ARTIGO ARTICLE


 

 

 

 

 

 

 

Paula Guardenho Maywald1
Maria Inês Machado1
Julia Maria Costa-Cruz1
Maria do Rosário de Fátima Gonçalves-Pires1


Leishmaniose tegumentar, visceral e doença de Chagas caninas em municípios do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba, Minas Gerais, Brasil

Canine cutaneous and visceral leishmaniasis and Chagas' disease from counties in the Triângulo Mineiro and Alto Paranaíba regions, Minas Gerais State, Brazil

 

 


1 Departamento de Patologia, Universidade Federal de Uberlândia. Av. Pará 1720, Campus Umuarama, Uberlândia, MG, 38400-902, Brasil.   Abstract Leishmaniasis and Chagas' disease were surveyed by indirect immunofluorescence with sera from 331 dogs from Uberlândia and Coromandel, two counties in the State of Minas Gerais, Brazil. Leishmania amazonensis and Trypanosoma cruzi antigens were employed. In Uberlândia county, 230 sera were studied, of which 200 were from urban areas and 30 rural: 4.5% of urban samples and 6.6% of rural were positive for L. amazonensis antigen. Of 89 sera from Coromandel, 5.6% were positive for the same test to L. amazonensis antigen. Twelve additional canine sera were obtained from the Veterinary Hospital at the Federal University in Uberlândia, all of which with a pending diagnosis of leishmaniasis: of these, one had a positive immune test to L. amazonensis and another to T. cruzi antigens. The results suggest regional urbanization of both leishmaniasis and Chagas' disease in the canine populations of both communities.
Key words Leishmaniasis; Chagas' Disease; Dogs; Epidemiology; Zoonosis  

Resumo Inquérito envolvendo leishmaniose e doença de Chagas, por meio da Reação de Imunofluorescência Indireta, foi realizado com soros de 331 cães de Uberlândia e Coromandel, Municípios do Estado de Minas Gerais, Brasil. Para tal inquérito, utilizaram-se, como antígenos, Leishmania amazonensis e Trypanosoma cruzi. No que tange a Uberlândia, examinaram-se 230 soros, sendo 200 da área urbana com 4,5% de positividade, e 30 da área rural, dos quais, 6,6% positivos para a RIFI com antígeno L. amazonensis. No que se refere a Coromandel, a mesma reação realizada em 89 soros, com o mesmo antígeno, L. amazonensis, foi positiva em 5,6% dos cães. Além dos 230 soros de Uberlândia, mais 12, advindos de cães atendidos no Hospital Veterinário da Universidade Federal de Uberlândia, com suspeita clínica de leishmaniose, foram incluídos; destes, os soros de dois reagiram à Reação de Imunofluorescência Indireta, sendo um positivo frente ao antígeno L. amazonensis, e o outro, frente ao antígeno T. cruzi. Tais resultados sugerem a urbanização da leishmaniose e da doença de Chagas em cães.
Palavras-chave Leishmaniose; Doença de Chagas; Cães; Epidemiologia; Zoonose

 

 

Introdução

 

A leishmaniose tegumentar americana (LTA) é uma zoonose de ambientes florestais primários, onde o ciclo da Leishmania (Viannia) braziliensis se processa sem a participação humana, evidenciando, assim, o caráter nidálico da infecção (Pavlovsky, 1965).

A LTA, no País, tem diferentes aspectos epidemiológicos, de acordo com as características biogeográficas das regiões onde a doença é assinalada. Pode ser encontrada não somente em regiões florestais, com vegetação abundante, propícias à colonização dos psicodídeos e mamíferos silvestres infectados, como também em regiões desmatadas, com adaptação de vetores e reservatórios a ambientes modificados, em áreas rurais e urbanas (Tolezano et al., 1980), com transmissão peridomiciliar. Registra-se, também, a presença de homens e mulheres com a mesma taxa de infecção e doentes em todas as faixas etárias (Forattini et al., 1973; Magalhães, 1977; Rocha e Silva et al., 1980; Gomes et al., 1986; Dourado et al., 1989), e onde não têm sido encontrados mamíferos silvestres infectados, os cães domésticos parecem ter papel importante na transmissão extraflorestal (Cuba, 1983; Falqueto et al., 1986; Vexenat et al., 1986).

No Estado de Minas Gerais, a LTA ocorre desde o meio do século com surtos relacionados ao desflorestamento e à construção de rodovias, assim como com o desenvolvimento da agricultura (Furtado et al., 1966).

Embora considerada endêmica nas regiões denominadas Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba, situadas a sudoeste do estado, apenas 14 casos humanos foram notificados no período de 1981 a 1986. A partir de julho de 1987, registrou-se um rápido surgimento de casos autóctones da doença, caracterizando uma microepidemia de LTA no Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba, em especial nos Municípios de Uberlândia e Indianópolis (Nishioka et al., 1988; Machado et al., 1992). Desde então, a busca ativa de casos em áreas de risco e a assistência para o diagnóstico e tratamento precoces têm demonstrado um crescente número de doentes (Neves et al., 1995).

O presente trabalho tem por objetivo demonstrar, por meio da reação de Imunofluorescência Indireta que a leishmaniose tegumentar canina (LTC) é ativa na região do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba, e analisar a possível interdependência dos ciclos de transmissão entre as áreas silvestres e domiciliares, rurais e urbanas. No processo de vigilância para LTC, através de inquéritos soroepidemiológicos e por ocasião de atendimento ambulatorial no Hospital de Clínicas Veterinário da Universidade Federal de Uberlândia, a pesquisa foi extensiva à detecção de cães domésticos infectados por Leishmania (Leishmania) chagasi e Trypanosoma cruzi.

 

 

Metodologia

 

A execução desta investigação procedeu-se de duas formas distintas. Em primeiro lugar, fez-se a análise de inquéritos soroepidemiológicos caninos realizados nos Municípios de Uberlândia e Coromandel, Minas Gerais, onde ocorreram casos autóctones da doença. Em seguida, analisaram-se os resultados observados em cães provenientes de atendimento ambulatorial, suspeitos clinicamente de LTC. O grupo de animais estudado foi constituído por 331 cães domésticos não-vadios, procedentes dos Municípios de Uberlândia e Coromandel.

 

Inquéritos Soroepidemiológicos


· Áreas e populações de estudo

 

Município de Uberlândia: O Município de Uberlândia faz parte da região do Triângulo, que é uma subunidade administrativa do Estado de Minas Gerais. A pesquisa foi realizada em áreas urbana e rural do Município, no período de setembro e outubro de 1989. Na zona urbana, a pesquisa foi realizada junto aos postos de vacinação anti-rábica, promovida anualmente pelo Centro Regional de Controle de Zoonoses (CRCZ), fixados em todos os bairros da cidade, segundo cronograma preestabelecido.

Na zona rural, as visitas foram domiciliares, segundo cronograma também estabelecido pelo CRCZ, acompanhando os postos móveis de vacinação, que prestaram assistência a todas habitações rurais. O acesso à área foi feito em grande parte por estradas secundárias de terra, integrantes da malha rodoviária municipal.

Foram examinados 230 cães domésticos, sendo 200 procedentes de área urbana e 30 da área rural. Os animais foram selecionados de acordo com a disponibilidade e concordância dos proprietários.

Município de Coromandel: O Município de Coromandel faz parte da região do Alto Paranaíba, que é uma subunidade administrativa do Estado de Minas Gerais. A pesquisa foi realizada na zona urbana do Município, no período de março de 1993, solicitada pela Diretoria Regional de Saúde (DRS), durante um surto de LTA com características epidêmicas ocorrido na região. As visitas foram domiciliares, conforme indicação da Secretaria de Saúde do Município, e acompanhadas por técnicos da Fundação Nacional de Saúde (FNS) e DRS.

Foram examinados 89 cães domésticos que coabitavam com indivíduos que apresentavam a LTA.

Todos os cães foram cadastrados em fichas clinico-epidemiológicas, contendo: nome, endereço, proprietário, raça, observações clínicas e material biológico colhido para exame.

 

Exame Clínico


 

Com o objetivo de detectar lesões cutâneas e mucosas, os animais foram examinados clinicamente, tendo sido consideradas suspeitas lesões tais como: úlceras encontradas em qualquer parte do corpo, além de nódulos em áreas de poucos pelos. Alterações cicatriciais, manchas, escoriações e peladeiras foram consideradas não-suspeitas, segundo Falqueto et al. (1986).

 

Exame Sorológico


 

A pesquisa de anticorpos circulantes anti Leishmania e anti T. cruzi foi realizada utilizando a Reação de Imunofluorescência Indireta (RIFI), de acordo com Guimarães et al., 1974.

Foram considerados positivos os soros que produziram fluorescência de uma cruz (1+) a três cruzes (3+). As fluorescências de membrana e flagelo foram também consideradas. Negatividade: quando os organismos apresentaram-se sem brilho e de cor vermelha ou marrom.

Os soros reagentes foram novamente submetidos à RIFI, nas diluições ao dobro a partir de 1:40 até 1:160.

 

· Atendimento Ambulatorial

 

Doze cães domésticos, procedentes de área rural e urbana do Município de Uberlândia, foram selecionados para a investigação sorológica e parasitológica; os animais haviam sido atendidos no ambulatório do Hospital Veterinário da Universidade Federal de Uberlândia no período de 1989 ­ 1993. Os cães levados ao exame clínico eram portadores de lesões cutâneas e mucosas sugestivas de LTC. Foram ainda incluídos animais com perda de pelos, focal ou generalizada; ulcerações crostosas, isoladas ou confluentes, observadas no focinho, orelhas e extremidades; descamações ou dermatites furfuráceas que acompanham a queda de pêlo; além de outros sinais, como apatia e emagrecimento progressivo.

 

Exames Laboratoriais


 

Na pesquisa de anticorpos anti-Leishmania e anti-T. cruzi foi utilizada a mesma metodologia descrita anteriomente.

Os métodos parasitológicos utilizados foram: esfregaço sangüíneo e gota espessa para a pesquisa de T. cruzi, e o mielograma para a pesquisa de Leishmania. Todas as lâminas foram fixadas com metanol e coradas pelo método de Giemsa (0,01 ml do corante em 2 ml de água destilada por 1:30 horas).

 

 

Resultados

 

Ao exame clínico, não foram detectados cães domésticos com lesões cutâneas ou cutâneo-mucosas sugestivas de LTA.

Quanto à pesquisa de anticorpos circulantes no Município de Uberlândia, ilustrada na figura 1, a RIFI detectou 11 (4,8%) cães positivos para a pesquisa de anticorpos anti-Leishmania, num total de 230 testados. Em área urbana do Município, nove cães (4,5%) foram soropositivos frente ao antígeno Leishmania, num total de 200 soros testados, procedentes de apenas seis dos 37 bairros pesquisados.

Na zona rural, dos 30 cães examinados, dois (6,6%) apresentaram-se reagentes na RIFI, sendo estes procedentes das áreas de Marimbondo e Tenda dos Morenos. Apenas um cão (no 137) apresentou-se reativo na diluição de 1:80.

Em relação ao Município de Coromandel, a RIFI detectou cinco (5,6%) cães soro-reagentes ao antígeno Leishmania dos 89 testados (figura 2). Quatro cães foram reagentes na diluição 1:40, e apenas um (no 81) apresentou-se reagente na diluição 1:80.

Todos os cães foram negativos para a pesquisa de anticorpos anti-T. cruzi, tanto no Município de Uberlândia quanto no de Coromandel.

 

Atendimento Ambulatorial


 

Para a pesquisa sorológica, foram selecionados 12 cães que apresentavam úlceras sugestivas da LTA e quadro clínico compatível com a doença, tais como: febre, apatia, emagrecimento, linfoadenopatia. A figura 3 ilustra os resultados referentes a esta etapa do trabalho, ou seja, o diagnóstico de leishmaniose tegumentar ou visceral e doença de Chagas entre 12 cães atendidos no Hospital Veterinário da Universidade Federal de Uberlândia.

Dentre eles, dois animais se destacaram por apresentarem os seguintes quadros clínicos e laboratoriais:

1) Cão no 7: animal sem raça definida, macho, de aproximadamente um ano e meio de idade, procedente da áreal rural do Município de Uberlândia. Ao exame clínico, mostrou: febre, apatia, fígado palpável e hérnia com pequenas ulcerações na região inguinal. Amostras de sangue, colhidas do animal número sete, foram utilizadas para confecção de esfregaços e gotas espessas, e, ao exame microscópico direto, após coloração pelo Giemsa, observamos a presença predominante de tripomastigotas formas largas em 100% dos 10 esfregaços e 10 gotas espessas.

2) Cão no 11: animal da raça Fila, macho, três anos de idade, procedente de Cuiabá, residente há 19 meses no Bairro Cidade Jardim, em Uberlândia. Do ponto de vista clínico, apresentou: caquexia, alopecia generalizada, ulcerações crostosas na orelha, dorso e patas dianteiras, ceratite ocular, crescimento ungueal anormal, emagrecimento e diversas áreas com depilações. Do material colhido da crista ilíaca, foram confeccionados esfregaços, e, após coloração pelo Giemsa, observou-se, ao exame microscópico direto, a pesença abundante de formas amastigotas, sugestivas da espécie L. chagasi.

Curiosamente, este animal não mostrou soro-reatividade ao antígeno Leishmania embora o quadro clínico e o mielograma indicassem a presença de parasitos deste gênero.

Um cão (C02) entre os 12 submetidos à RIFI para a detecção de anticorpos anti-Leishmania apresentou resultado positivo, confirmando a suspeita clínica da LTA, e outro cão (C07) também foi reagente na pesquisa de anticorpos anti-T. cruzi.

 

 

Discussão

 

À partir de um surto de LTA, com características epidêmicas, ocorrido no período de julho a novembro de 1987, nas margens do rio Araguari, em especial nos Municípios de Uberlândia e Indianópolis (Machado et al., 1992), objetivamos analisar a presença da LTA em áreas do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba. Utilizamos, pela primeira vez, a RIFI em soros de cães procedentes de zonas rurais e urbanas do Município de Uberlândia e de áreas urbanas do Município de Coromandel. Demonstramos a positividade de 4,8% frente ao antígeno Leishmania em um total de 230 soros analisados.

Em zonas urbanas, obtivemos um resultado de nove (4,5%) cães positivos em 200 examinados na cidade de Uberlândia, e um percentual de 5,6% foi obtido na cidade de Coromandel, indicando que a infecção canina também é ativa neste município. Quando analisamos a soropositividade canina para Leishmania em soros de animais procedentes de área urbana, observamos que os percentuais de 4,5% e de 5,6% estão próximos aos obtidos em outras áreas do País, onde também ocorrem surtos epidêmicos (Gomes et al., 1990; Passos et al., 1994). Em áreas periurbanas do Rio de Janeiro, onde a LTA é endêmica, Coutinho et al. (1985) relataram um índice de 8,6% de positividade para LTC, utilizando a RIFI em eluatos sangüíneos. Santos et al. (1994), utilizando a RIFI em Paracambi, Rio de Janeiro, observaram 35 (16, 9%) cães positivos em 207 avaliados.

Na zona rural, a RIFI demonstrou uma positividade de 6,6% para o antígeno Leishmania em 30 cães pesquisados. Afonso-Cardoso et al. (1989), investigando cães também da área rural do Município de Uberlândia, observaram 24 (23,7%) cães soro-reagentes em 101 eluatos sangüíneos testados pela RIFI.

Comparando nossos resultados com os obtidos durante o primeiro inquérito canino realizado na mesma área por Afonso-Cardoso et al. (1989), verificamos que, apesar das diferenças metodológicas, ocorreu um visível decréscimo entre os percentuais obtidos nos dois estudos realizados, de 22,52% para 4,8% de soropositividade. As ações de Educação Sanitária e de Vigilância Epidemiológica desenvolvidas na região, principalmente nas áreas consideradas de transmissão, direcionadas à ocorrência da LTA humana e canina e com a finalidade especial de informar a população sobre os riscos de aquisição da doença e o papel que o cão pode representar na cadeia de transmissão, refletem-se na diminuição da população canina residente atualmente na zona rural.

Este trabalho chama a atenção para o encontro de nove cães positivos para o antígeno Leishmania, representando 4,5% dos 200 animais estudados em área urbana. Em função do controle da população de cães vadios nas ruas da cidade de Uberlândia, realizado sistematicamente pelo CRCZ, muitos animais nascidos em zona rural são em geral trazidos e abandonados em área urbana. Assim, poderíamos associar o deslocamento no sentido rural-urbano da população canina, inclusive daquela com positividade para LTC, e não necessariamente à infecção contraída em área urbana. Apesar disso, não descartamos a hipótese de que a aquisição da infecção canina possa ocorrer, também, em peridomicílios de áreas periurbanas do município, principalmente em locais limítrofes ou de transição para a zona rural.

Considerando a região do Triângulo Mineiro como um todo, podemos aferir que a transmissão da LTA humana e canina ocorrem em ambiente peridomiciliar em ambas as áreas, rural e urbana.

Chama-nos a atenção mais uma vez a constante referência da presença de mamíferos silvestres em ambiente peridomiciliar, tanto rural como urbano, feita pelos habitantes locais e confirmada pela Diretoria Regional de Saúde.

Os animais que constantemente visitam o peridomicílio são os 'gambás', alguns canídeos e diversas espécies de roedores. Encontramos, na região, cerca de 37 espécies (Maywald, 1993), pertencentes a diversos gêneros e famílias de mamíferos da fauna autóctone da área, dentre os quais destacamos os gêneros: Didelphis, Marmosa, Coendou, Dasyprocta e Proechimis, todos já encontrados naturalmente infectados por tripanosomatídeos em outras regiões do país.

Admitimos, portanto, as hipóteses de que, na região, em uma primeira instância, a infecção por L. (V.) braziliensis seja uma zoonose mantida por reservatórios naturais e flebotomíneos ainda não identificados, devendo ser encontrados entre a vegetação remanescente, dentre as quais destacamos as matas ciliares.

Pode-se supor que o cão contraia a doença nesta vegetação remanescente, trazendo-a para o ambiente doméstico, onde já existem condições propícias para sua disseminação, de acordo com as observações de Falqueto et al. (1986) em Viana, Espírito Santo. É possível ainda que a instalação e manutenção do ciclo doméstico de transmissão da L. (V.) braziliensis deva-se em parte pela presença de animais silvestres sinantrópicos infectados em peridomicílios rurais e urbanos. Tal associação pode resultar em um elo de transmissão da LTA à revelia da presença de flebotomíneos.

O diagnóstico da infecção aguda e natural pelo T. cruzi, em cão doméstico residente na zona rural do Município de Uberlândia, considerada área endêmica para doença de Chagas, não pode ser considerado um encontro habitual, embora a enzootia canina já tenha sido registrada no Triângulo Mineiro (Forattini et al., 1983).

A importância da infecção canina natural pelo T. cruzi foi, a princípio, acentuada por Carlos Chagas (1909). Posteriormente, várias investigações constataram a presença do parasito em uma grande variedade de animais, tanto domésticos (cães, gatos) como peridomiciliados (roedores) e silvestres (marsupiais, edentatos, quirópteros, carnívoros, lagomorfos, roedores e primatas) (Barreto, 1963; Forattini et al., 1983; Alencar, 1987).

A freqüência da infecção na ampla maioria das investigações realizadas no Brasil (Mott et al., 1978; Afonso-Cardoso et al., 1989; Marcondes et al., 1991) tem sido em geral, dimensionada a partir da soropositividade, por ocasião de inquéritos epidemiológicos e mais raramente por métodos parasitológicos. Sob a condição de atendimento ambulatorial, por clínica especializada em área urbana, parece-nos inédito o encontro ora descrito.

A infecção chagásica em cães domésticos pode constituir-se em um dos elos epidemiológicos responsáveis pela interação dos ciclos de transmissão silvestre e doméstica do T. cruzi (Barreto, 1963; Forattini et al., 1983; D'Alessandro et al., 1986; Gomes, 1993), à semelhança da LTA, em áreas urbanas e rurais.

Assim, a transmissão do T. cruzi entre os mamíferos susceptíveis pode ocorrer tanto pela deposição de fezes contaminadas de triatomíneos em pele danificada ou mucosas, quanto por via oral, quando alguns carnívoros, como o cão doméstico, alimentam-se de mamíferos infectados.

Dias (1983) destaca, dentre a mastofauna encontrada naturalmente infectada pelo T. cruzi, o gênero Didelphis, com espécies arborícolas, de hábitos noturnos e ubiquistas e taxas de infecção de até 20%.

Em nossa região, este grupo de reservatório, principalmente a espécie D. albiventris (CEMIG, 1988), ainda é encontrado em alta densidade no ambiente silvestre e com notória freqüência em peridomicílio rural e urbano. O nítido aumento de 'gambás' nos dois últimos ecótopos deve-se em grande parte ao acelerado desaparecimento dos ecossistemas naturais, representados majoritariamente na região pelas matas ciliares (Schneider, 1986).

No presente estudo, a ausência de triatomíneos vetores do T. cruzi no domicílio do cão com doença de Chagas, e mesmo nos anexos peridomiciliares (galinheiros e depósitos de cereais), confirmada por nós mesmos, sugere outras vias de contaminação do animal que não através das fezes contaminadas de 'barbeiros'.

Quanto à infecção canina por L. (L.) chagasi, embora diagnosticada em apenas um cão entre 12 pesquisados (8,3%), incita a discussão de, no mínimo, dois aspectos de importância epidemiológica regional.

Em primeiro lugar, estamos em área considerada indene ou não pesquisada para infecção humana por este agente, ou seja, para a ocorrência da leishmaniose visceral americana autóctone. Em segunda instância, comprova-se a atual introdução de animais infectados procedentes de áreas endêmicas, neste caso, da cidade de Cuiabá, que, à semelhança do Rio de Janeiro, é uma área de concomitância da transmissão de LV e LTA (Marzochi et al., 1985, Nunes et al., 1995).

Para nossa surpresa, o cão número 11, clínica e laboratorialmente positivo, não mostrou sorologia positiva pela RIFI, embora as amostras de soros tenham sido insistentemente testadas.

Num estudo comparativo da RIFI em eluatos de sangue de cães experimentalmente infectados com diferentes tripanosomatídeos, Costa et al. (1991) observaram que a sensibilidade do método foi de 87,5% para o diagnóstico do calazar canino, independentemente do antígeno empregado; observaram também que ocorre reação cruzada com a LTA em 75% dos casos e que com a doença de Chagas ocorre em 83,3%. Concluíram os autores, portanto, que os índices atribuídos à infecção canina pela L. (L.) chagasi, medidos pela sorologia utilizando a IFI, não correspondem à realidade, haja visto que áreas com sobreposição da três endemias indicadas são comuns, e que o cão pode ser encontrado parasitado pelos diferentes tripanosomatídeos. Por outro lado, justificam a utilização da técnica em levantamentos epidemiológicos de infecção canina, a partir do momento em que ela seja usada com o objetivo de detectar cão parasitado e de conseqüentemente eliminá-lo, contribuindo assim para a diminuição das fontes de infecção de três importantes endemias do nosso meio. Contudo, ressalvam que estes dados não devem ser usados como indicadores da prevalência do calazar canino, mas sim como taxa de infecção por tripanosomatídeos.

 

 

Conclusão

 

O presente estudo não pretendeu avaliar a prevalência da LTA em áreas rurais e urbanas do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba, mas sim detectar a infecção canina em ambos Municípios, Uberlândia e Coromandel, localidades onde a LTA tem sido diagnosticada cada vez com maior freqüência.

Assim, acreditamos que não poderíamos omitir algumas reflexões do ponto de vista epidemiológico, considerando-se algumas peculiaridades que se revestem em relação à ocorrência da infecção canina pela L. (V.) braziliensis e às presenças do T. cruzi e da L. (L.) chagasi em cães domésticos residentes.

 

 

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Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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