ARTIGO ARTICLE

 

 

 

 

 

 

Maria Tereza S. Barbosa1
Maria Rita L. Byington2

Cláudio J. Struchiner3


Modelos dinâmicos e redes sociais: revisão e reflexões a respeito de sua contribuição para o entendimento da epidemia do HIV

Dynamic models and social networks: a review and reflections on their contribution to understanding the HIV epidemic

 

1 Departamento de Matemática e Estatística, Universidade do Rio de Janeiro. Rua Frei Caneca 94, Rio de Janeiro, RJ 20211-040, Brasil.
2 Instituto Nacional de Câncer. Praça da Cruz Vermelha 23, Rio de Janeiro, RJ 20230-130, Brasil.
3 Programa de Computação Científica, Fundação Oswaldo Cruz. Av. Brasil 4365, Rio de Janeiro, RJ, 21045-900, Brasil.
  Abstract Due to certain specificities in the HIV epidemic, its spread has escaped the random transmission pattern of other infectious diseases. Observation of the epidemic has shown that individual behavior - relational patterns among individuals - plays a crucial role in HIV transmission and that strategies to prevent the epidemic's spread should take this factor into account in order to foster efficient allocation of existing resources. Mathematical and statistical models applying the behavioral approach to the epidemic have estimated interactions between groups whose characteristics and behaviors varied. However, such models have been more "post-dictive" than predictive, due to the inadequate representation of social structures in populations through which infectious agents spread. The social network methodology thus came to be applied to the approach to the HIV epidemic. This article discusses alternatives for the application of this methodology to the Brazilian epidemic, considering that sociometric risk networks structure the flow of infectious agents in communities, creating unique opportunities to interrupt their spread.
Key words Acquired Immunodeficiency Syndrome; HIV; Social Support; Theoretical Models

 

Resumo Há especificidades na epidemia do HIV que fazem com que sua transmissão fuja à aleatoriedade verificada na transmissão de outras doenças infecciosas. A observação da epidemia tem mostrado que os comportamentos individuais - padrões de relação que os indivíduos mantêm entre si - desempenham papel crucial na transmissão do HIV e que as estratégias de prevenção do crescimento da epidemia devem tomar em conta este fator para a alocação eficiente dos recursos existentes. Modelos matemáticos e estatísticos que utilizam a abordagem compartimental aplicada à epidemia estimavam as interações entre grupos cujas características e comportamentos variavam. Contudo, tais modelos eram mais "pós-ditivos" que preditivos, atribuindo-se isso à representação inadequada da estrutura social das populações pelas quais se disseminam os agentes infecciosos. Assim, passou-se a aplicar a metodologia de redes sociais à abordagem da epidemia do HIV. Este artigo discute alternativas à aplicação desta metodologia à epidemia brasileira, ponderando que as redes sociométricas de risco estruturam o fluxo de agentes infecciosos em comunidades, criando oportunidades ímpares a sua interrupção.
Palavras-chave Síndrome da Imunodeficiência Adquirida; HIV; Apoio Social; Modelos Teóricos

 

 

Introdução

 

Desde o início da epidemia da AIDS, a epidemiologia tem-se preocupado com a dinâmica da transmissão do HIV, assumindo-se como certo que a transmissão do vírus acontece entre pessoas que se relacionam de forma íntima, além do que, de modo geral, é necessário mais de um contato para que se dê a infecção. Assim, tem-se dado ênfase a observações acerca do comportamento a partir de dois elementos: fatores de risco pessoais e "padrões de mistura" (o termo tem aqui conotação de interação - entre pessoas - e não de mistura no sentido físico-químico).

As pesquisas epidemiológicas iniciais mostraram que, em certo número de casos de AIDS, havia ocorrido contatos pessoais, os quais eram de um tipo que teria proporcionado oportunidade efetiva à transmissão do agente infeccioso. Isso faz com que a transmissão do HIV fuja à aleatoriedade verificada na transmissão de outras doenças infecciosas, nas quais, às vezes, respirar no mesmo ambiente em que há um portador de determinado vírus é o suficiente para que se dê a transmissão do agente.

Mais recentemente, a epidemiologia tem-se voltado para procurar entender os mecanismos mais efetivos de transmissão que ocorrem no mundo, fazendo com que a pandemia global seja considerada uma composição de epidemias regionais ou locais, cada uma delas com características próprias.

Nas explicações propostas para estas variações regionais da epidemia, os fatores relacionados ao ambiente ou aos hospedeiros aparecem como responsáveis pela heterogeneidade tanto da prevalência do HIV como das manifestações clínicas da doença.

Entre os fatores relacionados ao indivíduo, estima-se que o padrão de mistura sexual, as taxas de mudanças de parceiros, o tipo de práticas sexuais e o compartilhamento de seringas entre os usuários de drogas injetáveis (UDI) estão entre os principais determinantes das diferenças globais da epidemia. Em meio aos fatores ambientais, o status sócio-econômico, o grau de urbanização e a migração são apontados como os mais importantes para esta heterogeneidade (Grant & de Cock, 1998).

As estratégias de prevenção, no entanto, têm-se baseado ainda, de forma predominante, na abordagem que focaliza o indivíduo e sua capacidade de perceber o risco de infectar-se e, por conseguinte, de prevenir-se. Semelhante percepção resulta das informações que ele/ela possui a respeito dos riscos de transmissão. Essa abordagem não pondera a capacidade de o indivíduo associar diferentes graus de risco aos seus possíveis atos, fundando-se na concepção de que a saúde é a coisa mais importante para cada um e, portanto, a motivação primeira para estruturar o comportamento. Não considera, ainda, que este risco é construído através da interação entre os parceiros, na qual a proteção é negociada, implícita ou explicitamente, de forma diferente e de acordo com o gênero, a idade, o nível sócio-econômico e o grau de intimidade da relação.

A observação da epidemia de AIDS tem mostrado que os comportamentos individuais desempenham papel crucial na transmissão do HIV e que as estratégias de prevenção de seu crescimento devem levar esse fator em conta para que se utilizem os recursos de forma eficiente. A noção de comportamento deve ser entendida aqui de acordo com os padrões de relação que os indivíduos mantêm entre si, em que o risco é visto como conseqüência de seus comportamentos, dependentes de suas relações com outras pessoas e do contexto social em que vivem.

Muito do entendimento que se tem a respeito da transmissão do HIV foi obtido a partir de uma série de modelos matemáticos e estatísticos que utilizaram a abordagem compartimental para ponderar as interações entre grupos cujas características e comportamentos variavam (Hyman & Stanley, 1988; Jacquez et al., 1988; Le Point & Blower, 1991; Garnett & Anderson, 1993). No entanto, por não representarem de modo adequado esses padrões de relação, a tendência é que esses modelos tornem-se antes "pósditivos" do que preditivos. A solução parece exigir representações mais realistas da estrutura social das populações por meio das quais se disseminam os agentes infecciosos.

Sendo assim, diversos autores começaram a estudar a epidemia da AIDS segundo a metodologia de redes sociais. Alguns, apenas teoricamente, através de simulações de redes, outros a partir de dados empíricos. Um dos argumentos é o de que as redes sócio-métricas de risco estruturam o fluxo de agentes infecciosos em comunidades e fornecem oportunidades únicas para a interrupção deste fluxo (Klovdahl, 1985; Friedman et al., 1997).

Aqui abordar-se-á como a modelagem matemática atual vem utilizando as redes sociais como ponto de partida para o entendimento da evolução da epidemia nos diferentes estratos sociais. São discutidas ainda as potenciais limitações e contribuições desta abordagem à realidade brasileira.

 

 

Modelos dinâmicos: algumas aplicações

 

Os modelos matemáticos epidemiológicos da dinâmica de transmissão do HIV têm sido utilizados para indicar a importância de certos aspectos comportamentais na disseminação da epidemia, servindo também para auxiliar na interpretação das tendências observadas. Embora trabalhem com suposições simplificadoras, têm conseguido clarear aspectos complicados - tais como, o impacto para a epidemia dos diferentes padrões de mistura nas parcerias sexuais - e têm suscitado novas hipóteses para futuras pesquisas. Estes modelos encaram a história natural da epidemia da AIDS como um sistema, cuja população é subdividida em compartimentos que representam categorias de importância epidemiológica. Na sua forma mais simples, estes compartimentos podem ser os descritos na Figura 1 e, em suas formas mais complexas, podem tanto incluir subdivisões entre os infectados conforme a contagem de células CD4+, como aspectos que alterem as probabilidades de transição entre os compartimentos, como, por exemplo, infecciosidade e diferentes tempos de incubação segundo idade ou categoria de exposição. Ao tentar refletir os mecanismos de infecção pessoa a pessoa e incluir nos modelos parâmetros como a taxa de infecção, taxa de contato e duração da incubação, eles possibilitam quantificar, por exemplo, o efeito que uma mudança de comportamento no que concerne ao compartilhamento de seringas por parte dos UDI possa vir a ter na magnitude da epidemia.

 

 

Os modelos epidemiológicos dinâmicos podem ser determinísticos ou estocásticos. Os modelos determinísticos, em sua forma mais usual, descrevem a transição entre os compartimentos através de um sistema de equações diferenciais (1), formuladas a partir de suposições biológicas e que descrevem mudanças no número de suscetíveis, de infectados e de indivíduos com AIDS de ambos os sexos com respeito a um tempo t e uma idade a, obtendo-se as estimativas mediante os diversos métodos numéricos existentes:  

(1)

Os modelos estocásticos atribuem probabilidades de movimento entre as classes epidemiológicas e, quando estes modelos são simulados, obtêm diferentes resultados para cada uma das simulações. Chega-se então às conclusões a partir dos resultados médios.

Recentemente, graças aos avanços computacionais, a modelagem epidemiológica estocástica tem podido incorporar novas técnicas. Assim, têm-se evidenciado vantagens na utilização de técnicas de estimação recursiva - como o filtro de Kalman ou a Modelagem Dinâmica Bayesiana - com o objetivo de descrever uma epidemia, de modo a incorporar mudanças dos parâmetros no tempo (Stroup & Thacker, 1993; Cazelles & Chau, 1997). Estes ganhos também foram evidenciados quanto à utilização dos métodos de simulação estocástica com o objetivo de estudar a disseminação do HIV em população hipotética de UDI, para métodos de simulação de Monte Carlo, visando à flexibilização dos modelos de probabilidade ou, ainda, visando descrever uma estrutura de rede de contatos sexuais (Struchiner et al., 1995; Kretzschmar et al., 1996).

Os modelos dinâmicos, de modo geral, não estabelecem previsões precisas das tendências futuras da epidemia, mas facilitam a medida indireta de certos parâmetros epidemiológicos. A Tabela 1 apresenta alguns dos símbolos utilizados para descrever as principais variáveis e parâmetros contidos nesses modelos.

 

 

Estes modelos têm ajudado a identificar progressivamente os dados indispensáveis para melhor predizer as tendências da epidemia. A partir deles evidenciou-se, por exemplo, a necessidade de representação mais realista da estrutura social da população por meio da qual os agentes infecciosos se espalham. A forma inicial de enfrentar este problema foi avaliar o número de pessoas em diferentes classes de atividades sexuais ou categorias sociais.

No México, por exemplo, Romieu et al. (1991) dividiram a população sexualmente ativa em quatro grupos. Para cada grupo, consideraram três compartimentos, a mesma taxa de contato com novos parceiros, a mesma duração de infecção e, ainda, a mesma probabilidade de adquirir a infecção com parceiro infectado. Ao estimarem a probabilidade de transmissão de cada grupo, puderam calcular o impacto que a redução de cada um destes parâmetros/probabilidades teria na epidemia. Williams & Anderson (1994), visando incluir, no modelo, o comportamento sexual no âmbito de cada categoria e entre diferentes categorias de exposição, utilizaram cinco compartimentos em que descreviam os diferentes estágios da infecção pelo HIV: um para os suscetíveis, um para as pessoas com AIDS e três compartimentos de infectados. Além disso, cada compartimento foi subdividido em grupos, de acordo com a freqüência de atividade sexual. Para isso, utilizaram informações das taxas de mudanças de parceiros obtidas por pesquisas a respeito do comportamento sexual. Ressaltando todas as incertezas inerentes às dificuldades de obter-se informações precisas a respeito dos parâmetros epidemiológicos necessários, concluíram que, apesar de a prevalência da infecção pelo HIV ser maior nos grupos de elevada "rotatividade" sexual, estes constituem pequena fração da população total. A escolha apropriada do padrão de mistura - isto é, do número e concomitância de parceiros sexuais entre os grupos - seria fundamental para que estes modelos pudessem ilustrar melhor as tendências da epidemia.

Cazelles & Chau (1997) utilizaram o filtro de Kalman em um modelo de três compartimentos iniciais: suscetíveis (X), infectados (Y) e doentes (Z). As equações diferenciais (2) do modelo foram incorporadas em abordagem de espaço de estados:

(2)

Onde a primeira equação é a de estado e f é função não linear, que expressa as relações entre as variáveis, e a segunda, é a equação das observações nas quais h descreve as relações entre as variáveis de estado e as observações. Assim, x(t) = {X(t),Y(t),Z(t)}, q (t) é o vetor de parâmetros e y(t) é o vetor de observações (casos acumulados de AIDS).

Para descrever o período de incubação, o grupo dos infectados foi subdividido em uma série de n subgrupos, cada um dos quais com tempo de permanência com distribuição exponencial negativa. Em relação ao padrão de mistura, partiu-se do pressuposto de que o grupo de infectados interagia homogeneamente com a população sob risco, e que os indivíduos com AIDS não contribuíam para a disseminação da epidemia. Os resultados mostraram que, aumentando-se o período de incubação e reduzindo-se a taxa de transmissão, chega-se à descrição aceitável da epidemia. Os autores incorporaram também os efeitos do tratamento e da mudança de comportamento, concluindo que a maior diminuição na taxa de transmissão média teve lugar em 1988, o que era explicado por mudanças no âmbito do comportamento sexual, tais como menor número de parceiros e adoção de práticas de sexo seguro.

Watts & May (1992) formularam o primeiro modelo teórico que tomava em conta as múltiplas parcerias por intermédio de modelo simples, que levava em consideração o risco por parceria e não por ato sexual. Considerando a existência de fase de latência entre a aquisição da infecção e o tornar-se infectante em cada tempo t, os autores dividiram a população em classes conforme seu status sorológico (suscetíveis; infectados, mas não infectantes; infectados e infectantes; e aqueles que já estavam com AIDS). E assim (x(t), h(t), y(t) e a(t)) representavam a proporção da população original incluída em cada uma destas classes de status sorológico.

Modelando as taxas de movimentos entre estas classes a partir de várias suposições a respeito da duração e concomitância das parcerias, os autores mostraram que a disseminação da epidemia seria muito mais rápida no caso de existir número mais expressivo de parceiros concomitantes do que seria esperado, caso houvesse reduzido número destas parcerias. Assim, se o número médio de parceiros concomitantes for elevado, a epidemia pode ter efetivamente duas fases: a primeira, muito rápida e a segunda, relativamente vagarosa.

 

 

Redes sociais: questões conceituais

 

Desde 1930, os cientistas sociais, os matemáticos e os estatísticos têm contribuído para o desenvolvimento do conceito de rede social como forma natural de descrever a estrutura de relações de uma população. Nos estudos epidemiológicos, as populações entre as quais os agentes infecciosos se disseminam são geralmente consideradas como aglomerados de indivíduos que interagem aleatoriamente. Percebeu-se que, quando a propagação de agente infeccioso necessita de transferência seriada do hospedeiro ao suscetível mediante contato pessoal íntimo e repetido, conceber uma população de suscetíveis como rede social pode ajudar na compreensão da natureza e disseminação da doença. Os métodos de análise de rede fornecem instrumentos que permitem mensurar e estabelecer inferências a respeito das propriedades das redes sociais através das quais os agentes infecciosos se espalham.

Uma rede pode ser definida como um conjunto de nós conectados, em que estes nós podem ser pessoas, grupos ou outras unidades, e as ligações podem ser simétricas ou assimétricas. O termo rede social refere-se ao conjunto de pessoas em uma população e suas conexões. A análise de redes sociais baseia-se no pressuposto da importância das relações entre unidades que interagem, isto é, relações definidas como ligações entre unidades constituem componente fundamental das teorias de redes. As regularidades ou padrões de interação dão origem às estruturas.

A perspectiva das redes sociais não focaliza os atributos das unidades autônomas individuais, as associações entre estes atributos ou a utilidade de um ou mais desses atributos no sentido de predizer o nível de outro. Esta perspectiva visualiza as características das unidades sociais como propriedades emergentes dos processos estruturais ou relacionais e focaliza as propriedades dos sistemas relacionais em si. Collins (1988) afirma, a respeito da teoria de redes, que: "A vida social é relacional; somente porque, por exemplo, negros e brancos ocupam tipos particulares de padrões nas redes em relação uns aos outros é que "raça" se torna variável importante" (Collins, 1988:413). Sendo assim, na teoria de redes, as ligações relacionais entre os atores são primárias, enquanto os atributos dos atores são secundários. O conceito de rede enfatiza o fato de que cada indivíduo tem ligações com outros indivíduos; cada um dos quais, por seu turno, está ligado a alguns ou a muitos outros, e assim por diante.

A análise de redes sociais tenta resolver problemas que fogem ao padrão. Os dados analisados pelos métodos de rede são bastante distintos daqueles habitualmente encontrados nas Ciências Sociais e do Comportamento. No referencial tradicional de análise de dados pressupõe-se que se dispõe de um conjunto de medidas tomadas de unidades individuais ou casos, originando assim o familiar arranjo de dados de "casos-por-variáveis". O pressuposto de independência amostral das observações das unidades individuais permite que se aplique quantidade considerável de técnicas do arsenal de análise estatística para determinado espectro de questões investigadas. Entretanto, a análise de redes sociais está explicitamente interessada na inter-relação das unidades sociais.

As dependências entre as unidades são medidas como variáveis estruturais. As teorias que incorporam idéias de redes distinguem-se pelas proposições a respeito das relações entre as unidades sociais. Essas teorias argumentam que as unidades não agem independentemente umas das outras; pelo contrário, influenciam umas às outras. Tematizar essas variáveis estruturais abre uma gama de possibilidades ou de restrições para a análise de dados e a construção de modelos. A análise de redes sociais fornece um modo preciso para definir importantes conceitos sociais, alternativa teórica para o pressuposto de atores sociais independentes e um referencial para a testagem de teorias acerca das relações sociais estruturadas.

Ainda em 1985, em uma das primeiras aplicações desta abordagem à epidemia do HIV, Klovdahl (1985) identificou abordagem de rede nos primeiros estudos desenvolvidos pelos Centros de Controle de Doenças, em Atlanta, representando, do ponto de vista desta abordagem, os contatos sexuais entre os homossexuais masculinos com AIDS e fornecendo as bases para a hipótese de que um agente infeccioso estaria envolvido e de que este suposto agente seria transmitido através de relações sexuais. Neste mesmo artigo, o autor afirma, quase premonitoriamente, que "a taxa e a extensão da disseminação da doença transmitida através de relações pessoais dependerá da estrutura das redes relevantes (...). Portanto, o conhecimento destas estruturas deve ser útil para a projeção da taxa e extensão prováveis para doença de rede, isto é, seu potencial epidêmico ou pandêmico" (Klovdahl, 1985:79).

 

 

Redes sociais: conceitos básicos

 

Aqui serão apresentadas algumas definições básicas de conceitos relativos à metodologia de análise das redes sociais e da teoria dos grafos (Wasserman & Faust, 1994), conceitos estes necessários para o entendimento da terminologia utilizada em alguns dos exemplos que se seguem.

 

Grafos

 

Uma rede pode ser vista de várias formas. Uma das mais úteis é como um grafo denominado G, que consiste em nós ligados por linhas. Supondo que há um conjunto de atores (nós) e que vamos denominá-lo de N = {n1, n2,....ng}, consideremos um par ordenado ni e nj. O primeiro ator no par pode ou não ter nomeado o segundo.

Sendo a relação direcional, o par de atores ni e nj é diferente de nj e ni. O conjunto dos pares ordenados será denominado L = {l1, l2,.....lL} e representado graficamente por uma linha do primeiro nó para o segundo conforme ilustrado na Figura 2.

 

 

Além de sua utilidade como sistema matemático, a teoria dos grafos oferece uma representação de rede social como modelo. Por modelo entende-se representação simplificada de situação que contém alguns, mas não todos, os elementos da situação que representa.

Uma forma alternativa para representar e resumir dados de rede são as matrizes. A matriz contém exatamente a mesma informação que um grafo, mas é mais útil para cálculos. Elas são utilizadas na maioria das representações primárias de rede nos programas computacionais. A matriz da rede descrita na Figura 2 é apresentada na Tabela 2.

 

 

Existem vários softwares para analisar dados de rede como GRADAP, UCINET, STRUCTURE, SNAPS, NEGOPY e KRACKPLOT, citando-se apenas os mais usados.

 

Subgrafos, Díades e Tríades

 

Um grafo Gs é um subgrafo de G se o conjunto de nós de Gs é um subconjunto do conjunto de nós de G e o conjunto de linhas em Gs é um subconjunto de linhas do grafo G. Denomina-se "gerado-por-nós" (node-generated) um subgrafo que inclui todas as linhas que estão entre os nós (Figura 3)

 

 

Uma díade (dyad), que representa um par de atores e as possíveis ligações entre eles, é um subgrafo "gerado-por-nós". Em um grafo, um par de nós não ordenados pode estar somente em dois estados: os dois nós são adjacentes ou não-adjacentes. Há somente dois estados diádicos (dyadic) para uma relação não direcionada representada como um grafo - existe ou não existe ligação entre os elementos do par.

Uma tríade (triad) é um subgrafo constituído de três nós e das possíveis linhas entre eles. Em um grafo, uma tríade pode encontrar-se em quatro estados (possíveis). Estes estados são determinados pelo fato de nenhuma, uma, duas ou três linhas estarem presentes entre os três nós na tríade.

 

Grafos conectados e componentes

 

O fato de um grafo ser ou não conectado define uma propriedade relevante deste grafo. Um grafo é conectado se existe caminho entre cada par de seus nós. Isto é, em um grafo conectado, todos os pares de nós são alcançáveis. Se um nó não é conectado, diz-se que é desconectado. Os nós em um grafo desconectado podem ser particionados em dois ou mais subconjuntos, nos quais não existe caminho entre os nós dos diferentes subconjuntos. Os subgrafos conectados em um grafo são denominados componentes.

 

Grau nodal e densidade de grafos e subgrafos

 

O grau de um nó, denotado por d(ni), é o número de linhas que nele incide ou, de modo equivalente, o número de nós a ele adjacentes. Na Figura 2 verifica-se que os graus dos nós são d(n1) = 2, d(n2) = 1, d(n3) = 1, d(n4) = 2, d(n5) = 3 e d(n6) = 3.

A densidade de um grafo é a proporção das linhas que estão efetivamente presentes no grafo dentre todas as linhas possíveis. É a razão entre o número de linhas presentes (L) e o número máximo possível destas. Ela é denotada por D (3) e calculada como:

(3)

 

 

Distância, grau de centralidade e centralidade da informação

 

O menor caminho entre dois nós é denominado geodésico (geodesic). A distância geodésica ou, simplesmente, distância, é definida como o comprimento do geodésico entre eles. Se não existe caminho entre dois nós então a distância entre eles é infinita (ou indefinida). A centralidade é definida em função dos atores, sendo que os atores centrais devem ser os mais ativos, no sentido de que eles devem ter a maioria das ligações com os demais atores na rede ou grafo. Na Figura 4, o primeiro ator é claramente o mais ativo e este alto nível de atividade é visto como grande aumento em sua centralidade.

 

 

Uma medida de centralidade seria então o grau de um nó, d(ni), e um ator com alto nível de centralidade seria aquele em que a ação ocorre na rede. Uma medida padronizada de centralidade é a proporção de nós que são adjacentes a ni (4):

(4)

Outro índice de centralidade considera o caminho combinado de um ator a outro, tomando todos os caminhos, incluindo as distancias geodésicas, e atribuindo-lhes pesos. Uma função ponderada é então calculada, utilizando, como pesos, os inversos dos comprimentos dos caminhos combinados. As menores distâncias recebem peso 1, enquanto os caminhos de comprimento mais longo recebem pesos menores, com base na informação que contêm. A informação é definida como o inverso de seu comprimento.

O conceito de informação é antigo e tem rica tradição em estatística, sendo definido como o inverso da variância de um estimador. Se um estimador tem variância pequena, possui grande informação e é considerado bom. O oposto também é verdade, isto é, estimadores pobres, com grandes variâncias, têm pouca informação.

 

 

Cliques, n-cliques e k-plexos

 

Um clique em um grafo é um subgrafo maximal completo de três ou mais nós. Ele consiste em um subconjunto de nós, todos adjacentes, onde não existem outros nós que também sejam adjacentes a todos os membros do clique (Figura 5).

 

 

Um n-clique é um subgrafo maximal no qual a maior distância geodésica entre quaisquer dois nós não é maior do que n. Formalmente, um n-clique é um subgrafo com conjunto de nós Ns tal que:

d(i,j) £ n para todo ni, nj P Ns

Um k-plexo é um subgrafo contendo gs nós, nos quais cada nó é adjacente a não menos do que gs -k no subgrafo. Se denotamos o grau de um nó i em um subgrafo Gs por ds(i), um k-plexo é um subgrafo em que ds(i) (gs - k) para todo ni P Ns e não existe nenhum outro nó no subgrafo que também tenha ds(i) ³ (gs - k). Isto é, o k-plexo é maximal.

 

k-núcleo

 

Um k-núcleo (k-core) é um subgrafo em que cada nó é adjacente, no mínimo, a um número k de outros nós no subgrafo. Ao contrário do k-plexo, que especifica o número aceitável de linhas que podem estar ausentes em cada nó, o k-núcleo especifica o número necessário de linhas que devem estar presentes em cada nó, ligando-os aos demais, dentro do subgrafo. Um subgrafo Gs é um k-núcleo se ds(i) ³ k para todo ni P Ns. Embora os k-núcleos não sejam, eles mesmos, necessariamente subgrupos interessantes, podem ser vistos como "áreas" de um grafo na qual outros subgrupos coesos de interesse sejam encontrados.

 

 

Exemplo 1: Introdução de conceitos de rede aos modelos dinâmicos

 

Stigum et al. (1994), estudando o efeito da migração e mistura de parceiros sexuais na disseminação de gonorréia, infecções por Chlamydia sp. e HIV, consideraram o grupo-núcleo (core group) como um grupo de pessoas com elevada atividade sexual, definindo "elevada atividade sexual" como número maior que cinco parceiros/ano. Os autores estudaram dois tipos de interações: mistura de parceiros e migração do núcleo (core) para o que é chamado "restante da população". No núcleo, o modelo incluiu a taxa de mudança de parceiros (a = no de parceiros/ano) e a taxa de relações sexuais (f = no de contatos/ano).

O número de infectados no núcleo e no resto da população foi descrito por um conjunto de equações diferenciais, supondo-se que a população total e a proporção de indivíduos no núcleo eram constantes. O modelo proposto continha 11 parâmetros, sendo três relativos à doença, quatro relativos a comportamentos, um referente ao tamanho relativo do núcleo, dois referentes aos parâmetros de mistura e um relativo ao parâmetro de migração.

Os autores concluíram que a taxa de migração entre o núcleo e o restante da população, assim como os parâmetros comportamentais, têm repercussão diferente de acordo com a Infecção Sexualmente Transmissível (IST) que se esteja estudando. Quando não há mistura de parceiros, o HIV não se mantém no restante da população, mas mostra prevalência média no núcleo. Na medida em que esta mistura de parceiros passa a ocorrer e a crescer, a prevalência no núcleo cai suavemente, crescendo suavemente, também, no restante da população. Em relação aos efeitos potenciais da migração, os autores discutem se o comportamento sexual é dependente da idade ou de um efeito de coorte (cohort-dependent). Se o comportamento sexual for fortemente influenciado pela idade, o núcleo será uma população dinâmica, com indivíduos jovens entrando e os mais velhos saindo.

A análise mostra que para uma doença como a AIDS, cuja disseminação baseia-se em longa duração da infectividade, o número de infectados no núcleo é fortemente influenciado por migrações desta natureza.

 

 

Exemplo 2: Simulação de rede com parcerias concomitantes

 

Utilizando os conceitos de redes sociais nos modelos dinâmicos, Kretzschmar & Morris (1996) investigaram como a distribuição de certo número de parcerias em população constante influencia a dinâmica da epidemia. Os autores ponderaram que a disseminação das IST depende dos padrões de contatos sexuais em determinada população, sendo, portanto, decorrente de valores morais e culturais. A rede de contatos foi definida pelos autores por meio de três variáveis: o número médio de parceiros por pessoa no tempo; a duração das parcerias e a distribuição das parcerias na população.

Para investigar o impacto de parcerias concomitantes na disseminação de doença infecciosa, foi utilizado um índice para quantificar a concomitância dessas parcerias ao nível populacional. As parcerias foram modeladas mediante simulação. Ao nível populacional, a dinâmica foi descrita por modelo estocástico de formação de pares. Para formular as possíveis transições na simulação do modelo ao nível individual, os autores descreveram o processo de formação e separação de pares e o da transmissão da doença em população de tamanho N com razão 1:1 entre os sexos.

Cada indivíduo foi caracterizado por três variáveis: status da doença, número de parceiros no tempo t e um vetor compreendendo as identidades dos parceiros. Em cada etapa da simulação, duas pessoas solteiras (um homem e uma mulher) formariam um par, com determinada probabilidade r em cada um dos pares, na qual um era suscetível e o outro infectado, a transmissão ocorreria com probabilidade l e cada par se separaria com probabilidade s.

A disseminação da infecção foi simulada em diferentes estruturas de rede. De acordo com os autores, os resultados mostraram claramente que a disseminação da epidemia depende não somente do número de parceiros que um indivíduo acumula ao longo do tempo, mas, igualmente, do fato dessas parcerias existirem simultaneamente ou seqüencialmente no tempo. Concluíram que a influência dos padrões comportamentais na disseminação da epidemia tem sido subestimada até agora, apontando para a necessidade de modelar estruturas específicas de rede.

 

 

Exemplo 3: Aplicação a uma rede de usuários de drogas injetáveis

 

Considerando a metodologia de análise de redes como campo emergente na epidemiologia que ajuda a explicar a infecção pelo HIV, os comportamentos de risco relacionados à infecção pelo HIV e à disseminação de outras doenças infecciosas, Friedman et al. (1997) ressaltam que as estruturas de rede podem explicar, por exemplo, porque a categoria "raça/etnia" tem sido freqüentemente evidenciada como preditor importante da infecção pelo HIV quando os comportamentos de risco são controlados.

Neste artigo, os autores investigaram, na cidade de Nova York, com sua alta soroprevalência entre os usuários de drogas injetáveis (UDI), se a probabilidade dos pertencentes ao núcleo-2 (2-core) serem infectados seria maior que a dos demais membros da rede e se os ainda não infectados no núcleo-2 estariam expostos a risco particularmente alto frente à infecção pelo HIV.

Foram recrutados UDI em área onde a prevalência para a infecção pelo HIV é elevada nesta população. Estes UDI inicialmente contactados nomearam outros usuários (referência em cadeia). Utilizou-se o programa UCINET para desenhar a rede, detectar os componentes conectados e determinar os k-núcleos dentro destes.

Com base nos resultados encontrados, concluiu-se que a localização na rede sócio-métrica de risco constitui preditor independente do status sorológico entre os UDI neste contexto de Nova York. O núcleo-2 é provavelmente um locus para a transmissão do HIV entre os seus membros e destes para a periferia do componente maior. Além disso, as redes sócio-métricas de risco parecem ser os caminhos através dos quais a infecção pelo HIV, assim como outras infecções transmissíveis pelo sangue e/ou pelo sexo desprotegido, se disseminam em uma comunidade de UDI e de seus parceiros sexuais. Assim, os núcleos-2 podem servir como grupos nucleares que têm a capacidade de manter a epidemia, assim como de constituir-se em epicentro para a transmissão aos demais UDI ou seus parceiros sexuais.

Dentre as implicações quanto aos comportamentos de risco e as estratégias de prevenção, contatou-se que as redes sociométricas de risco podem afetar não só a probabilidade de um indivíduo infectar-se com o HIV como se ocorrerá ou não uma epidemia em larga escala entre os UDI de dada comunidade. Entre as questões-chave, incluem-se: 1) encontrar formas práticas para que programas, ou os próprios UDI, identifiquem componentes e núcleos de redes sociométricas de risco; 2) verificar se é possível trabalhar com os UDI no sentido de influenciar no tamanho e na estrutura dos componentes dessas redes, avaliando os efeitos dessas mudanças na transmissão do HIV; 3) determinar como seria possível diminuir a entrada de UDI nas diferentes dimensões da rede; 4) avaliar como os membros da rede poderiam se tornar "centros difusores" de iniciativas que visam à diminuição dos comportamentos de risco; 5) mensurar a eficácia relativa e o custo dos modos atuais de intervenção.

Os autores concluem que o estudo de redes sociométricas de risco pode ajudar-nos a entender a disseminação da epidemia do HIV nas comunidades de UDI. Pode também ajudar a desenvolver novas maneiras de reduzir a transmissão do HIV (e demais patógenos de epidemiologia similar) em cidades de alta prevalência, além de prevenir surtos epidêmicos em cidades de baixa prevalência.

 

 

Exemplo 4: A dinâmica das redes e a transmissão do HIV

 

Rothenberg et al. (1998) realizaram estudo prospectivo em uma rede de pessoas sob risco presumivelmente elevado para a infecção pelo HIV em comunidade com baixa prevalência e baixa transmissão endógena. Procuraram verificar como a dinâmica das mudanças nessa rede influenciavam a transmissão do HIV. De uma coorte inicial de 595 pessoas sob alto risco - trabalhadoras do sexo, UDI e parceiros sexuais dessas pessoas -, examinaram a rede social de um subconjunto de 96 pessoas entrevistadas anualmente durante três anos.

Os autores utilizaram o índice de estabilidade relatado por Morgan et al. (1997) para avaliar as mudanças no tamanho e nas formas da rede ocorridas nesse período, assim como aquelas relativas a "correr riscos" relatadas pelos entrevistados. Por fim, avaliaram como essas mudanças poderiam ser utilizadas para perceber o potencial de disseminação da AIDS naquela comunidade e, por extensão, seu potencial no que diz respeito à avaliação de programas de intervenção. Além do índice de estabilidade, que consiste na proporção de todos os contatos citados que aparecem em uma rede em dois pontos no tempo - B/(A+C-B), onde A representa as pessoas no tempo 1, C as pessoas no tempo 2 e B é a interseção de A e C -, os autores avaliaram mudanças comportamentais e estruturais.

Para avaliar as mudanças estruturais procurou-se estabelecer o número e o tamanho dos componentes conectados, o grau de centralidade, a centralidade da informação e outras medidas de conectividade, medidas diretas da estrutura da rede. Os autores encontraram que, nos intervalos de tempo entre as entrevistas, a estabilidade das redes variou com os tipos de relações, sendo menor entre os UDI que entre parceiros sexuais (não-UDI). Observaram ainda que tanto o comportamento quanto a configuração de risco se alteraram no sentido de diminuição do risco do primeiro para o terceiro intervalo de tempo.

Em relação às mudanças estruturais, os componentes conectados aumentaram em número de relações multiplex, sugerindo aumento na segmentação (diminuição dos contatos intergrupos) do grupo como um todo. Consideraram ainda que medidas diretas de conectividade - as assim denominadas "microestruturas" ou "ciclos" - proporcionam visão mais consistente dos eventos estruturais, argumentando que a diminuição ou a ausência dessas microestruturas no âmbito das relações sexuais ou do compartilhamento de agulhas e seringas tem relevância direta quanto à probabilidade de transmissão do HIV.

Dos 17 indivíduos soropositivos (para a infecção pelo HIV) da coorte como um todo, sete foram incluídos no subgrupo sob acompanhamento. Nenhum destes ocupava posição de centralidade, quer no subgrupo como um todo ou em um clique ou microestrutura específica.

Estes achados de Rothenberg et al. estão em marcante contraste com a alta centralidade de indivíduos infectados pelo HIV, integrantes da rede de UDI inserida em área de alta prevalência de Nova York, estudada por Friedmann et al. (1997), e mencionada no exemplo anterior.

Rothenberg et al. (1998) sugerem que a estrutura de redes sociais pode facilitar ou obstruir a transmissão (do HIV ou patógeno com epidemiologia similar) em uma população e que a dinâmica das mudanças na rede pode ser crucial para a adequada compreensão da dinâmica da transmissão.

 

 

Alguma questões metodológicas

 

Muitas das análises realizadas utilizam distribuições de probabilidade dos grafos e estas distribuições fornecem o mecanismo estocástico que permite que estudemos os subgrafos estatisticamente. Os métodos estatísticos usualmente começam com uma suposição de que os dados são realizações ou observações de uma coleção de variáveis aleatórias e a primeira questão que um analista deve responder é: "qual é a natureza estocástica das variáveis aleatórias?" ou "que distribuição segue a minha variável aleatória?". Estas distribuições levarão o pesquisador a testar hipóteses a respeito das várias propriedades de um grafo.

Muitos pesquisadores, no entanto, têm utilizado estudos empíricos para mostrar que os dados de redes sociais dificultam a utilização de métodos estatísticos usuais. O padrão especial estrutural, baseado na dependência entre as unidades de estudo, leva a fortes desvios dos pressupostos de aleatoriedade e independência entre as unidades amostrais.

A necessidade de dispor de dados que levem em consideração os comportamentos individuais com vistas a obter a estrutura da rede e as estimativas de medidas de parcerias, fez com que surgissem vários estudos a respeito do comportamento sexual dos participantes.

Os dados coletados com este objetivo têm sido obtidos com amostras da população em geral, amostras de pacientes de clínicas de DST (doenças sexualmente transmissíveis), de indivíduos que pertencem a grupos sob particular risco ou amostras dos núcleos que contribuem desproporcionalmente para a disseminação da epidemia.

As amostras da população em geral têm a vantagem de serem capazes de definir características comportamentais gerais da população. Elas são, no entanto, ineficientes com relação aos estudos que focalizam os grupos-núcleo, porque incluem número muito grande de pessoas monogâmicas e que apresentam baixo risco de aquisição de IST/DST.

Para melhorar a eficiência amostral tem-se usado, por exemplo, estratégias que selecionam aqueles que têm atividade sexual mais intensa. Pesquisas na França utilizaram questões-filtro, visando sobre-representar aqueles que tinham estilos de vida com elevada atividade sexual. As demais estratégias amostrais são, em geral, limitadas por sua falta de representatividade, seja porque recrutam voluntários ou porque dependem de pacientes provenientes de serviços de saúde. As vantagens e desvantagens destes métodos são discutidas em detalhes por Johnson (1996) a partir de estudos específicos.

Além da falta de representatividade, estes estudos apresentam dois outros tipos de vícios muito comuns e que podem levar a interpretações erradas: erros de medidas e dados perdidos.

Em relação aos erros de medidas, os modelos matemáticos necessitam, no mínimo, da distribuição do número de parceiros relatados em dado intervalo de tempo em uma população. Esta definição, que é aparentemente simples, pode levar a grande variação nas estimativas dos parâmetros, conforme a definição adotada. Por exemplo, Johnson et al. (1994) definem parceiro heterossexual como alguém do sexo oposto com quem o respondente tenha tido penetração vaginal ou anal ou contato oro-genital. Já no projeto SIGMA (Hunt et al., 1991), que realizou pesquisa em amostra voluntária de homossexuais masculinos, parceiro sexual foi definido como alguém com quem o respondente tenha tido contato sexual com o objetivo de obter orgasmo para um ou para ambos e distingue atos sexuais insertivos e receptivos.

Outro parâmetro utilizado nos modelos matemáticos, que permanece, no entanto, como constructo basicamente teórico, é a taxa de mudança de parceiros por unidade de tempo. Em muitos exemplos este parâmetro é derivado incorretamente de dados de pesquisa de comportamento sexual, calculando-se a taxa de mudança de parceiros através da subtração entre o número de parceiros relatados em uma série de intervalos bem definidos.

Os dados de padrões de mistura são muitas vezes coletados a partir da perguntas dirigidas aos participantes a respeito do comportamento de seus parceiros, mas, para construir uma estrutura de rede, é necessário que os participantes forneçam informações que permitam que todos os seus parceiros sexuais sejam contatados e incluídos na amostra. Por esta razão, em estudos desta natureza, os dados perdidos estão entre os maiores problemas, pois os participantes podem não relatar todos os seus parceiros sexuais.

Ghani et al. (1998), com o propósito de investigar o efeito de possíveis vícios, sistematizados na Tabela 3, realizaram simulação de Monte Carlo, gerando uma estrutura de rede de parcerias sexuais a partir da utilização de três procedimentos comuns de coleta de dados. Compararam então as diferentes estimativas obtidas de mensuração de parcerias.

 

 

 

Uma possível aplicação da metodologia de redes sociais à epidemia no Brasil

 

No Brasil, assim como na maioria dos países, as estratégias de prevenção têm-se baseado na tentativa de informar a população, em geral, e aos jovens, em particular, a respeito das possíveis formas de infecção pelo HIV, bem como na possibilidade de incentivar a prevenção a partir das práticas de sexo (mais) seguro ou do não compartilhamento de seringas e agulhas. Existem também programas específicos de prevenção em populações mais expostas ao risco de infecção, tais como entre os confinados em presídios, as trabalhadoras do sexo, os caminhoneiros etc.

A extensão do país, sua heterogeneidade e desigualdade social fazem com que o número de casos de AIDS esteja entre os maiores do mundo, distribuídos de forma heterogênea nas diversas Unidades da Federação e crescendo entre os mais pobres ou os de menor nível de escolaridade.

Diversos estudos no Brasil vêm analisando os casos notificados de AIDS e discutindo o que se convencionou denominar de interiorização, feminização e pauperização da epidemia. A única variável existente na ficha de notificação e que pode funcionar como proxy do nível sócio-econômico é a escolaridade. Verifica-se, no entanto, que a distribuição dos casos de AIDS segundo a escolaridade não é homogênea nos diversos municípios nem nas diversas categorias de exposição. Se olharmos esta distribuição para o Brasil, verificamos que 47% dos casos de AIDS são de pessoas analfabetas ou que possuem apenas o 1o grau e que 10% dos casos de AIDS notificados possuem nível superior.

Cabe observar que as pessoas pertencentes à categoria de exposição "homossexual (masculina)" possuem maior nível de escolarização (32% até o 1o grau e 25% no nível superior) do que aquelas incluídas na categoria "heterossexual" (58% até o 1o grau e 6% no nível superior) ou de "usuários de drogas injetáveis" (62% até o 1o grau e 2% no nível superior).

Se olharmos estas distribuições nos municípios brasileiros que estão entre os que apresentam os maiores coeficientes de incidência de casos de AIDS (Itajaí - Santa Catarina; Florianópolis - Santa Catarina; Santos, São Paulo e Ribeirão Preto - São Paulo), verificaremos, por exemplo, que em Ribeirão Preto a epidemia é "mais pobre", com 70% dos casos registrados entre pessoas com escolaridade até o 1o grau e em apenas 3,4% de pessoas com nível superior. Nas categorias de exposição "heterossexual" ou "usuários de drogas injetáveis" neste município isto é ainda mais gritante, com 77% e 76% de casos de AIDS pertencentes a estas categorias com escolaridade até o 1o grau, respectivamente, e apenas 1% e 3%, respectivamente, com nível superior. Os dados dos demais municípios citados estão na Tabela 4.

 

 

Análises desta natureza ilustram que as medidas de prevenção em Florianópolis poderiam, por exemplo, ser diferentes daquelas preconizadas para Santos. A metodologia de análise de redes sociais poderia enriquecer o que já se conhece da dinâmica da epidemia de AIDS em nosso país e subsidiar novas formas de intervenção junto às redes eventualmente identificadas como de maior risco para a infecção pelo HIV e sua disseminação.

Estudos como o desenvolvido por Rothenberg et al. (1998), citado anteriormente, não tinham como um de seus objetivos uma proposta de intervenção. Entretanto, constataram que o método permitiu o registro de diferenças dinâmicas durante o período de três anos que sugeriam diminuição no risco dos respondentes que se mantiveram no projeto durante todo o tempo.

Temos claro que, no Brasil, o tipo de questionário necessário para a abordagem de comportamentos de risco para a infecção pelo HIV é em si problemático, pois toca em questões-tabu que dificilmente são respondidas com a necessária precisão. Entretanto, dois estudos recentes podem fornecer subsídios para pesquisas subseqüentes que poderiam valer-se da metodologia de redes sociais. São eles "O Comportamento Sexual do Brasileiro" (Berquó et al., 1999) e "Estudo da Relação das DST/AIDS e as Drogas no Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro" (SEJ/RJ, 1999).

O primeiro traz informações relativas ao comportamento sexual da população brasileira adulta, habitante de áreas urbanas, e contém dados preocupantes quanto à disseminação da epidemia. A título de ilustração, constatou-se que 12,5% dos indivíduos sexualmente ativos mantêm relações sexuais eventuais, além das que têm com seu parceiro habitual. Destes indivíduos, apenas 64% relataram o uso de preservativos.

O segundo estudo, embora restrito à população carcerária, traz diversas informações importantes para se pensar como a construção de uma estrutura de rede nessa população poderia servir de "piloto" a outros projetos que venham a utilizar-se dessa metodologia para a contenção da epidemia. Esta população era constituída, em 1998, por mais de 13 mil pessoas. O estudo foi realizado mediante amostra aleatória de 1.443 homens e entrevistou quase a totalidade das mulheres (513 mulheres ou 92% do universo de mulheres). Seus resultados mostram o comportamento de altíssimo risco desta população seja pela prática de parcerias sexuais concomitantes sem a utilização de preservativos seja pela prática de sexo em grupo ou pela utilização de drogas.

Assim, podemos apontar para duas possibilidades de aplicações no Brasil das metodologias anteriormente descritas:

• A simulação de modelos dinâmicos teóricos que permitam descrever possíveis cenários para a epidemia brasileira ou quantificar efeitos que uma mudança de comportamento poderia ter em sua magnitude. Nesta direção, Kretzschmar & Wiessing (1998), em simulação estocástica da dinâmica de uma população de UDI na Holanda, verificaram que a redução do comportamento de risco dentro da rede faria com que a prevalência do HIV decrescesse vagarosamente, enquanto que a diminuição do uso compartilhado de seringas com pessoas estranhas à rede determinaria efeito de maior magnitude quanto a tornar mais lenta a difusão da epidemia nesta população. Assim, a prevenção focada em UDI com menor tempo de uso de drogas injetáveis faria decrescer de forma significativa a incidência do HIV.

• A construção e coleta de dados de uma rede empírica que buscasse informações a respeito do grau de mistura, da existência de core-groups e da influência destes na disseminação da epidemia. A exemplo do que foi feito por Klovdahl et al. (1994), que construíram uma rede em cidade de médio porte nos EUA, a partir de homens e mulheres identificados como de alto risco para transmissão heterossexual - trabalhadoras do sexo, usuários de drogas injetáveis e seus parceiros sexuais. Os autores verificaram que os membros dessas populações eram altamente interconectados e que constituíam grande rede social, com várias díades e tríades. Esta pesquisa sugeriu fragilidade dos modelos tradicionais de transmissão e controle de doenças. Além de estabelecer que todas as pessoas na região" conectada estavam sob acentuado risco de serem infectados pelo HIV, identificou, a partir da rede construída, uma mulher com alto grau de centralidade que poderia "causar verdadeira explosão da doença caso viesse a se infectar com o HIV" (Klovdahl et al., 1994:87). Segundo os autores, esta mulher seria "invisível" às abordagens tradicionais da saúde pública.

 

 

Agradecimentos

 

Linha de trabalho financiada parcialmente pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq, PRONEX/FINEP e pela FAPERJ. O presente trabalho foi financiado pela Coordenação Nacional de DST e AIDS, do Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz.

 

 

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Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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