ARTIGO ARTICLE

 

Carlos Minayo-Gomez 1
Sonia Maria da Fonseca Thedim-Costa 1


A construção do campo da saúde do trabalhador: percurso e dilemas

History and dilemmas in the development of the worker's health field

 

1 Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz. Rua Leopoldo Bulhões 1480, Rio de Janeiro, RJ 21410-210, Brasil.   Abstract This article reflects on the theoretical and practical foundations impacting and shaping the field of workers' health in Brazil, as part of the overall field of collective health. By analyzing the various forms of approaching the relationship between work and health, the paper emphasizes its complex and conflicting nature as a central reference for the work process, in keeping with the premises of social medicine in Latin America. This focus underscores the need for interdisciplinary approaches contemplating and even extrapolating the links between areas of knowledge generally ascribed to the field of health. Finally, the paper gives a brief diagnosis of the current situation in this field, where pending questions join those resulting from globalization of the economy and particularly industrial restructuring, in light of which the challenge is raised to broaden the objects of study and intervention to include the implications of outsourcing, increasingly precarious labor conditions, informal labor, and unemployment on the population's health and living conditions.
Key words Worker's Health; Work; Social Medicine

 Resumo Realiza-se, neste artigo, uma reflexão sobre os fundamentos teóricos e práticos que influenciam e conformam o campo da Saúde do Trabalhador no Brasil, no interior da Saúde Coletiva. Ao analisar as diversas formas de conceber a relação trabalho-saúde, enfatiza-se a pertinência de interpretar essa relação, dada sua natureza complexa e conflitiva, tendo como referência central o processo de trabalho, em consonância com os pressupostos da Medicina Social latino-americana. Com base nesse enfoque, ressalta-se a necessidade de abordagens interdisciplinares que contemplem e extrapolem a articulação de áreas de conhecimento habitualmente adscritas ao âmbito da saúde. Finalmente, apresenta-se um breve diagnóstico da situação atual desse campo, onde questões pendentes unem-se às decorrentes da globalização da economia e, em particular, da reestruturação industrial. À luz desse quadro, coloca-se como desafio ampliar os objetos de estudo e intervenção, abrangendo, entre outras temáticas emergentes, as implicações para a saúde e a vida da população derivadas dos novos padrões de terceirização, da precarização do trabalho, do trabalho informal e do desemprego.
Palavras-chave Saúde do Trabalhador; Trabalho; Medicina Social

 

 

 

Introdução

 

Ao longo das duas últimas décadas, acompanhando o processo de democratização do País, vem tomando corpo uma série de práticas no âmbito da Saúde Pública, bem como em determinados setores sindicais e acadêmicos, que configuram o campo que passou a denominar-se Saúde do Trabalhador. Alguns estudos recuperam parte desse percurso (Dias, 1994; Lacaz, 1994), sistematizam experiências inovadoras (Costa et al., 1989; Pimenta & Capistrano, 1988) ou apontam as diferenças conceituais e teórico-metodológicas que o distinguem da Medicina do Trabalho e da Saúde Ocupacional (Tambellini, 1986; Mendes & Dias, 1991).

No entanto, cada vez mais, têm surgido temas, estudos, abordagens que, embora afetos à relação trabalho-saúde, apenas correspondem parcialmente ao que se entende por Saúde do Trabalhador. É uma área passível de abrigar diferentes aproximações e de incluir uma variedade de estudos e práticas de indiscutível valor, mesmo na ausência de uma adequada precisão conceitual sobre o caráter da associação entre o trabalho e o processo saúde-doença. Pode-se dizer que existe uma "zona de empatia", para a qual confluem diversos estudos disciplinares. Essas contribuições esclarecem determinadas questões de interesse, como alguns riscos ocupacionais em locais de trabalho ou em setores de uma categoria profissional, sem pretender dar resposta ao campo como tal. Trata-se de uma ampla produção que evitamos particularizar, mas se estende pelos Departamentos de Medicina Preventiva/Social, por Instituições de Saúde Pública/Saúde Coletiva e outras Faculdades de diversas áreas de conhecimento.

Torna-se desejável, entretanto, delimitar o arcabouço específico, um núcleo epistemológico que, sem rigidez, defina os conceitos fundamentais da área, tanto do ponto de vista teórico, como nas suas implicações para o desenvolvimento de estudos/pesquisas e o direcionamento da prática, à luz do processo econômico, social e político do País. Demarcar diferenças não significa desconhecer ou desmerecer a importância dos investimentos realizados para enfrentar situações ou analisar questões específicas da relação trabalho-saúde. Clarificar, porém, a dimensão processual da construção do campo pode "interfertilizar" toda essa "zona de empatia".

 

O trabalho e a saúde

 

A relação entre o trabalho e a saúde/doença - constatada desde a Antigüidade e exacerbada a partir da Revolução Industrial - nem sempre se constituiu em foco de atenção. Afinal, no trabalho escravo ou no regime servil, inexistia a preocupação em preservar a saúde dos que eram submetidos ao trabalho, interpretado como castigo ou estigma: o "tripalium", instrumento de tortura. O trabalhador, o escravo, o servo eram peças de engrenagens "naturais", pertences da terra, assemelhados a animais e ferramentas, sem história, sem progresso, sem perspectivas, sem esperança terrestre, até que, consumidos seus corpos, pudessem voar livres pelos ares ou pelos céus da metafísica (Nosela, 1989).

Com o advento da Revolução Industrial, o trabalhador "livre" para vender sua força de trabalho tornou-se presa da máquina, de seus ritmos, dos ditames da produção que atendiam à necessidade de acumulação rápida de capital e de máximo aproveitamento dos equipamentos, antes de se tornarem obsoletos.

As jornadas extenuantes, em ambientes extremamente desfavoráveis à saúde, às quais se submetiam também mulheres e crianças, eram freqüentemente incompatíveis com a vida. A aglomeração humana em espaços inadequados propiciava a acelerada proliferação de doenças infecto-contagiosas, ao mesmo tempo em que a periculosidade das máquinas era responsável por mutilações e mortes.

As propostas controvertidas de intervir nas empresas, àquela época, expressaram-se numa sucessão de normatizações e legislações, que tem no Factory Act, de 1833, seu ponto mais relevante, passando a tomar corpo, na Inglaterra, a medicina de fábrica.

A presença de um médico no interior das unidades fabris representava, ao mesmo tempo, um esforço em detectar os processos danosos à saúde e uma espécie de braço do empresário para recuperação do trabalhador, visando ao seu retorno à linha de produção, num momento em que a força de trabalho era fundamental à industrialização emergente. Instaurava-se assim o que seria uma das características da Medicina do Trabalho, mantida, até hoje, onde predomina na forma tradicional: sob uma visão eminentemente biológica e individual, no espaço restrito da fábrica, numa relação unívoca e unicausal, buscam-se as causas das doenças e acidentes.

Através dos tempos, a atuação do Estado no espaço do trabalho sustentou-se nas concepções dominantes sobre a causalidade das doenças. Essas concepções decorrem tanto da bagagem cumulativa de conhecimentos, como do seu caráter de práticas sociais, cujos marcos conceituais definem-se no bojo de relações peculiares aos diferentes contextos históricos onde surgem ou se mantêm.

Assim, a Medicina do Trabalho, centrada na figura do médico, orienta-se pela teoria da unicausalidade, ou seja, para cada doença, um agente etiológico. Transplantada para o âmbito do trabalho, vai refletir-se na propensão a isolar riscos específicos e, dessa forma, atuar sobre suas conseqüências, medicalizando em função de sintomas e sinais ou, quando muito, associando-os a uma doença legalmente reconhecida.

Como freqüentemente as doenças originadas no trabalho são percebidas em estágios avançados, até porque muitas delas, em suas fases iniciais, apresentam sintomas comuns a outras patologias, torna-se difícil, sob essa ótica, identificar os processos que as geraram, bem mais amplos que a mera exposição a um agente exclusivo. A rotatividade da mão-de-obra, sobretudo quando se intensifica a terceirização, representa um obstáculo a mais nesse sentido. A passagem por processos produtivos diversos pode mascarar nexos causais e diluir a possibilidade de estabelecê-los, excetuando-se os mais evidentes e considerada a hipótese remota de exames admissionais que levem em conta a história laboral pregressa, numa perspectiva ainda mais remota de alimentar um processo de vigilância em saúde do trabalhador. A constatação de doenças na seleção da força de trabalho funciona, na prática, como um recurso para impedir o recrutamento de indivíduos cuja saúde já esteja comprometida.

A Saúde Ocupacional avança numa proposta interdisciplinar, com base na Higiene Industrial, relacionando ambiente de trabalho-corpo do trabalhador. Incorpora a teoria da multicausalidade, na qual um conjunto de fatores de risco é considerado na produção da doença, avaliada através da clínica médica e de indicadores ambientais e biológicos de exposição e efeito. Os fundamentos teóricos de Leavell & Clark (1976), a partir do modelo da História Natural da Doença, entendem-na, em indivíduos ou grupos, como derivada da interação constante entre o agente, o hospedeiro e o ambiente, significando um aprimoramento da multicausalidade simples.

Mesmo assim, se os agentes/riscos são assumidos como peculiaridades "naturalizadas" de objetos e meios de trabalho, descontextualizados das razões que se situam em sua origem, repetem-se, na prática, as limitações da Medicina do Trabalho. As medidas que deveriam assegurar a saúde do trabalhador, em seu sentido mais amplo, acabam por restringir-se a intervenções pontuais sobre os riscos mais evidentes. Enfatiza-se a utilização de equipamentos de proteção individual, em detrimento dos que poderiam significar a proteção coletiva; normatizam-se formas de trabalhar consideradas seguras, o que, em determinadas circunstâncias, conforma apenas um quadro de prevenção simbólica. Assumida essa perspectiva, são imputados aos trabalhadores os ônus por acidentes e doenças, concebidos como decorrentes da ignorância e da negligência, caracterizando uma dupla penalização (Machado & Minayo-Gomez, 1995).

Em síntese, apesar dos avanços significativos no campo conceitual que apontam um novo enfoque e novas práticas para lidar com a relação trabalho-saúde, consubstanciados sob a denominação de Saúde do Trabalhador, depara-se, no cotidiano, com a hegemonia da Medicina do Trabalho e da Saúde Ocupacional. Tal fato coloca em questão a já identificada distância entre a produção do conhecimento e sua aplicação, sobretudo num campo potencialmente ameaçador, onde a busca de soluções quase sempre se confronta com interesses econômicos arraigados e imediatistas, que não contemplam os investimentos indispensáveis à garantia da dignidade e da vida no trabalho.

No Brasil, esta situação se agrava pela incapacidade do setor saúde do Estado em reabsorver seu papel de intervir no espaço do trabalho. Esta tarefa, prevista na Reforma Carlos Chagas, de 1920 - interrompida com a criação, em 1930, do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, que passou a assumi-la - foi resgatada na Carta Constitucional de 1988 e regulamentada pela Lei 8080. No entanto, as marcas de um passado recente não são facilmente removíveis.

As Delegacias Regionais do Trabalho advogam, em vários estados, a exclusividade de sua competência para inspecionar os centros produtivos. Essa posição, de um modo geral, encontra eco nos segmentos mais conservadores do patronato, na medida em que tais inspeções, orientadas por um modelo tradicional, pontuais e técnico-burocratas, incapazes de alimentar um sistema de vigilância em saúde do trabalhador, servem aos seus propósitos ao não promoverem mudanças significativas.

Da mesma forma, os Serviços Especializados em Segurança e Medicina do Trabalho - SESMT -, instituídos em 1978, com algumas exceções, desviam-se da função de reconhecer, avaliar e controlar as causas de acidentes e doenças. Seus profissionais - assalariados pela empresa e sem respaldo legal para contrariarem-lhe os interesses - restringem-se à adoção de medidas paliativas diante dos riscos mais patentes.

A deficiência na formação de recursos humanos na área, conseqüência da marginalidade ainda atribuída à questão trabalho-saúde, aliada à generalizada insatisfação profissional, reproduz na rede pública a prática ineficaz dos SESMT, presente também em serviços conveniados com as empresas e com o próprio sistema público de saúde.

Essa desintegração, expressa em ações fragmentadas, desarticuladas e superpostas de instituições com responsabilidade direta ou indireta na área - agravada por conflitos de concepções e práticas, bem como de interpretação sobre competências jurídico-institucionais -, revela a trajetória caótica do Estado em sua função de promover a saúde do cidadão que trabalha. Apenas o esforço isolado de profissionais que se articulam em programas de saúde do trabalhador, centros de referência e atividades de vigilância realmente efetivas abre um rastro de luz nesse universo sombrio. Mas sua atuação é marcada, repetidamente, pela descontinuidade, quer por pressões externas dos que se sentem ameaçados em seu poder de tratar vidas humanas desgastadas pelo trabalho como rejeitos do processo produtivo, quer pela sucessão de novas administrações que não priorizam esses investimentos.

Por outro lado, a essa forma inconseqüente de lidar com a saúde e a vida, une-se a resistência dos indivíduos em aceitar a condição de doentes. O medo de perder o emprego - garantia imediata de sobrevivência - aliado aos mais variados constrangimentos que marcam a trajetória do trabalhador doente, "afastado" do trabalho, mascara, em muitos casos, a percepção dos indícios de comprometimento da saúde ou desloca-os para outras esferas da vida, inibindo ou protelando, freqüentemente, ações mais incisivas de reivindicação às instâncias responsáveis pela garantia da saúde no trabalho.

No entanto, a evidência dos efeitos do trabalho em condições adversas é de tal ordem que extrapola os limites do conhecimento legitimado como científico e ganha espaço no âmbito do senso comum. É uma relação dada e inquestionável. Faz parte da vivência de trabalhadores, vítimas de doenças e acidentes, mesmo quando não obtêm êxito em comprovar sua origem na atividade exercida. Reconhecem-na suas famílias, onde tais situações repercutem, em alguns casos, de forma drástica, e os companheiros que com eles compartilham esse quadro de desrespeito e omissão. Identifica-a também, em certa medida, a população em geral, inclusive porque o tema vem assumindo relevância nos meios de comunicação.

Expressa-se, ainda, no número alarmante de agravos à saúde de todas as ordens, mesmo que subnotificados, por razões que vão do intuito claro em escamoteá-los aos atalhos do descaso por onde se perde significativa parcela das Comunicações de Acidentes de Trabalho - CAT, das informações constantes nos registros de óbitos e em outros instrumentos capazes de configurar um panorama mais preciso dos impactos do trabalho sobre a saúde e de possibilitar ações mais eficazes de vigilância e intervenção.

Mesmo assim, não restam dúvidas de que as inserções diferenciadas dos indivíduos nos processos produtivos, quer no meio urbano, quer no rural, definem padrões também diversificados de morbi-mortalidade, para os quais contribuem outros fatores decorrentes das condições de vida a que estão submetidos. Dessa forma, no mundo do trabalho, revela-se a imensa gama de diferenças presentes na sociedade, onde tendem a reproduzir-se, inclusive em seus antagonismos.

 

O campo da Saúde do Trabalhador

 

A área de Saúde do Trabalhador, no Brasil, tem uma conotação própria, reflexo da trajetória que lhe deu origem e vem constituindo seu marco referencial, seu corpo conceitual e metodológico. A princípio é uma meta, um horizonte, uma vontade que entrelaça trabalhadores, profissionais de serviços, técnicos e pesquisadores sob premissas nem sempre explicitadas. O compromisso com a mudança do intrincado quadro de saúde da população trabalhadora é seu pilar fundamental, o que supõe desde o agir político, jurídico e técnico ao posicionamento ético, obrigando a definições claras diante de um longo e, presumidamente, conturbado percurso a seguir. Um percurso próprio dos movimentos sociais, marcado por resistência, conquistas e limitações nas lutas coletivas por melhores condições de vida e de trabalho; pelo respeito/desrespeito das empresas à questionável legislação existente e pela omissão do Estado na definição e implementação de políticas nesse campo, bem como sua precária intervenção no espaço laboral.

Essa nova compreensão surge, em sua singularidade, num contexto conjuntural caracterizado pela confluência de movimentos sociais e políticos, de onde emergiam novos projetos de sociedade e novas estratégias de ação que influenciavam e eram influenciados pela produção intelectual.

A saúde dos trabalhadores se torna questão na medida em que outras questões são colocadas no País. Manifesta-se no âmago da construção de uma sociedade democrática, da conquista de direitos elementares de cidadania, da consolidação do direito à livre organização dos trabalhadores. Envolve, especificamente, o empenho tanto de setores sindicais atuantes frente a determinadas situações mais problemáticas das suas categorias, quanto ações institucionais em instâncias diversas conduzidas por profissionais seriamente comprometidos em sua opção pelo pólo trabalho.

Em síntese, por Saúde do Trabalhador compreende-se um corpo de práticas teóricas interdisciplinares - técnicas, sociais, humanas - e interinstitucionais, desenvolvidas por diversos atores situados em lugares sociais distintos e informados por uma perspectiva comum. Essa perspectiva é resultante de todo um patrimônio acumulado no âmbito da Saúde Coletiva, com raízes no movimento da Medicina Social latino-americana e influenciado significativamente pela experiência italiana. O avanço científico da Medicina Preventiva, da Medicina Social e da Saúde Pública, durante os anos 60 e o início da década de 70, ao suscitar o questionamento das abordagens funcionalistas, ampliou o quadro interpretativo do processo saúde-doença, inclusive em sua articulação com o trabalho. Reformula-se o entendimento "das relações entre o social e as manifestações patológicas, a categoria trabalho aparecendo como momento de condensação, em nível conceitual e histórico, dos espaços individual (corporal) e social" (Donnangelo, 1983: 32). Na crítica ao modelo médico tradicional, atinge-se a compreensão de que "a medicina não apenas cria e recria condições materiais necessárias à produção econômica, mas participa ainda da determinação do valor histórico da força de trabalho e situa-se, portanto, para além dos seus objetivos tecnicamente definidos" (Donnangelo, 1979:34).

Nesse contexto de reflexão crítica quanto à limitação dos modelos vigentes, criam-se os alicerces para o surgimento dessa nova forma de apreender a relação trabalho-saúde, de intervir nos ambientes de trabalho e conseqüentemente de introduzir, na Saúde Pública, práticas de atenção à saúde dos trabalhadores, no bojo das propostas da Reforma Sanitária Brasileira. Configura-se um novo paradigma que, com a incorporação de alguns referenciais das Ciências Sociais - particularmente do pensamento marxista -, amplia a visão da Medicina do Trabalho e da Saúde Ocupacional.

1) Enquanto campo de conhecimento, Saúde do Trabalhador é, por isso, uma construção que combina um alinhamento de interesses, em determinado momento histórico, onde as questões, politicamente colocadas, adquirem relevância e há condições intelectuais para discuti-las e enfrentá-las sob os pontos de vista científico e epistemológico. Como todo campo científico vem mediado por relações sociais, "é sempre um lugar de luta, mais ou menos desigual entre agentes dotados de capital específico e, portanto, desigualmente capazes de se apropriarem do trabalho científico" (Ortiz, 1983:136). Nele estão presentes, de forma latente ou explícita, as contradições que marcam as relações entre capital e trabalho e que permeiam as concepções, relações de força, monopólios, estratégias e práticas dos profissionais com atribuições e compromissos diferenciados na área. Como diria Bourdieu, transitar em um terreno notadamente ético-político obriga a definir posições e desmitificar a idéia de uma ciência neutra como "ficção interessada, que permite passar por científica uma forma neutralizada e eufêmica, particularmente eficaz simbolicamente porque particularmente irreconhecível da representação dominante do mundo social" (Ortiz, 1983:148). Essa natureza social da produção do saber impõe, para agentes e instituições, a legitimação na comunidade científica, enquanto unidade produtora e legitimadora do conhecimento científico (Khun, 1978). Instaurar o novo paradigma implica, por conseguinte, enfrentar e extrapolar as concepções tecnicistas hegemônicas nessa área especializada da medicina e da engenharia. Concepções consolidadas que fornecem soluções modelares, reproduzidas na formação de profissionais e sustentadas por volumosos recursos econômicos e técnicos. O conflito adquire dimensões extremas no momento de intervir nos centros de trabalho. É ilustrativa, nesse sentido, a necessidade de acionar o Ministério Público para vencer a resistência de determinadas empresas que, fortalecidas pelo beneplácito do órgão que tradicionalmente reconhecem para a inspeção, recusam-se a aceitar outros parâmetros de vigilância em saúde do trabalhador.

Como campo de práxis, de produção de conhecimentos orientados para uma ação/intervenção transformadora, a Saúde do Trabalhador defronta-se continuamente com questões emergentes, que impelem à definição de novos objetos de estudo, contemplando demandas explícitas ou implícitas dos trabalhadores. É, portanto, uma área em permanente construção, configurada numa trama de relações que reflete - na dinâmica própria dos diversos atores sociais e das lógicas que direcionam sua ação - consciências e vontades individuais e coletivas.

Constitui-se, conseqüentemente, em arena de conflitos e entendimentos formalizados ou pactuados entre empresas, trabalhadores e instituições públicas frente a situações-problema, colocando em jogo, além da identificação de sua real origem, a capacidade de negociação para enfrentá-las. O reconhecimento, pelas empresas, da legitimidade dos interlocutores institucionais e da representação dos trabalhadores é uma premissa desse processo. A garantia de um desfecho favorável condiciona-se à junção do conhecimento técnico com o saber/experiência dos trabalhadores na procura e adoção de medidas impreteríveis, que evoluam para atingir soluções decisivas quanto aos agravos à saúde constatados. Não se trata apenas de obter adicional de insalubridade ou periculosidade ("monetarizar riscos"), de instalar equipamentos de proteção, de diagnosticar nexos causais entre o trabalho e a saúde com vistas a obter benefícios da previdência social, embora tais procedimentos possam representar etapas de uma luta maior que é chegar às raízes causadoras dos agravos, à mudança tecnológica ou organizativa que preside os processos de trabalho instaurados.

A escassa representação sindical nos locais de trabalho é um dos entraves mais imediatos nesse sentido. Alguns avanços foram conseguidos pela criação de comissões de diversos tipos e por entendimentos com setores empresariais minoritários que vêm atenuando a cultura autoritária de gerenciamento. Um suporte expressivo nesse sentido foi apontado na II Conferência Nacional de Saúde do Trabalhador: a substituição das Comissões Internas de Prevenção de Acidentes - CIPA - por Comissões de Saúde, e a conseqüente reformulação no que tange tanto a sua representatividade - eleição direta para todos os membros -, como a suas atribuições, que contemplariam "interferir nas formas de produção e organização do trabalho; garantir o direito de informação sobre matérias de saúde, segurança e meio ambiente a todos os trabalhadores; garantir o direito de recusa, de embargo e interdição frente aos riscos que afetam a integridade física e/ou psíquica dos trabalhadores" (CNST, 1994:32).

Foi necessário um grande empenho de trabalhadores e técnicos para conseguir o reconhecimento de determinadas doenças profissionais e eliminar ou controlar alguns riscos.

Em âmbito nacional, começam a se realizar acordos tripartites referentes ao uso do amianto, à abolição do benzeno nas indústrias do setor alcooleiro e à implantação de programas de prevenção nas demais empresas que o utilizam (Freitas, 1995), apesar dos previsíveis empecilhos na concretização de decisões desse porte. No plano estadual, cabe mencionar, entre outros, a convenção coletiva da indústria plástica de São Paulo sobre a adequação das máquinas injetoras, responsáveis pelo maior número de acidentes nessa categoria; a proibição do jateamento de areia na indústria naval e do mercúrio na indústria de cloro-soda no Rio de Janeiro.

Configura-se, assim, um complexo tabuleiro de peças que se ajustam ou se repelem, demandando estratégias diferenciadas, em função das conjunturas locais, regionais ou nacionais. Obter restritas, porém significativas, conquistas requer, habitualmente, enfrentar um caminho controverso em sua essência, ao longo do qual a contribuição das instituições acadêmicas é, sem dúvida, um imperativo. A incorporação de conhecimentos da Medicina do Trabalho e da Saúde Ocupacional, a aplicação das normas limitadas da Higiene e Segurança do Trabalho fazem parte desse trajeto, numa perspectiva permanente de definição de marcos conceituais e práticas que exprimam uma visão totalizante do ser humano em sua relação com o trabalho.

2) Enquanto campo de investigação, a Saúde do Trabalhador adota determinados métodos de análise, conceitualizações ou "approaches". Aplica seu instrumental analítico, segundo procedimentos que representam etapas sucessivas de aproximação a um problema ou conjunto de problemas. Tal prática teórica se justifica por tratar-se de uma área de estudo/intervenção que desafia a capacidade explicativa simples, exigindo uma teorização dialética e complexa, particularmente quando se ultrapassam os muros das unidades/locais de trabalho.

A tarefa inicial é encontrar as respostas possíveis para os confrontos inadiáveis, considerando os entraves econômicos, as alternativas tecnológicas/organizacionais, os diversos planos conjunturais que condicionam/possibilitam as mudanças necessárias. A perspectiva última representaria a superação dos limites impostos por uma concepção primordialmente securitária, voltada para a obtenção de benefícios concedidos a trabalhadores doentes ou acidentados. Por um lado, essa possibilidade é remota para um grande contingente de trabalhadores, submetidos a uma legislação que apenas reconhece como doenças profissionais as inerentes ou peculiares a determinados ramos de atividades que constam na lista oficial do Ministério do Trabalho - que a rigor não se refere a patologias, mas a agentes patológicos - e as resultantes das condições especiais ou excepcionais em que o trabalho é realizado. Mais grave, ainda, são os entraves existentes na concessão dos parcos benefícios para aqueles afetados por esse conjunto restrito de doenças cujo nexo causal é aceito, ou os obstáculos para estabelecê-lo nas mesopatias sabidamente desencadeadas e/ou agravadas pelo exercício do trabalho. Por outro lado, o enfoque securitário, ao cingir-se à significação negativa do trabalho, entendido como punição, nega-lhe as potencialidades para realização do ser e o desenvolvimento de suas capacidades. Omitem-se, dessa forma, os componentes humanizadores do trabalho, que deveriam ter presença assegurada na formulação e desenvolvimento de programas direcionados à promoção da saúde dos trabalhadores.

As estratégias de pesquisa dependem das características das instituições onde se desenvolvem e do grau de consolidação dos grupos de investigação. Guardam certa aproximação das concepções de Bulmer (1978) sobre pesquisa básica, de inteligência, estratégica e operacional. O grau de envolvimento entre trabalhadores e técnicos/instituições pode conduzir a formas aproximativas de pesquisa participante ou pesquisa-ação.

A referência central para o estudo dos condicionantes da saúde-doença é o processo de trabalho, conceito recuperado, nos anos 70, das idéias expostas por Marx, particularmente no Capítulo VI Inédito de O Capital (Marx, 1978). Na interseção das relações sociais e técnicas que o configuram, expressa-se o conflito de interesses entre o trabalho e o capital, que, além de ter sua origem na propriedade dos meios de produção e na apropriação do valor-produto realizado, consuma-se historicamente através de formas diversas de controle sobre o próprio processo de produção. Esse controle exercido no interior das unidades produtivas, por meio de velhos ou novos padrões de gestão da força de trabalho, respectivamente, taylorismo, fordismo e neotaylorismo, pós-fordismo, toyotismo, redunda na constituição de coletivos diferenciados de trabalhadores e de uma multiplicidade de agravos potenciais à saúde. Desvendar a dinâmica dessas situações implica um empenho permanente de aproximação-teorização, capaz de ampliar a interpretação de um quadro aparentemente dado e imutável, que condiciona ou determina a formulação de alternativas tecnológicas/organizacionais, cujas repercussões não se restringem aos centros de trabalho.

A aplicação desse instrumental analítico, dirigida mais especificamente ao trabalho industrial (Brighton Labour Group, 1991), requer adaptações para a compreensão de outros setores econômicos. Na área de serviços, por exemplo, a partir do processo de trabalho, podem observar-se vários elementos análogos às relações estabelecidas no trabalho industrial, mas o componente de alta significância, definidor de suas atividades, é a relação que se estabelece entre os trabalhadores e os clientes/usuários/consumidores. Adequações semelhantes cabem também no estudo de outros segmentos não diretamente determinados pela lei do valor ou que não impliquem formalmente trabalho assalariado. Enquanto construção histórica, permite apreender as permanências e as transformações atuais que geram novas formas de organizar o trabalho, em função das necessidades de acumulação e do dinamismo da sociedade de mercado. Em conseqüência, é possível interpretar suas implicações no novo tipo de trabalhador que é forjado - qualificado, polivalente, terceirizado em níveis diversos, com vínculos precários - e no crescimento do mercado informal, bem como no contingente de excluídos social e economicamente.

A apropriação do conceito "processo de trabalho" como instrumento de análise possibilita reformular as concepções ainda hegemônicas que ao, estabelecerem articulações simplificadas entre causa e efeito, numa perspectiva uni ou multicausal, desconsideram a dimensão social e histórica do trabalho e da saúde/doença. Tais concepções, mesmo quando incluem variáveis sócio-econômicas, na tentativa de aprimorar a compreensão das razões do adoecimento, revestem-se de um caráter reducionista, na medida em que o social é um elemento a mais, dentre os fatores de risco. "Os fatores de risco de adoecer e morrer são considerados com o mesmo valor potencial de agressão ao homem" (Mendes & Dias, 1991: 345); homogeneizados, apesar de sua natureza diferenciada; sem a devida hierarquização (Facchini, 1994). Dessa forma, indivíduo e ambiente são apreendidos na sua exterioridade, ignorando-se sua historicidade e o contexto que circunstancia as relações de produção materializadas em condições específicas de trabalhar, geradoras ou não de agravos à saúde.

3) A Saúde do Trabalhador é, por natureza, um campo interdisciplinar e multiprofissional. As análises dos processos de trabalho, pela sua complexidade, tornam a interdisciplinaridade uma exigência intrínseca que necessita "ao mesmo tempo, preservar a autonomia e a profundidade da pesquisa em cada área envolvida e de articular os fragmentos de conhecimento, ultrapassando e ampliando a compreensão pluridimensional dos objetos" (Minayo, 1991:71).

Nenhuma disciplina isolada consegue contemplar a abrangência da relação processo trabalho-saúde em suas múltiplas e imbricadas dimensões: desde as razões sócio-históricas que lhe dão origem à forma como se concretizam nos espaços de trabalho. Impõe-se, portanto, a convergência de pesquisadores que - imbuídos de uma ética que dá significado à tarefa de pensar para transformar - sejam capazes de estabelecer conexões e correspondências entre as parcelas de conhecimento que suas disciplinas aportam, na construção de uma proposta comum. É o próprio confronto com o real que, ao evidenciar possibilidades e limites/incertezas de cada disciplina, impele ao entendimento entre os saberes. Esse entendimento tem por premissa a substituição do "princípio da hierarquia" entre as ciências/saberes pelo "princípio da cooperação". Trata-se, portanto, de construir uma cultura que, sob o imperativo do diálogo, da interação, do questionamento recíproco, permita, numa aproximação à filosofia do agir comunicativo (Habermas, 1988), a fluidez entre as diferentes linguagens.

Fixa-se como horizonte criar condições favoráveis para que os conhecimentos da Clínica, da Engenharia, da Toxicologia, da Ergonomia, da Epidemiologia e das Ciências Sociais e Humanas, frente à necessidade de responder a demandas concretas, sejam capazes, concomitantemente, de fortificarem-se em seu campo particular e flexibilizarem suas fronteiras, estabelecendo interfaces entre seus diversos corpos conceituais/metodológicos e engendrando novas práticas que ensejem formas mais abrangentes e totalizadoras de aproximar-se da realidade.

Incorporar o referencial de outras disciplinas torna mais profícuo o olhar de cada uma delas sobre o mesmo objeto e a resultante ultrapassa a soma de enfoques isolados. Nessa perspectiva, o quantitativo não se opõe ao qualitativo, o mensurável não nega o imensurável, os determinantes imediatos não são descontextualizados dos gerais, o saber teórico dos técnicos se abre à contribuição do conhecimento tecido no cotidiano dos trabalhadores.

Na prática, porém, esse esforço de entender para intervir no processo de trabalho em relação com a saúde e a doença encontra barreiras arraigadas de compatibilização dos conceitos. Obriga a superar todo um passado de fragmentação da realidade, reproduzido na formação dos profissionais desde a graduação, que se reflete na tendência à manutenção de ilhas de saber/poder e no receio diante da possibilidade de construir pontes entre as diversas áreas de conhecimento. Entretanto, quando se persegue a construção coletiva do saber, com todas as dificuldades a ela inerentes, ultrapassam-se muitas das limitações próprias da interdisciplinaridade assumida, numa tarefa solitária, por um pesquisador individual.

Os avanços nessa direção começam a evidenciar-se. Por um lado, os cursos de pós-graduação lato sensu e stricto sensu, de caráter multiprofissinal, instituídos no âmbito da Saúde Coletiva vêm construindo um terreno propício à crítica de visões tecnicistas e reducionistas ainda prevalentes na área. Por outro, mesmo as pesquisas multidisciplinares num campo constituído predominantemente por profissionais de formação médico-epidemiológica representam passos significativos no caminho da interdisciplinaridade. O surgimento de algumas propostas institucionais que estimulam a construção e amadurecimento de equipes de pesquisadores de formações diversas tem demonstrado a potencialidade dessa nova perspectiva de investigação/ação. Mas tal potencialidade pode ficar comprometida diante de alguns equívocos, tais como: a incorporação, sem o devido rigor, dos conceitos de outras disciplinas; a polissemia de noções comuns que, por sua falsa aparência de transitividade, escondem as profundas diferenças que as separam; a substituição pura e simples de análises fragmentadas por sínteses simplificadoras.

O tratamento interdisciplinar implica a tentativa de estabelecer e articular dois planos de análise: o que contempla o contorno social, econômico, político e cultural - definidor das relações particulares travadas nos espaços de trabalho e do perfil de reprodução social dos difererentes grupos humanos - e o referente a determinadas características dos processos de trabalho com potencial de repercussão na saúde. Entre os conceitos e noções extraídos dessas características, encontram-se os classificatórios de risco - fundamentalmente associados às propriedades materiais e mensuráveis quantitativamente dos objetos, meios e ambientes de trabalho - e os de exigências ou requerimentos, que dizem respeito a componentes mais qualitativos derivados da organização do trabalho. Embora esses conceitos sejam complementares e inseparáveis, numa visão ampla de ambiente de trabalho, as concepções legais e as práticas hegemônicas acabam por focalizar predominantemente no ambiente físico as situações capazes de defini-lo como insalubre ou perigoso. Já a noção de penosidade (Sato, 1991), ao vincular os esforços exigidos, particularmente pela organização do trabalho, ao contexto geral do trabalho, aponta para uma nova leitura, que vem contrapor-se a um reducionismo que desconsidera componentes essenciais à apreensão do trabalho humano em sua integralidade.

Laurell & Noriega (1989), no intuito de distanciarem-se do conceito de risco, por considerarem-no insuficiente para apreender a lógica global do processo de trabalho, utilizam-se do que denominam categoria carga de trabalho - abarcando tanto as físicas, químicas e mecânicas quanto as fisiológicas e psíquicas - que interatuam dinamicamente entre si e com o corpo do trabalhador. Assinalam, no entanto, que estas últimas "não têm materialidade visível externa ao corpo humano", apontando, sem sistematizar, os componentes do processo de trabalho capazes de gerá-las. Posteriormente, Noriega (1993) passa a atribuir às exigências - enquanto requerimentos decorrentes da organização do trabalho e da atividade do trabalhador - um papel relevante na conformação dos perfis de saúde-doença dos coletivos de trabalhadores, ao distingui-las dos riscos, relacionados aos objetos e meios de trabalho.

Para melhor compreender como riscos ou cargas e exigências se manifestam concretamente nos processos de trabalho, é pertinente o instrumental desenvolvido pela corrente francesa da Ergonomia Situada (Vidal, 1995), com base na distinção entre tarefa prescrita e atividade real. Essa distinção, previsível, diante da variabilidade de condições de trabalho, ocorre sobretudo em face de situações que exigem a interferência constante dos trabalhadores para manter a continuidade da produção ou prevenir eventos acidentários. Um processo de investigação que objetive formular propostas de transformação requer um minucioso trabalho empírico que capte e potencialize o saber e os processos psíquicos mobilizados na atividade. Embora não voltado diretamente para o campo da saúde, esse enfoque vai trazer-lhe uma contribuição singular, ao permitir uma aproximação efetiva para ir desvendando o enigma do trabalho.

A conotação dada a esses conceitos ou noções mediadores do processo de trabalho conduz a interpretações diferenciadas, complementares ou não, de suas repercussões individuais e/ou coletivas para a saúde. Se predominam os referentes às condições materiais, terão ênfase determinados agentes capazes de ocasionar patologias diagnosticadas por critérios clínicos e toxicológicos. Se o foco de atenção volta-se prioritariamente para os aspectos ligados à organização do trabalho, aparecem com maior significância os efeitos de caráter psicossocial.

Os postulados da Psicopatologia do Trabalho ou, mais recentemente, da Psicodinâmica do Trabalho (Dejours & Abdoucheli, 1994) abrem novas perspectivas superadoras da visão monolítica e restritiva da nocividade do trabalho que induz a caminhar pelo terreno das afecções mentais. Em contrapartida, buscam desvelar na organização real do trabalho as estratégias adaptativas intersubjetivas, de defesa/oposição, latentes na tensão entre a procura de prazer/reconhecimento dos sujeitos e os constrangimentos externos impostos, independentemente de suas vontades, pelas situações de trabalho. As manifestações patológicas de sofrimento são a expressão do fracasso dessa mobilização subjetiva. Sob esse prisma, caberia entender a dimensão psicossocial da noção de desgaste - enquanto "perda da capacidade potencial e/ou efetiva corporal e psíquica" (Laurell & Noriega, 1989:110) -, embora esses autores afirmem, ao referir-se às cargas psíquicas, que estas dizem respeito sobretudo às manifestações somáticas e não tanto às psicodinâmicas.

A aplicação desse conjunto de conceitos e noções mediadoras possibilita diversas formas de tratamento para identificar situações de exposição de grupos/categorias/setores e seus efeitos potenciais ou reais sobre a saúde, configurando perfis epidemiológicos diferenciados. A conformação desses agrupamentos, em suas homogeneidades e diferenciações internas, vem condicionada à adoção de estratégias que combinem abordagens quantitativas e qualitativas.

Finalmente, uma premissa metodológica é a interlocução com os próprios trabalhadores, depositários de um saber emanado da experiência e sujeitos essenciais quando se visa a uma ação transformadora. O reconhecimento desse saber/poder foi o sustentáculo do "Modelo Operário Italiano" (Oddone, 1986), que emergiu no bojo do dinamismo dos movimentos sociais, em finais dos anos 70, tendo como foco particular a mudança e o controle das condições de trabalho nas unidades produtivas. A não-delegação, expressa pela recusa em transferir para técnicos ou representantes sindicais a tarefa de sistematizar o conhecimento obtido pelos grupos submetidos às mesmas condições de trabalho - grupos homogêneos - e a validação consensual, resultante da discussão coletiva das avaliações que pautariam os processos reivindicatórios, constituíram-se nos pressupostos básicos desse modelo. Paradigmático à época em que foi concebido, mesmo confrontadas as potencialidades e limitações de um enfoque centrado eminentemente na experiência-subjetividade operária, serve de contraponto a formas hegemônicas de construção de conhecimento e intervenção nos locais de trabalho. Se tentar estendê-lo, na sua íntegra, a outros contextos históricos é inviável, inspirar-se em sua essência é um caminho fértil, desde que estabelecidos elos de complementaridade entre o saber procedente da prática cotidiana e a produção teórica gerada em outros espaços onde se reflete sobre o mundo do trabalho.

 

A problemática atual

 

Inicialmente, cabe ressaltar que a concepção de Saúde do Trabalhador e a própria prática a ela inerente orientaram-se, de forma predominante, para o trabalho industrial, tendo como referência um modelo que, em virtude das profundas transformações recentes, também precisa ser repensado. Depara-se, no momento atual, com um quadro em que convivem situações mais evidentes da violência do trabalho, não resolvidas ou parcialmente enfrentadas - como pneumoconioses, doenças provenientes de riscos físicos, intoxicações crônicas e agudas, associadas à utilização de tecnologias obsoletas e de substâncias banidas do mundo desenvolvido, bem como a formas de organização do trabalho que desconsideram a necessidade de contemplar e expandir as potencialidades humanas -, com as decorrentes de uma nova lógica produtiva, marcada pela globalização da economia.

As imposições do mercado internacional quanto à qualidade de produtos e processos produtivos, numa economia extremamente competitiva, induzem a uma reestruturação industrial flexível, que alia automação e outros avanços tecnológicos a novas modalidades organizacionais e de gestão/controle da força de trabalho. Essas mudanças significativas na cultura de produzir apontam para melhorias no ambiente e nas relações de trabalho, para um grau maior de participação e envolvimento, mas demandam um trabalhador qualificado/polivalente, condizente com um repertório de habilidades e comportamentos. Interpretar as repercussões desses compromissos e exigências, cujos potenciais impactos são mais sutis, particularmente do ponto de vista psicossomático, é uma tarefa ainda a ser realizada.

A maior repercussão da política de reconversão industrial, não obstante, diz respeito aos destinos da força de trabalho, à sua redução seletiva e reacomodação espúria, por meio de novos padrões de terceirização e subcontratação; à precarização do trabalho e à progressiva exclusão, do mercado formal, de trabalhadores cujo perfil não se ajusta às recentes imposições ou cujos corpos estão precocemente lesados. Esse contingente de trabalhadores desprotegidos, ignorados pelas empresas, em constante rotação, sem direito à assistência e ao controle de sua saúde ou sem reconhecimento da condição de cidadão-trabalhador doente, representa um dos grandes desafios para a investigação e intervenção no âmbito da Saúde do Trabalhador.

À deteriorização do trabalho aliam-se propostas de flexibilidade nos contratos laborais, sob meros ditames do mercado, socialmente inaceitáveis. Constituem-se em alternativas para diminuir encargos sociais das empresas e absorver setores da população desempregada, sem proteção ou garantias, impondo-lhes o ônus da insegurança e agravando as desigualdades. Trata-se de uma solução que não dá conta da questão estrutural do desemprego. No Brasil, temos hoje cerca de 4,4 milhões de desempregados, considerando a taxa de desemprego de 6,2% registrada pela última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio, em 1993. Esse quadro é mais preocupante se consideradas as previsões do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que estimam seu crescimento acelerado, baseadas no que vem ocorrendo em países como Israel e Argentina, a partir dos primeiros anos após a adoção da âncora cambial para baratear importações e segurar os preços internos.

O direito ao trabalho é a demanda mais crucial e complexa do momento presente. Garanti-lo reverteria significativamente os constatados reflexos do desempregro sobre a saúde da população trabalhadora e de suas famílias. Discute-se, por um lado, que o trabalho está se exaurindo na sociedade do trabalho, ou se questiona a centralidade do trabalho produtivo (Offe, 1989). Por outro, reconhece-se a significância do trabalho, não apenas como condição de sobrevivência, mas por situar-se na própria gênese da sociabilidade humana. Enquanto isso, os ajustamentos à nova economia global, particularmente em países como o Brasil, têm acontecido às custas de uma deteriorização das condições sociais e de um hiato, cada vez maior entre os grupos, no perfil de distribuição de renda. O Estado, em sintonia com um ambiente político pautado na liberação das forças do mercado, tende a se afastar de intervenções significativas no âmago das relações de produção hegemônicas, onde se localizam as principais fontes para o enfrentamento abrangente da crise social. Em conseqüência, as maiores parcelas de recursos provenientes de segmentos da classe trabalhadora passam a ser geridos pela iniciativa privada. Parte desse acervo, nos cofres empresariais, é negociado junto a várias redes de serviços médicos de questionável eficácia.

Está, ainda, por ser estabelecido um compromisso social claro que, objetivando se contrapor à redução do papel institucional e regulatório do Estado, encontre um equilíbrio entre os imperativos do mercado e os legítimos direitos ao trabalho, à segurança e proteção social. Organizações políticas e da sociedade civil, inclusive as de classe - apesar do caráter corporativo presente em suas práticas -, podem desempenhar um papel expressivo na formulação e defesa das alternativas viáveis.

A mobilização dos segmentos exluídos/despossuídos, sua afirmação como sujeitos sociais, potencialmente capazes de "assumir ações mais ousadas, uma vez que (...) não têm mais nada a perder no universo da sociabilidade do capital" (Antunes, 1995:90), impulsionaria, por certo, a procura de maior eqüidade no direcionamento das soluções. No contexto atual, extremamente desfavorável ao pólo trabalho e, em virtude da fragilidade na aglutinação efetiva desses segmentos, as propostas destinadas ao crescimento do nível de emprego voltam-se para alternativas como: incentivos à contratação, manutenção e capacitação da mão-de-obra; acordos mais flexíveis de tempo de trabalho, limitações de horas extras, redução da jornada de trabalho e até a reformulação do seguro-desemprego. A luta pela manutenção do emprego torna-se, portanto, prioritária e obriga a relegar as questões de saúde, que começavam a tomar corpo, a um plano secundário nas agendas sindicais.

A Saúde do Trabalhador, enquanto questão vinculada às políticas mais gerais, de caráter econômico e social, implica desafios das mais diversas ordens. Desde os colocados a partir do cenário macroeconômico que impõe diretrizes e prioridades do mercado, aos que se relacionam mais diretamente ao setor saúde. Nesse universo multifacetado, estão presentes as resultantes das políticas atuais de emprego, salário, habitação, transporte, educação, entre outras, que refletem o descompromisso do Estado com os segmentos da população marginalizada dos bolsões de riqueza e suas cercanias.

Formular uma política de saúde do trabalhador significa, portanto, contemplar essa ampla gama de condicionantes da saúde e da doença. Especificamente para o setor público de saúde, do âmbito municipal ao federal, é premente a necessidade de consolidar ações de saúde do trabalhador que abranjam da vigilância à assistência em seu sentido amplo. Porém, a limitada intervenção da Saúde Pública num campo que nunca foi objeto central de preocupação, agudizada pelos percalços da gestão financeira e de recursos humanos na implementação do Sistema Único de Saúde, tem se refletido na tendência de tratar como questão menor a atenção integrada, mas diferenciada, aos trabalhadores. Essa ausência de respostas efetivas vem servindo de justificativa para que o setor privado se incumba gradativamente de determinadas tarefas que, em princípio, seriam um compromisso fundamental do Estado. Dessa forma, as iniciativas laudáveis de criação de programas ou centros de referência com essa finalidade têm resultado, de modo geral, mais do empenho de alguns profissionais do que do necessário processo de institucionalização, fruto de uma política assumida.

Paradoxalmente, chegou-se a uma maior visibilidade social dos problemas que afetam a qualidade de vida da classe trabalhadora. Avança-se na compreensão dos agravos à saúde em diferentes processos de trabalho industrial, bem como nas atividades rurais, sobretudo quanto à utilização indiscriminada de agrotóxicos; iniciam-se estudos relativos ao setor serviço, incluídas as pesquisas sobre os profissionais de saúde; percebe-se com mais clareza a especificidade do trabalho feminino, valendo-se de várias investigações. Mas só pontualmente obtêm-se respostas proporcionais à relevância das questões levantadas. No entanto, um universo de indagações, do qual se atinge apenas o contorno, emerge como desafio ainda a enfrentar: desde velhas situações praticamente intocadas, como o trabalho escravo e o trabalho infantil, às decorrentes de um modelo de produção seletivo e excludente que vem ampliando a dimensão da rua como espaço de trabalho, com todas as incertezas, vulnerabilidades e riscos que esse espaço significa, em relação tanto a acidentes e violências, como à produção da própria sobrevivência. A ampliação dos objetos de estudo e a reformulação de alguns referenciais conceituais e metodológicos tornam-se assim premissas fundamentais, sob o ponto de vista investigativo.

A cada dia, ficam mais evidentes as proporções da empreitada nesse campo marcado por avanços, limitações e, nesse momento, por muitos impasses. Enfrentá-los é uma tarefa coletiva, que demanda empenho recíproco no estabelecimento de pactos entre centros acadêmicos, instituições públicas e da sociedadade civil, particularmente com instâncias organizativas de trabalhadores. Essa tarefa faz parte do compromisso democrático de viabilizar um desenvolvimento sustentável, fundado no resgate da dívida social e na revitalização e revalorização do caráter público do Estado para assegurar a efetividade dos direitos de cidadania.

 

 

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