ARTIGO ARTICLE

Waldir da Silva Souza 1
Associações civis em saúde mental no Rio de Janeiro: democratizando os espaços sociais

 

Organized civil society and mental health issues in Rio de Janeiro: a democratization of social space

1 Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental, Departamento de Administração e Planejamento em Saúde, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz. Rua Leopoldo Bulhões 1480, Rio de Janeiro, RJ 21041-210, Brasil.
waldirss@ensp.fiocruz.br
  Abstract This article discusses the importance of political action by three associations of mental health care users and family members: the Brazilian Association of Mental Care Patients, Friends, and Family (AFDM), the Society of General Services for Occupational Integration (SOSINTRA), and the Association of Relatives and Friends of Patients in the Juliano Moreira Psychiatric Facility (APACOJUM). Our aim is to increase the visibility of these associations and to foster innovation and collective forms of solidarity and mutual help in the health care field. The article analyzes the associations as special interest groups within a specific arena, the Rio de Janeiro Municipal Health Council.
Key words Consumer Organizations; Mental Health; Health Policy

 

Resumo Neste artigo discutimos o significado da ação política de três associações de usuários e familiares do campo da saúde mental: a Associação de Amigos, Familiares e Doentes Mentais do Brasil (AFDM), a Sociedade de Serviços Gerais para a Integração pelo Trabalho (SOSINTRA) e a Associação dos Parentes e Amigos da Colônia Juliano Moreira (APACOJUM). Nossa intenção é dar-lhes visibilidade como movimentos de inovação e formas coletivas de solidariedade e de ajuda mútua no campo da saúde. Tais associações são interpretadas como grupos de interesses em uma arena específica, o Conselho Municipal de Saúde do Rio de Janeiro.
Palavras-chave Associações de Consumidores; Saúde Mental; Política de Saúde

 

 

Introdução

 

O Brasil enfrenta hoje, no campo da saúde mental, um processo de transformação que repercute para além das questões relacionadas ao modelo de assistência. Tal processo foi motivado pelo chamado Movimento da Reforma Psiquiátrica brasileira, surgido ao final da década de 70. Este movimento inseriu na pauta das políticas públicas o tema da desinstitucionalização e da mudança radical no modelo de atenção à saúde mental (Amarante et al., 1995; Delgado, 1992). A ação da reforma psiquiátrica se liga às estratégias de difusão e ampliação das inovações institucionais surgidas e desenvolvidas no campo da saúde mental, como os Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS), os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e outros, que vão influenciar o modelo de assistência. No interior desse movimento se aglutinam usuários e familiares, bem como suas associações, que constituem uma identidade coletiva norteada, principalmente, por uma ação política dirigida à conquista de uma maior visibilidade social, tanto por parte dos usuários quanto dos familiares.

Neste artigo apresentamos três associações: a Associação de Amigos, Familiares e Doentes Mentais do Brasil (AFDM), composta principalmente por familiares e alguns usuários; a Sociedade de Serviços Gerais para a Integração pelo Trabalho (SOSINTRA), com uma composição de familiares, usuários e alguns técnicos; e a Associação dos Parentes e Amigos da Colônia Juliano Moreira (APACOJUM), composta basicamente por familiares e alguns usuários. Neste estudo não trabalhamos com nenhuma associação que fosse puramente de um só segmento (usuário, familiar ou técnico), todas tinham composição mista. As associações foram interpretadas na qualidade de grupo de interesses em uma arena específica, o Conselho Municipal de Saúde do Rio de Janeiro (COMS). Registra-se que no campo da saúde mental encontram-se associações de composição variada. Há associações de usuários; associações de familiares; associações de usuários e familiares; associações de usuários, familiares e técnicos; associações de usuários e técnicos; e associações de técnicos e familiares. Neste trabalho é adotado o uso da expressão associações de usuários e familiares como forma representativa mais ampla das diversas formações associativas.

 

 

As associações de usuários e de familiares: notas de um itinerário recente

 

As associações de usuários e familiares, em sua maioria, despontam a partir da década de 80, pela participação destes em eventos relacionados ao campo da saúde mental (MS, 1994). Em alguns textos e documentos, há referência freqüente à importância do surgimento, crescimento e participação de tais associações no debate, com posição a favor ou contra, sobre as transformações no modelo de assistência em saúde mental propostas pelo Movimento da Reforma Psiquiátrica (Amarante et al., 1995; Delgado et al., 1997; IFB, 1997; MS, 1994; Souza, 1999). Nesse período, as associações iniciam uma presença mais significativa tanto nas arenas de decisão das políticas de saúde mental, como, inclusive, na Comissão Nacional da Reforma Psiquiátrica. A importância atribuída a essa presença em instâncias decisórias das formulações e implementações das políticas não é algo exclusivo da conjuntura brasileira, conforme bem assinalado Mönking (1994:154) em seu trabalho sobre grupos de familiares de pacientes esquizofrênicos na Alemanha: "O impacto social das associações de auto-ajuda é substancial. Em pouco tempo, membros passaram a ser integrados no processo de planejamento regional psicossocial; atividades de suporte a outras famílias vem sendo discutidas".

Diferentemente das representações de usuários existentes no campo da saúde, na saúde mental tais representações trazem consigo uma peculiaridade e, até, uma inovação de ação política: uma associação exclusivamente de usuários constitui-se no esforço de representar aqueles que legalmente não poderiam se representar, pois, segundo o Código Civil, estariam absolutamente incapazes de exercer os atos da vida civil. A chamada incapacidade absoluta, teoricamente, os impossibilita de assumir/exercer/responder por atos da vida civil, como estabelecer contratos e assumir encargos. A existência deste dado indica a realização de uma estratégia inovadora em relação à constituição de representações organizacionais, tornando o processo associativo na saúde mental muito peculiar.

Tais grupos associativos apresentam, como essência central, uma ação política na qual difundem a construção de identidades democráticas no marco de instituições representativas (Neder, 1997), com a constituição de formas coletivas de solidariedade e de ajuda mútua, que colocam no dia-a-dia normas e valores do comportamento democrático (Souza, 1999). Usuários e familiares protagonizam o processo reivindicatório por novas formas de cuidado para a "existência sofrimento" dos doentes mentais. Reivindicam, para além dos sintomas e da doença, protagonizar uma história de mudanças, forjar um novo olhar sobre o adoecer mental e todas as suas implicações. O protagonismo do cidadão, ao participar efetivamente dos problemas do seu mal-estar psíquico, parece propiciar a construção/consolidação de uma consciência social do problema.

 

 

Associações de usuários e familiares: algumas matrizes teóricas

 

A importância de associações civis em sociedades democráticas há muito tempo é enfatizada, porque, ao realizarem sua ação, acabam incorporando, reforçando e difundindo normas e valores da comunidade cívica (Putnam, 1996). Tanto Tocqueville (1977) quanto Weber (1971) assinalam a importância dos grupos associativos na sociedade americana. Sua importância está no fato destes representarem iniciativas sociais de mobilização e organização que colocam, no cenário social, alternativas de ação política em defesa de interesses.

No debate acerca do resgate da cidadania do doente mental, há um confronto entre duas lógicas de enfrentamento do mal-estar psíquico. Uma difunde o resgate da cidadania por meio da produção de novos processos culturais não contaminados pela cultura manicomial no enfrentamento da loucura. Nesta abordagem, a comunidade/sociedade tem papel relevante. A outra possui uma visão "biologizante" da doença mental, que se fundamenta na defesa dos espaços asilares e da terapêutica farmacológica na cura da doença mental (Lougon & Andrade, 1995). Segundo Amarante et al. (1995), os movimentos de familiares tendem a adotar, basicamente, a ideologia do determinismo biológico das doenças. Em contrapartida, os movimentos de usuários assumem posições mais radicais e estruturais, voltadas principalmente para o combate das práticas da psiquiatria consideradas por eles como violentas e arcaicas. Percebe-se na ação política dos movimentos de usuários a crítica ao conceito de doença mental e a adoção de teorias de origem não biológicas na explicação do adoecer mental. Segundo Pilgrim & Rogers (1991), os usuários consideram intervenções como cirurgias, eletroconvulsoterapia (ECT) e prescrição de drogas psicotrópicas como inaceitáveis, precisamente por acreditarem haver impropriedade em uma resposta com significados biológicos para problemas sociais, existenciais e pessoais.

Neste sentido, a conquista da cidadania do louco como uma construção a ser realizada (Birman, 1992; Delgado, 1992) impulsiona a participação das associações no debate sobre a cidadania do doente mental. Tal debate sofre a influência da divergência estabelecida entre as duas lógicas na compreensão do mal-estar psíquico. Os representantes das associações não apresentam nos seus discursos posições diretas em relação à compreensão acerca das questões sobre o processo saúde/doença. Para eles, a loucura não teria uma causa específica, mas várias causas, havendo uma conjugação de valores tanto biológicos quanto ambientais. Contudo, o posicionamento político das associações é distinto em relação às concepções dos mecanismos de assistência a serem ofertados. As associações de familiares, não todas, mesmo reconhecendo as incorreções do tratamento do tipo asilar, vêem ainda no espaço hospitalar o recurso necessário ao atendimento do doente mental em momentos de crise. Tal posição está relacionada ao fato, segundo os familiares, de ocorrer um grande desgaste para família quando advém a crise, além de existirem riscos de sofrerem agressões do familiar doente. Já as associações de usuários creditam aos mecanismos de tratamento de características não asilares o sucesso da intervenção terapêutica.

O processo organizativo das associações é conduzido, em sua maior parte, por elementos de constituição de laços de solidariedade e ajuda mútua. Duas das associações, a SOSINTRA e a APACOJUM, apresentam comportamento de adesão à agenda de inovações da assistência colocada pelo Movimento da Reforma Psiquiátrica brasileira, bem como à proposta do projeto de lei do deputado Paulo Delgado. A outra associação, a AFDM, caracteriza-se como uma comunidade de veto em relação à mesma agenda.

O regime de direção na maioria das associações é presidencialista, contando um com conselho consultivo. Contudo, algumas encontram dificuldades na sucessão de seus quadros de direção, por isso algumas delas apresentam um rodízio entre os membros que já estiveram ou estão na direção das associações, na sua maioria fundadores. As associações apresentam elevado grau de autonomia política, mas, em compensação, apresentam baixa autonomia financeira, em virtude, parcialmente, da baixa capacidade contributiva dos associados. Tal fato acaba levando as associações a buscar doações das mais diversas formas.

 

 

O nível local como locus da ação política das associações: o Conselho Municipal de Saúde do Rio de Janeiro enquanto arena de disputa

 

Desde o final da década de 70, atua na cidade do Rio de Janeiro uma associação de familiares e usuários, a SOSINTRA. No início dos anos 90, a APACOJUM e a AFDM, atuavam no COMS, e a Cabeça Firme, de Niterói, no Conselho Estadual de Saúde. A AFDM também participava do Conselho Estadual. Atualmente, no COMS, há a participação de representantes de três entidades do campo da saúde mental, como conselheiros: a AFDM, a APACOJUM e Instituto Franco Basaglia (IFB). Este fato assinala que, dentro do campo de representação de diversos segmentos ligados a patologias de saúde, há uma preocupação em constituir e preservar o espaço da saúde mental.

O COMS, como arena decisória e organismo colegiado responsável pelo controle social, incorpora a atuação de segmentos da sociedade até então excluídos do processo decisório e da formulação e implementação das políticas públicas de saúde (Souza, 1999). Nele estão inseridos atores diversos e distintas formas de organização do chamado terceiro setor, no nosso caso, em especial, as associações civis ligadas ao campo da saúde mental. Sua importância sustenta-se pelo reconhecimento e valorização do princípio da descentralização das políticas sociais, que tem como paralelo o fortalecimento do espaço local como locus da realização efetiva da ação governamental no desenvolvimento das políticas públicas. Neste contexto de deslocamento da esfera da gestão, em que os municípios passam a ter responsabilidade de constituir serviços de saúde que atendam à demanda real da população, o papel do COMS torna-se fundamental na interação com a ação governamental, ao assinalar e defender as reais demandas locais na promoção da saúde. Transpondo tal observação para o campo da saúde mental, como bem assinala Pedro Gabriel Delgado (1997), a oferta de estruturas assistenciais em saúde mental passa a considerar elementos locais, ou seja, o cuidado para os problemas de saúde mental deve ser ofertado por uma rede de serviços de base territorial.

As associações civis na saúde mental representam um grupo de pessoas que estavam excluídas tanto das inter-relações sociais por meio do estigma produzido pela sociedade em face da loucura quanto dos níveis decisórios das políticas de saúde. Neste caso, as associações reconhecem o espaço do COMS como locus da disputa, da constituição de um conflito por meio das posições contrárias e da defesa de seus interesses. Elegem o COMS como espaço de participação e negociação, em arena legal para o debate político, para a apresentação de suas reivindicações, para a defesa de suas propostas e como local de reconhecimento da legitimidade de sua ação política (Souza, 1999).

A análise da ação política das associações em arenas decisórias deve considerar não só o fato de as primeiras buscarem a conquista de identidade cultural e de expressão social e política, mas também as novas formas de articulação das relações entre Estado e sociedade civil. De forma geral, a atuação dos representantes das associações em fóruns específicos ou em instâncias colegiadas se dá na qualidade de transmissoras das demandas de seus membros ao Estado. As associações funcionam como inputs, para usar um termo sugerido por Offe (1994). Neste sentido, as associações são produtoras de estímulos, a partir da elaboração tanto de demandas sociais quanto das de especialistas. Acabam constituindo uma agenda, essencialmente reformadora, dentro de um processo de transformação de uma política pública, como, no caso, a de saúde mental, proposto e levado à frente pelo Movimento da Reforma Psiquiátrica Brasileira.

Apesar das associações de usuários e de familiares representarem um contingente de pessoas que se encontravam fora da participação dos níveis decisórios das políticas de saúde, a atuação de seus representantes no COMS, contudo, contraria a suposição de que tal atuação se realizaria apenas de forma restrita às questões de saúde mental. Na verdade, as atuações dos representantes das associações deram-se de forma efetiva tanto em relação aos temas concernentes ao campo da saúde mental como também sobre as questões relacionadas à agenda política setorial da saúde como um todo. A título de exemplo, referimos a Ata da Reunião do COMS, de março de 1996, em que as representantes da APACOJUM e AFDM foram eleitas - obedecendo ao mecanismo paritário entre usuário, gestor e profissional - pelos demais conselheiros para a Comissão Executiva do Conselho, como titulares, representando os usuários. Cabe informar do papel relevante da comissão executiva do COMS, pois examina a maior parte dos encaminhamentos ao conselho, preparando os temas que entram na pauta de cada sessão e relatórios referentes às discussões. Outro sinal de diversificação da atuação dos representantes das associações é a atuação destes em comissões temáticas não referidas ao campo da saúde mental, como se pode perceber pela leitura da ata da reunião do COMS, de março de 96, na qual a representante da APACOJUM, além de participar da comissão temática de saúde mental, também atuava na comissão temática de saúde da mulher. Da mesma forma, a representante da AFDM acumulava a participação nas comissões temáticas de saúde mental e na de financiamento e orçamento.

Joel Birman (1992), ao analisar as diversas questões colocadas pelo Movimento da Reforma Psiquiátrica no Brasil, permite-nos refletir sobre as reivindicações e as estratégias desenvolvidas pelas associações em sua ação política. Birman assinala que a idéia de reforma psiquiátrica não se identifica com a noção de assistência psiquiátrica. Contudo, expõe uma outra ordem teórica da realidade. A questão da assistência, apesar de central na problemática suscitada pela reforma psiquiátrica, certamente ultrapassa tal dimensão, pois o que é realmente decisivo e premente é constituir "um outro lugar social para a loucura" (Birman, 1992:72). A discussão de Birman apresenta dois níveis de entendimento: o da assistência (real) e o do lugar social para a loucura (abstrato), contribuindo para identificar qual a estratégia e a amplitude da ação política das associações, as quais, por vezes, se posicionam diante das políticas oficiais de forma pontual, reivindicando serviços, equipamentos e reestruturação do modelo de assistência (real), ou, às vezes, de forma mais ampliada, questionando o lugar social da loucura (abstrato).

 

 

As associações como grupos de interesse

 

Sobre o conceito de grupos de interesse, utilizamo-nos da leitura de Offe (1994), que o situa em três perspectivas teóricas: a do agente social individual, a da estrutura de oportunidades e o das formas e práticas institucionais do sistema social geral.

É pela combinação das três dimensões que se chega a uma explicação sobre a operação do conceito. A análise das dimensões da organização de interesses de Offe aponta a convergência de três elementos básicos. O primeiro seria o nível da vontade, da identidade coletiva e dos valores dos membros participantes do grupo. O segundo é o da "estrutura de oportunidade" sócio-econômica de onde emerge e atua o grupo de interesse. O terceiro está associado às formas e práticas institucionais que o sistema político coloca à disposição do grupo de interesse. Isto acaba conferindo um status político-institucional à base de operação do grupo. Para Offe (1994), a forma e o conteúdo da representação de interesse organizada é resultado do interesse mais a oportunidade mais o status institucional.

A caracterização apresentada por Offe nos auxilia, no primeiro momento, na compreensão e distinção acerca dos impulsos individuais no que se refere ao desejo associativo dos indivíduos. Ou seja, o que faz com que o indivíduo se associe, o que o leva a realizar pactos, a estabelecer interações entre outros indivíduos e como ele reconhece a legitimidade do grupo a que está se inserindo pela representação de seus interesses. Em um segundo momento, a caracterização de Offe nos indica como a atribuição de status público - tanto em sua forma positiva ou negativa - a determinados grupos, por parte do sistema político, pode facilitar o acesso ao Estado e à conquista de benefícios diferenciados ou ao reconhecimento do grupo como interlocutor em detrimento de outras representações.

Relacionando a discussão de Offe com o material empírico estudado, são apontados os seguintes aspectos da realidade brasileira. Sobre o primeiro nível, que seria o da vontade, da identidade coletiva e dos valores dos membros participantes do grupo, infere-se que a adesão às associações se dá basicamente pela constituição de laços de solidariedade e ajuda mútua. Os membros participantes, em sua grande maioria, buscam as associações porque vêem nelas o local onde vão encontrar outras pessoas com problemas iguais aos seus, pessoas com algo em comum, como algum parente, filho, irmão ou pai com algum tipo de problema mental. As pessoas se juntaram para, em conjunto, atingirem objetivos comuns. Ainda neste nível, o interesse das pessoas em participar nas associações ou apenas nas suas reuniões refere-se ao fato de que naquele local, onde há outras pessoas com os mesmos problemas, elas não se sentem estigmatizadas. Apontam como um dos problemas o estigma, a discriminação que a sociedade realiza tanto em relação à pessoa portadora de mal-estar psíquico quanto ao seu familiar.

Quanto ao segundo nível, o da estrutura de oportunidade sócio-econômica, onde emerge e atua o grupo de interesse, o que se observa, basicamente, é que a questão sócio-econômica acaba se diluindo, pois as associações apresentam uma atuação que amplia a estrutura de oportunidade não se prendendo especificamente à sua origem.

Por último, em relação ao terceiro nível, o das formas e práticas institucionais que o sistema político coloca à disposição do grupo de interesse, conferindo status político-institucional a sua base de operação, cabe dizer que na trajetória das associações encontramos momentos de atribuição de status público. Corrobora este ponto, o fato de que, no ano de 1993, a Secretaria Estadual de Saúde instituiu as Regiões do Sub-Sistema de Saúde Mental do Estado do Rio de Janeiro, por meio da Resolução no 881/SES, de 26 de outubro de 1993 (Rio de Janeiro, 1993). Em tal resolução, as associações SOSINTRA e AFDM foram indicadas, além de outras entidades, como membros participantes das comissões regionais de supervisão técnica, denominadas Comissão Regional de Saúde Mental, sendo que, em cada região, a operacionalização das ações do Sub-Sistema de Saúde Mental seria executada pela respectiva Comissão Regional.

 

 

Considerações finais

 

As associações propiciam, por meio de uma intensa participação política, uma nova voz, um novo tom. Um tom que traz uma racionalidade própria e diferenciada da técnica, sem contudo exclui-la. A ação política de suas demandas sinaliza onde a política pública encontra-se deficitária. As associações possibilitam apontar o que está funcionando ou não no modelo assistencial. O surgimento de entidades voltadas para a defesa de direitos e dos interesses dos usuários e dos familiares tomou um caráter organizativo de maneira sistemática em todo o país. Outra peculiaridade refere-se à característica de constituição das associações. Em outros países, geralmente, as associações de usuários se organizam tanto em oposição ao modelo tradicional de atenção em saúde mental, como foi o caso do movimento holandês de oposição (Haafkens et al., 1986), como também realizam uma crítica à postura dos familiares. Isso ocorrem por compreenderem que uma área em que permanecem uma série de problemas é a que diz respeito ao relacionamento entre ambas. No Rio de Janeiro, encontramos algumas associações compostas por segmentos específicos, mas boa parte delas são de composição mista. Outra diferença de organização percebida reside no fato de que a formação das associações no campo da saúde, tanto no Brasil quanto no exterior, dá-se, em sua maioria, em torno de patologias. No caso da saúde mental, o que se percebe é uma certa peculiaridade: as associações, em momentos e trajetórias distintas, formam-se ou concentram sua ação fundamentalmente em torno da assistência, da sustentação de serviços. Por isso é que a maioria apresenta o caráter misto de sua composição. Este dado não exclui outros fatores de organização, como a luta contra o abuso da psiquiatria e a defesa de direitos.

As associações enfrentam diversas dificuldades em sua ação política: problemas estruturais, econômicos, dificuldade de renovação de quadros. Contudo, entre essas dificuldades, há uma que, apesar de silenciosa, é extremamente perversa. É a questão do estigma, da discriminação, que, por vezes, mina o caráter solidário das reuniões e parece provocar um efeito de resumir a luta à conquista de espaços materiais ou de provocar em alguns participantes efeitos de angústia, desejando obter atenção integral e resolver o seu caso.

As associações de usuários e as associações de familiares constituem formas inovadoras de participação política de uma clientela específica. Estes grupos encontravam-se fora das discussões, formulações e implementações das políticas públicas, em um campo do saber que era largamente dominado pelo discurso técnico. No entanto, certamente, este ainda é o panorama dominante.

Ao realizarem pressão nas instâncias colegiadas e definirem o rumo das políticas em saúde/saúde mental, as associações, via apresentação de propostas e defesa de seus interesses, acabam funcionando como inputs para os formuladores de política. Neste sentido, tais grupos, ao produzirem estímulos na área das políticas públicas, possibilitam a geração de consenso acerca da agenda reformadora para as políticas de saúde mental presente nas propostas do Movimento da Reforma Psiquiátrica. A elaboração de tal agenda é estabelecida com base tanto nas demandas sociais quanto nas proposições dos especialistas, o que a qualifica como uma agenda híbrida. Deve-se compreender por agenda híbrida aquela composta pelo fluxo, via mão dupla, de temas apresentados e apreciados entre os definidores de políticas, advindos das propostas das associações civis representadas e pelos gestores/especialistas. Algumas associações civis em saúde mental vêm demonstrando a intenção de elas mesmas oferecerem estruturas assistenciais diferenciadas do modelo hospitalocêntrico. Tanto a AFDM como a SOSINTRA realizam esforços no sentido de conseguir uma sede ou um espaço físico capaz de receber a instalação de um lar protegido. Isto demonstra que as associações, além de lutar por seus interesses nas instâncias decisórias das políticas de saúde e de saúde mental, buscam, elas próprias, ofertar serviços sociais visando atender parte de suas demandas. Este é o desafio.

 

 

Agradecimentos

 

Agradeço às estimulantes observações, críticas e sugestões acerca do processo associativo na saúde mental de Martha Cristina Nunes Moreira, Paulo Amarante, José Mendes Ribeiro e Nilson do Rosário Costa.

 

 

Referências

 

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