ARTIGO ARTICLE

 

 

 

 

 

Sandra Lúcia Filgueiras 1
Suely Ferreira Deslandes 2


Avaliação das ações de aconselhamento. Análise de uma perspectiva de prevenção centrada na pessoa

Evaluation of counseling activities: analysis of a person-centered prevention perspective

 

1 Coordenação Nacional DST/Aids, Secretaria de Políticas de Saúde, Ministério da Saúde. Esplanada dos Ministérios, Ministério da Saúde, bloco G, sobreloja, Brasília, DF 70058-900, Brasil. filgueiras@aids.gov.br
2 Departamento de Ensino, Instituto Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz, Ministério da Saúde. Av. Rui Barbosa 716, Rio de Janeiro, RJ 22250-020, Brasil. deslandes@iff.fiocruz.br
  Abstract This paper evaluates STD/HIV/Aids counseling activities provided by the Brazilian National Health Care System (SUS). The following institutional health services were assessed: four anonymous testing and counseling centers, one clinic specializing in treatment for people with HIV, and five STD clinics. All the above are recognized as training centers by the Brazilian Ministry of Health (National STD/Aids Control Program). The data were collected from March to September 1997. The counseling activities from these health services was compared with guidelines developed by the National STD/Aids Control Program using a qualitative evaluation methodology. The main categories analyzed were: a) approaching the patient; b) active listening; c) effective communication; d) risk assessment and discussion of alternatives for risk reduction; and e) orientation concerning clinical aspects and treatment (treatment compliance and improved quality of life). The paper concludes by suggesting changes to improve counseling.
Key words Health Education; Counseling; Evaluation of Results of Preventive Actions; Sexually Transmitted Diseases; Sex Behavior

Resumo Este trabalho apresenta a avaliação das ações de aconselhamento que se efetuam nos serviços do Sistema Único de Saúde (SUS) nos seguintes contextos institucionais: Centro de Testagem e Aconselhamento (CTA), Serviço de Assistência Especializada em HIV/Aids (SAE) e serviços de saúde que atendem indivíduos portadores de doenças sexualmente transmissíveis (DST). A metodologia empregada foi a abordagem qualitativa para avaliação. A investigação ocorreu no período de março a setembro de 1997. Foram avaliados quatro CTAs, cinco serviços de assistência a indivíduos com DST e um SAE - todos reconhecidos pela Coordenação Nacional de DST-Aids como centros de treinamento. No presente artigo, analisa-se a prática de aconselhamento desenvolvida nesses serviços, comparando-a com as diretrizes preconizadas pela Coordenação Nacional de DST/Aids (CN DST/Aids): a) exercício de acolhimento; b) escuta ativa; c) comunicação competente; d) avaliação de riscos e reflexão conjunta sobre alternativas para novos hábitos de prevenção; e) orientação sobre os aspectos clínicos e do tratamento (com vistas à adesão e melhoria da qualidade de vida). Ao término do artigo, são sugeridos alguns redirecionamentos considerados necessários para uma realização mais efetiva dessa prática.
Palavras-chave Educação em Saúde; Aconselhamento; Avaliação de Resultado de Ações Preventivas; Doenças Sexualmente Transmissíveis; Comportamento Sexual

 

 

Introdução

 

Diante do grande impacto da epidemia da AIDS no Brasil, alguns paradoxos têm merecido a atenção dos profissionais da área. Se, por um lado, as informações sobre transmissão e prevenção do HIV têm sido maciçamente divulgadas, por outro, a epidemia vem apresentando um aumento progressivo no número de casos (MS, 1998), modificando seu perfil epidemiológico, sobressaindo a juvenilização, feminização, heterossexualização, pauperização e interiorização (Buchalla, 1995; Castilho & Chequer, 1997; Castilho, 1997; Scwarcwald et al., 1997). Várias hipóteses podem ser levantadas para essa situação e não caberia discorrer sobre todas. Uma delas, pertinente ao desenvolvimento deste trabalho, deve indagar sobre o hiato existente entre as informações disponíveis e a adoção de medidas preventivas. Tal descompasso induz ao questionamento de como as estratégias de prevenção vêm sendo aplicadas e quais delas favorecem em maior grau a incorporação de novos hábitos. Dentre as estratégias reconhecidas, o aconselhamento vem sendo apontado como prática capaz de trabalhar conteúdos culturais e intersubjetivos - fundamentais para a adoção de atitudes voltadas para o cuidado que o indivíduo tem de si próprio. A grande riqueza dessa prática é promover a consciência sobre a vulnerabilidade dos indivíduos. O comportamento individual é um dos elementos importantes, embora não suficiente (os comportamentos sócio-grupais são também cruciais), à vulnerabilidade à infecção pelo HIV (Mann, 1993).

O aconselhamento pode ser definido como um processo de "(...) escuta ativa, individualizado e centrado no cliente. Pressupõe a capacidade de estabelecer uma relação de confiança entre os interlocutores, visando o resgate dos recursos internos da pessoa atendida para que ela mesma tenha possibilidade de reconhecer-se como sujeito de sua própria saúde e transformação" (MS, 1997a:11).

Dessa maneira, o aconselhamento em DST/ Aids visa promover apoio emocional ao cliente, ajudando-o a lidar com problemas de ordem afetiva (relacionados com a sua situação de saúde), reconhecendo e potencializando seus recursos internos para tal. Pretende desenvolver a capacidade pessoal do usuário para avaliação de riscos, ou seja, inclui, por parte dele, o reconhecimento de situações de risco e a capacidade de tomar decisões sobre as opções de prevenção mais convenientes para si. Busca, ainda, trocar informações sobre a doença, suas formas de transmissão, prevenção e tratamento, esclarecendo de forma mais personalizada as dúvidas e receios do cliente.

No contexto das DST/Aids, o aconselhamento tem por objetivos promover: redução do nível de estresse; reflexão que possibilite a percepção dos próprios riscos e adoção de práticas mais seguras; adesão ao tratamento; comunicação e tratamento de parceria(s) sexual(is) e de parceria(s) de uso de drogas injetáveis (MS, 1997c).

Portanto, o aconselhamento contribui, potencialmente, para a quebra da cadeia de transmissão da Aids e de outras DST, uma vez que promove uma reflexão do indivíduo, conscientizando-o, mas, sobretudo, tornando-o sujeito no processo de prevenção e cuidado de si. Por outro lado, permite uma relação educativa diferenciada, pois o conteúdo informativo não se perde em discursos generalizantes e impessoais; ao contrário, é apreendido, na medida em que se traduz em reflexões voltadas para a tomada de decisões e atitudes situadas no contexto das vivências de seu interlocutor.

Após dez anos de experiência no âmbito da Coordenação Nacional de DST/Aids (CN DST/ Aids), a prática de aconselhamento teve sua validade reconhecida e acumulou uma massa crítica de conhecimentos teórico-práticos que vem sendo incorporada ao processo de trabalho da maioria dos serviços que atuam em DST/ Aids (MS, 1997a). Contudo, percebia-se, na maioria dos serviços, que esta prática de aconselhamento não se realizava plenamente. Verificava-se a existência de uma confusão entre aconselhamento e outras práticas de orientação (palestras, aplicação de questionários aos usuários e "conselhos" no sentido normatizador de condutas).

Diante da necessidade de maior sistematização dessas vivências e da análise de suas possibilidades e limites, a Coordenação Nacional empreendeu avaliação das ações de aconselhamento que se efetuam nos serviços da rede SUS. O intuito dessa avaliação foi: 1) analisar a adequação da prática de aconselhamento desenvolvida nesses serviços, em relação às diretrizes preconizadas pela Coordenação Nacional de DST/Aids; 2) analisar a percepção dos atores envolvidos no aconselhamento (usuários e profissionais); 3) analisar as condições institucionais de trabalho para a realização do aconselhamento; 4) sugerir redirecionamentos e/ou ajustes necessários para torná-la mais efetiva. Diante das limitações de espaço de um artigo e da necessidade de um recorte, optou-se por focalizar primordialmente os primeiro e quarto itens (muito embora as percepções dos profissionais sobre sua prática de aconselhamento também estejam aqui incluídas de forma indireta).

 

 

Sujeitos e métodos

 

A avaliação foi realizada com base em uma abordagem sócio-antropológica, tendo a metodologia qualitativa como diretriz. A perspectiva qualitativa constitui, atualmente, um dos importantes parâmetros para o campo da avaliação em saúde e tem sido tratada por vários estudiosos como uma contribuição extremamente valiosa das ciências sociais para a área da saúde (Scrishaw & Hurtado, 1987; Aguilar & Ander-Egg, 1994; Hartz, 1997).

A metodologia qualitativa analisa o fenômeno saúde/doença enquanto um processo permeado de elementos culturais, sociais e econômicos, sendo compreendido e vivenciado diferentemente pelos vários atores que dele participam. Assim, o sucesso ou não de determinado serviço, ação ou programa também está relacionado a determinados valores, ideologias, posições de classe, status, crenças de seus usuários, comunidade e agentes (Minayo, 1992). A avaliação qualitativa, portanto, leva em conta se determinada ação em saúde se coaduna ou não aos valores e expectativas dos vários atores sociais envolvidos, assim como à realidade em que está inserida (social e institucional) (Deslandes, 1997).

A metodologia qualitativa ganha especial pertinência para avaliação das ações desenvolvidas na área da prevenção da AIDS e DST, porque incorpora a análise dos significados e valores construídos socialmente, bem como aqueles presentes na prática dos profissionais de saúde e dos seus clientes. Permite, assim, entender o imaginário que alicerça tais práticas e comportamentos em torno do problema da Aids e, conseqüentemente, subsidia estratégias e ações mais sensíveis a tais expectativas.

Esta pesquisa foi realizada no período de março a setembro de 1997, por meio da cooperação entre técnicos da CN DST/Aids e um profissional da área de metodologia qualitativa de avaliação.

Não foi intento desta avaliação traçar, especificamente, o aconselhamento segundo um recorte de pertença institucional (do SAE - Serviço de Assistência Especializada em HIV/ Aids, do CTA - Centro de Testagem e Aconselhamento ou dos serviços para pessoas com DST). Tal vínculo foi destacado apenas na medida em que esta associação foi considerada significativa para a explicação de determinado ponto de vista ou prática.

Em razão do considerável tamanho da rede de atendimento, optou-se por avaliar apenas uma "amostra de conveniência" do universo dos serviços. A definição destes buscou incluir, na medida do possível, unidades das distintas regiões do País. O critério que norteou essas escolhas foi o da possibilidade de aprofundamento das questões avaliadas. Sua representatividade qualitativa consiste no fato de tais serviços, além de atenderem à população, também cumprirem a prerrogativa de funcionar como centros de treinamento (CTs) para outros serviços semelhantes. Essa opção se justifica do ponto de vista metodológico, já que esses serviços podem ser considerados como bem-estruturados e detentores de uma reflexão teórico-prática mais consolidada, o que viabiliza uma avaliação justamente daquelas experiências que constituem um modelo para outras iniciativas.

Foram avaliados quatro Centros de Testagem e Aconselhamento, cinco serviços de assistência a indivíduos com DST; um Serviço de Assistência Especializada em HIV/Aids. Todos esses serviços são reconhecidos pela CN DST/ Aids como CTs. As unidades incluídas na investigação foram as seguintes: CT-CTA de Aracaju (Secretaria Estadual de Saúde, Sergipe); CT-CTA/COA Henfil (Secretaria Municipal de Saúde, São Paulo); CT-CTA/COA Rocha Maia (Secretaria Municipal de Saúde, Rio de Janeiro); CT-CTA/UTA (Universidade Federal do Rio de Janeiro); CT-DST/Belo Horizonte (Secretaria Municipal de Saúde); CT-DST/Manaus (Superintendência de Saúde do Amazonas); CT-DST/Recife (Universidade Federal de Pernambuco); CT-DST/UFF (Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ); CT-DST/São Paulo (Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo); CT-SAE/São Paulo (Secretaria de Estado de Saúde de São Paulo).

A presente pesquisa teve como aporte técnico os procedimentos de entrevista semi-estruturada e a observação de campo, compondo quatro instrumentos de coleta de dados. No que se refere a este artigo, nos apoiaremos na observação de campo da prática do aconselhamento realizada. Buscou-se registrar e analisar como esse atendimento era feito no dia-a-dia destes serviços. Tal instrumento abarcou o registro de um conjunto mais extenso de relações e se pautou por diferentes estratégias previstas pelo método de observação: conversas informais ou dirigidas com os profissionais (outros membros da equipe, incluindo aqueles que não foram entrevistados); leituras de documentos ou materiais produzidos pelos serviços e observação propriamente dita.

Em virtude do recorte eleito neste trabalho (analisar a adequação do aconselhamento realizado às diretrizes preconizadas pela CN), foram utilizadas as seguintes técnicas: a) reuniões com profissionais ligados direta ou indiretamente à prática de aconselhamento em cada serviço visitado; b) diversas observações de campo das atividades de aconselhamento coletivo, individual, atendimento clínico e de outras modalidades de consulta. Assim, foram realizadas dez reuniões; observações de campo de 12 aconselhamentos coletivos e observações de campo de 43 aconselhamentos individuais.

O processo de aconselhamento pressupõe a existência de postura e atitude profissionais que constituem diretrizes para sua prática as (MS, 1997c; OMS, 1991; WHO, 1995): a) exercício de acolhimento; b) escuta ativa; c) comunicação competente; d) avaliação de riscos e reflexão conjunta sobre alternativas para novos hábitos de prevenção; e) orientação sobre os aspectos clínicos e do tratamento (com vistas à adesão e melhoria da qualidade de vida). Sendo assim, o cumprimento de cada uma dessas diretrizes foi considerado como o indicador da avaliação dos aconselhamentos coletivos e individuais.

 

 

Resultados e discussão

 

Considerando que os objetivos do aconselhamento nem sempre são atingidos em um único encontro e podem ser trabalhados tanto em grupo, como individualmente, buscou-se compreender qual era a concepção do aconselhamento coletivo e individual presente nos serviços avaliados. Segundo conceituação da Coordenação Nacional de DST/Aids (MS, 1997c), o aconselhamento coletivo objetiva oferecer aos usuários a oportunidade de redimensionar as dificuldades ao compartilhar dúvidas, sentimentos e conhecimentos. A dinâmica grupal também propiciaria ao indivíduo perceber sua própria demanda, reconhecer o que sabe e sente, estimulando sua participação nos atendimentos individuais subseqüentes (MS, 1997c). No aconselhamento individual, as situações íntimas, como a avaliação do próprio risco e adoção de práticas mais seguras, seriam mais bem trabalhadas num atendimento personalizado. Entende-se que a identificação das barreiras que dificultam as práticas preventivas e dos subsídios para definição de mensagens compatíveis com o cliente depende da qualidade da relação construída entre os interlocutores no aconselhamento.

O aconselhamento coletivo foi designado pelos serviços com diferentes nomes: sala de espera, palestra e aconselhamento coletivo. Era ministrado em alguns serviços exclusivamente por uma categoria específica e, em outros, por representantes das várias categorias profissionais. Os aconselhamentos individuais corresponderam a dois tipos de práticas distintas: uma consulta especificamente destinada ao aconselhamento e consultas de caráter mais clínico (realizadas por médico ou enfermeira, que também praticavam, em maior ou menor grau, o aconselhamento). Alguns serviços incorporavam o aconselhamento como uma atribuição dos profissionais da psicologia, do serviço social e, no máximo, da enfermagem; em outros, era uma tarefa de toda a equipe (ainda que com competências e dificuldades distintas).

 

Receptividade e acolhida

 

A receptividade, via de regra, foi estabelecida junto aos usuários. Os profissionais foram cordiais e tentaram acolher a clientela. Mesmo naqueles atendimentos em que a disponibilidade de tempo não era a ideal, percebeu-se que o profissional buscou ter uma atitude receptiva. Esses profissionais, na sua prática de trabalho, reconhecem que o usuário precisa se sentir apoiado e bem-vindo. Há uma sensibilidade para o fato de que tais usuários, no momento de chegada ao serviço, trazem consigo uma considerável carga de fragilidade e angústia pessoal.

De todos os aconselhamentos acompanhados, raras exceções de atitudes receptivas foram verificadas. Nestes casos, os profissionais em questão adotaram uma atitude mecânica, restringindo-se a seguir friamente um roteiro de entrevista e realizar o exame físico. Percebeu-se, portanto, que a receptividade e acolhida, condições primeiras para a realização do aconselhamento, estiveram presentes na rotina da maioria dos serviços visitados.

 

Atitude de escuta

 

Pressupõe a capacidade do profissional em: 1) propiciar um espaço para que o usuário possa expressar aquilo que sabe, pensa e sente em relação a sua situação de saúde, 2) responder às reais expectativas, dúvidas e necessidades deste e 3) prestar-lhe apoio emocional.

Essa foi uma das diretrizes do aconselhamento que se revelou mais problemática e mais precariamente cumprida. De modo geral, os profissionais restringiam-se a aplicar algum roteiro de anamnese ou de entrevista e a repassar informações sobre a infecção e sua prevenção. Dessa forma, a percepção e um diálogo sobre a real demanda do cliente ficava prejudicada.

As informações obtidas acerca dos usuários, na maioria das vezes, não eram utilizadas como um elemento para o diálogo, visando a uma orientação preventiva compatível com o cidadão em atendimento; via de regra, conduziam à repetição de preceitos normativos para prevenção. Na realidade, o caráter normatizador foi a tônica da absoluta maioria dos aconselhamentos, como pode ser exemplificado nas situações a seguir.

Situação 1 - Atendimento individual anterior à realização do teste/CTA. Uma profissional (P) entrevista um usuário (U), do sexo masculino, aproximadamente 24 anos.

P: "(...) Como está a sua vida?"

Não dá tempo para ele responder e já pergunta em seguida:

P: "Você faz sexo com homem, com mulher, como é?"

U: "Com mulher, normal."

P: "Você faz todo tipo de sexo? Oral, anal, vaginal?"

U: "Vaginal, oral também. Já fiz sexo anal, mas faz muito tempo".

P: "Você está usando preservativo?"

U: "Uso, mas às vezes não. A última vez que transei com a minha namorada foi duas vezes com preservativo e uma sem."

P: "Você está tendo relação sexual só com ela?"

U: "É só com ela."

P: "Desde quando?"

U: "Desde setembro."

P: "Pois é, tem que usar, você está há pouco tempo com ela, outras pessoas podem cruzar a sua vida e tem que se prevenir."

U: É... eu acho que não sei colocar isso direito. A psicóloga explicou na palestra, eu até sei, mas acho que na hora fico nervoso e não consigo colocar."

P: "É, mas não dá, tem que usar. Com o tempo você vai pegando o jeito e se acostumando. Você sabe que aperta a pontinha?"

A profissional explica como se coloca o preservativo, apenas falando, sem demonstração. Não aproveita a oportunidade que o usuário deu, ao expressar sua dificuldade, para explorar e trabalhar melhor essa situação; ver alternativas etc. Quando o usuário sai, a profissional comenta: "Esse cara não está usando preservativo, não. Você acha que foi só uma vez que ele não usou?".

Percebeu-se, pela análise de depoimentos feitos durante a observação de campo, que tais atitudes têm um contexto explicativo próprio. Os profissionais verbalizaram a insegurança que sentem em lidar com situações inesperadas e o temor que surjam perguntas sobre as quais não tenham conhecimento adequado para responder. Os profissionais apontaram a preocupação de que, nos aconselhamentos coletivos, a fala de alguns usuários constranja os outros do grupo ou que um deles monopolize a atividade. Expressaram a expectativa de proteger a intimidade do usuário e o receio em lidar, diante do grupo, com temas mais polêmicos ligados à sexualidade.

Nas poucas ocasiões em que foi estabelecida uma atitude de escuta, ou seja, em que houve troca entre os interlocutores, o conhecimento prévio e as crenças do cliente, que orientam seu comportamento cotidiano, puderam ser relativizadas conjuntamente. Dessa forma, o próprio usuário pôde identificar com mais clareza as suas demandas e reconhecê-las como pertinentes, conscientizando-se de que é um direito seu manifestá-las e procurar respostas nos serviços de saúde.

Situação 2 - Grupo de Sala de Espera (Aconselhamento Coletivo )/Clínica de DST.

A profissional (P), após ter discutido com o grupo (Gp) sobre o que são as DST e como são transmitidas, trabalha as percepções deste sobre as expectativas em relação à comunicação das parcerias sexuais e implicações do tratamento.

P: "E usar a camisinha é fácil? Como é para o homem e para a mulher? Como pensa o homem e a mulher quando um ou outro já vai com a camisinha para o encontro?"

Gp: "Já veio premeditado, só estava pensando nisso." "Essa mulher é fácil." "Muitas vezes a gente não premedita. A gente sabe que pode rolar, mas não premedita."

P: "E qual é a sensação de usar a camisinha?"

Gp: "Chupar bala com papel." "Não vejo diferença." "Eu acho diferente, não sente a quentura da mulher." "Prolonga a relação."

P: "Pois é, pode ajudar o homem que goza rápido a demorar mais."

Dois participantes do grupo fazem a demonstração do uso da camisinha. A profissional comenta a dificuldade de pôr a camisinha quando o pênis não está bem ereto. Falam também sobre o tamanho do pênis e da camisinha, se a mulher pode ajudar, que muitas vezes a pessoa pode ficar ansiosa e o pênis 'amolecer'...

P: "Até quando é para usar a camisinha?"

Gp: "Até o tratamento (da DST) acabar, quando a gente está com alguém." "Não acho, não dá para saber se dá para confiar no outro." "Minha mulher não gosta de usar a camisinha, diz que irrita."

O grupo fala sobre confiança no parceiro e a profissional questiona se um casal tem que usar camisinha. Diz que casados também se contaminam, que conversar sobre essas coisas é importante e que esse assunto de traição é complicado.

P: "Às vezes o relacionamento não estava muito bem e aí pinta uma doença e daí chega a hora de a gente conversar."

Diz que por vezes a doença pode ajudar para que a conversa ocorra.

P: "Não pode ficar com a mente ligada na camisinha o tempo todo. É melhor colocar a camisinha e se ligar na pessoa."

A profissional retoma a colocação de um participante do grupo que disse que a mulher fica com a vagina irritada por causa do uso da camisinha e os questiona sobre o que pode ser isso.

Gp: "Falta de lubrificação." "Falta de carícia ..."

O aconselhamento continuou por mais cinqüenta minutos num clima bastante participativo.

Importante também é ressaltar que o aconselhamento coletivo não pode ser visto como uma aula e que ele também não se presta à terapia de grupo. Na realidade, é necessário reconhecer que os profissionais precisam administrar muitos limites e nem sempre têm com quem discutir sobre tal atuação.

Se, por um lado, o momento do aconselhamento coletivo tem um caráter fortemente educativo, há que se discutir as maneiras pelas quais as orientações serão ministradas: se por meio de um roteiro rígido de conteúdos, tal qual uma aula expositiva, ou se pela valorização da interação entre profissional e usuários, incentivando-os a trocar conhecimentos e a verbalizar dúvidas e temores. Há que se ressaltar que essa interação não está garantida pela simples aplicação de uma dinâmica professoral de perguntas-respostas. Essa troca só é possível com reconhecimento de que os usuários detêm um conhecimento prévio, baseado nas experiências e no saber de senso comum. Ainda que esse escopo informativo não seja científico (e muitas vezes composto por dados equivocados desse ponto de vista), ele é suficientemente arraigado e capaz de orientar o comportamento cotidiano desses indivíduos. Portanto, ignorar tais concepções é perder a chance de relativizá-las.

Em termos gerais, nos aconselhamentos individuais observados, a atitude de escuta variou, consideravelmente, de um profissional para outro e em todos os serviços pesquisados.

A atitude de uma maior iniciativa de escuta não foi prerrogativa de nenhuma categoria profissional em especial. Observou-se, porém, que, em algumas consultas médicas, essa diretriz foi fortemente prejudicada por uma postura de distanciamento, percebendo-se o exercício da autoridade médica dicotomizada em relação às expectativas e vivências do usuário (o que era agravado pelo pouco tempo disponível para o atendimento).

Situação 3 - Atendimento individual/Clínica de DST. Usuário de 47 anos, solteiro, queixando-se de machucado no pênis.

O profissional pediu para que o paciente mostrasse o pênis e nem saiu detrás da mesa. Como não conseguia enxergar direito, acabou levantando e se aproximando do paciente. Disse que este não tinha nada, que não precisava se preocupar, pois, no máximo, era um esfolado por conta da própria relação sexual.

Em seguida, o paciente relata:

"Tem outra coisa, não estou conseguindo com a mulher (gozar), amolece antes. Eu tenho que me masturbar para conseguir".

Nessa hora, o profissional diz:

"Aqui a gente não atende essas coisas psicológicas...".

Volta-se para o paciente e pergunta se ele tem diabetes, se está tomando alguma medicação e o paciente diz que não. Então diz:

"Você deve procurar um urologista para resolver o seu problema."

Escreve num papel 'urologista' para o paciente não esquecer o nome. Assim, termina o atendimento que não passou de cinco minutos.

Nas entrevistas de aconselhamento individual, também foi predominante uma dinâmica de aplicação de um roteiro, em que o profissional se via numa postura de perguntador. Inúmeras perguntas eram feitas sobre a intimidade do usuário, cujas respostas, contudo, não serviam (salvo raras exceções) como elemento para uma orientação adequada às necessidades individuais do daquele.

A possibilidade de expressão dos sentimentos relacionados ao diagnóstico e/ou ao teste também foi item problemático. Os sentimentos eram colocados pelos usuários mas nem sempre desencadearam um trabalho de reflexão entre o profissional e este usuário.

Situação 4 - Atendimento individual para entrega do resultado do teste/CTA. Usuário do sexo masculino, aproximadamente vinte anos.

A profissional (P) apresenta-se e diz ao usuário (U) que vai fazer-lhe algumas perguntas importantes, para saber no que ela deve orientá-lo.

U: "Vou tentar responder. Estou muito nervoso, nem dormi direito esta noite."

P: "Você acha que dá para responder?"

A profissional, em vez de propiciar um espaço que ele pudesse falar desse 'nervoso' e explorar o que significa o resultado do teste para o usuário, ou mesmo dizer-lhe logo o resultado, continuou com seu roteiro.

Sem dúvida que as reações diversas, a variedade de situações, obrigam aquele profissional a um exercício interno constante ("O que eu respondo?"). Apesar de saber a responsabilidade que tem diante do usuário, as ameaças, atitudes desesperadas, exigem demais de um profissional que não teve, necessariamente, em sua formação acadêmica, o preparo para lidar com tais questões.

 

Comunicação competente

 

Diz respeito a: 1) informações apropriadas às necessidades do usuário e adequadas do ponto de vista técnico científico; 2) clareza da linguagem empregada.

A adequação da linguagem, a busca de favorecer a compreensão do conteúdo comunicacional, foram preocupações claramente presentes na prática da absoluta maioria dos profissionais dos serviços pesquisados. Lançavam mão de analogias, metáforas, gírias, expressões populares e sinônimos para que os termos e conhecimentos científicos não fossem obstáculos à compreensão da informação. Poucas vezes, o emprego inadequado destes recursos provocaram o efeito reverso, causando uma certa dificuldade de compreensão.

Há ainda que se ressaltar que o processo comunicacional não é uma linha contínua, de mão única, restrita à relação entre emissor - mensagem - receptor, mas um processo complexo (Araújo & Jordão, 1995). Nesse caso, o receptor não é 'receptáculo' passivo da mensagem, mas sujeito ativo de reconstrução interpretativa do conteúdo informacional; a recepção é um processo dinâmico que extrapola a noção de 'ruídos' que comprometeriam a apreensão da mensagem. Problemas de recepção não se limitam à falta de clareza da linguagem, já que também dizem respeito à não-partilha dos significados culturais vinculados às vivências do receptor. Além disso, o processo comunicacional não se baseia numa relação estanque entre emissor - receptor, mas numa troca (conflitiva ou não) entre ambos, em que emissor se torna receptor e vice-versa. O conteúdo a ser comunicado precisa ser competente, do ponto de vista de uma compreensão mediada pelos valores e vivências do grupo a que se destina. Torna-se, também, inadiável a distinção entre repasse de informação e comunicação. A comunicação diz respeito, necessariamente, à possibilidade do diálogo, confronto e reciprocidade (Habermas, 1989).

Logo, em muitos dos aconselhamentos, não foi possível reconhecer um processo comunicacional de fato, predominando um repasse 'surdo' de informações.

 

Avaliação de riscos e alternativas para novos hábitos

 

Diz respeito a: 1) informações sobre risco orientadas à vivência do usuário; 2) identificação de estratégias preventivas viáveis; 3) orientação e demonstração do uso do preservativo.

Uma vez que a atitude de escuta foi um dos impasses que se verificou para ação do aconselhamento, a informação sobre riscos orientada às vivências do usuário e a identificação de estratégias viáveis foram, conseqüentemente, diretrizes também prejudicadas. Como orientar estratégias compatíveis às vivências, dificuldades e dúvidas do usuário, se estas não tinham legitimidade na relação estabelecida com o profissional? Como estabelecer, em parceria com o usuário, um exercício e, por que não dizer, um jogo de convencimento e sedução para alternativas de novos hábitos, se o roteiro, a informação e a normatização foram priorizados?

Chamou atenção a freqüência com que oportunidades para a avaliação de riscos foram perdidas (nos aconselhamentos coletivos e especialmente nos aconselhamentos individuais). Inúmeras situações observadas demonstraram que os usuários fornecem indicações, pistas, revelando suas reais expectativas e dificuldades quanto à adoção de comportamentos que evitem riscos. Diante desta abertura, a resposta, via de regra, veio sob a forma do reforço da informação correta sobre condutas de risco.

Situação 5 - Aconselhamento individual para a entrega de resultado do teste/CTA. A usuária tem 43 anos, é casada e fez o exame HIV porque está se tratando de uma DST "transmitida pelo marido", e sua médica recomendou-lhe fazer o teste.

O profissional pergunta se ficou alguma dúvida da palestra, e ela responde que não. Ele pede a carteirinha, confere as senhas e mostra o resultado negativo do exame para a usuária. Diz que esse resultado não se refere aos três últimos meses, só dali para trás, pois qualquer contaminação dali para frente não é acusada naquele exame.

A usuária (U) diz:

U: "É, eu sei, a profissional explicou."

O profissional pergunta qual foi a preocupação que a levou fazer o teste. Ela conta que o marido tem outras mulheres fora de casa, que lhe passou uma bactéria, e que a médica pediu para a usuária fazer o teste da AIDS.

U: "Eu já disse para ele se tratar (da bactéria), mas como ele não sente nada, não se trata. Faz meses que estou tomando remédio, mas ele não e aí passa de novo para mim."

Assim que vê o resultado do exame anti-HIV, pergunta quando tem que fazer outro. O profissional (P) responde:

P: "O melhor é a Sra. usar o preservativo, não adianta ficar fazendo exame. Seu marido usa preservativo?"

U: "Esses tempos, por causa da micose, eu pedi e ele usou. Ele diz que usa com as outras, mas eu não sei não... porque ele passou essa bactéria para mim."

P: "Nesse caso é melhor a Sra. usar o preservativo, não só para evitar a AIDS, mas porque senão essa micose não vai sarar nunca."

O atendimento é encerrado por aí.

É de conhecimento público que a recomendação ao uso de preservativo é considerada como um dos pilares da prevenção. Essa questão, ainda, faz parte de qualquer aconselhamento ou conteúdo informativo no que se refere às DST e AIDS (MS, 1997b). Todavia, a maneira como a recomendação ao seu uso é trabalhada padece de alguns equívocos, cotidianamente reproduzidos nos serviços.

O primeiro dos equívocos é falar sobre a utilização do preservativo sem uma demonstração do uso correto. Aula teórica sobre como usar preservativo não significa, de maneira alguma, a compreensão de como usá-lo. A substituição do protótipo por outros recursos (bananas, cabos de vassoura, embalagens de desodorante ou similares) é outra questão que merece ser mais discutida, pois pode conduzir a associações negativas ou confusas entre a imagem que aquele recurso substituto invoca e o próprio pênis. Poucas foram as ocasiões em que a recomendação do uso de preservativo correspondeu a uma atitude do profissional no sentido de ouvir o que o usuário realmente pensava sobre o seu uso (quais eram seus sentimentos, valores e dificuldades).

Talvez o maior dos equívocos nesse caso seja o de não levar em conta os receios, vergonhas e dúvidas dos indivíduos em relação ao uso do preservativo, tratando tais questões como tabu.

Ao retirar a legitimidade desse conteúdo cultural e do indivíduo, a argumentação junto ao usuário dá lugar a: discursos nem sempre justificáveis (como afirmar que está fora de moda a recusa do preservativo); desqualificação dos argumentos dos usuários (dizendo a eles que não há diminuição da sensibilidade); discursos politicamente corretos, mas com baixa eficácia simbólica ("É machismo não usar"); uso da autoridade ("Tem que usar").

Outra questão importante, que ganha um significado cada vez maior, é a orientação do uso de preservativo junto às mulheres. Como dar subsídios às mulheres para negociarem com seus parceiros o uso do preservativo? Pela imposição? Pelo 'argumento do terror' ? Talvez, o primeiro passo seja o de reconhecer que essas mulheres passaram por processos diferenciados de construção de sua identidade social. Muitas estão vinculadas a uma relação tal de submissão aos seus parceiros, que pensam ser impossível abordar tal assunto. Por outro lado, o uso do preservativo envolve todo um imaginário ligado à sexualidade (e muitas vezes à infidelidade); exigir que o parceiro use o preservativo é declarar que não confia nele, ou, ainda, é reconhecer que ele é infiel, ter ciência do fato e aceitá-lo. Ainda pode levá-lo a pensar que não é o único e, no caso, ela se expõe. Numa relação estável, um casamento de muitos anos, por exemplo, será recomendado que o casal use preservativo um com o outro ou com os eventuais parceiros extras, ou cada caso merece uma reflexão própria?

Situação 6 - Aconselhamento individual para a entrega do resultado do teste/CTA.

A profissional (P) aconselhadora começou perguntando a idade da usuária (U). Seguiu o roteiro, mas de forma aberta. O 'gancho' foi a pergunta sobre a janela imunológica, assunto abordado na palestra.

P: "Entendeu direitinho a janela imunológica?"

A usuária respondeu que sim. É jovem e há sete anos tem relacionamento com um homem casado. A aconselhadora perguntou sobre transfusão, aleitamento e entrou na vida sexual. Insistiu na transmissão anal. A usuária começou negando, mas depois confirmou:

U: "Não vou negar, não."

P: "E você usa camisinha?"

U: "No princípio, sim, mas depois deixamos de lado. É muito difícil o homem aceitar, né? Homem não quer não, minha filha."

A profissional permaneceu calma e sorridente, criando um clima de empatia. A usuária disse:

U: "Quem sabe de agora em diante, né? Minha vida é tão doce e bela...".

A aconselhadora passou então a explicar o formulário (prontuário ) e entregou a carteirinha de identificação.

P: "Não pode perder, porque senão tem que fazer tudo de novo, tá?"

Depois que a paciente saiu, a profissional disse que não acreditava que a usuária fosse mudar de hábito. "Essas mulheres são as piores. Totalmente submissas."

A questão do feminino e o uso do preservativo é complexa e merece uma reflexão mais aprofundada que busque superar os argumentos autoritários e aqueles sem especificidade às demandas dessas mulheres. Além disso, percebe-se como necessário discutir a adequação das orientações em face dos padrões e mudanças dos comportamentos sexuais dos brasileiros (Parker et al., 1995; Santos, 1995).

 

Orientação dos aspectos clínicos e do tratamento das DST/Aids

 

Essa diretriz visa promover a adesão ao tratamento. Verifica-se que pode ser favorecida tanto pela compreensão que o indivíduo tem a respeito do seu problema de saúde e do que lhe foi prescrito, como pelo nível de confiança que adquire no profissional que o atende.

Essa orientação foi mais abordada nos aconselhamentos individuais que nos coletivos (o que era esperado). Muito embora, naqueles contextos em que esse tipo de orientação parecia ser elemento constitutivo da relação com o usuário (SAE e serviços de atendimento ambulatorial para DST), nem sempre foram temas discutidos, variando conforme a demanda (e a coragem em perguntar) de cada usuário. A orientação dos aspectos clínicos e do tratamento foi mais facilitada quando o serviço dispunha das pré e/ou pós-consultas com profissionais de enfermagem. Nessas consultas, sem o peso do temor ao doutor, o usuário sentiu-se, via de regra, mais à vontade para perguntar e falar sobre suas dúvidas.

 

 

Conclusões

 

Verificou-se como uma demanda dos profissionais de centros treinadores (CTA, Serviços de DST e SAE) receber maior capacitação sobre a prática de aconselhamento, visando sanar as deficiências já detectadas, bem como dispor de apoio e supervisão.

Percebeu-se, ao longo da avaliação, que os profissionais trabalham muito bem a questão da acolhida do usuário e isso merece ser constantemente valorizado. Pode-se verificar o grande comprometimento e identificação da maioria desses profissionais com seu trabalho e o compromisso que têm com o usuário. No entanto, tal postura não pode ser confundida com uma atitude de verdadeira escuta.

Observou-se que a atitude de escuta foi, freqüentemente, substituída pelo caráter informativo (visto como instrução ou orientação informativa de caráter normativo) e de coleta de dados sobre o paciente.

A atitude de escuta que valoriza e motiva a fala dos usuários deve ser desenvolvida. Torna-se premente que o atendimento seja centrado no cliente, priorizando o movimento do usuário em personalizar as informações, refletindo-as com base em suas vivências. É importante motivar o usuário a expor suas reais dificuldades para a adoção de determinadas ações que reduziriam seus riscos. Entretanto, não deve haver uma ruptura entre informar e escutar; ao contrário, o ideal é que estejam articulados.

Sugere-se que seja discutida, no âmbito dos serviços, a diferença entre o uso de um determinado roteiro como base para o aconselhamento e uma ficha a ser aplicada de forma mecânica, como um check-list dos aspectos da vida íntima do usuário. Os roteiros utilizados (ficha de anamnese, roteiro de entrevista) não podem ser vistos como uma meta a ser cumprida a qualquer custo. Que os dados a serem perguntados ao usuário façam sentido e sejam trabalhados mais organicamente no atendimento, desencadeando uma reflexão com este indivíduo. Considera-se que o roteiro precisa ser visto como uma base para aquele 'encontro', um "pré-texto" para o verdadeiro 'texto' que será construído a dois, na relação profissional-usuário e diante das reais demandas deste. Dessa forma, busca-se que se incorpore a prática do aconselhamento na rotina dos atendimentos realizados nos serviços de saúde.

Percebeu-se, também, como ponto frágil da prática cotidiana dos profissionais, a avaliação de risco centrada na vivência e real expectativa do usuário. Torna-se fundamental investir neste aspecto, estimulando cada profissional a desenvolver uma dinâmica pessoal de abordagem, em que a orientação seja traçada dentro de um campo de parceria e troca com o paciente. Para tal, as falas, percepções e possibilidades dos usuários precisam ser tomadas como a matéria-prima para a elaboração de planos de ação visando à redução de riscos. Nos serviços em que foi possível observar essa relação, vários depoimentos dos médicos das equipes relataram uma participação mais ativa dos pacientes durante as consultas clínicas, quando estes expressaram maior interesse sobre o que lhes era prescrito (exames, medicamentos, orientações), indicando comprometimento potencial em aderir ao tratamento.

A orientação quanto à utilização de preservativos precisa ser amplamente discutida. Torna-se de relevância estratégica: a) valorizar os sentimentos, dúvidas e percepções da clientela sobre o uso de camisinhas; b) refletir sobre as melhores maneiras de discutir com o usuário sobre a utilização de preservativos sem cair num tom normativo, vinculando nesse debate as possibilidades de realização da sexualidade; c) discutir sobre as melhores maneiras de trabalhar a questão junto às mulheres (e indiretamente seus parceiros); d) incluir sempre a demonstração do uso de preservativo, utilizando preferencialmente a prótese peniana.

A adequação da linguagem ao contexto cultural dos usuários é tarefa fundamental e cotidianamente empreendida pelos profissionais, o que precisa ser valorizado. Torna-se, contudo, importante discutir os limites desse exercício e o momento em que geram imprecisões. É importante lembrar que o processo comunicativo somente se realiza por meio de um diálogo.

Finalmente, é fundamental reconhecer o imenso estresse que esses profissionais enfrentam no seu dia-a-dia. Lidam cotidianamente com situações difíceis (entrega de resultado positivo de exame sorológico anti-HIV, crises conjugais, dependência severa de drogas, entre outros) e muitas vezes não dispõem de recursos pessoais para intervir. É fundamental apontar que o apoio e a supervisão desses profissionais necessitam ser garantidos na rotina institucional.

Incorporar a prática de aconselhamento em DST, HIV e AIDS à rotina de trabalho demanda que os profissionais também invistam num processo de autoconhecimento, tendo clareza de seus próprios limites e possibilidades. Realizar o aconselhamento implica uma postura de relacionar-se com o outro, considerando-o como um sujeito ativo do processo de atendimento. Os discursos politicamente corretos não garantem uma prática profissional livre de preconceitos. Essas questões podem ser trabalhadas em treinamentos, supervisões, reuniões de equipe, porém não dispensam um exercício pessoal e cotidiano.

Os profissionais que trabalham com DST/ Aids, dia-a-dia, superam limitações impostas pela realidade institucional e se sentem desafiados a inovar sua prática. Soluções alternativas de abordagem são formuladas pelas equipes e nem sempre desfrutam de visibilidade e repercussão. Essas iniciativas precisam ser valorizadas e devidamente apoiadas. Vale lembrar que a motivação é essencial para desencadear uma auto-reflexão sobre a prática em busca de um exercício profissional criativo.

 

 

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