ARTIGO ARTICLE


 

 

 

 

 

 

Delma Perpétua Oliveira de Souza 1
Domingos Tabajara de Oliveira Martins 2


O perfil epidemiológico do uso de drogas entre estudantes de 1o e 2o graus da rede estadual de ensino de Cuiabá, Brasil, 1995  

An epidemiological profile of drug abuse among elementary and high school students in the Cuiabá public school system, Brazil, 1995

 


1 Núcleo de Desenvolvimento em Saúde, Instituto de Saúde Coletiva, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Federal de Mato Grosso. Av. Fernando Corrêa da Costa s/no, Cuiabá, MT 78060-900, Brasil.
2 Departamento de Ciências Básicas em Saúde, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Federal de Mato Grosso. Av. Fernando Corrêa da Costa s/no, Cuiabá, MT 78060-900, Brasil.
  Abstract A cross-sectional survey was conducted on a sample of 1,061 students to determine the epidemiological profile of drug abuse among elementary and high school students in the State public school system in Greater Metropolitan Cuiabá, Mato Grosso, Brazil, in 1995. Results showed drug abuse among both male and female students (27.2% and 24.1%, respectively). Drug abuse was more common in students over 18 years of age (27.1%), with grade/age discrepancies (70.7%), with higher classroom absenteeism (44.6%), and with higher social economic levels (A + B = 34.5%). The most frequently abused drugs among male students were alcohol (81.8%), solvents (18.6%), and marijuana (6.0%). Early alcohol abuse was also common (12.1 ±3.6 years). In addition to alcohol (78.6%) and tobacco (29.0%), the substances most commonly consumed by students were solvents (14.9%), anxiolytics (6.0%), and amphetamines (4.8%). The 1995 epidemiological profile of drug abuse among elementary and high school students in the State public school system in Cuiabá was similar data from nationwide surveys conducted in 1987, 1989, and 1993.
Key words Street Drugs; Students; Substance Abuse; Epidemiology  

Resumo Em 1995, um estudo transversal de uma amostra de 1.061 estudantes foi realizado para configurar o perfil epidemiológico do uso de drogas entre estudantes de 1o e 2o graus da rede estadual de ensino na zona urbana de Cuiabá, Estado de Mato Grosso. Os resultados mostraram uso de drogas tanto no sexo masculino (27,2%), como no feminino (24,1%) maior proporção de usuários com idade acima de 18 anos (27,1%), com defasagem escolar de série/idade (70,7%), com maior número de faltas às aulas (44,6%) e nível sócio-econômico de melhor poder aquisitivo (A + B = 34,5%). Observou-se maior preferência pelo uso de álcool (81,8%), solventes (18,6%) e maconha (6,0%) por parte do sexo masculino, uso mais precoce do álcool (12,1 ±3,6 anos). Excetuando-se o álcool (78,6%) e o tabaco (29,0%), as substâncias mais consumidas pelos estudantes foram os solventes (14,9%), os ansiolíticos (6,0%) e as anfetaminas (4,8%). Concluiu-se que o perfil epidemiológico do uso de drogas entre os estudantes de 1o e 2o graus da rede estadual de ensino de Cuiabá ­ 1995 assemelhou-se aos obtidos em levantamentos realizados em nível nacional nos anos de 1987, 1989 e 1993.
Palavras-chave Drogas Ilícitas; Estudantes; Abuso de Substâncias; Epidemiologia

 

 

Introdução

 

Nas últimas décadas, tem-se verificado uma preocupação marcante de vários setores nacionais no sentido de dotar o Brasil de dados científicos sobre o uso de drogas na população estudantil de 1o e 2o graus (Zanini, et al., 1978; Costa, et al., 1979; Murad, 1979; Bucher & Totugui, 1988a; Carlini-Cotrim & Carlini, 1987; Carlini-Cotrim et al., 1989; Galduróz et al., 1994) e assim permitir a estruturação e avaliação de políticas públicas no campo da prevenção e educação.

Em nível nacional, destacam-se três levantamentos epidemiológicos sobre o uso de drogas entre estudantes de 1o e 2o graus da rede estadual de ensino, realizados em dez capitais brasileiras (Belém, Belo Horizonte, Brasília, Curitiba, Fortaleza, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo), nos períodos de 1987, 1989 e 1993, pelo Departamento de Psicobiologia da Escola Paulista de Medicina, respectivamente, por Carlini-Cotrim et al. (1989); Carlini et al. (1990); Galduróz et al. (1994). Os resultados destes três levantamentos mostraram que, com exceção do álcool e tabaco, os solventes foram as drogas que tiveram maior uso na vida, com 14,7%, 17,3% e 15,4%, seguidos pelos ansiolíticos, com taxa de 5,9%, 7,2% e 5,3%, e anfetamínicos, com 2,8%, 3,9% e 3,1%, respectivamente.

No Estado de Mato Grosso, mais especificamente em Cuiabá, relatos informais e jornalísticos apontam para a problemática do uso de drogas entre os jovens. O presente estudo teve como objetivo traçar o perfil epidemiológico do uso de drogas em 1995, na população estudantil de 1o e 2o graus da rede estadual, no espaço socialmente organizado de Cuiabá, mediante a identificação da proporção de categorias de usuários de drogas (na vida, ano, mês, freqüente e pesado) e da freqüência do uso de drogas na vida e sua relação com as variáveis demográficas (sexo, idade), sociais (defasagem série/idade, faltas às aulas e nível sócio-econômico) e idade média do uso de drogas.

 

 

Material e método

 

A população deste trabalho constituiu-se em todos os estudantes matriculados da 5a série do 1o grau ao 3o e/ou 4o ano do 2o grau das escolas da rede estadual da zona urbana de Cuiabá, no ano de 1995, totalizando 54.544 estudantes, distribuídos em 1.462 turmas (SEE, 1994).

Adotou-se o método de amostragem probabilística por conglomerado (escolas) e estratificada (grau escolar e infra-estrutura do bairro onde está localizada a escola), obtida em dois estágios, em razão de a população estudantil estar situada em vários unidades escolares e de cada estudante fazer parte de uma turma, sorteando-se, no primeiro estágio, as escolas e, no segundo, as turmas (Carlini-Cotrim & Barbosa, 1993).

Posteriormente, para o sorteio das escolas de cada estrato (primeiro estágio), aplicou-se a fração de expansão (resultado da divisão entre o número total de turmas e o número de escolas a serem sorteadas), sorteando-se um número aleatório, o qual definiu a primeira escola sorteada para cada estrato; o número aleatório sorteado e somado com a fração de expansão determinou a segunda escola sorteada. O mesmo procedimento aplicou-se às demais escolas e estratos.

Para o sorteio das turmas de cada escola (segundo estágio), atualizaram-se os dados das escolas sorteadas quanto ao número de estudantes matriculados e às turmas existentes em 1995. Elaborou-se a listagem das turmas e, para o sorteio do número das mesmas em cada escola, considerou-se a proporcionalidade do número de turmas vezes o número de turmas atualizadas em relação ao número de turmas cadastradas em 1994 (Carlini-Cotrim & Barbosa, 1993).

Com este procedimento amostral, estimou-se uma amostra de 1.557 estudantes, de dez escolas e quarenta turmas. Destes, 1.074 responderam ao instrumento, tendo sido anulados 13 questionários, obtendo-se assim uma amostra final de 1.061 estudantes.

Procedeu-se à coleta de dados por meio de um questionário fechado de autopreenchimento, sem identificação. O mesmo foi desenvolvido em resposta às resoluções da World Health Assembly (WHA 23-42 E WHA 28-80) do WHO Reserch and Reporting Project on the Epidemiology of Drug Dependence (Smart et al., 1980) e adaptado no Brasil por Carlini-Cotrim et al. (1989). É composto de três partes: a primeira refere-se a dados demográficos (sexo, idade) e sociais (freqüência às aulas, defasagem escolar e nível sócio-econômico); a segunda trata da freqüência do uso de drogas (para sentir um barato) e a terceira (em análise) trata da percepção que os estudantes têm sobre o usuário de droga, aplicada somente aos alunos da 7a série do 1o grau ao 3o e 4o ano do 2o grau. A aplicação do instrumento deu-se coletivamente na turma, sendo incluídos todos os estudantes presentes e excluídos os ausentes no dia da coleta.

Utilizou-se o programa DBASE IV (DBase, 1990) e o Epi-Info, Versão 5.0 (Epi-Info Version 5.01B, 1991), para a entrada dos dados coletados junto à amostra.

Para análise das variáveis demográficas em relação ao uso de drogas, com fins não médicos, considerou-se a classificação da Organização Mundial de Saúde-OMS (Smart et al., 1980) de uso na vida (de pelo menos uma vez na vida), no ano (de pelo menos uma vez nos doze meses que antecederam a pesquisa), no mês (de pelo menos uma vez nos trinta dias que antecederam a pesquisa), freqüente (de seis ou mais vezes nos trinta dias que antecederam a pesquisa) e pesado (de vinte ou mais vezes nos trinta dias que antecederam a pesquisa).

A variável nível sócio-econômico da família foi analisada no somatório da mensuração da escolaridade dos pais dos estudantes com a posse de determinados bens de consumo duráveis na residência destes. Para cada bem de consumo atribuiu-se um número de pontos, cuja soma indicou o nível sócio-econômico do respondente: "A", melhor nível, de 35 ou mais pontos; "B", de 21 a 34 pontos; "C", de 10 a 20 pontos; "D", de 5 a 9 pontos e "E", menor nível, de 0 a 4 pontos (Abipeme,1978).

Para avaliar as associações entre diferentes variáveis categóricas, utilizou-se o Teste (Qui-quadrado) com fator de correção de Yates, exceto quando algum valor esperado foi igual ou inferior a 5; nestes casos, optou-se pelo Teste Exato de Fisher. Utilizou-se também o Teste do para tendência linear quando da análise da associação entre faixa etária e uso de drogas (Colton, 1974). A comparação das idades médias iniciais do consumo entre as diferentes substâncias e classes farmacológicas foi feita utilizando-se a análise de variância uma via (Anova), seguida do Teste Tukey-Kramer para comparações múltiplas (Hardyck & Petrionovich, 1969).

Para tornar a amostra mais homogênea e possibilitar os testes estatísticos, foram realizados agrupamentos na Tabela 3. O nível de significância para todos os testes foi fixado em = 0,05, considerando o intervalo de confiança de 95%.

 

 

 

Resultados

 

Da amostra estimada em 1.557 estudantes, 68,1% tiveram seus questionários válidos, representando 1,9% da população estudada. Dos 1.061 entrevistados, a maior representação foi do sexo feminino (54,7%), com predominância da faixa etária dos 13 aos 15 anos (39,2%), 39,0% da amostra apresentaram defasagem escolar de série/idade acima de três anos e 32,6% pertenciam ao nível sócio-econômico C (Tabela 1).

 

 

Dos estudantes pesquisados, a grande maioria (74,8%) afirmou nunca ter usado drogas, excetuando-se o álcool e o tabaco (Tabela 2). Dos 25,2% que referiram ter feito uso de drogas na vida, 14,1% o fizeram no ano; 5,3%, no mês; 4,0% fizeram uso freqüente e 2,4%, durante 20 ou mais dias nos últimos 30 dias (usuário pesado).

 

 

Na Tabela 3, podem ser vistas as características sociais em relação ao uso de drogas na vida. Tratando-se da defasagem série/idade de 1-2 (28,8%) e maior que 3 (41,9%) anos dos usuários em relação aos não usuários, não foi observada associação estatisticamente significativa, mesmo ocorrendo quando se agrupou a variável "há" (26,1%) e "não há" (23,5%) dos usuários em relação aos não usuários (73,9% e 76,5%), respectivamente.

Tratando-se da freqüência às aulas (Tabela 3), nota-se que há diferença estatisticamente significativa da proporção de estudantes não usuários (70,4%) que não faltaram às aulas nos últimos 30 dias anteriores à pesquisa em relação aos usuários (53,2%), quanto às faltas de 1 a 3 dias (p<0,001), o mesmo ocorrendo para os que faltaram de 4 a 8 dias (p<0,001) e acima de 9 dias (p<0,005). No agrupamento de "não faltou" em relação a "faltou", nota-se que entre os usuários houve significativamente (p<0,001) mais faltas às aulas (34,3%) do que freqüência (20,3%) quando comparados aos não usuários que não faltaram (79,7%) e aos que faltaram (65,7%) às aulas.

Na Tabela 3, observa-se que os estudantes pertencentes ao nível C foram os que apresentaram maior proporção (34,8%) de usuários de drogas. Observa-se ainda maior proporção de estudantes usuários de drogas nos níveis sócio-econômicos B (15,7%, p<0,03), C (34,8%, p<0,004), D (15,4%, p<0,001) e E (4,9%, p<0,04) em relação ao nível A. Quando se agruparam e compararam os níveis sócio-econômicos, verificou-se diferença estatisticamente significativa (p<0,005) entre os estudantes usuários de maior poder (A + B = 34,5%), em relação aos de menor poder aquisitivo (C + D + E = 25,0%).

Com relação ao uso de diferentes drogas na vida, excetuando-se o álcool (78,6%) e o tabaco (29,0%), a substância e as classes farmacológicas mais freqüentemente usadas na vida pelos estudantes foram os solventes (14,9%), os ansiolíticos (6,0%) e as anfetaminas (4,8%), ao passo que os alucinógenos (0,9%), os opiáceos e os anticolinérgicos (ambos com 0,6%) foram as menos utilizadas (Tabela 4).

 

 

A Tabela 5 relaciona a variável sexo com a freqüência do uso de drogas na vida por classe farmacológica. Foi verificada uma proporção significativamente maior na freqüência de uso de drogas na vida entre os estudantes do sexo masculino, quando comparados aos estudantes do sexo feminino, para o uso de solventes (18,6% versus 12,4%, p<0,008), maconha (6,0% versus 1,9%, p<0,001) e álcool (81,8% versus 76,3%, p<0,04). As proporções de freqüência de uso na vida para anfetaminas, ansiolíticos e orexígenos, foram maiores em estudantes do sexo feminino do que em estudantes do sexo masculino, embora não alcançassem significância estatística.

 

 

Na Tabela 6 pode ser vista a relação entre o uso de drogas na vida e a faixa etária. Observou-se aumento linear da proporção do uso de drogas na vida apenas para o álcool e tabaco, nas faixas etárias de 10-12 até 16-18 anos. Também verificou-se aumento significativo da proporção de usuários de maconha da faixa etária de 13-15 em relação à de 16-18 anos (2,1% versus 6,6%, p<0,004) e da proporção de usuários de barbitúricos da faixa etária de 10-12 em relação à de 13-15 anos (0,7% versus 2,6%). No caso da cocaína, nota-se aumento da proporção, porém não significativo, de uso na vida, nas faixas de 10-12 até 16-18 anos, ao contrário do que se observa entre as faixas etárias 16-18 e acima de 18 anos (2,6% versus 2,1%).

 

 

As comparações das idades médias de uso inicial, com relação às diferentes substâncias e classes farmacológicas, estão mostradas na Tabela 7. Excetuando-se o álcool (12,1 ±3,6 anos) e o tabaco (13,0 ±3,2 anos), que foram as substâncias utilizadas mais precocemente pelos estudantes, os solventes aparecem com o uso inicial mais precoce (13,4 ±3,1 anos). Dos medicamentos utilizados sem finalidade terapêutica, as anfetaminas foram as drogas de consumo mais precoce (13,9 ±3,9 anos). No caso do uso inicial de drogas ilícitas, a maconha aparece em primeiro lugar (14,1 ±2,2 anos) e a cocaína como a de consumo inicial em idades mais avançadas (15,2 ±4,0 anos).

 

 

 

Discussão

 

Este estudo sobre o perfil epidemiológico de uso de drogas entre a população estudantil da rede estadual de ensino do 1o e 2o graus foi o primeiro a ser realizado na zona urbana de Cuiabá. Para este tipo de pesquisa, o instrumento mais utilizado é o questionário de autopreenchimento (Carlini-Cotrim & Barbosa, 1993), aplicado coletivamente em sala de aula. A escolha deste instrumento deu-se devido à garantia do anonimato, por ser de baixo custo e ter boa aceitabilidade na maioria dos países onde é utilizado, com baixos índices de recusa.

Apesar da excelente aceitabilidade do instrumento em Cuiabá, com baixo índice (0,83%) de questionários anulados, concorda-se com Carlini-Cotrim & Barbosa (1993) e com Galduróz (1996) que se deve ter cuidado na análise dos dados em questionários de autopreenchimento, pois os mesmos medem o relato do consumo de drogas, os quais carecem de uma validação (exames de urina e cabelo), o que é difícil no caso das drogas, uma vez que o usuário se esforça para não deixar vestígios do seu uso, por ser um ato ilegal. A comunidade científica norte-americana, européia, canadense e latino-americana ainda não resolveu a questão da validação deste instrumento, porém os planejadores das políticas públicas na área de saúde têm utilizado os resultados encontrados neste tipo de questionário na elaboração de programas de prevenção.

Excetuando-se o álcool e o tabaco, os dados apontam que a grande maioria dos estudantes da rede estadual de 1o e 2o graus da zona urbana de Cuiabá não usaram drogas, assemelhando-se aos levantamentos realizados em nível nacional nesta mesma população em dez capitais brasileiras (Galduróz et al., 1994), quanto às características demográficas (sexo e idade), sociais (defasagem série/idade, falta às aulas e nível sócio-econômico) e a freqüência do uso de drogas na vida.

A questão da defasagem escolar não é inerente somente aos usuários de drogas, sugerindo a existência de outros fatores, que requerem estudos mais direcionados. Também a afirmação de que o uso de drogas leva à diminuição do interesse pelo ensino deve ser analisada com cautela, pois tanto entre usuários, como entre não-usuários foram observadas faltas às aulas, indicando um quadro deteriorado do ensino público brasileiro (Galduróz et al., 1994), o que pode desencadear a evasão escolar, sendo que esta, por sua vez, instaura o processo de marginalização que pode incluir o envolvimento com as drogas (Bucher & Totugui, 1988a).

Mesmo tendo a maior proporção de estudantes usuários de drogas no nível sócio-econômico C, evidenciou-se, junto à população em estudo, consumo de diferentes drogas, em todos os níveis, no entanto, no agrupamento dos estudantes usuários de drogas de melhor poder aquisitivo (A + B) em relação aos de menor poder aquisitivo (C + D + E), verificou-se um consumo maior de drogas entre os primeiros, parecendo pertinente a observação de Breilh & Granda (1989) de que a incidência de alterações da personalidade e a farmacodependência como agravos à saúde se dão tanto nos processos epidemiológicos dos subproletários urbanos, como nos das classes sociais dominantes. Alerta-se também para a existência da uma relação do acesso à droga e poder de compra, sugerindo-se aos planejadores de políticas públicas que a prevenção ao uso de drogas na população estudantil de 1o e 2o graus deve ser direcionada a todos os jovens estudantes, independente do seu nível sócio-econômico.

Quando se observa o uso de drogas na vida por substâncias e classes farmacológicas, levando-se em conta o sexo, verifica-se maior proporção de usuários de álcool, solventes e maconha entre estudantes do sexo masculino em relação aos estudantes do sexo feminino, coadunando com os estudos realizados no Brasil por Carlini-Cotrim & Carlini (1987); Bucher & Totugui (1988b); Monteiro et al. (1989); Carlini-Cotrim et al. (1989) e Galduróz et al. (1994). A preferência por estas substâncias se dá em decorrência da fácil obtenção e por serem consideradas pela sociedade como legais (Galvão et al., 1993). Questiona-se até que ponto este comportamento preferencial reflete um certo condicionamento social do gênero masculino ter que transgredir certas normas sociais para provar a sua autonomia, senão sua masculinidade, ao utilizar drogas de fácil obtenção no mercado (Bucher & Totugui, 1988b).

O uso de drogas na vida não se restringe a uma faixa etária. Para o álcool e o tabaco, o consumo foi diretamente proporcional ao incremento da idade (até 16-18 anos), ao passo que, para a maconha, verificou-se uma maior proporção de uso apenas entre as faixas etárias de 13-15 e 16-18 anos. Nota-se que na menor faixa etária (10-12) não houve relato do consumo de maconha, barbitúricos, cocaína, alucinógenos, opiáceos e anticolinérgicos. Estes achados não se diferenciam dos encontrados por Galduróz et al. (1994) em algumas capitais brasileiras, indicando a associação da variável idade e preferência por determinadas substâncias e classes farmacológicas. Acredita-se que esta relação é relevante para os programas de prevenção, com base nos currículos escolares, os quais, por sua vez, trabalham os conteúdos considerando o desenvolvimento cognitivo do estudante.

Com relação ao alto percentual do consumo álcool etílico entre os estudantes de Cuiabá, não se pode deixar de enfatizar que o alcoolismo é a mais freqüente das toxicomanias em todo o mundo, tendo sido reconhecido oficialmente como doença pela Organização Mundial de Saúde, na Nona Revisão da Classificação Internacional de Doenças (WHO, 1976), cujos resultados terapêuticos são desanimadores. Como problema social, sua gravidade pode ser verificada por meio das estatísticas de criminalidade, violência no trânsito, absenteísmo e acidentes de trabalho (Bortoletto, 1990).

A segunda droga mais consumida pelos estudantes desta pesquisa foi o tabaco, rico em nicotina e substâncias tóxicas para o organismo humano, tal como o benzopireno, apontado como cancerígeno (Jaffe, 1991). Ramos & Ramos (1994) e Fuchs & Pechansky (1992) relacionam as doenças cardiovasculares, a incidência de aborto, mortalidade perinatal e redução do crescimento fetal à dependência química pela nicotina.

Tratando-se do uso de solventes, o consumo destas substâncias não é peculiar somente aos estudantes participantes desta pesquisa. No Brasil, as referências científicas sobre o uso de solventes estão, entre outros, nos trabalhos de Costa et al. (1979), Carlini et al. (1995) e Galduróz (1996). Além dos solventes, o uso de classes farmacológicas terapêuticas (ansiolíticos, anfetaminas e barbitúricos) foi relatado pelos estudantes, configurando o mundo dinâmico das drogas.

Não menos importante foi a observação de que a idade média de início do uso de drogas entre os estudantes se deu precocemente com o álcool, uma droga lícita, dado que se assemelha aos encontrados por Galduróz (1996) em estudantes de dez capitais brasileiras.

Os trabalhos anteriores à década de 90, como os de Costa et al. (1979), Murad (1979) e Morgado et al. (1983), relatam o início de uso de drogas nas faixas etárias acima de 14 anos de idade. Lima (1991) informa que o consumo de drogas lícitas parece preceder a iniciação ao consumo de drogas ilícitas. A média da idade de início de consumo das drogas lícitas é mais elevada quando comparada à média da idade do uso inicial de drogas ilícitas. Este comportamento de uso inicial das drogas aceitas pela sociedade (lícitas) ocorre também com os estudantes de 1o e 2o graus usuários de drogas da rede estadual de Cuiabá, reforçando a idéia de que a ocorrência do uso de drogas entre a população estudantil perpassa pelas questões conjunturais (como a falta de perspectiva de futuro e a inserção no mercado de trabalho), bem como pelos fatores individuais, familiares, o que, talvez, tenha levado as pessoas a novos estilos de vida, nos quais a droga está, infelizmente, ocupando espaço.

Nos atuais padrões de comportamento do uso de drogas não se pode esquecer da magnitude do consumo de substâncias psicoativas por adolescentes, que tendencialmente cresce com a faixa etária, bem como do impacto para o setor de saúde pública no tocante à disseminação e aos custos com assistência médico-hospitalar para o tratamento de dependentes químicos e outros agravos inter-relacionados, tais como AIDS e Hepatite B. É sugerido que este uso se dá não só em decorrência da fácil obtenção das drogas, como também por serem consideradas pela sociedade como legais (Galvão et al., 1993).

Há de se considerar as carências de estudos sobre as condições do estudante usuário de drogas, tanto nas possíveis causas determinantes do uso, quanto a respeito de como se dá o acesso ao produto. Não se pode deixar de considerar as fases psicossociais por que todos os adolescentes passam, nas quais a droga pode constituir para alguns a falta de algo que se quebrou na primeira infância, o que Olivenstein (1989) caracteriza como o espelho quebrado, ou ainda os três tipos de lutos fundamentais durante a adolescência, caracterizados por Aberastury (1992) como sendo os conflitos pelo corpo infantil, pela identidade e papel infantis e da relação com os pais da infância.

É uma hipocrisia não reconhecer o uso de substâncias psicoativas como parte da existência humana (Mesquita, 1995). As ações preventivas devem ser direcionadas para novas alternativas, em face da constatação histórica da limitação das linguagens e dos conteúdos adotados nos programas de prevenção, e também devido as ações repressivas terem se mostrado insuficientes na redução do uso de droga. Não resta dúvida de que o grande desafio atual será encontrar propostas educativas no sentido de valorização da saúde e dos ambientes de interação, requerendo esforços de toda a sociedade, com destaque para os papéis da família e da escola.

 

 

Considerações finais

 

A droga como um produto inerente à sociedade, desde os primórdios da humanidade, vem sofrendo modificações, passando de uma produção artesanal para uma produção industrial. Como um fator de agravo à saúde, ela não pode ser vista de forma unidimensional, sendo necessários esforços para compreender as causas sócio-políticas e culturais do seu uso e abuso (Bucher & Totugui, 1988a; Carlini-Cotrim, 1992).

Na existência de uma nova realidade espacial (globalização) e temporal (novos ritmos de transformações do mundo sócio-cultural), onde os jovens representam um público crítico, torna-se necessário trazer para o palco das interações sociais uma abordagem preventiva ampla, que, segundo Bucher (1996), abrange ações educativas de valorização da vida humana, com ênfase na dimensão ética (não moralista) do consumo de drogas. Para o êxito de tais iniciativas é primordial refletir sobre os papéis da família e da escola como ambientes primários de socialização do homem.

Assim, o pressuposto básico para a não omissão da família e da escola sobre o fenômeno droga entre os jovens estudantes é trazer para o seu interior discussões sobre o tema com base em informações claras e com conteúdos de veracidade. A escola terá a oportunidade de ultrapassar as suas funções de mera reprodutora do conhecimento e contribuir, juntamente com a família, na estruturação da personalidade do jovem para uma socialização compromissada em relação a si mesmo, ao outro e ao meio ambiente.

 

 

Agradecimentos

 

Os autores agradecem aos Professores Doutores Volney Magalhães Câmara da UFRJ e Evandro Silva Freire Coutinho da Ensp/Fiocruz, pela leitura e sugestões no preparo do manuscrito.

 

 

Referências

 

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