ARTIGO ARTICLE

Maria Cecília Pereira Binder 1
Sheila Lordelo Wludarski 1
Ildeberto Muniz de Almeida 1
Estudo da evolução dos acidentes do trabalho registrados pela Previdência Social no período de 1995 a 1999, em Botucatu, São Paulo

 

Occupational accidents in Botucatu, São Paulo, recorded by the Social Security System from 1995 to 1999

1 Departamento de Saúde Pública, Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista. C. P. 549, Botucatu, SP 18618-970, Brasil.   Abstract This study describes workplace accidents recorded by the Social Security Office in Botucatu, São Paulo, from 1995 to 1999. Related work force information for the same period was obtained from the 8 largest industrial companies in the city. Data were coded and processed electronically. A total of 2,462 accidents were recorded. Of these, 87.3% were workplace accidents, 6.1% occurred while commuting, and 6.6% were occupational diseases. From 1996 to 1999 there was a reduction in workplace accidents reflecting a drop in accidents at the largest companies. Mean time-off-the-job due to accidents was greater in small companies (16.21 to 24.32 days) than in the large ones (9.83 to 12.78 days), with a statistical significance of a = 5% and p = 0.0001. The results: (a) confirm that analyses based on number of officially recorded workplace accidents are limited; (b) show the importance of improving the quality of the system for recording workplace accidents in order to include all classes of workers, not only the registered work force; and (c) show that changes in company work management strategies are important to understand local changes in accident frequency.
Key words Occupational Accidentes; Occupational Health; Occupational Diseases

 

Resumo Este estudo descreve os acidentes do trabalho registrados na Previdência Social, em Botucatu, São Paulo, de 1995 a 1999. Foram analisadas 2.462 comunicações de acidentes do trabalho, 87,3% referentes a acidentes do trabalho típicos, 6,1%, a acidentes de trajeto e 6,6% a doenças ocupacionais. Entre 1996 e 1999, o número de acidentes típicos declinou, principalmente devido à diminuição ocorrida nas grandes empresas do município. Nelas, o tempo médio de afastamento do trabalho variou de 9,83 a 12,78 dias, enquanto nas micro e pequenas empresas, a variação foi de 16,21 a 24,32 dias. Essas diferenças foram estatisticamente significantes (a = 5% e p = 0,0001). Os resultados (a) confirmam que análises baseadas no número de notificações de acidentes do trabalho são limitadas; (b) mostram a importância do aperfeiçoamento de sistemas de informação de acidentes do trabalho em nível local, de modo a incluir todos os casos, independentemente da forma de inserção dos trabalhadores no mercado de trabalho; (c) revelam que mudanças na organização de empresas são importantes para a compreensão da evolução da ocorrência dos acidentes de trabalho em nível local.
Palavras-chave Acidentes do Trabalho; Saúde Ocupacional; Doenças Ocupacionais

 

 

Introdução

 

Elaboradas com base em informações contidas em Comunicações de Acidentes do Trabalho (CAT), documento de emissão obrigatória para trabalhadores cobertos pelo seguro acidentário da Previdência Social e, à exceção de médicos residentes e trabalhadores portuários temporários, regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), as estatísticas oficiais brasileiras sobre acidentes do trabalho têm sido criticadas por vários autores. Excluindo funcionários públicos estatutários, trabalhadores do setor informal, autônomos e empregadas domésticas, elas não revelam a real extensão e gravidade dos acidentes do trabalho e o seu impacto sobre a saúde pública (Alves & Luchesi, 1992; Hirata & Salerno, 1995). Mesmo para trabalhadores cujos acidentes devem ser seguidos de emissão de CAT, o sub-registro, particularmente de acidentes de menor gravidade, constitui problema conhecido e ainda não solucionado. Outra dificuldade importante é constituída pela falta de acesso a banco de dados oficiais de modo a possibilitar a obtenção de denominadores minimamente confiáveis para construção de indicadores como incidência e taxa de freqüência.

Desde os anos 70, as estatísticas oficiais revelam diminuição do número de acidentes do trabalho, tendência que tem sido objeto de controvérsias face à precária qualidade dos dados, já descrita por vários autores (Alves & Luchesi, 1992; Beraldo et al., 1993; De Lucca & Mendes, 1993; Ribeiro & Lacaz, 1984). Inicialmente atribuiu-se este declínio a modificações da legislação previdenciária (Cohn et al., 1985; Possas, 1981), e da assistência à saúde (Carmo et al., 1995). Mais recentemente, face à persistência desse declínio, outros fatores têm sido aventados: processos de reestruturação produtiva, introdução de novas tecnologias e retração do setor secundário com concomitante expansão do setor terciário da economia (Ribeiro, 1994; Wünsch Filho, 1999). Estudo recente assinala a falta de informações relativas ao setor informal da economia, destaca a influência da reestruturação produtiva sobre a incidência dos acidentes do trabalho e, analisando o período de 1975 a 1995, assinala a existência de relações entre flutuações econômicas e a incidência de acidentes do trabalho no Brasil (Wünsch Filho, 1999).

No nível local, isto é, nos municípios, não se dispõe de dados que possibilitem o cálculo de incidência de acidentes do trabalho, por falta de denominadores (por exemplo, número de empregados segurados da Previdência Social, disponíveis para o país e para os estados da federação). Este fato constitui séria limitação à analise da evolução temporal desses eventos.

Esta investigação objetiva descrever a tendência dos acidentes do trabalho ocorridos em Botucatu, São Paulo, no período de 1995 a 1999, e captados pelo sistema de registro do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) visando contribuir para a redefinição de prioridades para políticas locais de prevenção.

 

 

Material e métodos

 

Este é um estudo de vigilância realizado com dados de CAT registradas no INSS. Para as grandes empresas, calcularam-se as incidências de acidentes de trabalho com base no número de casos registrados e no efetivo anual médio fornecido por elas.

Uma das fontes de dados foram as comunicações de acidentes do trabalho registradas no INSS, referentes a casos de acidentes do trabalho típicos, acidentes de trajeto, doenças profissionais e doenças relacionadas ao trabalho ocorridos entre 1o de janeiro de 1995 e 31 de dezembro de 1999 em Botucatu. Trata-se de município do Estado de São Paulo, com aproximadamente 100.000 habitantes e localizado a 230km da capital do Estado.

Uma segunda fonte de dados constituiu-se de informações fornecidas pelas grandes empresas industriais do município, que informaram o número médio anual de trabalhadores. Para elas foram calculadas as incidências anuais de acidentes do trabalho.

As CAT contêm informações referentes à identificação do acidentado e da empresa; horário de ocorrência do acidente; ramo de atividade da empresa; ocupação do acidentado; agente causador, natureza e localização da lesão; período previsto de afastamento do trabalho e serviço de saúde de atendimento. Estes dados foram transcritos por pessoal treinado para uma ficha de codificação, com o auxílio de um manual preparado para essa finalidade.

Para os anos de 1996 a 1999, informações perdidas por campos não preenchidos ou ilegíveis foram recuperadas por meio de consulta à primeira via desse documento, arquivada na agência local do INSS. Caso essa providência não fosse suficiente para a recuperação da informação, a empresa emitente era consultada por telefone.

Para o ano de 1996 foram obtidas informações sobre o número de empregos ocupados no setor secundário e terciário (Fundação SEADE, 1999), possibilitando o cálculo de algumas incidências de acidentes de trabalho.

A classificação das empresas por ramo de atividade foi efetuada com a Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE) (MT, 1997), e a classificação da causa externa e natureza da lesão com a Classificação Internacional de Doenças (CID-10) (OMS, 1997).

A base de dados foi criada utilizando-se o programa Epi-Info, versão 6.0 (Dean et al., 1994). A qualidade da digitação foi controlada com revisão de, ao acaso, 10% das fichas e cruzando-se as variáveis, nome e CGC da empresa, CGC e código de atividade econômica da empresa, código da lesão e localização da lesão.

 

 

Resultados e discussão

 

Verifica-se na Tabela 1 que, de 1995 a 1999, foram emitidas e registradas no INSS 2.462 CAT, das quais 2.149 (87,3%) corresponderam a acidentes do trabalho típicos, 150 (6,1%) a acidentes de trajeto e 163 (6,6%) a doenças profissionais. Observa-se também que, de 1995 para 1996, o número de registros de acidentes típicos aumentou de 495 para 542 (9,5%), decrescendo progressivamente e reduzindo-se à metade, ou seja, 268 casos em 1999. Já os registros de acidentes de trajeto, que permaneceram numericamente estáveis nos três primeiros anos, de 1997 para 1998 aumentaram em 30% para, em 1999, regredir aos níveis anteriores.

 

 

A Tabela 1 mostra que os registros de doenças profissionais aumentaram 267% de 1995 para 1999. Em estudo semelhante, efetuado na mesma localidade, em 1990, apenas 0,9% das CAT emitidas referiam-se a doenças profissionais (Almeida et al., 1993), proporção que subiu para 15,7% no último ano desta investigação. Essa elevação também vem ocorrendo no Brasil e tem sido atribuída à melhoria de seu diagnóstico, particularmente por programas de saúde do trabalhador, bem como ao reconhecimento das lesões músculo-esqueléticas relacionadas ao trabalho pela Previdência Social, a partir da segunda metade dos anos 80.

Em 1997, o Departamento de Engenharia do Tráfego da Prefeitura Municipal de Botucatu registrou 63 atropelamentos e 313 acidentes de trânsito com vítimas, produzindo ferimentos em 503 indivíduos e dois óbitos. Nesse mesmo ano foram emitidas trinta CAT referentes a acidentes do trabalho de trajeto e a análise das causas externas revelou que 14 acidentes típicos ocorreram em rua ou estrada. O acidente de trânsito só é considerado acidente de trabalho quando ocorrer: (a) durante execução de atividades no espaço da rua ou estrada, como no caso de carteiros, motoristas, entregadores de mercadorias, eletricitários etc.; (b) no trajeto para refeições e da residência para o trabalho ou vice-versa, quando é denominado acidente de trajeto.

Neste estudo, a diferença observada no ano de 1997 entre o número de vítimas de acidentes de trânsito (503) e de acidentes do trabalho ocorridos no trânsito (14 típicos e 30 de trajeto) indica ser necessário investigar se os acidentes de trabalho, que ocorrem no espaço da rua com trabalhadores cobertos pelo seguro acidentário, vêm sendo informados ao INSS.

Conseqüência do aumento da violência urbana, sobretudo em grandes centros, vem crescendo a importância do espaço da rua como local de ocorrência de óbitos por acidentes do trabalho e, na Cidade do Rio de Janeiro, nos anos de 1987 e 1988: dos 500 óbitos por acidentes do trabalho, 395 ocorreram no espaço da rua, correspondendo a 11.181 anos de vida perdidos (Machado & Gomez, 1994).

Também em Porto Alegre, estudo de óbitos por causas externas identificou a violência urbana - homicídios, assaltos seguidos de morte e acidentes de trânsito - como importante fator de morte de trabalhadores (Barros-Oliveira & Mendes, 1997).

Em Botucatu, no período estudado, os resultados revelam que a violência urbana como causa de óbito não tem a mesma dimensão da descrita em grandes centros. De 1995 a 1999 foram notificados 11 óbitos por acidentes do trabalho: quatro acidentes de trajeto (um homicídio e três acidentes em rodovias) e sete acidentes típicos (cinco acidentes de trânsito em rodovias, um trabalhador atingido por raio e um soterramento, na construção civil). Esses dados indicam que a prevenção de óbitos por acidentes do trabalho requer estratégias capazes de prevenir acidentes de trânsito, especialmente os rodoviários.

 

Acidentes do trabalho típicos

 

De 1995 a 1999 foram notificados à Previdência Social 2.149 acidentes do trabalho típicos, atingindo predominantemente homens (88% dos casos). Em relação ao grupo etário, predominou o de 18 a 44 anos (83% dos casos), verificando-se que 56 (2,6%) acidentados possuíam idades entre 14 e 17 anos, todos funcionários de micro e pequenas empresas. Isto indica desrespeito às recomendações da Organização Internacional do Trabalho de não empregar menores em processos produtivos perigosos (Herford, 1984).

Estudo semelhante realizado em 1990 revelou que pequeno número de empresas de grande porte foram responsáveis pela maioria das CAT emitidas (Almeida et al., 1993). Neste estudo, verifica-se na Tabela 2 que as 14 maiores empresas do município (oito indústrias, quatro empresas de serviços e duas empresas agrícolas) foram responsáveis por 64,8% do total de registros de acidentes do trabalho típicos (1.393/2.149).

 

 

Na Tabela 2, observa-se que o setor primário da economia notificou 7,2% dos acidentes típicos (155/2.149); o secundário, 59,1% (1.269/ 2.149) e o terciário, 31,7% (679/2.149). A atividade econômica da empresa não foi identificada em 46 casos (2,1%), 42 dos quais em 1995, quando não houve busca de informações junto ao INSS ou às empresas. No período, houve estabilidade no número de notificações no setor terciário e, no primário, crescimento de 92%, de 26 para 50 casos de 1995 para 1998, seguido de queda de 70% deste ano para 1999 (Tabela 2).

 

Acidentes do trabalho típicos em empresas do setor primário

 

Estudo analisando notificações de acidentes do trabalho rurais de 1975 a 1980 em Botucatu, não encontrou explicação para o decréscimo de 93 para 18 casos observado de 1977 para 1979, levando o autor a afirmar que tal queda "não deve necessariamente representar diminuição do risco acidentário" para trabalhadores rurais (Lopes, 1982:13).

Nesta investigação, apenas duas grandes empresas foram responsáveis pelo registro de 51% dos acidentes do trabalho típicos do setor primário (79/155).

O desconhecimento da dimensão da população exposta ao risco e das características dos processos de produção e de trabalho no setor agropecuário de Botucatu limitam a interpretação do aumento do número de registros observado de 1995 a 1998, assim como a queda a seguir.

 

Acidentes do trabalho típicos em empresas do setor terciário

 

A obtenção do número de empregos ocupados no setor terciário da economia em 1996 (Fundação SEADE, 1999) possibilitou o cálculo da incidência de acidentes do trabalho típicos nesse setor. Dos 12.619 empregos ocupados, 3.417 eram empregos no comércio e 9.202, em serviços (Fundação SEADE, 1999). Foram efetuados 145 registros de acidentes do trabalho típicos, dos quais 22 em empresas comerciais e 123, em prestadoras de serviços e as incidências foram: setor terciário: 114,9 casos/10.000 trabalhadores; comércio: 64,4/10.000 trabalhadores; serviços: 133,7/10.000 trabalhadores.

A maior incidência no setor de serviços é compatível com os maiores graus de risco observados em algumas atividades como transportes, reparação de veículos, serviços de saúde e veterinários, coleta de lixo e limpeza urbana etc., quando comparados aos da maioria das atividades comerciais.

As quatro maiores empresas do setor terciário, uma das quais a Prefeitura Municipal, pertencem ao subsetor serviços. Elas foram responsáveis por 311 (58,1%) dos 535 acidentes do trabalho registrados no período (Tabela 2), verificando-se:

1) Empresa privada responsável pela limpeza urbana e pela coleta de lixo: em 1995 essa empresa não informou nenhum acidente do trabalho ao INSS, em que pese tratar-se de atividade com grau de risco 3. Nos quatro anos seguintes houve registro, respectivamente, de 10, 9, 2 e 6 casos. Os tempos médios de afastamento previstos nas CAT variaram entre 17,4 dias (1996) e 25,5 dias (1998), números nitidamente superiores aos verificados para o total de acidentes.

Na década de 60, na Prefeitura Municipal de São Paulo, a taxa de freqüência de acidentes do trabalho dos lixeiros foi de 483/1.000.000 de horas-homem trabalhadas, e considerada elevada pelo autor (Silva, 1983). Mesmo não dispondo de dados para construir as taxas de freqüência em Botucatu para compará-las com as de outras localidades, a ausência de registros em 1995 e as cifras dos anos seguintes levam à suspeita de sub-registro desses fenômenos nas atividades de limpeza urbana e de coleta de lixo na cidade.

2) Sede Regional de Empresa de Transportes Ferroviários: em 1990, a empresa registrou 82 acidentes do trabalho junto ao INSS enquanto, nos cinco anos deste estudo, foram registrados apenas 77. De 1995 a 1998 houve queda de 35 para nove registros e, em 1999, nenhum caso foi registrado, evolução provavelmente relacionada às transformações ocorridas a partir de 1994: programa de incentivo a demissões voluntárias; aumento do número de aposentadorias por tempo de serviço; redução progressiva do efetivo e das atividades da empresa; desativação progressiva do Serviço Especializado em Engenharia de Segurança e Medicina do Trabalho local.

3) Empresa responsável pela limpeza do Campus de Botucatu da Universidade Estadual Paulista: em relação ao número total de registros de acidentes, de 1995 para 1997, constatou-se elevação de 525%, de 4 para 31 casos, seguido de queda para 8, em 1998 e de elevação para 12, em 1999.

Em 1996 a empresa contratou uma enfermeira para acompanhar e orientar as atividades de seus trabalhadores, fato que pode ter influenciado o aumento de notificações em 1997. Em que pese o possível impacto do trabalho desse profissional na redução dos acidentes, a queda de 31 para 8 casos de 1997 para 1998 foi muito acentuada, requerendo investigação complementar.

4) Prefeitura Municipal: emitiu de 22 a 33 CAT por ano, correspondendo 26,9% dos casos do setor de serviços, com 144 acidentes do trabalho típicos nos 5 anos do estudo.

 

Acidentes do trabalho típicos em empresas do setor secundário

 

A obtenção, para 1996, do número de empregos ocupados no setor secundário da economia (Fundação SEADE, 1999) possibilitou calcular a incidência de acidentes do trabalho típicos: com 5.840 empregos ocupados, as empresas industriais de Botucatu notificaram 369 acidentes típicos, o que equivale a uma incidência 631,8 casos/10.000 trabalhadores.

Verifica-se na Tabela 2 que, nos cinco anos do estudo, o setor secundário foi responsável por 59,1% dos registros de acidentes do trabalho típicos (1.269/2.149). De 1995 para 1996 sua participação cresceu em 24,2% (de 297 para 369 casos), decrescendo a partir desse ano de 369 para 131 casos (64,5%).

Sabendo-se que os trabalhadores da construção civil apresentam elevado risco de acidentar-se, os dados referentes a esse ramo de atividade foram analisados mais detalhadamente. Segundo o Sindicato dos Trabalhadores das Indústrias da Construção e do Mobiliário de Botucatu, em 1997, as 19 empresas legalmente existentes possuíam aproximadamente 1.500 trabalhadores. Nesse ano, foram registrados 38 acidentes típicos - incidência de 253,33 casos/10.000 trabalhadores -, cifra duas vezes e meia inferior à obtida para o setor secundário no ano precedente (631,8 casos/10.000 trabalhadores).

Conforme o mesmo sindicato, nesse ramo de atividade, é freqüente que empregados de pequenas empresas sejam obrigados a inscrever-se como autônomos, cujos acidentes de trabalho não são seguidos de emissão de CAT, uma vez que não são cobertos pelo seguro acidentário.

A Tabela 3 apresenta o número de casos registrados junto ao INSS e a estimativa de tempo médio de afastamento do trabalho nas empresas de construção civil, ramo de atividade que participou com 15,8% dos registros do setor secundário (200/1.269). A maior empresa desse ramo, a empresa F notificou quase a metade desses casos e, na Tabela 4, pode-se verificar que nessa empresa, a incidência de acidentes do trabalho típicos variou de 845,01 a 1.758,79/10.000 trabalhadores, valores consideravelmente mais elevados do que o obtido para esse ramo de atividade em 1997 (253,33 casos/10.000 trabalhadores).

 

 

Em relação ao tempo médio de afastamento do trabalho, observa-se na Tabela 3 que, na empresa F, ele variou entre 7,00 e 8,18 dias. Comparando-se essas cifras com as das demais empresas do setor, nota-se que nessas, o tempo médio de afastamento variou entre 14,29 e 29,94 dias e, em todos os anos, foi superior ao dobro do observado para a empresa F. Esses resultados constituem forte indício de que a empresa F emite CAT para acidentes leves, enquanto micro e pequenas empresas, para acidentes de maior gravidade, fato que aponta para sub-registro de acidentes do trabalho típicos no setor de construção civil em Botucatu.

Em relação ao setor secundário, a Tabela 2 permite verificar que as oito maiores empresas foram responsáveis por 46,7% (1.003/2.149) dos acidentes típicos registrados no período, e por 79,4% (1.003/1.269) dos registrados por empresas desse setor.

A Tabela 4 mostra o efetivo médio, número de registros efetuados e incidência de acidentes do trabalho típico para as oito maiores empresas desse setor, constatando-se, de 1995 para 1999: decréscimo de 41,84% no efetivo (de 4.591 para 2.670 trabalhadores); diminuição de 61, 44% no número de acidentes (de 236 para 91); flutuação da incidência de acidentes típicos no período.

Na Tabela 4 vemos que, das oito empresas, cinco apresentaram progressiva redução do efetivo no período analisado. Fizeram exceção as empresas D e F, de 1995 a 1998.

De 1995 para 1996 a incidência de acidentes aumentou nas oito empresas, embora o número de notificações aumentasse apenas em cinco (exceção: empresas A e G). De 1996 para 1999, a incidência e o número de acidentes decresceram nas oito empresas. No entanto, nesse período, nas empresas A e F, a incidência flutuou atingindo valor máximo em 1998. A empresa D, em fase de instalação em 1995 e 1996, a partir desse ano, apresentou diminuição da incidência.

Informações coletadas em três das sete empresas, revelaram características de transformações ocorridas nas empresas A, C e G que auxiliam a compreensão do comportamento dos dados mostrados na Tabela 4.

Na empresa G, modernização e diminuição de 45% do efetivo provavelmente estão na origem da redução de 83,5% na incidência de seus acidentes de 1995 para 1999. Esta redução pode, pois, ser considerada real.

Na empresa C, a redução da incidência de acidentes do trabalho a partir de 1997 relaciona-se à reorganização de seu setor de fabricação sob forma de cooperativas, não devendo ser interpretada como diminuição real da acidentalidade, mas conseqüência da não-captação de acidentes do trabalho em cooperados pelo sistema de registro em vigor.

Na empresa A, as flutuações observadas na incidência (Tabela 4) relacionam-se a transformações correspondentes ao que François & Liévin (1994) denominam reorganização mista e que, no caso, implicaram: (a) transferência da produção de componentes para pequenas empresas do mesmo ramo, que tenderiam a não registrar acidentes leves, podendo acarretar redução aparente da incidência de acidentes do trabalho no setor, via aumento do sub-registro; (b) aumento da automação da linha de montagem, que pode influenciar a incidência de acidentes do trabalho, na medida em que reduz ou elimina alguns riscos (ainda que não se deva menosprezar as possibilidades de criação de novos riscos); (c) terceirização de atividades, com reflexos na ocorrência de acidentes na empresa A (e em seu ramo de atividade), cabendo assinalar que a terceirização tem sido associada a aumento de sub-registro, já que algumas prestadoras de serviço (ou "terceiras"), sobretudo se empresas de pequeno porte, apresentam tendência de não notificar acidentes leves; (d) redução do efetivo, relacionada às transformações referidas nos três primeiros itens e, partir de fins de 1998, agravada por dificuldades financeiras, redução da produção e, em 1999, pedido de concordata.

Para François & Liévin (1994), os processos de reorganização produtiva das empresas assumem formas diferentes de acordo com os objetivos buscados. Os resultados obtidos nas empresas A, C e G mostram algumas características desses processos, apontando para a necessidade de construção de sistemas de informação capazes de dar conta de tais características com vistas à análise da evolução da acidentalidade real.

Na França, a terceirização de atividades de risco (sous-traités de risque) associou-se à elevação da taxa de freqüência dos acidentes, atribuída a maior dificuldade dos trabalhadores terceirizados para se integrar às empresas, compartilhar de sua cultura, comunicar-se com os trabalhadores permanentes, com reflexos negativos em seu desempenho em termos de segurança do trabalho (François & Liévin, 1994).

 

Acidentes do trabalho típicos: tempo de afastamento

 

O tempo de afastamento do trabalho devido ao acidente constitui um dos indicadores da gravidade do episódio. Estudo realizado em Botucatu em 1990, revelou concordância entre o tempo de afastamento previsto nas CAT e o tempo de afastamento registrado nas Fichas de Tratamento dos Acidentados (FTA), documento então utilizado pelo INSS, cabendo assinalar que algumas pequenas diferenças observadas consistiram em previsões de afastamento nas CAT inferiores às das FTA (Almeida et al., 1993). Nos registros referentes ao período de 1995 a 1999, o campo relativo ao tempo de afastamento previsto foi preenchido em 89,9% das CAT. De acordo com as comunicações de acidentes do trabalho, o tempo de afastamento do trabalho nos cinco anos foi de 27.191 dias e a média, de 14,07 dias.

Segundo Mendes (1975), as pequenas empresas industriais apresentam maior risco de ocorrência de acidentes graves. Para Possas (1989:170-171), contudo, a concentração de acidentes graves em estabelecimentos industriais de menor porte decorreria de maior freqüência de acidentes em geral nessas empresas, afirmando "a gravidade dos acidentes não é determinada nem pelo tamanho nem pelo número de horas trabalhadas: depende das condições técnicas de produção, específicas de cada setor de atividade, vinculadas às características do processo produtivo e do produto final". Em que pese essa controvérsia, persiste entre profissionais da área Trabalho e Saúde a crença de que, no Brasil, a exemplo do que ocorre em países desenvolvidos, pequenas e médias empresas geralmente apresentam piores condições de segurança do trabalho e, além disso, tendem a emitir CAT apenas para acidentes de maior gravidade.

Os resultados deste estudo no ano de 1996, para o qual se dispõe do número de empregos ocupados no setor industrial, demonstram que a incidência de acidentes do trabalho típicos/ 10.000 trabalhadores foi de 689,16 nas oito empresas de maior porte e de 444,30 no conjunto das demais empresas (micro e pequenas).

Na tentativa de encontrar indícios de sub-registro de acidentes, notadarmente por parte de micro e pequenas empresas, foram elaboradas as Tabelas 5 e 6. Na Tabela 5, quanto ao porte, as empresas foram grupadas em:

• "grandes e médias" - englobando as 14 maiores empresas do município;

• "micro e pequenas" - englobando as demais empresas.

 

 

 

Nessa Tabela, encontra-se o número de acidentes típicos registrados e a estimativa do tempo médio de afastamento previsto nas CAT distribuídos segundo o porte das empresas. Pode-se constatar que, em todos os anos, no grupo "'micro e pequenas", o tempo de afastamento médio foi superior ao do grupo "grandes e médias", diferença estatisticamente significante pelo teste de médias pela análise de variâncias (Zar, 1999), com p < 0,0001.

A Tabela 6 mostra a distribuição de acidentes do trabalho típicos registrados e das estimativas dos tempos médios de afastamento do trabalho em dias, segundo grupos de empresas formados em função do número de acidentes notificados por empresa. Observa-se que, em todos os anos do estudo, o grupo que notificou de 1 a 4 acidentes apresentou estimativa de tempo de afastamento do trabalho superiores aos observados nos outros dois grupos (5 a 19 e 20 ou mais notificações). Pelo teste de médias pela análise de variâncias (Zar, 1999), verificou-se que as diferenças observadas foram estatisticamente significantes (p < 0,0001).

Entre empresas que notificaram de 1 a 4 casos, observou-se, em ordem decrescente, que os tempos médios de afastamento foram mais elevados: no setor primário, com variações anuais entre 23,61 e 54,17 dias; na indústria da construção civil, com variações entre 28,71 e 48,56 dias; em empresas comerciais, com variações anuais entre 24,10 e 32,85 dias.

Entre as empresas que notificaram de 5 a 19 casos, as médias de tempo de afastamento no setor primário foram as mais elevadas e entre as empresas que notificaram 20 ou mais acidentes, não foram observadas diferenças estatisticamente significantes no tempo médio de afastamento segundo setor de atividade econômica e/ou ramo de atividade.

 

 

Conclusões

 

Este estudo aponta para a existência, em Botucatu, de sub-registro de acidentes do trabalho por micro e pequenas empresas, particularmente no setor primário, na construção civil e no comércio, permitindo ainda suspeitar de sub-registro de acidentes do trabalho ocorridos no espaço da rua (Machado & Gómez, 1994).

A adoção da estimativa de tempo de afastamento por acidentes do trabalho típicos como indicador de gravidade das lesões mostra-se útil na evidenciação de sub-registro desses eventos, especialmente quando os sistemas de informações disponíveis são precários. A abordagem de série histórica, mesmo curta, mostrou repetição sistemática do "padrão" de evidências.

O alcance da análise efetuada neste estudo foi limitado por dificuldades relativas ao acesso de informações acerca das populações expostas ao risco de se acidentar.

Os resultados: (a) revelam a necessidade de aprofundar o estudo dos acidentes do trabalho nas empresas comerciais locais; (b) confirmam que análises baseadas na evolução do número de notificações de acidentes do trabalho apresentam limitações; (c) mostram que informações sobre mudanças na organização das empresas são importantes para a compreensão da evolução da ocorrência de acidentes em nível local e; (d) mostram a necessidade de construção de sistemas de informação que, independentemente da forma de inserção do trabalhador no mercado de trabalho, sejam capazes de captar - em nível local, mas não só - a ocorrência de acidentes do trabalho, conforme vêm insistindo vários autores (Alves & Luchesi, 1992; Barros-Oliveira & Mendes, 1997; Carmo et al., 1995, Hirata & Salerno, 1995; Santos et al., 1990; Wünsch Filho, 1999).

 

 

Agradecimentos

 

Trabalho desenvolvido com auxílio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Processos no 97/05200-3 e 97/05201-0). Os autores agradecem a colaboração dos funcionários da agência do Instituto Nacional do Seguro Social de Botucatu.

 

 

Referências

 

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