ARTIGO ARTICLE

 

 

 

 

Vera L. Almeida Formigli2
Lígia Maria Vieira da Silva3
Alfonso J. P. Cerdeira4
Cristiane M. F. Pinto4
Renata S. A. Oliveira4
Alessandra C. Caldas4
Maria José B. Vilas Boas4
Anderson C. Fonseca4
Leda Solano F. Souza5
Luciana R. Silva5
Maria do Socorro F. Paes5


Avaliação da atenção à saúde através da investigação de óbitos infantis 1

Evaluation of health care by means of infant death investigation 1

1 Trabalho realizado com auxílio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
2 Departamento de Medicina Preventiva, Universidade Federal da Bahia. Av. Reitor Miguel Calmon s/no, Salvador, BA 40110-100, Brasil.

3 Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia. Rua Padre Feijó 29, 4o andar, Anexo II, Salvador, BA 40110-170, Brasil.

4 Faculdade de Medicina, Universidade Federal da Bahia. Av. Reitor Miguel Calmon s/no, Salvador, BA 40110-100, Brasil.

5 Departamento de Pediatria, Faculdade de Medicina, Universidade Federal da Bahia. Rua Padre Feijó 29, 3o andar, Anexo II, Salvador, BA 40110-170, Brasil.
  Abstract All deaths of children under one year of age and residing in the Pau da Lima Health District, in the city of Salvador, Bahia, Brazil, during the year 1991 were investigated through home visits and analysis of patient files. The study measured effectiveness of health services by verifying potentially avoidable deaths and the level of medical care these children received. More than half of the total of 47 deaths were related to causes considered amenable to prompt action by health services; 10 (21.3%) of the deaths occurred at home or in public (outside of health care facilities). Loss of information occurred in 36 (76.6%) of the mother's interviews, related to incomplete information on the death certificate and to changes of address. Analysis of patient files in the health clinics showed a 58.3% loss of information, indicating low-quality organization of hospital statistics; there was a prevalence of consultations classified as inadequate or barely adequate, due mainly to problems with physical examination and treatment. Despite this study's operational limitations, the results point to problems of access, effectiveness, and adequacy in the health care process.
Key words Child Health; Mortality; Infant Mortality; Health Evaluation; Epidemiology

Resumo Foram investigados todos os óbitos de crianças menores de um ano residentes no Distrito Sanitário de Pau da Lima, Município de Salvador, Brasil, no ano de 1991, através de consultas aos respectivos prontuários hospitalares e visitas domiciliares. O estudo visava a aferir a efetividade dos serviços de saúde por meio da verificação de óbitos potencialmente evitáveis e o grau de adequação dos cuidados médicos prestados às crianças. De um total de 47 óbitos, observou-se que mais da metade dos mesmos ocorreu por causas vulneráveis à ação oportuna dos serviços de saúde, e que 21,3% dos óbitos ocorreram em via pública e domicílios. Houve 76,6% de perdas de informação nas entrevistas com as mães, atribuídas a problemas de preenchimento incompleto ou incorreto da Declaração de óbito, e por mudanças de endereço. A pesquisa dos prontuários nas unidades de saúde registrou perda de 58,3%, revelando o baixo grau de organização das estatísticas hospitalares; prevaleceram atendimentos classificados como pouco adequados e inadequados, principalmente nos itens exame físico e tratamento. Apesar das limitações operacionais do estudo, os resultados apontam problemas de acesso, efetividade e adequação do processo de assistência à saúde.
Palavras-chave Saúde da Criança; Mortalidade; Mortalidade Infantil; Avaliação em Saúde; Epidemiologia

 

 

Introdução

 

Tendo em vista as limitações das estatísticas de mortalidade decorrentes da utilização da declaração de óbito como fonte exclusiva de dados, alguns estudos têm sido desenvolvidos com vistas a melhorar a qualidade dessas informações. No caso da mortalidade infantil, tem se verificado o uso de fontes adicionais de informações em investigações com objetivos e metodologias distintas.

Assim, por exemplo, a Investigação Interamericana de Mortalidade na Infância, amplo estudo realizado em 10 países das Américas no período de 1968-72, buscou uma maior precisão nas taxas de mortalidade em crianças abaixo de cinco anos e fatores a ela relacionados, investigando por dois anos cada óbito ocorrido, através de entrevistas domiciliares e pesquisa em prontuários médicos (Puffer & Serrano, 1973).

Barros et al. (1985), por sua vez, através de um estudo longitudinal no Município de Pelotas - Rio Grande do Sul, investigaram os óbitos de crianças nascidas a partir do ano de 1982, realizando visitas domiciliares e revisão de prontuários médicos, preocupados, principalmente, em detectar os sub-registros de mortes infantis, fetais e perinatais. No Rio de Janeiro, Duchiade et al. (1989) investigaram óbitos de menores de um ano com o propósito de conhecer a proporção de mortes ocorridas fora do ambiente hospitalar, recorrendo também a consultas a prontuários e entrevistas com as mães, para obtenção das informações necessárias. No Município de Santos, São Paulo, o recurso à revisão de prontuários hospitalares e investigação do óbito através de visitas domiciliares foi também utilizado para estimar com maior precisão a magnitude dos óbitos infantis (Henriques, 1992).

Outro objetivo que tem sido incorporado nesses estudos que partem da informação sobre o óbito é a análise da assistência médica prestada às crianças falecidas, pressupondo que a adoção de condutas oportunas e adequadas poderiam ter impacto na redução da mortalidade infantil, às custas da redução dos óbitos potencialmente evitáveis por aquelas medidas. Nesta perspectiva é que foi realizado estudo em Salvador, entrevistando as mães de crianças menores de um ano falecidas no ano de 1985 e, em seguida, consultando os respectivos prontuários médicos nas unidades assistenciais (Macedo et al., 1989).

A utilidade de estudos desse tipo remete, necessariamente, à discussão do conceito de mortes preveníveis ou evitáveis, que pressupõe, segundo Silva (1990), a existência de medidas capazes de evitar mortes prematuras, tais como a disponibilidade de conhecimentos médicos, de recursos diagnósticos, terapêuticos ou preventivos, e de sua oportunidade de execução. Segundo classificação de Taucher, citado por Silva (1990), as mortes poderiam ser evitadas por: a) vacinas ou tratamento preventivo; b) diagnóstico e tratamento médico precoces; c) melhorias das condições de saneamento ambiental; d) ações mistas. Um estudo apontou que, no Nordeste, em 1985, a taxa de mortalidade infantil por doenças evitáveis foi 66,7/ 1.000 nascidos vivos, duas vezes maior que a encontrada na região Sudeste. Ao interior desta taxa, a parcela considerada mais diretamente ligada às medidas de prevenção e de assistência representou 1,15/1.000 nascidos vivos no Nordeste e apenas 0,37/1.000 na região Sudeste, naquele ano (Ortiz, 1992).

Pode-se ainda destacar que, entre as causas perinatais, que vêm assumindo importância crescente na estrutura de mortalidade no Nordeste e em Salvador, algumas vinculam-se mais diretamente à assistência prestada ao parto e ao recém-nascido, tais como as hipóxias e anoxias ao nascer (Ichihara, 1994).

É nesta perspectiva que se entende que estudos como o presente, que têm como objeto a investigação dos óbitos infantis, podem fornecer informações sobre o acesso, adequação e qualidade dos serviços, além de potencialmente possibilitarem estimativas acerca da efetividade dos mesmos.

 

 

Objetivos

 

1) Caracterizar, segundo algumas variáveis, a mortalidade de menores de um ano residentes no Distrito Sanitário de Pau da Lima (DSPL)/ Salvador, no ano de 1991.

2) Aferir a efetividade dos serviços de saúde, através da verificação da proporção de óbitos infantis potencialmente evitáveis com a intervenção oportuna dos serviços.

3) Verificar o grau de adequação da assistência prestada aos problemas que levaram as crianças ao óbito.

 

 

Metodologia

 

O Distrito Sanitário de Pau da Lima tem uma população de aproximadamente 160.000 habitantes, predominantemente de baixa renda, e constitui-se de uma área com deficiente infra-estrutura urbana, destacando-se o saneamento básico. O distrito foi implantado em 1988 e vem desenvolvendo alguns passos no sentido da reorientação do seu modelo assistencial de saúde.

A coleta dos dados foi realizada por cinco estudantes de medicina devidamente treinados, de acordo com as seguintes etapas:

a) revisaram-se todos os óbitos ocorridos no Município de Salvador no ano de 1991, no Centro de Informações de Saúde da Secretaria Estadual de Saúde, selecionando-se aqueles de menores de um ano e, em seguida, os de residentes no DSPL, consultando-se uma listagem dos logradouros da área, fornecida pela gerência do Distrito;

b) retiraram-se de cada Declaração de óbito (D.O.) as seguintes informações: número, idade e sexo da criança, data e local de ocorrência do óbito, nome e ocupação dos pais, assistência médica recebida e causas de morte;

c) a partir da listagem dos endereços das crianças falecidas, foram visitadas suas respectivas casas, com o objetivo de recolher informações acerca do pré-natal realizado pela mãe, condições do parto, estado vacinal da criança e serviços de saúde procurados por ocasião da doença que levou a criança ao óbito;

d) visitaram-se os serviços onde ocorreram os óbitos, retirando-se dos prontuários das crianças informações referentes a anamnese, exame físico, condutas adotadas e tratamento, havendo maior detalhamento destes dados no formulário destinado aos episódios de diarréia/ gastroenterite; neste, pretendia-se comparar os procedimentos adotados no atendimento com as normas de condutas estabelecidas pelo Ministério da Saúde para esta patologia (Ministério da Saúde, 1993).

Os formulários preenchidos nos serviços de saúde foram entregues a três docentes de Pediatria da Universidade Federal da Bahia, independentemente, para que procedessem à avaliação da adequação do atendimento através de critérios implícitos de qualidade técnico-científica, classificando os procedimentos relativos a anamnese, exame físico e tratamento segundo as categorias adequado, pouco adequado, inadequado ou sem condições para avaliação.

Apesar de os dados terem sido digitados mecanicamente, o seu pequeno número propiciou a elaboração manual de tabelas de freqüência simples e obtenção de proporções em relação às principais variáveis, resultados estes que foram descritos e analisados quantitativa e qualitativamente.

 

 

Resultados

 

Caracterização dos óbitos

 

Foram levantados 56 óbitos de menores de um ano no DSPL no ano de 1991, dos quais, oito foram excluídos do estudo após verificação, na área, de que os endereços não pertenciam ao território do Distrito. Foi também excluído um óbito fetal.

Cabe registrar que neste estudo não foi avaliado o sub-registro de óbitos, uma vez que se utilizaram as declarações de óbitos oficiais do Centro de Informações de Saúde da Secretaria Estadual de Saúde como fonte exclusiva para conhecimento do falecimento. Entretanto, é possível pressupor que o número de óbitos esteja subestimado, uma vez que estudo longitudinal realizado em Pelotas detectou, num estado considerado avançado em termos de estatísticas de saúde, um sub-registro acima de 40% para mortes perinatais, de quase 50% para óbitos fetais e 24% para a mortalidade infantil (Barros et al., 1985). É possível, ainda, inferir que o número de óbitos esteja abaixo do real, considerando o fato de que muitos endereços preenchidos de forma incompleta ou incorreta nas declarações de óbitos impediram a sua identificação com as ruas do Distrito Sanitário de Pau da Lima, e o procedimento adotado para a inclusão do óbito baseava-se na comparação dos endereços registrados nas declarações com uma listagem de logradouros fornecida pela Gerência daquele Distrito.

Dos 47 óbitos restantes, 72,3% tinham idade entre 28 dias e 11 meses; 21,3% tinham menos que sete dias de vida e 4,3% estavam entre sete e menos que 28 dias (Tabela 1). Tal padrão difere daquele encontrado no Município de Santos, onde, dos 207 óbitos infantis ocorridos em 1991, cerca de 67% ocorreram em crianças de zero a seis dias de vida; 9%, entre sete e 28 dias e apenas 24%, na faixa de 29 dias a um ano (Henriques, 1992). Difere, inclusive, da realidade do Município de Salvador, onde, desde o ano de 1990, já predominam os óbitos neonatais entre as mortes infantis, revelando as desigualdades sociais existentes no território do município. Ou seja, na área estudada, o padrão de óbitos infantis ainda reflete a condição de atraso, com maior expressão dos óbitos do período pós-neonatal, por causas, na maioria das vezes, evitáveis, demonstrando a influência marcante das insatisfatórias condições sócio-ambientais na determinação destes óbitos.

 

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Confirmando tendência já reconhecida em todos os estudos de mortalidade, predominaram os óbitos masculinos, com cerca de 66%, enquanto os femininos foram da ordem de 31,9%.

A distribuição dos óbitos por local de moradia revelou uma maior concentração dos mesmos nos bairros de Pau da Lima (38,3%), seguido por Castelo Branco (27,2%) e Estrada Velha do Aeroporto (19,1%).

Na Tabela 2, observa-se que 76,6% dos óbitos ocorreram dentro dos serviços de saúde, 12,8% em domicílio e 8,5% em via pública. Tais dados diferem daqueles encontrados na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, em 1986/87, onde cerca de 13% dos óbitos de menores de um ano ocorreram fora do ambiente hospitalar, percentual considerado elevado pelos autores, levando-se em conta tratar-se de uma área metropolitana, onde a oferta de serviços de saúde é mais elevada (Duchiade et al., 1989). No presente estudo, 21,3% dos óbitos ocorreram fora dos serviços de saúde, o que já sugere problemas de acesso às unidades de saúde, em nosso meio.

 

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Cabe ressaltar que, do total de óbitos ocorridos dentro dos serviços de saúde, 30,5% deram-se em unidades estatais de saúde, e 66,7%, em unidades não estatais, conveniadas ou contratadas com o setor público. Apenas seis óbitos ocorreram no hospital localizado na área do DSPL, reforçando resultados de estudo anterior sobre utilização de serviços (Silva et al., 1995), que revelou maior procura dos moradores do Distrito Sanitário de Pau da Lima por serviços externos a sua área.

Quanto aos 10 óbitos ocorridos fora do hospital, chama a atenção o fato de quatro deles serem relacionados a infecções respiratórias, quatro por gastroenterite e um por desnutrição, ou seja, causas potencialmente evitáveis, chegando-se com vida aos serviços de saúde, revelando, possivelmente, problemas relacionados ao acesso oportuno a estes serviços em Salvador. Das crianças que morreram no domicílio, três casos deveram-se a pneumonia/broncopneumonia, agravos que requerem atendimento hospitalar, e apenas um dos seis óbitos domiciliares não havia recebido assistência médica, o que indica problemas na resolutividade da rede de serviços em Salvador.

A análise da ocupação dos pais das crianças falecidas ficou prejudicada pelo fato de, em mais da metade das declarações, este dado não haver sido preenchido. Entretanto, a distribuição das ocupações que foram preenchidas mostra o predomínio daquelas de baixas qualificação e nível de renda, tanto para homens quanto para mulheres, surgindo em maior número as ocupações de pedreiro, pintor, encanador, carregador, padeiro, vigilante etc, para homens, e domésticas, para as mulheres, denotando o perfil sócio-econômico desta parcela da população.

As causas de óbito proporcionalmente mais freqüentes foram as gastroenterites, com cerca de 29,7% e pneumonias/broncopneumonias, com 19,1%, destacando-se ainda como causas relativamente freqüentes a cardiopatia congênita e a meningite (Tabela 3). A análise da distribuição dos óbitos por causas revela ainda que mais da metade dos mesmos ocorreram devido a causas potencialmente vulneráveis à ação oportuna e adequada dos serviços de saúde, tais como gastroenterites, broncopneumonias, meningites, septicemias e anoxia neonatal. Em 72,3% das declarações havia mais de uma patologia associada ao óbito de cada criança, perfazendo uma média de dois diagnósticos por óbito.

 

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Em Salvador, no ano de 1985, o estudo de Macedo et al. (1989) detectou, nos prontuários localizados nos serviços de saúde com registros de diagnóstico, 27,8% de óbitos por prematuridade; 23,6%, por diarréia/desidratação; 13,9%, por septicemia; 8,5%, por desnutrição e 4,2%, por anemia. Em Santos, em 1988, a prematuridade estava associada a 41,6% dos óbitos de menores de um ano, e as malformações congênitas representaram 12,6% dos óbitos infantis em 1989 (Henriques, 1992).

Em cerca de metade dos óbitos, no presente estudo, não havia informação sobre a confirmação ou não do diagnóstico, por qualquer método. Em 23,4% houve referência à confirmação por exame complementar, em 17%, por necrópsia e em 4,3%, por cirurgia. Cerca de 14,9% dos casos informaram não ter havido confirmação do diagnóstico. A pesquisa do Rio de Janeiro detectou a realização de necrópsia em 43% dos óbitos não hospitalares neonatais e 65% dos pós-neonatais (Duchiade et al., 1989).

 

Entrevistas com mães/familiares

 

Dos 47 óbitos identificados, foi possível realizar entrevistas domiciliares em apenas 11 casos,  constatando-se, portanto, uma perda de 76,6% das informações, o que compromete quase que  totalmente os objetivos estabelecidos para esta etapa do trabalho. Quanto às razões das perdas,   observou-se o seguinte:

a) em 21 casos não foram encontrados os endereços por estarem incompletos (6) ou errados  (2) na declaração do óbito, ou ainda por razões não especificadas (13), quando o local referido  não era encontrado na área, mesmo com a ajuda da informação de trabalhadores das unidades   de saúde, da gerência do Distrito e até de moradores locais;

b) em 14 casos o endereço foi localizado, mas a pessoa não se encontrava na residência por razão de mudança (5), viagem (1) ou motivos não especificados (7), que podem corresponder a mudanças de endereço, ou mesmo preenchimento incorreto da declaração de óbito;

c) um domicílio não foi visitado.

Pesquisa realizada em 1987, referente aos óbitos de 1985, em Salvador, registrou uma perda de cerca de 56,2% de informações relativas a visitas domiciliares, por não encontrarem o endereço referido ou por mudança de residência do morador, já excluindo da busca os casos de endereços incompletos ou não registrados na D.O. (Macedo et al., 1989). O trabalho realizado em Santos teve 46% dos óbitos não investigados no domicílio, por perdas relacionadas, principalmente, a endereços errados ou mudanças de endereço (Henriques, 1992).

Neste estudo, alguns aspectos das informações coletadas junto aos familiares chamam a  atenção, mesmo sendo tais informações consideradas insuficientes para quaisquer colocações  mais conclusivas. Por exemplo, dos 11 entrevistados, apenas uma mãe referiu não ter procurado  serviço algum de saúde, tendo a criança falecido no próprio domicílio, vítima de   broncopneumonia. Em quatro dos sete casos entrevistados que relatam falecimento em hospital,  foi procurado mais de um serviço para o atendimento do problema que levou à morte. Em um dos casos, a unidade onde ocorreu o óbito foi o quarto serviço procurado pela mãe da criança.  Cabe também referir que, dos 11 entrevistados, quatro procuraram serviços de saúde da rede  ambulatorial do DSPL como primeira opção de atendimento, antes de conduzirem a criança à  unidade onde ocorreu o óbito. Tais dados devem ter ressalvadas as suas limitações e  insuficiências, uma vez que, além da perda de informações, deixaram de ser examinados aspectos como tempo de atendimento em cada um dos serviços procurados e entre os diferentes serviços, e também o tipo de atenção prestada em cada um deles.

Os resultados do estudo de Duchiade et al. (1989) apontaram que, em 38% dos óbitos não hospitalares de crianças menores de 28 dias e em 63% daqueles acima desta faixa etária, as mães haviam procurado um, dois ou mais serviços de saúde na tentativa de resolver o problema que causou o óbito da criança, levando os autores a relacionar estes achados com a baixa qualidade e inadequação dos serviços consultados, associadas às deficiências de transportes que articulam a rede de serviços. O trabalho realizado em Salvador também chamou a atenção sobre esta questão, na medida em que, das 165 famílias que foram entrevistadas, todas buscaram assistência médica, ocorrendo três atendimentos para cada duas crianças (Macedo et al., 1989).

Outro aspecto que merece ser referido é o fato de que todos os partos das mães entrevistadas foram realizados em maternidades e, em apenas um caso, não foi realizado o pré-natal. Entretanto, o fato de não se ter avaliado a qualidade deste pré-natal na entrevista, ou mesmo a quantidade de consultas realizadas durante o período gestacional, impossibilita analisar fatores de risco para mortalidade perinatal. No estudo de Santos, 94,4% das mães das crianças falecidas realizaram o pré-natal, considerando-se o mínimo de três consultas (Henriques, 1992).

 

O atendimento nos serviços de saúde

 

A busca de informações nos prontuários das unidades onde as crianças faleceram também enfrentou vários problemas. Em apenas 15 dos 36 óbitos ocorridos em unidades de saúde foi possível localizar os prontuários, o que representou um percentual de perdas de cerca de 58,3%, determinadas por:

a) não-localização do prontuário no serviço, utilizando-se como referência os dados de identificação da criança e dos responsáveis, assim como a data do óbito - 15 casos. Vale ressaltar que, nestas situações, várias alternativas foram tentadas para localizar os prontuários, implicando, inclusive, mais de uma visita a cada uma das unidades. Recorreu-se a livros de registro, listagens manuais e computadorizadas (quando existiam) e aos arquivos propriamente ditos;

b) identificação de prontuários com dados de identificação correspondentes, porém com ausência do óbito - dois casos;

c) falta de acesso ao Serviço de Arquivo Médico e Estatístico (SAME) da unidade - três casos, em uma mesma unidade da rede privada;

d) um serviço não visitado.

As perdas ocorreram em 73% das unidades estatais e em 50% das unidades não estatais  conveniadas e contratadas.

A pesquisa de Macedo et al. (1989) encontrou 73,3% de perdas de informações nos hospitais de Salvador, seis anos antes deste estudo, sendo 63,4% nas unidades públicas, 84,4%, nas privadas e 77,8% de perda nas filantrópicas.

Só a presença de tais achados já depõe desfavoravelmente sobre a qualidade dos serviços de saúde onde ocorreram os óbitos, apontando, inclusive, um certo agravamento da situação das unidades públicas entre os anos de 1985 e 1991, no que diz respeito à organização dos seus respectivos SAME.

Um outro aspecto analisado foi a questão da legibilidade no preenchimento dos 15 prontuários que foram encontrados nos serviços. Em quatro prontuários, o registro de anamnese se encontrava ilegível, parcialmente legível ou inexistente; em seis deles, o mesmo ocorreu com o registro do exame físico e, em cinco casos, o registro do tratamento era apenas parcialmente legível. Vale registrar que nenhuma das unidades do setor público se encontrava neste grupo.

 

Adequação e qualidade

 

A análise dos formulários relativos à assistência recebida pelas crianças foi realizada pelos três professores de Pediatria em 14 dos 15 casos hospitalares, sendo 12 crianças atendidas em hospitais não estatais conveniados e duas em um hospital estatal. As causas de óbito foram variadas, abrangendo três casos de cardiopatia congênita, quatro de gastroenterite, dois de septicemia e um óbito por cada uma das seguintes causas: gastrosquise, pneumonia, meningite, anoxia neonatal e hidrocefalia obstrutiva.

Três dos casos foram considerados por todos, ou pelo menos dois dos pediatras, como sem condições de avaliação, devido à falta de registro de informações essenciais. Os resultados da apreciação dos três pediatras para cada um dos 11 casos restantes distribuiu-se conforme se observa na Tabela 4. Predomina a soma de percentuais das opções pouco adequado e inadequado, em todos os três itens, sendo esta tendência negativa mais acentuada no que se refere ao exame físico e tratamento.

 

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A tentativa de avaliação do cumprimento das normas do Ministério da Saúde para atendimento aos casos de desidratação por gastroenterite revelou que a maioria dos itens de anamnese e exame físico necessários à avaliação do paciente não foi registrada, como também o tratamento, em nenhum caso, correspondeu aos esquemas padronizados pelo Ministério da Saúde.

 

 

Comentários

 

A primeira contribuição que pode ser extraída deste estudo é exatamente a possibilidade de destacar as suas limitações, reforçando conclusões de outras pesquisas semelhantes e, assim, apontar para a necessidade de buscar alternativas metodológicas mais adequadas para avaliar a qualidade da atenção, ou mesmo para efetuar um processo de vigilância de óbitos, a partir da investigação da ocorrência do evento.

Inicialmente, chama a atenção a magnitude das perdas de informações tanto em nível hospitalar quanto nas visitas aos domicílios. As primeiras são decorrentes principalmente da desorganização dos Serviços de Arquivo Médico e Estatístico das unidades públicas e privadas; as últimas, conseqüentes a problemas de erros ou insuficiência no preenchimento dos endereços nas declarações de óbito, ou ainda relacionadas à grande mobilidade da população da periferia de Salvador. Evidentemente que tais perdas, pelo seu volume, comprometem a interpretação dos resultados, o que impõe uma reflexão sobre a pertinência da adoção deste enfoque retrospectivo para proceder à vigilância de óbitos, principalmente quando o período de tempo entre a ocorrência da morte e o estudo é longo.

Os achados remetem também à questão do preenchimento incorreto e incompleto do atestado de óbito, que se faz presente na questão específica do endereço e em vários outros tipos de informações, necessárias para avaliação da mortalidade e da qualidade da atenção à saúde. Para estudos como este, que se propõem a avaliar a adequação da assistência, a qualidade da emissão do diagnóstico na Declaração de óbito constitui-se um aspecto fundamental. Nesta pesquisa, por exemplo, em comparação com outras, poucos foram os recursos utilizados para confirmação do diagnóstico.

A qualidade do preenchimento dos prontuários médicos, por sua vez, é um problema enfrentado por todos aqueles que se propõem a avaliar serviços de saúde. A ilegibilidade, não-preenchimento ou preenchimento incompleto de vários campos foram problemas detectados neste estudo, que limitaram bastante o material para análise da qualidade dos cuidados prestados.

Além disso, cabe registrar alguns problemas decorrentes do próprio protocolo de pesquisa, como a utilização não do prontuário completo para análise da adequação da assistência, e sim de informações retiradas do mesmo e reproduzidas numa ficha, opção que pode ter excluído alguns aspectos relevantes do atendimento. Um dos exemplos é o fato de o formulário de registro de dados dos prontuários não haver previsto o levantamento da informação sobre a evolução do paciente, o que dificultou a análise do comitê de pediatras sobre a adequação do tratamento, principalmente naqueles casos de maior duração da internação.

Apesar do elevado percentual de perdas já mencionado e de todas as demais limitações, que impõem cautela na análise dos dados, alguns aspectos decorrentes deste estudo podem merecer alguma reflexão e discussão.

Em primeiro lugar, com base nas causas de morte registradas nas Declarações de óbito, pode-se considerar a maioria delas como potencialmente evitável pela ação oportuna e adequada dos serviços de saúde. Este aspecto, aliado ao alto percentual de falecimentos ocorridos em domicílios e via pública, se comparado a outros estudos, revela a persistência de limites de acesso aos serviços de saúde. Há que se considerar outros determinantes, como por exemplo o problema de desinformação das mães, ilustrada nesta pesquisa pelo fato de uma criança ter falecido de broncopneumonia no domicílio, sem que tenha sido procurado qualquer serviço de saúde. Entretanto, os dados indicam que a universalização do acesso aos serviços de saúde, determinada na Constituição Federal e na Lei Orgânica da Saúde, mesmo numa capital, como é o caso de Salvador, não se fez ainda traduzir numa oferta de serviços suficiente e racionalmente distribuída, de modo a propiciar o contato oportuno entre o paciente e as unidades de saúde.

Por outro lado, as mães entrevistadas, ainda que em pequeno número, informaram ter procurado uma ou mais unidades de saúde para atendimento da criança. Tal informação aponta não só para o baixo grau de resolutividade dos nossos serviços, como também para a insuficiente organização e articulação da rede de serviços, o que leva à perda de tempo em deslocamentos, por referências inadequadas e sistema de transporte inexistente entre as unidades de saúde, comprometendo, portanto, a oportunidade e a efetividade dos atendimentos.

Por sua vez, a análise dos poucos prontuários localizados, a despeito dos problemas já citados, revelou a inadequação do processo de atendimento, tanto em comparação com critérios implícitos utilizados independentemente por três especialistas, quanto, no caso de uma das patologias, em relação aos critérios estabelecidos por uma instituição oficial.

A utilização de critérios implícitos tem algumas desvantagens em relação aos explícitos, como o fato de serem personalizados, sofrendo, portanto, maior influência do julgamento e da integridade dos analistas (Donabedian, 1981). Entretanto, a diversidade de patologias e a grande freqüência de combinações de diagnósticos em cada óbito dificultam a utilização de critérios explícitos, já que estes pressuporiam a identificação de normas reconhecidas e legitimadas para todos eles. Além disso, na circunstância de análise de pequeno número de casos, como a presente, este tipo de abordagem possibilita uma visão aprofundada e abrangente do atendimento integral do paciente, não se restringindo a alguns itens preestabelecidos, como ocorre no caso da opção por critérios explícitos.

Portanto, na presente situação, é pertinente concluir que os resultados da avaliação dos cuidados prestados às crianças que vieram a falecer, na pequena amostra de prontuários analisados, trazem indícios de que a qualidade técnico-científica com que os mesmos foram realizados não estava, em geral, adequada aos padrões desejáveis, considerando-se o conhecimento e a tecnologia atualmente disponíveis. Mesmo levando-se em conta a possibilidade de que os achados estejam superestimados pela existência de sub-registro nos prontuários de muitos dos procedimentos adotados pelos profissionais, há que se considerar o fato de que este próprio sub-registro é também indicador da qualidade da atenção, já que compromete a continuidade do cuidado ao paciente.

Todos os aspectos mencionados levam a considerar como principal produto deste trabalho o apontamento de algumas observações e sugestões que podem ser úteis para experiências semelhantes, na mesma linha de outros autores já citados, que trabalharam com o mesmo objeto (Barros et al., 1985; Macedo et al., 1989; Henriques, 1992).

Para que o óbito infantil possa se constituir num "evento-sentinela" indicador do nível de qualidade dos serviços de saúde e de acesso a estes, além de possibilitar conhecimento e intervenção nesta realidade, por meio do desenvolvimento de ações de vigilância epidemiológica, é necessário conferir maior grau de agilidade e oportunidade a essa informação. O período de dois anos entre o óbito e a investigação revelou-se inadequado, pelas razões já mencionadas, indicando que uma maior efetividade só será obtida se o processo de investigação ocorrer logo em seguida ao óbito. Para isso, é necessária a implantação de sistemas de informação de mortalidade infantil ágeis, descentralizados e desburocratizados.

A melhoria na qualidade e precisão dos dados, por sua vez, implica o aprimoramento do processo de preenchimento da Declaração de óbito, que está condicionada à execução de várias medidas: maior investimento em treinamento dos profissionais; maior ênfase no assunto durante o processo de formação do médico; revisão sistemática de casos; solicitação de esclarecimentos dos médicos que preencheram os atestados e discussão dos dados analisados com os profissionais que assistiram os pacientes. Estabelece-se, assim, um processo dinâmico que dará ao profissional um retorno do seu ato responsável de preencher as informações relativas ao óbito.

Nos prontuários hospitalares, a primeira questão é a própria existência de Serviços de Arquivo Médico e Estatística organizados, sem o que se inviabiliza a localização da informação. As observações sobre a qualidade do preenchimento remetem às mesmas medidas referidas para as informações de mortalidade.

É certo que todas essas medidas, se colocadas em prática, melhorariam a qualidade dos registros e, conseqüentemente, facilitariam a tarefa de administradores, planejadores, pesquisadores e tantos que se interessam em avaliar a qualidade dos serviços de saúde. É possível até afirmar que iriam incidir positivamente sobre a qualidade da própria atenção à saúde, uma vez que os registros são um reflexo desta, e a interferência sobre a sua qualidade propiciaria discussões e correções no processo de atendimento. Entretanto, é preciso lembrar que os principais problemas identificados têm origem na base da organização dos serviços, cuja precariedade é presumível, apesar das limitações da pesquisa. Assim, além da necessidade de se investir na melhoria da qualidade dos registros, é fundamental investir também na transformação do próprio sistema de saúde, para que óbitos precoces evitáveis deixem de ser maioria. Objetiva-se com isso garantir acesso mais oportuno aos serviços de saúde, maior articulação entre as unidades, efetivo sistema de referência e contra-referência, investimento em processos educativos e preventivos, melhoria das condições de atendimento mediante boa qualificação dos profissionais e maior acesso a recursos diagnósticos, entre outros aspectos.

Por fim, é importante registrar que a alteração de todo esse quadro só ocorrerá, efetivamente, a partir da transformação das insatisfatórias condições de vida dessas famílias, determinantes, em última instância, de grande parte das afecções que tiram prematuramente a vida de inúmeras crianças em Pau da Lima e no Brasil.

 

 

Referências

 

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