ARTIGOS ARTICLES

Evelise Ribeiro Gonçalves 1
Marco Aurélio Peres 2
Wagner Marcenes 3


Cárie dentária e condições sócio-econômicas: um estudo transversal com jovens de 18 anos de Florianópolis, Santa Catarina, Brasil

 

Dental caries and socioeconomic conditions: a cross-sectional study among 18 years-old male in Florianópolis, Santa Catarina State, Brazil

1 5357 Fjell, Bergen, Norway.
2 Departamento de Saúde Pública, Universidade Federal de Santa Catarina. Campus Universitário Trindade, Florianópolis, SC 88010-970, Brasil. peresp@repensul.ufsc.br
3 Royal Free and University College, London Medical School, Department of Epidemiology and Public Health. 1-19 Torrington Place, London, WC1E 6BT, UK.

 

Abstract The aim of this study was to assess the prevalence and severity of dental caries and need for treatment among 18 years-old males in Florianópolis, Southern Brazil. In addition, the associations between dental caries and socioeconomic conditions were tested. A cross sectional study was carried out. A random sample of 300, was selected from a list of Brazilian Army conscripts. Clinical data were collected according to World Health Organization criteria. Socioeconomic data (years of education of the subjects, their fathers and mothers and family income) were collected through interviews. The statistical significance of associations between socioeconomic indicators and dental caries prevalence were tested using the chi-square test whilst for severity of dental caries Mann-Whitney test was used. The prevalence of dental caries was 81% and the mean DMF-T was 4.5. The mean number of teeth that needed treatment was 1.2. Both dental status and treatment need were statistically significantly associated with socioeconomic indicators. Those with low levels of education and income experienced more disease and needed more treatment than those from high levels of education and income.
Key words Dental Caries; Social Conditions; Adolescence; Oral Health; Epidemiology

 

Resumo Os objetivos deste estudo foram conhecer a prevalência e severidade da cárie dentária, bem como necessidades de tratamento odontológico, além de testar sua associação com variáveis sócio-econômicas em jovens de 18 anos de idade do sexo masculino em Florianópolis, Santa Catarina, Brasil. Foi realizado um estudo transversal em uma amostra aleatória de alistandos (n = 300) do Exército Brasileiro. Foram utilizados os critérios de diagnóstico da Organização Mundial da Saúde. Utilizou-se um questionário sócio-econômico para se aferir o grau de escolaridade do alistando, de seus pais e a renda familiar. Associações entre a prevalência de cárie, o índice CPO-D e seus componentes e as variáveis sócio-econômicas foram avaliadas por meio dos testes qui-quadrado e Mann-Whitney, respectivamente. A prevalência de cárie foi de 81% e o índice CPO-D médio foi igual a 4,6. Apenas 1,2 dente por pessoa, em média, apresentou-se com necessidade de tratamento. Diferenças estatisticamente significativas foram encontradas na prevalência e severidade de cárie (CPO-D), sendo os piores indicadores verificados nos grupos de menor escolaridade e renda, indicando serem estes grupos prioritários para medidas preventivas e assistenciais.
Palavras-chave Cárie Dentária; Condições Sociais; Adolescência; Saúde Bucal; Epidemiologia

 

 

Introdução

 

Apesar da cárie dentária ser a doença bucal mais estudada em todo o mundo, a maioria dos estudos concentra-se em crianças em idade escolar, não havendo pesquisas suficientes sobre a situação da doença em adultos jovens (Truin et al., 1993). Os poucos estudos epidemiológicos de cárie em adultos jovens foram realizados quase que exclusivamente nos países desenvolvidos (Tabela 1).

 

 

A falta de informações epidemiológicas básicas em adultos jovens é uma limitação séria por dois motivos principais. Primeiro, é importante conhecer o comportamento da doença em todas as idades, permitindo assim seu monitoramento epidemiológico. Segundo, com a redução da prevalência e severidade da cárie em crianças observadas no país, aumentaram as possibilidades de expansão da cobertura de serviços para outros grupos populacionais, incluindo-se os adultos jovens. A epidemiologia é um instrumento útil para o planejamento de serviços.

Os objetivos do presente estudo foram conhecer a prevalência, severidade da cárie e necessidades de tratamento odontológico na população de 18 anos de Florianópolis, Santa Catarina, além de testar as associações destas com as condições sócio-econômicas da população estudada. Somado a outro estudo sobre as doenças periodontais (Gesser et al., 2001) realizado na mesma população tem-se um amplo quadro epidemiológico das condições de saúde bucal aos 18 anos de idade no município.

 

 

Métodos

 

Foi realizado um estudo transversal para cárie e doença periodontal cuja população de referência correspondeu aos 3.452 alistandos do Exército Brasileiro em Florianópolis no ano de 1999. Para a obtenção do tamanho mínimo da amostra de 267 pessoas, considerou-se a prevalência de 86%, um erro amostral de 2% e um nível de confiança de 95%. O valor de prevalência utilizado para o cálculo foi o relativo à doença periodontal na Região Sul do Brasil, para a faixa etária entre 15 e 19 anos (MS, 1988).

Como foram estudadas cárie e doença periodontal na mesma população, adotou-se o maior tamanho da amostra, o obtido para estimar a prevalência de doença periodontal. Foram acrescidos mais 33 indivíduos considerando-se as possíveis perdas, totalizando, portanto, trezentos indivíduos.

Sortearam-se aleatoriamente dez dias para a realização da pesquisa, dentre os trinta dias destinados aos exames médicos e odontológicos de rotina do Exército. Em cada um dos dias da pesquisa, sortearam-se trinta jovens, utilizando-se o processo de amostragem casual simples.

Os dados sócio-econômicos foram coletados por meio de um questionário que incluiu os anos de estudo do alistando, do seu pai e da sua mãe, além da renda familiar, em reais, obtida no mês anterior à entrevista. A renda familiar foi convertida posteriormente em salários mínimos - SM (1 SM = R$ 136,00 ou US$ 73.50 - valor em dólares, segundo câmbio da época da pesquisa).

Os dados clínicos foram coletados utilizando-se os critérios preconizados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em sua quarta versão do Oral Health Surveys - Basic Methods (WHO, 1997).

Uma única dentista (E. R. G.) realizou todos os exames referentes às condições dentárias e necessidades de tratamento, auxiliada por um anotador, também cirurgião-dentista. Este último realizou os exames acerca das condições periodontais, relatados em outra publicação (Gesser et al., 2001). Utilizaram-se espelhos bucais planos e sondas periodontais (CPI probe) esterilizados, e foram seguidas as normas de biossegurança.

Exercícios de calibração, pré-teste do questionário e estudo-piloto foram realizados previamente ao estudo com trinta jovens da mesma idade não incluídos na amostra.

Realizaram-se exames em duplicata em dez por cento da amostra utilizando-se a estatística kappa para o cálculo da reprodutibilidade, tomando-se o dente como unidade de análise para a aferição da confiabilidade de diagnóstico, seguindo metodologia anteriormente descrita (Peres et al., 2001). Foi obtido o consentimento de cada um dos alistandos para a realização da pesquisa.

A entrada dos dados e análises estatísticas foram realizadas com o programa SPSS 10.0 (Nie et al., 1975). Para testar as diferenças entre proporções e diferenças no índice CPO-D em relação às variáveis sócio-econômicas, foram empregados o teste do qui-quadrado e o Mann-Whitney test respectivamente. A adoção de testes não paramétricos justifica-se, pois o índice de cárie utilizado (CPO-D) não apresenta distribuição normal. Foi adotado o nível de significância estatística de 5%.

 

 

Resultados

 

Não houve recusa em participar do estudo. Os valores de kappa para cada um dos dentes variaram entre 0,64 (dente 11) a 1,00 (a maioria dos dentes), tanto para os diagnósticos das condições dentárias, como para a indicação das necessidades de tratamento odontológico, indicando que a concordância intra-examinador foi alta.

A prevalência de cárie foi de 81% e o índice CPO-D médio foi de 4,5. A média de dentes obturados foi igual a 3,0, o que equivale a dois terços do índice. A observação das distribuições do CPO-D e seus componentes segundo os quartis permite visualizar que a distribuição do índice não é normal (Tabela 2).

 

 

O índice CPO-D e seus componentes foram comparados com as variáveis sócio-econômicas de duas formas distintas. Na primeira, estudou-se a ocorrência de cárie, considerando-a ausente (CPO-D = 0) ou presente (CPO-D ³ 1). Observa-se que a maior prevalência de ataque de cárie esteve associada com o menor grau de escolaridade das mães e dos pais dos alistandos (p < 0,001). A prevalência de dentes cariados e perdidos esteve negativamente associada com todas as variáveis sócio-econômicas estudadas (p < 0,001), enquanto associação entre a prevalência de dentes obturados e indicadores sócio-econômicos não foi associada significativamente (Tabela 3).

 

 

A segunda forma de análise foi testar a severidade do ataque de cárie, medida pelo índice CPO-D, em relação às variáveis sócio-econômicas através do Mann-Witney test. O maior índice CPO-D foi observado nos alistandos cujos pais e mães apresentavam menor escolaridade (p < 0,001). Não houve diferença estatisticamente significativa entre os valores do índice CPO-D e renda familiar. O número de dentes obturados não foi diferente em nenhum dos grupos sócio-econômicos estudados, ao passo que os maiores valores de dentes cariados e perdidos foram encontrados nos indivíduos de menor renda familiar, com menor escolaridade e com pais e mães de menor escolaridade (p < 0,001) (Tabela 4).

 

 

Necessidades de tratamento odontológico foram encontradas em 40,7% da população estudada. Entretanto, apenas 1,2 dente, em média, apresentou-se com necessidade de tratamento, e restaurações simples equivaleram a dois terços das necessidades totais (Tabela 5).

 

 

 

Discussão

 

Estudos epidemiológicos de cárie dentária em populações de adultos jovens são raros. Diferentes critérios de diagnóstico e diferentes procedimentos amostrais têm sido utilizados, tornando difícil estabelecer comparações. Por exemplo, no estudo nacional de 1986, foram examinados jovens entre 15 a 19 anos, de ambos os sexos, com os dados apresentados por região e não por município. O nosso estudo abordou apenas jovens de 18 anos, do sexo masculino e de um município da Região Sul. Tendo esses cuidados e observando-se os dados relativos à Região Sul (MS, 1988), podemos considerar que houve uma redução no ataque de cárie no período 1986 a 1999. Em 1986, o CPO-D médio para a faixa etária de 15 a 19 anos da Região Sul foi de 13,8, sendo no presente estudo igual a 4,5. No estudo de 1986, o componente obturado do índice foi igual a 5,9, o que equivale a 46,4% do índice no Brasil, e 7,1 (51,4%) na Região Sul, revelando que aproximadamente metade dos dentes atacados pela cárie estava sem tratamento. Os maiores índices de dentes cariados concentraram-se nos grupos de menor renda, revelando que as condições de saúde bucal expressam as desigualdades sociais.

Ao se comparar o índice CPO-D da população do nosso estudo (4,5) com o obtido para a população de 12 anos do município (2,7) (Peres et al., 1996), verifica-se um incremento anual de 0,36 dente atacado pela cárie, o que pode ser considerado baixo. Hipoteticamente, o menor número de dentes atacados pela cárie pode ter possibilitado uma maior cobertura da população pelos serviços odontológicos neste período. O comportamento do componente obturado do índice CPO-D aumentou no período compreendido entre 1986 e 1999.

A prevalência de cárie dentária encontrada (81%) assemelha-se às encontradas na Austrália (Dale, 1969), na Finlândia em 1991 (Rajasuo et al., 1991), na Inglaterra em 1995 (Richardson & McIntyre, 1996), todas elevadas. No entanto, foi maior que a prevalência de 51% registrada no Reino Unido, entre 16 a 24 anos de idade, em 1998 (Kelly et al., 2000).

O número mínimo de dentes presentes na população estudada foi de 22 dentes, ou seja, todos os alistandos da amostra apresentaram mais de vinte dentes presentes. Um número mínimo de vinte dentes naturais, incluindo os incisivos, caninos e pré-molares, satisfazem a maioria dos critérios para um aceitável nível de saúde bucal (Käyser, 1984). A porcentagem da população estudada com 28 dentes ou mais foi igual a 82,5%. A presença de 85% da população de 18 anos com todos os dentes naturais presentes é a meta estabelecida pela OMS/Federação Dentária Internacional para o ano 2000 (FDI, 1982).

O quadro epidemiológico favorável observado neste estudo pode ser devido às características particulares do município. Deve-se considerar que Florianópolis apresenta elevados indicadores sociais quando comparados com os de outros municípios brasileiros. O município apresenta-se com os melhores indicadores sociais (dados de 1996) dentre todas as capitais brasileiras, sendo o segundo município brasileiro em qualidade de vida (PNUD, 1998).

As menores médias do índice CPO-D, assim como as menores prevalências de cárie concentraram-se nos grupos de menor escolaridade. A escolaridade mostrou-se um melhor indicador sócio-econômico do que a renda familiar neste estudo. Essa também é a opinião de Borrel (1997), quando argumenta que a educação dá acesso a uma determinada ocupação, e, portanto, a um certo nível de renda, e isso pode influenciar o acesso a diferentes condutas relacionadas à saúde. Por essa razão, escolaridade é um dos indicadores mais utilizados para aferir condição sócio-econômica em epidemiologia.

As desigualdades em saúde bucal, por conseguinte, persistem, apesar dos índices mais favoráveis encontrados neste estudo, quando comparados com o de 1986, e dos bons indicadores sociais do município. Vale lembrar que, no estudo de 1986, também foi estabelecido o percentual de jovens que apresentavam todos os dentes, segundo estrato de renda. Os resultados mostraram que 26% dos jovens com renda até dois salários mínimos e 36% daqueles com três a quatro salários mínimos apresentaram todos os dentes presentes, enquanto 57% do extrato de renda de cinco ou mais salários mínimos apresentaram todos os dentes (MS, 1988).

Alguns aspectos metodológicos deste estudo merecem registro. Estudos epidemiológicos com jovens, que permitam inferências populacionais, são operacionalmente difíceis, pois idealmente devem ser de base domiciliar. Neste estudo, utilizou-se a lista de jovens que se apresentaram para o alistamento militar do Exército Brasileiro em Florianópolis. Para comparar as características da população do nosso estudo com as da população em geral, foi analisada a distribuição do grau de escolaridade da população de Florianópolis (IBGE, 1996) com a dos pais dos alistandos. Esta comparação mostrou grande semelhança. Os dados do IBGE (Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) mostraram que, em 1996, 36% dos homens e 46,4% das mulheres entre 20 e 64 anos de idade tinham até oito anos de estudo, comparados com 37,4% dos pais dos alistandos e 44,9% das mães dos alistandos do presente estudo. Em razão dessas semelhanças, a relação de alistandos do Exército pode ser uma boa alternativa para estudos epidemiológicos em saúde bucal que objetivem inferir os resultados para a população masculina de 18 anos de idade. Entretanto, mantém-se a limitação de se desconhecer como é o padrão epidemiológico da população feminina da mesma idade, cujos acesso a serviços e comportamentos são hipoteticamente distintos dos observados no sexo masculino.

As necessidades de tratamento odontológico da população estudada podem ser consideradas de simples resolução, mediante procedimentos clínico-cirúrgicos condizentes com o nível primário de atenção.

Pode-se concluir que o quadro epidemiológico da população de jovens de 18 anos do sexo masculino em Florianópolis é favorável. Porém, os grupos de menor renda e menor escolaridade concentram a maior parte da doença não tratada, devendo receber ações preventivas e assistenciais prioritárias.

 

 

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Recebido em 22 de fevereiro de 2001
Versão final reapresentada em 13 de setembro de 2001
Aprovado em 28 de novembro de 2001

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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