento esotérico da profissão médica se dá na medida em que as parteiras, enfermeiras e farmacêuticos têm seu campo de atividade igualmente delineado.

A análise desta documentação nos permite sugerir, de forma preliminar, que a profissão assume uma estratégia relacional para garantir sua exclusividade no exercício da tarefa que desempenha. Esta estratégia envolveu as ocupações que concorrem com ela. Uma profissão não tem condições de definir o domínio sobre seu conhecimento se não for capaz de determinar a base esotérica das ocupações concorrentes.

A partir da análise preliminar desta documentação, temos condições de sugerir que a luta pelo domínio do conhecimento médico nos anos 20 assumia, pelo menos, duas faces. Por um lado, os médicos procuravam reafirmar a racionalidade científica frente às outras racionalidades. A concepção de um conhecimento criado e transmitido em instituições cientificamente aceitas e academicamente organizadas representava a base onde se estruturavam todos os argumentos que justificavam a superioridade do trabalho médico em relação às práticas de cura não-científicas. Por outro lado, os médicos procuravam manter seu poder no ato da cura, dentro do trabalho de equipe. Não era apenas o monopólio sobre o domínio de um conhecimento abstrato, aplicável a situações concretas que o médico reivindicava. Com o processo de especialização do trabalho técnico e de parcialização da atividade produtiva, o médico pretendia também manter-se em posição de destaque na escala de prestígio e poder. Por esta razão, alguns congressistas se achavam no direito de definir o que as demais atividades na área de saúde poderiam ou não fazer e saber.

Estas duas estratégias buscavam, ao mesmo tempo, assegurar a autoridade e o reconhecimento deste profissional junto a sua clientela. Elas partiam do reconhecimento do domínio de certa área do conhecimento para reivindicar, junto aos "charlatães", enfermeiras, farmacêuticos e parteiras, exclusiva jurisdição sobre o ato de curar. A necessidade do estabelecimento destas duas estratégias demonstra, sobretudo, que a profissão médica passava, nos anos 20, por um processo de transformação que afetava sua credibilidade. Sua auto-afirmação partia desta reivindicação de exclusiva jurisdição sobre o ato de curar baseada no domínio dos dogmas científicos adquiridos a partir da formação universitária.

Os parâmetros apresentados pela literatura sociológica nos parecem úteis para nossa investigação. Cabe ressaltar, entretanto, a historicidade desta polêmica. Atualmente, teríamos dificuldade de encontrar um periódico ou congresso médico em que a questão do combate ao "charlatanismo" ou da definição de campos de ação e conhecimento entre médicos e farmacêuticos estivesse presente. Por um lado, a racionalidade científica atravessa, no mundo de hoje, uma crise muito profunda. Muitas vezes, os próprios médicos indicam remédios ou terapêuticas não reconhecidas oficialmente pela medicina. No Código de Ética de 1988, não há qualquer referência de condenação às práticas tidas, na década de 20, como "charlatanismo". Por outro lado, os campos de ação dos médicos, farmacêuticos e enfermeiras já se encontram bastante definidos institucionalmente, seja no hospital, seja na universidade. No nosso entender, a polêmica entre médicos e "charlatães" e a estratégia de impor uma hierarquia entre os que atuam na área da saúde são duas questões próprias à história da profissão médica dos anos 20 no Brasil.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta investigação teve, para nós, inúmeros méritos.

Em primeiro lugar, acreditamos que este artigo tenha sido claro o suficiente para demostrar a pertinência do tema: a profissão médica como objeto para a História. O instrumental teórico introduzido por Wilensky (1970), Moore (1969) e Goode (1969) nos pareceu interessante e extremamente adequado para a análise que nos propusemos empreender.

Pensamos ter sido possível estabelecer, neste artigo, a especificidade do fenômeno profissional. Neste século, ocorreu uma crescente racionalização e intelectualização de parte da atividade produtiva. O trabalho com a ciência é hoje organizado em "disciplinas especiais e serviço do auto-esclarecimento e conhecimento de fatos inter-relacionados. Não é um dom da graça de videntes, nem participa das contemplações dos sábios" (Weber, 1982: 130). Nas sociedades complexas e pós-industriais como aquelas em que vivemos, as atividades do setor terciário, particularmente as que requerem uma formação de nível superior, aumentaram de número e importância.

Os sociólogos das profissões buscaram, exatamente, analisar as especificidades das atividades de nível superior, procurando estabelecer entre elas uma hierarquia. Guardadas as devidas diferenças entre os autores, poderíamos afirmar que dedicar-se integralmente à atividade, submeter-se à uma escola de treinamento, orientar-se por normas coletivas impostas por um código de ética ou por associações de classe seriam algumas das etapas do "processo de profissionalização".

Concordamos com estes autores quando afirmam que o domínio de um conhecimento esotérico, complexo, sistematizado, institucionalizado, aplicável e de utilidade reconhecida é elemento fundamental para a definição do que venha a ser uma profissão do ponto de vista conceitual. Acompanhamos ainda o ponto de vista destes sociólogos quando identificam na questão do domínio do mercado e no exercício da autonomia dois pontos essenciais na configuração de uma profissão.

A análise empreendida nos permite apresentar, em caráter meramente introdutório, algumas sugestões que viriam aperfeiçoar o corpo de conhecimento proposto pelos sociólogos das profissões.

Homogeneidade versus Heterogeneidade

A primeira reflexão que pretendemos sugerir, com este texto, relaciona-se com a maneira pela qual os teóricos que serviram de referência para este trabalho concebem o processo de conquista de hegemonia profissional no mercado de trabalho.

A profissão, unidade básica de análise, é tida, por estes autores, como um todo coerente e homogêneo. A sociologia das profissões nos fornece um instrumental de extrema utilidade quando sugere que a busca do domínio do mercado de trabalho e a garantia da autonomia são partes de uma estratégia utilizada por uma ocupação para se profissionalizar. Segundo tivemos condições de perceber, estes autores concebem o conceito profissão de forma homogênea. Ela estaria, assim, isenta de conflitos e contradições internas. Não identificamos, no corpo teórico analisado, qualquer menção às dissensões presentes em um grupo profissional.

Lendo e analisando a documentação concernente, percebemos duas dimensões de dissenso. Por um lado, identificamos que os congressistas privilegiavam um determinado modelo de prática profissional em detrimento dos demais existentes em disputa na sociedade brasileira do início deste século. Observamos uma tendência pela defesa de uma conduta orientada pelo exercício da clínica curativa e liberal, que estabelecia com seu cliente uma relação individualizada. O médico diagnosticador, o que atuava no laboratório e o sanitarista se fizeram representar, de maneira distinta, naquele congresso. O seu interesse não era profissional. Eles não questionavam nem a sua organização no mercado de trabalho nem a sua formação enquanto especialistas. Discutiam os limites e o sentido da atuação do Estado no combate e na prevenção de doenças infecto-contagiosas. A idéia de que a miséria era causada pela doença predominava entre estes médicos. Em relação ao debate profissional – mercado de trabalho, formação, relação interprofissional – havia um certo consenso entre grande parte dos congressistas quanto à defesa dos interesses do modelo curativo e liberal no exercício da medicina.

Por outro lado, o dissenso se fez evidente entre os congressistas não preventivistas. Apesar de defenderem, em geral, o mesmo modelo de prática profissional, havia alguma divergência quanto às estratégias a serem implementadas para a manutenção do monopólio do mercado de trabalho e a garantia da autonomia no exercício da atividade com o incremento das instituições de assistência médica filantrópicas e mutualistas. Tivemos condições de identificar pelo menos três posições a este respeito: resistência, aceitação e negociação. Para o primeiro grupo, a assistência médica às coletividades não era aceita de forma alguma. Para o segundo, ela era bem vista, pois assegurava uma renda mínima ao profissional. A posição de negociação agia em dois níveis: da remuneração e do acesso ao serviço. O assalariamento era aceito contanto que estivesse garantida remuneração condizente com a manutenção do prestígio do profissional. A gratuidade no atendimento era admitida se fosse limitada à um público de baixo poder aquisitivo e se, portanto, não concorresse com o consultório particular. O modelo assalariado e a assistência médica às coletividades exerceriam papel complementar no orçamento do médico. As condições de trabalho deveriam permitir o exercício pleno da autonomia, sem os empecilhos da burocracia.

A homogeneidade de objetivos – defesa da autonomia e da medicina científica – não impediu a evidência de diferentes estratégias políticas de afirmação profissional. Em termos conceituais para a profissão se constituir como tal, é necessário, mas não suficiente, que ela domine o conhecimento e o mercado de trabalho. Na análise empírica empreendida, ainda que de forma preliminar, diversos e conflitantes projetos profissionais tecno-políticos vieram à tona com toda a sua virulência. A análise empírica foi capaz de nos mostrar que no interior de um corpo profissional se localiza um intenso campo de disputa - um mar de heterogeneidades.

A investigação empírica realizada fez com que tivéssemos condições de identificar dois níveis de heterogeneidades constitutivas da profissão médica. Uma se evidenciou entre os modelos em disputa no mercado de prestígio e poder. O forum escolhido para esta pesquisa foi o locus onde os defensores do modelo clínico, curativo e liberal se reuniram para defender seus interesses no mercado de trabalho, na formação e na relação interpessoal. Os interesses profissionais dos preventivistas, higienistas, sanitaristas, diagnosticadores ou laboratoristas não se fizeram presentes. A segunda dimensão de heterogeneidade ficou explícita entre os defensores deste modelo de prática profissional em relação ao enfrentamento da questão da ampliação do sistema de assistência médica às coletividades. Uns a aceitavam, outros a rejeitavam, enquanto outros ainda propunham formas mediadoras.

Historicidade

O segundo comentário que gostaríamos de fazer, à guisa de consideração preliminar, relaciona-se com a historicidade do papel do conhecimento no processo de profissionalização.

Para os autores que serviram de referência para este artigo, o conhecimento, criado e transmitido em instituições cientificamente aceitas e academicamente organizadas, representa a base onde se estruturam todos os argumentos que justificam a superioridade do trabalho profissional em relação a outras habilidades.

Esta constatação carece, no nosso entender, de ser feita à luz do momento histórico em que se está analisando uma determinada profissão. Por um lado cabe fazer uma referência à história social em que esta profissão está inserida e da qual faz parte. Por outro lado cabe reconhecer a historicidade do processo profissional. Este foi, em parte, o esforço empreendido por Paul Starr (1982) ao analisar o processo de profissionalização do médico norte-americano (Pereira, 1994).

No caso por nós analisado, tivemos condições de identificar que a luta pela afirmação da medicina oficial e pela delimitação dos campos de saber e de ação entre os profissionais de saúde se insere em um momento histórico da profissão médica no Brasil.

Quando a profissão médica enceta aquele conjunto de críticas às formas leigas de cura apóia-se em princípios originários no primado científico hegemônico naquela época. Os médicos, em sua formação e em sua prática, conduziam sua vida profissional inspirados nos apostolados positivistas. Esta orientação era própria à profissão médica no início deste século e não produz hoje os mesmos efeitos. Os argumentos apresentados e as posições assumidas em 1922 são partes integrantes de um determinado momento da história da profissão médica no Brasil.

Quando os médicos reunidos naquele evento procuraram estabelecer, de forma tão enfática, todo aquele conjunto de mecanismos hierárquicos entre eles e os farmacêuticos a enfermeiras, o hospital começava a se constituir como espaço privilegiado para a atividade de saúde em equipe. Nele, uma hierarquia precisava ser constituída. A abrangência do conhecimento médico tornava-se o argumento mais ressaltado para estabelecer as diferenças entre os atores em cena e afirmar as relações de poder e superioridade dos medicos sobre os demais profissionais da área da saúde. Nos dias de hoje, a hierarquia, no interior do hospital, já está configurada, gerando outros e diferentes conflitos.

Estratégias de Profissionalização

O terceiro comentário que se faz oportuno refere-se às estratégias implementadas por uma ocupação para se profissionalizar. Dois pontos mereceram nossa atenção: as estratégias de coerção e as relacionais.

Wilensky (1970) é um dos autores que mais ressaltam a importância que as estratégias de persuasão desempenham, para que uma profissão se afirme no mercado de trabalho e de prestígio. A persuasão é tida como ferramenta essencial para que uma atividade reivindique exclusividade sobre determinada tarefa. Ela deve ser capaz de convencer a clientela de que só o profissional é apto de desempenhar tal atividade satisfatoriamente. O que tivemos condições de observar, em toda a documentação analisada, é que a perspectiva persuasiva somou-se à dimensão coercitiva. Na luta pelo domínio do conhecimento, alguns congressistas apresentaram argumentos que buscavam articular politicamente os médicos com o delegado, exigindo o cumprimento do Código Penal. A delação era, igualmente, uma prática prevista.

Goode (1969) afirma que uma profissão cria, transmite e organiza apenas sua área de conhecimento. Diante do material empírico analisado temos condições de propor que uma profissão também assume uma estratégia relacional, na medida em que procura definir sua área de conhecimento a intervenção social, estabelecendo as mesmas características em outra atividade. O médico define e abrangência do seu conhecimento esotérico na medida em que consegue estabelecer uma verdadeira hierarquia entre ele e as demais atividades vinculadas com a saúde. Esta estratégia envolve as ocupações que concorrem com ela. Na verdade, ao delimitar e restringir o conhecimento da parteira, da enfermeira e do farmacêutico, o clínico garante o seu lugar de destaque no mercado de prestígio e poder, a partir do domínio de um campo de conhecimento maior do que o de seus concorrentes. Esta dimensão do domínio do conhecimento, a partir da delimitação do saber e da prática de um rival, não foi observada nas leituras que realizamos de alguns dos teóricos da sociologia das profissões.

Apesar das evidentes divergências quanto às formas de manutenção da autonomia no mercado de trabalho médico em transformação, o jornal Correio da Manhã, na primeira página da edição de 6 de outubro de 1922, salientava, paradoxalmente, "a comunhão de idéias, a cordialidade, a coesão e a solidariedade que norteavam os congressistas".

O que podemos observar, de maneira preliminar, é que neste evento evidencia-se um momento de inflexão na profissão médica no Brasil. Identificamos, nos Anais do "Congresso Nacional dos Práticos", dois níveis de polêmica a respeito da garantia da autonomia. Por um lado observamos um sensível predomínio do modelo clínico, curativo, liberal, preocupado em preservar uma relação individualizada com o paciente. Ele apresentou estratégias distintas para sua manutenção diante do avanço do sistema de assistência médica filantrópica ou mutualista. Alguns centravam sua análise nos malefícios causados sobre a autonomia técnica enquanto a maioria se preocupava com as restrições de natureza econômica. Algumas propostas foram feitas para minimizar esta tendência de perda de autonomia. Elas giravam em torno da manutenção de um projeto liberal-excludente, ou seja, aceitavam o incremento destas instituições contanto que fosse excluída à parte da clientela detentora de poder aquisitivo.

Gadelha (1982) definiu quatro modalidades de serviços de assistência médica coletiva existentes no Rio de Janeiro, na década de 20. A primeira incluiria as "Associações Mutualistas de Caráter Profissional", onde predominavam trabalhadores de empresas estatais e concessionárias de serviços públicos. A segunda seriam as "Associações Mutualistas e Beneficentes Cosmopolitas", que envolveriam grupos de pessoas de mesma origem regional ou nacional. A terceira seriam as "Confrarias Religiosas de Caráter Mutualista ou Beneficente". Na quarta, a participação era voluntária e não havia critério predeterminado para sua filiação. Todas estas modalidades inseriam-se em um "modelo filantrópico-liberal de assistência médica". Nele, a clientela era seletiva. O médico participava destas estruturas, muitas vezes, para aumentar seu prestígio social. O autor assinala ainda que, apesar de sua relevância, este modelo de assistência médica aos trabalhadores se mostrou "insuficiente para arcar com o atendimento médico a estes setores da população" (Gadelha, 1982: 89). No seu entender, este modelo não obteve sucesso na medida em que o ônus recaía sobre os trabalhadores, as associações acumulavam capital e não atendiam aos clientes. Mais uma vez, cabe lembrar que, o modelo estatal foi se constituindo como uma alternativa, fundamentalmente, a partir da promulgação da lei Eloy Chaves (1923), um ano depois da realização do "Congresso Nacional dos Práticos".

O debate desenvolvido no seio deste congresso a respeito da atitude a ser tomada com relação ao grau de introdução da população nos serviços de assistência pública na saúde reproduz – em certo sentido – no interior da categoria médica, um conflito mais amplo, travado na mesma época, entre as estratégias de exclusão – de cunho autoritário –, e as de integração dos setores populares pelo Estado.

 

 

RESUMO

PEREIRA-NETO, A. F. A Profissão Médica em Questão (1922): Dimensão Histórica e Sociológica. Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 11 (4): 600-615, out/dez, 1995.
Uma profissão pode se tornar um objeto de estudo histórico ou sociológico? No nosso entender este empreendimento só é possível se conseguirmos escapar do significado comum da palavra profissão e passarmos a atribuir-lhe um estatuto conceptual. Acompanhando esta preocupação, apresentaremos parte dos postulados teóricos, introduzidos por alguns sociólogos norte-americanos que procuraram definir conceitualmente uma profissão diferenciando a de uma ocupação. Interessa-nos identificar como o domínio do conhecimento e o controle do mercado de trabalho se inserem nesta formulação. Utilizaremos estas referências para analisar um caso específico: A profissão médica. Em um espaço particular: o Brasil. Em uma conjuntura histórica definida: o início do século XX, particularmente no "Congresso Nacional dos Práticos" (1922). A partir desta análise empírica, de cunho histórico, pretendemos fazer três considerações acerca da concepção teórica que nos serviu de referência: A primeira se refere à heterogeneidade constitutiva de um corpo profissional. A segunda diz respeito à historicidade do processo de profissionalização. Finalmente tratamos de refletir acerca da coerção como instrumento de eliminação do concorrente e de afirmação do profissional no mercado. Esperamos que este breve artigo, de caráter meramente introdutório, seja capaz de demonstrar que o estudo histórico e sociológico sobre a profissão médica é legítimo, relevante e extremamente oportuno.
Palavras-Chave: Profissão Médica; Mercado de Trabalho Médico; Conhecimento Médico; História da Medicina; História da Saúde

 

 

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[1] Casa de Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz. Avenida Brasil, 4036/401, Rio de Janeiro, RJ, 21040-361, Brasil.
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