Maria Luiza C. de Lima 1
Ricardo Ximenes 2

Violência e morte: diferenciais da mortalidade por causas externas no espaço urbano do Recife, 1991

Violence and death: differentials in mortality from external causes in Recife, Pernambuco, Brazil, 1991

 

 


1 Coordenação de Pós-Graduação da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Federal de Pernambuco. Rua Arnóbio Marques 310, Santo Amaro, Recife, PE 50100-130, Brasil.
2 Departamento de Medicina Tropical, Hospital das Clínicas, Universidade Federal de Pernambuco. Av. Morais Rego s/no, Cidade Universitária, bloco A, Recife, PE 50670-620, Brasil. rximenes@elogica.com.br
  Abstract This study aimed to describe the amount of (and trends in) violent deaths in the city of Recife, Pernambuco, Brazil, and to analyze their determinants. The article presents the spatial distribution of these deaths for the year 1991 and the differences regarding sex, age, and place of occurrence. It also analyzes the potential role of a series of socioeconomic factors, used as indicators of the population's living conditions. An exploratory ecological study was conducted to compare various groups. In 1991 there were a total of 1181 violent deaths in Recife. The study points to an overall mortality rate from external causes of 90.9/100,000 inhabitants. The two age groups 10-39 years and 60 years and over were those at highest risk of death. Males showed excess mortality in all age groups. The most important specific causes of death were homicides and traffic accidents, with 51.3% and 23.4%, respectively, of all violent deaths. The authors discuss the differences in the mortality rate from external causes in different social areas, defined according to living conditions and their relationship to the history of the development of Recife.
Key words Mortality; External Causes; Spatial Analysis  

Resumo Este estudo teve como objetivo descrever a tendência e a magnitude das mortes violentas na cidade do Recife, sua distribuição espacial no ano de 1991 e seus diferenciais quanto ao sexo, idade, local de ocorrência; objetivou, também, analisar a participação de algumas variáveis sócio-econômicas que expressam as condições de vida, nas possíveis explicações dessas diferenças. Utilizou-se como método o desenho de estudo ecológico do tipo exploratório e comparação de múltiplos grupos. Foram analisadas 1.181 declarações de óbitos de residentes em Recife, falecidos no ano de 1991. Verificou-se uma magnitude do coeficiente de mortalidade por causas externas na ordem de 90,9 por cem mil habitantes. Os grupos de dez a 39 anos e sessenta anos e mais constituíram os de maior risco, e o sexo masculino apresentou uma sobremortalidade em todas as faixas etárias. Os principais grupos de causas específicas foram os homicídios e os acidentes de trânsito, que representaram cerca de 51,3% e 23,4% do total de óbitos por essas causas, respectivamente. Discutiram-se alguns aspectos da desigualdade da mortalidade por causas externas nos espaços sociais, segundo condições de vida e sua relação com o processo histórico de formação da cidade do Recife.
Palavras-chave Mortalidade; Causas Externas; Análise Espacial

 

 

Introdução

 

Nos últimos anos, a violência, por causa de sua tendência ascendente, vem sendo apontada por diversos setores representativos da sociedade como sério e importante problema que aflige muitos países, e o Brasil em especial.

No campo da saúde, vem sendo estudada, predominantemente, no que se refere à sua expressão em lesões e traumas no corpo dos indivíduos que chegam a receber algum tipo de assistência médica ou que evoluem para o óbito. Tais eventos são denominados causas externas e, de acordo com a 9a Revisão da Classificação Internacional de Doenças ­ CID, referem-se aos fatores externos ao organismo humano que provocam lesões, envenenamentos ou efeitos adversos ao homem.

A mortalidade por causas externas a partir da década de 80 ocupa o segundo lugar no quadro geral de mortalidade, nas várias regiões do País, excetuando a Região Sul, onde ocupa o terceiro lugar (Reichennheim & Werneck, 1994). Nas faixas etárias de cinco a 19 anos e de vinte a 49 anos, já constituíam, em 1980, a primeira causa de mortalidade ocorrida, em sua grande maioria, no sexo masculino. Dentre as causas externas, os acidentes de trânsito e homicídios representavam mais da metade das mortes, (Dados, 1985). No período de 1980 a 1988, os homicídios apresentaram um crescimento de 44%, sendo o maior incremento nas faixas de dez a 14 anos e de 15 a 19 anos. Em relação às capitais, observa-se uma tendência crescente na maioria delas, destacando-se a cidade do Recife como aquela que exibiu uma das mais elevadas taxas do Brasil por homicídios (Souza, 1994).

Dentre as causas externas, as mortes por homicídios têm sido apontadas como um indicador da violência relacionado, entre outros processos, com a intensificação das desigualdades sócio-econômicas (Reichenheim & Werneck, 1994).

Alguns trabalhos têm citado a possível associação das altas taxas de homicídios com o processo de urbanização, desigualdades sócio-econômicas, pobreza, tráfico de drogas, enfrentamentos raciais e étnicos, mudanças na estrutura familiar, conflitos armados, entre outros fatores, (Opas, 1990, 1994; Dados, 1985, 1990; Souza, 1994).

Já Minayo (1994), chama atenção para processos sociais, tais como a marginalidade e o desemprego, que, em razão da estrutura social, contribuem para a explicação da violência. O modelo explicativo desenvolvido por Castellanos (1991), ao considerar a reprodução social como categoria de análise, oferece uma contribuição teórica para o estudo da situação de saúde, segundo condições de vida.

Nesse contexto, destacamos a importância de estudar a mortalidade por causas externas na cidade do Recife, como indicador da violência, tendo como base o conceito de espaço socialmente organizado. No presente trabalho, partimos do pressuposto de que a ocupação do espaço não ocorre de forma aleatória, e, sim, revela a desigualdade de condições de vida que, por sua vez, intermediariam, em última análise, o risco diferenciado de determinados grupos sociais serem alvos preferenciais da mortalidade por causas externas.

A presente investigação visa descrever a tendência e a magnitude das mortes violentas na cidade do Recife no ano de 1991, e analisar seus diferenciais quanto ao sexo, idade, local de ocorrência, bem como a sua distribuição espacial segundo bairros e estratos de condições de vida.

 

 

Metodologia

 

Descrição da área


 

A área estudada foi a cidade do Recife, com uma população estimada pelo censo em torno de 1.298.229 habitantes, para o ano de 1991. A cidade é composta de 94 bairros e dividida em seis regiões político-administrativas ­ RPAs. Os bairros apresentam uma heterogeneidade quanto à densidade demográfica e uma composição etária bastante semelhante.

O crescimento populacional no último período intercensitário (1980-1991) foi de 0,66% ao ano, um dos menores em relação a outras capitais do País.

Do ponto de vista social, segundo Rocha (1994), a cidade do Recife detém o mais alto percentual de pobres quando comparada com outras capitais do Brasil, chegando a 48,5% da população e 19% de indigentes. Ao comparar os mesmos indicadores em 1981, a autora observou, em 1990, uma melhoria destes para todas as regiões e estratos do País, exceto Rio de Janeiro.

Com base nas informações do Plano Diretor da Cidade do Recife, é importante assinalar que a Região Metropolitana de Recife (RMR) apresenta um nível de desemprego maior quando comparada às demais regiões metropolitanas (Consórcio Procenge/Acqua-Plan, 1990).

 

 

Desenho do estudo


 

Estudo ecológico do tipo exploratório e comparação de múltiplos grupos.

A estratificação da cidade do Recife em camadas de condições de vida teve como unidade mínima de análise o bairro. Não foi possível desagregar o espaço urbano do município até nível de setor censitário por dificuldades operacionais, tais como: má qualidade de informação no item endereço, que consta do atestado de óbito, e pelo fato de os descritores dos setores censitários não se basearem na numeração das residências nos logradouros.

Os bairros foram ordenados de forma crescente segundo o percentual de renda de até dois salários mínimos (SM) percebido pelo chefe da família de cada bairro e agrupados em quatro estratos:

Estrato 1: primeiro conjunto de 25% dos bairros com percentual de renda até dois SM, variando de 4% a 43% ­ denominado estrato de elevada condição de vida.

Estrato 2: segundo conjunto de 25% dos bairros com percentual de renda dois SM, variando de 44% a 59% ­ denominado estrato de intermediária condição de vida.

Estrato 3: terceiro conjunto de 25% dos bairros com percentual de renda até dois SM, variando de 60% a 75% ­ denominado estrato de baixa condição de vida.

Estrato 4: quarto conjunto de 25% dos bairros com mais elevado percentual de renda até dois SM, variando de 76% a 97% ­ denominado estrato de muito baixa condição de vida.

As variáveis estudadas foram óbitos por causas externas, sexo, idade, bairro de residência, local de ocorrência do óbito, variáveis relativas à infra-estrutura de serviços urbanos por bairro (abastecimento de água, esgoto, pavimentação, limpeza pública) e renda.

 

 

Fonte de dados


 

Foram analisadas 1.181 declarações de óbito por causas externas de residentes em Recife, referentes ao ano de 1991.

As informações relativas à infra-estrutura de serviços urbanos foram obtidas na Secretaria de Planejamento Urbano e Ambiental (Seplan) da Prefeitura da Cidade do Recife (PCR) e são relativas ao ano de 1991. A renda e a população por sexo e faixa etária, por bairro, foram obtidas valendo-se do Censo Demográfico (FIBGE, 1991).

 

 

Análise dos dados


 

A primeira etapa da análise descreveu uma distribuição de freqüência das variáveis selecionadas e estimou os anos potenciais de vida perdidos (APVP) e taxa de APVP por grupos de causas externas. O cálculo dos APVP foi feito de acordo com o método de Romeder & McWhinnie (Romeder & McWhinnie, 1988, apud Cenepi, 1992), considerando 69 anos o limite máximo de idade, que corresponde à esperança de vida ao nascer para população do Recife em 1990, dado fornecido pelo Departamento de Demografia da Fundação de Pesquisa Joaquim Nabuco.

Para analisar o comportamento da mortalidade por causas externas ao longo do período de 1977 a 1991, atualizou-se a série de Menezes et al. (1989).

Na segunda etapa, foi analisada a distribuição espacial das mortes por causas externas na cidade do Recife, no ano de 1991, segundo os estratos de renda. Esses estratos foram caracterizados quanto às variáveis de infra-estrutura de serviços urbanos e coeficiente de mortalidade por causas externas (por cem mil habitantes) e principais grupos de causas específicas.

Buscando-se verificar a associação entre as variáveis relacionadas às condições de vida e a mortalidade por causas externas, foram calculados os coeficientes de correlação de Spearman, utilizando-se o programa SPSS.

 

 

Resultados

 

Em certos pontos da série histórica de 1977 a 1990, a mortalidade proporcional na cidade do Recife revela uma mudança no perfil de mortalidade no período examinado, sendo mortes por causas externas um dos grupos de causas mais importantes no quadro geral, apenas superado pelas doenças do aparelho circulatório (Tabela 1).

 

 

Ao se compararem as taxas de mortalidade por causas externas entre as principais capitais brasileiras no ano de 1990 (Tabela 2), Rio de Janeiro e Recife são as capitais que detêm, respectivamente, a primeira e a segunda maiores taxas, seguidas de São Paulo e Curitiba.

 

 

A Tabela 3 mostra os coeficientes de mortalidade por causas externas segundo grupo etário, em 1991. Observa-se uma maior magnitude no grupo etário de sessenta anos e mais, alcançando um coeficiente de 184,6 por cem mil habitantes, e nas faixas etárias de 15 a 39 anos, especialmente no grupo de vinte a 29 anos, cujo coeficiente é de 152,2 por cem mil habitantes.

 

 

Quando se estratifica a mortalidade por causas externas segundo faixa etária e sexo (Tabela 3), observa-se uma sobremortalidade no sexo masculino, exceto na faixa etária de zero a quatro anos.

Dentre os grupos de causas (Tabela 4), percebe-se que homicídios e acidentes de trânsito são os dois mais importantes, com coeficientes de 46,7 e 21,2 por cem mil habitantes respectivamente, sendo homicídios o grupo com o mais alto coeficiente. Esse é um dado que caracteriza a cidade do Recife como uma das capitais mais violentas do nosso país.

 

 

Atualizando-se os dados relativos aos anos de 1986 até 1991, complementando a série histórica de 1977 a 1985 trabalhada por Menezes et al. (1989), e comparando-se as taxas no início e no final do período, observa-se, na série estudada (Tabela 5), que há uma tendência crescente da mortalidade por causas externas, com um aumento relativo de 84,3% nos 14 anos considerados. Em todos os grupos de causas específicas houve um crescimento relativo do início da série (1977) para o final (1991), exceto no grupo de outras violências, onde se evidenciou um decréscimo de 61%. Esse decréscimo possivelmente reflete uma melhoria acentuada no sistema de informação, com uma melhor classificação da causa básica de óbito, contribuindo provavelmente para o aumento dos outros grupos específicos de causas externas. O maior percentual de crescimento foi encontrado nos homicídios, com um aumento de 357%; por outro lado, os acidentes de trânsito apresentaram um acréscimo relativo de 23%; outros acidentes, de 53,6%; e os suicídios, de 65%. Ressalte-se o comportamento dos homicídios, que, a partir da década de 80, ultrapassam os acidentes de trânsito e apresentam um crescimento progressivo até 1990.

 

 

Analisando os principais grupos de causas externas segundo faixa etária em 1991 (Figura 1), em relação aos homicídios, os dados revelam os maiores coeficientes na população de 15 a 19 anos, vinte a 29 anos e trinta a 39 anos. É curioso notar que na faixa de sessenta anos e mais há uma elevação do coeficiente, porém é na população jovem que se concentra o maior risco de morrer. Os acidentes de trânsito acometem mais a população idosa, a partir dos cinqüenta anos. Os outros acidentes também apresentam comportamento semelhante ao dos acidentes de trânsito, com um elevado coeficiente na faixa de trinta a 39 anos e o outro na faixa de sessenta anos e mais.

Em Recife, em 1991, os APVP revelam para o total de causas externas uma soma de 39.782 anos de vida potencialmente perdidos em razão da violência e dos acidentes, com uma taxa de 30,6 anos de vida perdidos em cada mil habitantes. Chamam a atenção as faixas de vinte a 29 anos e trinta a 39 anos, onde se concentra uma soma de 23.608 anos de vida potencialmente perdidos, cerca de 59,9% do total das perdas referidas.

Analisando-se com mais detalhes os tipos de homicídio e acidentes de trânsito em 1991, verifica-se que, dentre os tipos de acidentes de trânsito, os atropelamentos são responsáveis por 45,5% das mortes; entretanto, na realidade, esse percentual poderá ser maior, uma vez que, nos dados estudados, 51,6% dos acidentes são de natureza não especificada. A colisão entre veículos apresenta um percentual de 0,7%; quanto aos homicídios, prepondera o uso da arma de fogo em 83,5%, seguindo-se a este o uso de arma branca em 14,4%.

No que se refere à distribuição espacial da mortalidade por causas externas, nas Figuras 2, 3 e 4 observam-se os coeficientes de mortalidade por causas externas e por grupos de causas específicas por bairro, agrupados em quartis. Ao se analisarem as causas externas como um todo (Figura 2), observa-se uma distribuição bastante heterogênea entre os bairros da cidade do Recife. Os bairros que exibiram os mais elevados coeficientes foram: Cidade Universitária, Santo Antônio, Recife, Casa Amarela, Totó, São José e Guabiraba. Em relação aos acidentes de trânsito (Figura 3), percebe-se que os bairros Cidade Universitária, Recife, Apipucos, Totó, Casa Amarela, Boa Vista e São José perfizeram os mais altos coeficientes. Quanto aos homicídios (Figura 4), nota-se que foram os bairros do Recife, Santo Antônio, Cidade Universitária, Casa Amarela, Brejo da Guabiraba, Guabiraba e São José os que refletiram os mais altos coeficientes.

O exame dos coeficientes de mortalidade por grupos específicos de causas externas, por estrato e segundo condições de vida, fornece mais elementos quanto às especificidades entre as suas principais causas e as relações sócio-econômicas de cada estrato (Tabela 6). Observando-se os resultados, verifica-se, em relação aos acidentes de trânsito, um maior coeficiente de mortalidade no estrato de elevada condição de vida ­ estrato 1 (coeficiente de 29,1 por cem mil habitantes), que vai decrescendo até o estrato de mais baixa condição de vida ­ estrato 4 (coeficiente de 11,5 por cem mil habitantes).

 

 

Os casos de suicídios apresentam um padrão semelhante aos dos acidentes de trânsito, pois à medida que pioram as condições de vida decresce o coeficiente de mortalidade (coeficiente de 6,5 no estrato 1 passa para 1,9 por cem mil habitantes no estrato 4).

Já os casos de homicídios apresentam um comportamento inverso ao dos acidentes de trânsito e ao dos suicídios, uma vez que o coeficiente de mortalidade se eleva do estrato 1 (coeficiente de 30,2 por cem mil habitantes) até o estrato 3 (coeficiente de 54,5 por cem mil habitantes). Todavia, no estrato considerado de mais baixa condição de vida ­ estrato 4, há um declínio do coeficiente (coeficiente de 37,4 por cem mil habitantes), ainda que este permaneça maior do que o do estrato 1.

Em relação aos outros acidentes, não se observa um padrão bem-definido, pois as variações são pequenas entre os estratos.

Ao realizar-se a correlação de Spearman, não se encontrou associação estatisticamente significante entre as variáveis sócio-econômicas estudadas e a mortalidade por causas externas e seus principais grupos de causas específicas (acidentes de trânsito e homicídios) nos estratos e no conjunto dos bairros. Apresentamos os valores dos coeficientes de correlação e os respectivos valores de p para a associação entre renda (percentual de renda de até dois SM do chefe da família) e o coeficiente de mortalidade por causas externas (r = -0,013 e p = 0,9); renda e coeficiente de mortalidade por acidente de trânsito (r = -0,08 e p = 0,44) e renda e coeficiente de mortalidade por homicídios (r = 0,139 e p = 0,18), no conjunto dos 94 bairros estudados. Quando tomamos apenas o conjunto de 49 bairros, nos quais observou-se pelo menos uma morte por acidente de trânsito e homicídio no ano de 1991, constata-se uma associação inversa, embora fraca, estatisticamente significante, apenas para renda e coeficiente de mortalidade por acidente de trânsito (r = -0,35 e p = 0,014). Os outros valores obtidos foram: renda e mortalidade por causas externas (r = 0,022 e p = 0,88); renda e mortalidade por homicídio (r = 0,158 e p = 0,278).

 

 

Discussão

 

Com base nos resultados encontrados, fazem-se necessários alguns comentários metodológicos que podem ter influenciado tais achados, uma vez que, apesar da evidente desigualdade na distribuição da mortalidade por causas externas no espaço urbano de Recife e de uma diferenciação por estrato segundo condições de vida, não foi encontrada uma correlação de Spearman estatisticamente significante.

Algumas limitações metodológicas são apontadas, tais como:

apesar de os estratos serem relativamente homogêneos, não se pode negar a existência de um certo grau de heterogeneidade decorrente de características específicas da formação histórica da cidade;

a utilização de somente um ano (1991) tende a comprometer a estabilidade dos dados, principalmente nos bairros com população abaixo de mil habitantes;

a utilização apenas da variável renda para explicar a mortalidade por causas externas e seus grupos de causa, com determinações de naturezas diversas e bastante complexas, também tende a influenciar os achados.

Um outro aspecto metodológico inerente às características dos estudos ecológicos diz respeito à falácia ecológica. Esta ocorre quando associações encontradas no nível de populações ou grupos são interpretadas como reproduzíveis em nível de indivíduos.

Como no nosso estudo a unidade de análise corresponde a um conglomerado (bairro ou estrato por condição de vida), e não se pretende essa inferência em nível de indivíduo, não aprofundaremos a discussão desse tipo de viés.

Estudo realizado por Mello et al. (1997) confirma a tendência crescente da mortalidade por causas externas observada em nosso trabalho, a qual vem se mantendo na série estudada pela autora, que vai até 1994. Além de chamar a atenção para o crescimento das causas externas, destaca, principalmente, o aumento dos homicídios, resultado também encontrado nos dados analisados.

A magnitude da taxa de homicídios encontrada no Recife, equipara-se às taxas de homicídios de El Salvador (41,6 por cem mil habitantes) e Colômbia (44,9 por cem mil habitantes), países que vêm passando por graves conflitos internos (Opas, 1994).

Em termos da conjuntura econômica e social a partir da década de 80, alguns pesquisadores vêm apontando fatos que podem estar relacionados ao aumento das taxas de mortes violentas, especialmente os homicídios, nos grandes centros urbanos, tais como: o declínio da renda per capita entre 1980 e 1992; o rápido processo de urbanização com mudanças sócio-culturais atreladas, levando a uma deterioração da qualidade de vida; a consolidação dos grupos de extermínio; a acentuação das desigualdades sócio-econômicas, entre outros (Rocha, 1994; Minayo, 1994; Opas, 1994; Yunes, 1994).

No caso do Recife, os resultados encontrados contrariam a idéia difundida de que o aumento da violência é resultante do crescimento das cidades causado pela intensificação da migração das populações rurais e da expansão da pobreza. Nesta capital, o crescimento intercensitário (1980-1990) foi de 0,66% ao ano, e houve redução da proporção de pobres e indigentes na década de 80. Segundo Rocha (1994), embora não tenha havido agravamento da pobreza e da indigência no que se refere à renda, os níveis atuais se tornam inaceitáveis em face das desigualdades crescentes e da urbanização. A acentuação das desigualdades nas condições de vida, como chama atenção Rocha (1994), pode estar contribuindo para o aumento da violência como um todo e em especial em relação aos homicídios.

O estudo realizado por Zaluar et al. (1994), ao analisar os dados de mortalidade por causas externas, em especial os óbitos por homicídio, no período de 1981 a 1989, nas diferentes Unidades da Federação (UF), áreas metropolitanas e capitais, e ao confrontar esses dados com aqueles da distribuição da pobreza no Brasil e dos fluxos migratórios, conclui pela inexistência da associação entre as taxas de homicídios e pobreza ou migração. O estudo refere o Rio de Janeiro como a região metropolitana que mais empobreceu, principalmente a partir de 1988, porém nesse período a taxa de homicídios já havia dobrado. São Paulo manteve o mesmo percentual de pobres que tinha no começo da década, o que não explica o aumento da taxa de mortes violentas e de homicídios nos anos 80.

Outro trabalho, analisando tendência e diferenciais de mortalidade por causas externas em crianças, sugere uma mais forte associação inversa entre a renda familiar e a mortalidade por causas externas do que entre a renda familiar e a mortalidade geral (Singh, 1996).

Além de destacar a importância das desigualdades sociais, Minayo (1994) chama a atenção para o fato de que, no caso específico dos homicídios, esse fenômeno pode estar associado ao incremento do uso de arma de fogo. A autora aponta o Rio de Janeiro, o Recife, Salvador e Porto Alegre, entre 1980 e 1989, como as capitais onde o crescimento das mortes violentas envolvendo o uso daquele tipo de arma foi mais intenso.

Pesquisa realizada nos Estados Unidos da América evidencia o aumento dos homicídios em adolescentes, independente do gênero e raça, e relaciona com o uso de arma de fogo, principalmente no grupo de idade entre dez a 24 anos (Rachuba, 1995).

Em nosso estudo, o instrumento mais utilizado no caso dos homicídios foi a arma de fogo, em cerca de 83,5% dos casos. Outros autores também discutem essa questão, mostrando que tal instrumento tem um papel fundamental no crescimento das taxas de mortes violentas (Souza, 1994). Stark (1990), por sua vez, destaca que as desigualdades sociais geram frustrações, clima de tensão e conflitos, contribuindo para o aumento das taxas de homicídios.

Os dados indicam também uma elevada proporção de mortes violentas entre mulheres acima de sessenta anos, provavelmente vítimas de acidentes e atropelamentos. Esses resultados também foram encontrados por Minayo (1994), que utilizou os dados de mortalidade da população de mais de sessenta anos, estando as altas taxas de causas externas vinculadas a atropelamentos e quedas.

Em relação aos homicídios, o estudo apresentou uma taxa mais elevada nas faixas de 15 a 39 anos, decrescendo até os 59 anos e tornando a se elevar nos idosos de sessenta anos e mais. Quanto à faixa etária de 15 a 39 anos, outros trabalhos apontam como principal grupo de risco justamente essa população jovem, de baixa renda, baixa qualificação profissional e sem perspectivas no mercado formal de trabalho (Souza, 1994). Por outro lado, a que grupo social pertence a população de idosos e quais os motivos atribuídos à causa de violência nessa faixa etária são questões que merecem uma maior reflexão.

Quanto aos acidentes de trânsito, segundo estudo realizado por Mello et al. (1994), os resultados não diferem dos encontrados na maioria das capitais brasileiras.

A análise da distribuição espacial da mortalidade por causas externas em Recife no ano de 1991 revela uma grande heterogeneidade, com uma variação bastante acentuada (0 ­ 1478,7 por cem mil habitantes) e que se espalha por toda a cidade.

O estrato 3, considerado de baixa condição de vida, apresenta o mais elevado coeficiente de mortalidade por causas externas como um todo e em particular para os homicídios. Corresponde a uma área bastante heterogênea, com um núcleo na zona litorânea, onde se destacam os bairros de Brasília Teimosa e Pina, que apresentam um mínimo de bem-estar social assegurado, sendo vizinhos do bairro de Boa Viagem, onde reside a nova burguesia e que é uma área em que o governo tem investido em projetos de turismo. O outro núcleo localiza-se na área sul e se constitui principalmente de bairros nos morros da Zona Sul, com uma ocupação mais recente (Cohab, Ibura). Temos outro núcleo na Zona Oeste, que corresponde às áreas de favelas situadas nos alagados, como Mustardinha, Mangueira, Jiquiá e Jardim S. Paulo. Há ainda um núcleo na Zona Norte dos morros: Pau Ferro, Macaxeira.

No entanto, no estrato de mais baixa condição de vida, estrato 4, há um declínio do coeficiente médio em relação à mortalidade tanto por causas externas, como por homicídios. Esse estrato compreende bairros menos populosos, de mais baixas condições de vida, menos heterogêneos do ponto de vista social, possivelmente com uma exposição menor aos conflitos interindividuais, o que reforça a tese de Stark (1990).

Estudo realizado no Rio de Janeiro com o objetivo de discriminar áreas com riscos diferenciados de violência contra adolescentes não verificou uma associação entre as taxas de morte por homicídios e as áreas com piores indicadores sócio-econômicos. Souza et al. (1997) comentam que este fato reforça a teoria de que não é apenas a pobreza que explica a ocorrência da violência, mas um conjunto de fatores associados.

Em relação à mortalidade por acidentes de trânsito, observou-se um comportamento inverso. É exatamente no estrato de mais elevada condição de vida, estrato 1, que se observa o mais alto coeficiente médio de mortalidade. Provavelmente é nesse estrato que circula o maior número de carros e onde ocorre também uma maior circulação de pessoas. Resultados concordantes foram encontrados também no estudo de Souza et al. (1997). Comportamento semelhante foi encontrado no que se refere à mortalidade por suicídios, o que corrobora a hipótese desenvolvida por Rodriguez (Rodriguez, 1973, apud Dados, 1985) de que indivíduos residentes em áreas mais desenvolvidas culturalmente têm maior tendência à autopunição. Esses resultados também foram encontrados em estudo realizado no Rio de Janeiro, onde se observou que, nas regiões com melhor nível sócio-econômico, as taxas de suicídio eram maiores (Dados, 1985).

Apesar das limitações aludidas, a presente investigação transcende o enfoque dos estudos de tendência, uma vez que permite localizar os agregados de maior risco nos espaços sociais; além disso, tais resultados poderão colaborar para subsidiar algumas medidas de controle. Ao apontar os idosos como vítimas de mortes violentas, especialmente dos acidentes de trânsito, poderá reorientar as campanhas ou programas de educação para o trânsito no sentido de protegê-los nas ruas, ao invés de concentrar sua atuação sobre as crianças escolares. A informação sobre o predomínio do uso da arma de fogo na mortalidade por homicídios pode subsidiar medidas mais eficazes a serem adotadas pelo Estado quanto à aquisição e porte daquele instrumento.

Com base nos resultados encontrados, novas reflexões surgem, tais como: qual seria a proporção de homicídios produzidos pela polícia sob o rótulo de intervenções legais, especialmente contra adolescentes e adultos jovens? Essas mortes violentas não poderiam ser reduzidas pelo controle público dos aparelhos repressivos do Estado?

Cabe reiterar, entretanto, que as modificações sobre os determinantes da mortalidade por causas externas (homicídios e acidentes de trânsito) extrapolam o setor saúde, demandando ações complexas de ordem estrutural e conjuntural. Contudo, algumas causas específicas, como os acidentes em geral e certos tipos de homicídio, são passíveis de prevenção ou controle.

 

 

Agradecimentos

 

Agradecemos ao Professor Jairnilson Paim pela valiosa contribuição e leitura crítica do texto.

 

 

Referências

 

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