ARTIGOS ARTICLES

Sonia Azevedo Bittencourt 1
Maria do Carmo Leal 1
Monica Oliveira Santos 1


Hospitalizações por diarréia infecciosa no Estado do Rio de Janeiro

 

Hospitalization due of infectious diarrhea in Rio de Janeiro State

1 Departamento de Epidemiologia e Métodos Quantitativos em Saúde, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz. Rua Leopoldo Bulhões 1480, Rio de Janeiro, RJ 21041-210, Brasil.
sonia@ensp.fiocruz.br

 

Abstract Diarrhea is an important cause of hospitalization among infants. There are many complex factors that influence hospital use: socioeconomic and cultural characteristics, access, medical needs, and supply. The objective was to measure hospitalization rates from diarrhea among infants in Rio de Janeiro in 1996 and the association with demographic, geographical, and clinical data comparing differentials between public/university and private/philanthropic hospital care under the Unified National Health System (SUS). The authors used data from the Hospital Information System. Private/philanthropic hospitals admitted approximately four times more children than public/university hospitals. Analysis shows that variation in age, length of hospital stay, and use of pediatric intensive care may reflect differences in physicians' practice styles. This may in turn influence the respective health care unit's capacity to prevent death associated with diarrhea. The authors conclude that it is necessary to continue the analysis of hospital utilization under the SUS due to implications for the cost and quality of pediatric care.
Key words Diarrhea; Hospitalization; Child Health; Epidemiology

 

Resumo A diarréia é causa de hospitalização importante entre os menores de um ano, sendo influenciada por múltiplos e complexos fatores, tais como, sociais, econômicos, culturais, além de necessidades médicas e seu tipo de financiamento. O objetivo deste trabalho foi o de medir a taxa de hospitalização de diarréia infantil no Rio de Janeiro, em 1996, e a associação com informações demográficas, geográficas e clínicas, cotejando diferenças entre hospitais públicos/universitários e contratados/filantrópicos do Sistema Único de Saúde (SUS). Os dados do estudo foram provenientes do Sistema de Informação Hospitalar. Os estabelecimentos contratados/filantrópicos admitem cerca de quatro vezes mais crianças do que os públicos/universitários. As variações observadas quanto à idade das crianças internadas, o tempo e custos médios de internação e a utilização da Unidade de Tratamento Intensivo podem refletir diferenças na conduta médica, e por conseguinte, na capacidade do serviço em evitar o óbito por diarréia das crianças internadas. Conclui-se que é necessário monitorar, de forma contínua, a utilização dos recursos hospitalares, para atuar diretamente nos custos e na qualidade da assistência prestada.
Palavras-chave Diarréia; Hospitalização; Saúde Infantil; Epidemiologia

 

 

Introdução

 

A diarréia infecciosa é associada de forma importante com a morbidade e mortalidade infantil. Apesar das doenças diarréicas terem reduzido, de modo constante, a sua magnitude como causa de mortalidade nos últimos 15 anos no Estado do Rio de Janeiro (Leal, 1996), em 1996, elas ainda constituíam a segunda causa de internação nos menores de um ano.

Grande parte da redução da mortalidade por diarréia é atribuída à difusão da Terapia de Reidratação Oral - TRO - (Campos et al., 1995; César et al., 1996), que tornou a doença diarréica sensível ao cuidado efetivo no nível domiciliar e no de atenção primária à saúde. Desse modo, a permanência da importância da hospitalização por diarréia entre os menores de um ano chama a atenção. Considerando que a hospitalização, além de cara, pode ser prejudicial por aumentar a probabilidade de iatrogenia, de infecção hospitalar e, inclusive, o desencadeamento de problemas emocionais para a criança e sua família (Connell et al., 1981; Silva et al., 1999), torna-se relevante identificar os fatores determinantes da hospitalização, de modo a orientar ações na redução de internações desnecessárias ou previníveis.

As explicações para esse excesso de hospitalização são múltiplas e complexas, podendo abranger desde problemas de ordem social, econômica e cultural da família até a inadequada cobertura e a escassa resolutividade dos serviços de saúde no nível primário (Casanova et al., 1995). Diferenças na conduta médica frente aos casos de diarréia (Perrin et al., 1989; Wennberg et al., 1987) e o tipo de modelo de financiamento (Hodge et al., 1995) da atenção médica no país, que prioriza a intensa utilização de leitos, devem também estar contribuindo. Além disso, alguns diagnósticos são privilegiados em detrimento de outros para a cobrança de procedimentos, conforme observaram Yazlle-Rocha & Simões (1999) ao estudar a assistência hospitalar pública e privada em Ribeirão Preto.

Os hospitais públicos e privados do Sistema Único de Saúde (SUS) dependem dos recursos públicos. Efetivamente, o segmento público do sistema tem ficado, nos últimos anos, com a responsabilidade do atendimento de mais alta complexidade, além de se constituir em campo de treinamento para a introdução de novas tecnologias em saúde, de acordo com o que foi feito na Terapia de Hidratação Oral (THO). Pode-se assim supor lógicas distintas de estruturação desses serviços, levando a possíveis diferenças nos perfis das internações por diarréia segundo a natureza jurídica do hospital conveniado ao SUS.

Para o estudo das hospitalizações no país, dispõe-se do Sistema de Informação Hospitalar (SIH), que tem origem nas Autorizações de Internação Hospitalar (AIH), destinadas ao pagamento de internações. É um sistema que, embora abarque de 70 a 80% das internações (Carvalho, 1997), ainda é pouco empregado por ser considerado de confiabilidade baixa. Em que pesem as possibilidades de distorções por motivos que vão desde a sua não universalidade, deficiências em matéria de eqüidade e acesso aos serviços, até a existência de fraudes pela natureza contábil do sistema. Só o acompanhamento continuado dessas informações permitirá o seu aprimoramento.

O objetivo do presente trabalho é caracterizar a assistência médico-hospitalar prestada pelos hospitais do SUS aos menores de um ano com diarréia, atendidos no Estado do Rio de Janeiro em 1996, considerando as características demográficas, clínicas e de acesso da clientela, segundo a natureza jurídica do hospital.

 

 

Material e métodos

 

Foram estudadas as internações por diarréia infecciosa nos menores de um ano, ocorridas no Estado do Rio de Janeiro, em 1996. Esses dados encontram-se arquivados em CD-ROM, cedidos à Escola Nacional de Saúde Pública pelo Departamento de Informática do SUS (DATASUS). As causas de internação foram apresentadas segundo a 9a Revisão da Classificação Internacional de Doenças da Organização Mundial da Saúde (OMS, 1985). As internações por diarréia infecciosa foram definidas como sendo aquelas cujos códigos variaram de 001 a 009.

Um dos problemas que podem permear a análise de internações hospitalares é a possibilidade de estas não serem independentes. Ignorar tal suposição invalida, às vezes, as conclusões do estudo. Diante do problema, estabeleceu-se uma correção: para impedir que reinternações da mesma criança fossem contadas duas vezes, localizaram-se as internações ocorridas no mesmo hospital, com idêntica data de nascimento e sexo, em dias subseqüentes. As reinternações foram identificadas em 3,9% das internações. A seguir, somou-se o tempo de permanência no hospital com o valor total da internação, contando-as como episódio único. Com esta correção, supõe-se que as demais reinternações sejam inexpressivas. Para a análise só foram estimadas as internações por diarréia com tempo de permanência inferior a 30 dias, representando 99,5% do total.

Relacionam-se abaixo alguns indicadores criados para possibilitar a análise dos dados deste estudo:

• Taxa de internação hospitalar - foi calculada mediante a divisão do total de internações por diarréia infecciosa nos menores de um ano pelo número de nascidos vivos. Para obtenção do número de nascidos vivos, foram utilizados os dados do Sistema de Nascidos Vivos (SINASC) do Estado do Rio de Janeiro, para 1996, disponível em CD-ROM do DATASUS (DATASUS, 1996a).

• Razão das internações por diarréia infecciosa segundo a natureza jurídica, foi calculada pela divisão do número de casos internados nos hospitais contratados/filantrópicos pelo número de casos dos hospitais públicos/universitários. O resultado encontrado foi então dividido pela razão de números de leitos pediátricos dos contratados/filantrópicos sobre os leitos pediátricos públicos/universitários, disponíveis no Estado. Valor igual a um, significa que o quociente de diarréia entre os pacientes dos hospitais contratados/filantrópicos é igual ao quociente de leitos públicos/universitários. Valores acima ou abaixo, medem quanto o valor encontrado se afasta do que seria esperado se a internação por diarréia infecciosa entre estes tipos de hospitais fosse semelhante (Yazlle-Rocha & Simões, 1999). As informações do número de leitos pediátricos, segundo a natureza jurídica do hospital, foram obtidas na página do DATASUS na Internet (http://www.datasus.gov.br).

• Custo total da internação por dia, calculada pela divisão do valor total do custo da internação pelo número de dias de permanência no hospital.

• Assistência médico-hospitalar do município, dicotomizada em crianças que receberam atendimento hospitalar no seu município de residência e crianças que foram buscar assistência médica fora de seu município.

• Área geográfica da hospitalização, categorizada em região metropolitana e demais municípios.

• Etiologia da diarréia infecciosa, classificada segundo aquela declarada no campo diagnóstico principal da internação: determinada (CID 9, 001 a 008) e indeterminada (CID 9, 009) (OMS, 1985).

• Resultado da internação, categorizada em óbito e não óbito.

• Natureza jurídica do hospital, dicotomizada em hospitais contratados/filantrópicos e públicos (próprios, federal, estadual e municipal)/universitários.

A idade da criança foi agrupada em três categorias na análise bivariada. Por sua vez, na multivariada, em virtude das diferenças irrelevantes entre os odds ratio (OR) para crianças de três a seis meses de idade e de seis e mais (dado não apresentado), a variável foi dicotomizada (< 3 meses e 3 meses e mais).

A análise estatística constou da distribuição de freqüência para as variáveis categóricas, e o cálculo das medidas de tendência central e dispersão para as variáveis contínuas. Igualmente foram utilizadas as razões brutas de produtos cruzados (odds ratio), com o objetivo de testar associações entre as variáveis categóricas supracitadas e a natureza jurídica dos estabelecimentos de saúde.

Para a análise multivariada, empregou-se a regressão logística múltipla, escolhendo-se modelos parcimoniosos pelo método Stepwise e usando nível de 5% para inclusão e 10% para exclusão das variáveis; a partir daí, calcularam-se os OR ajustados. Na primeira regressão logística, tomou-se a utilização de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) como variável dependente, escolhendo-se em separado um modelo para cada segmento da natureza jurídica dos estabelecimentos. Na segunda, a variável resposta foi o resultado da internação, óbito ou não. Os dados foram processados com o emprego do pacote estatístico SPSS versão 9.0 (SPSS Incorporation, 1998).

 

 

Resultados

 

Em 1996, houve 890.315 internações para todas as idades no Estado do Rio de Janeiro. Dentre estas, 55.250 (6,2%) foram de menores de um ano; as doenças infecciosas e parasitárias abrangeram 19,6% do total de internações. Por fim, as diarréias infecciosas - principal patologia deste grupo - corresponderam a 70,6%. A taxa de internação por diarréia no Estado, foi de 284,68 por 10 mil nascidos vivos. Em 5,2% (394) das internações, não se pôde identificar o município de residência da criança, ao passo que as crianças residentes nos Estados de Minas Gerais e Espírito Santo representaram 0,3% (21) das internações.

Do total de internações, 6.313 (82,6%) ocorreram nos estabelecimentos hospitalares contratados/filantrópicos, sugerindo um número desproporcional de internações por diarréia nesta categoria de natureza jurídica da instituição. Essa grande concentração pode ser observada melhor pela razão obtida com a divisão dos dois quocientes: (6.313/1.326)/(3.296/2.441), o que resultou em 3,5. Isto significa que a freqüência relativa de internações por unidade de leito pediátrico para diarréia infecciosa foi 3,5 vezes maior nos hospitais contratados/filantrópicos, em comparação aos hospitais públicos/universitários.

Ao analisar a distribuição temporal das hospitalizações por diarréia, não se observou padrão sazonal e esta também foi semelhante entre os hospitais contratados/filantrópicos, em comparação ao outro grupo.

A descrição das variáveis consideradas no estudo é apresentada na Tabela 1. Do total de internações, 55,5% eram do sexo masculino. A distribuição etária das internações, apontou que quase 60% tiveram lugar antes de a criança completar seis meses. Em percentual significativo de internações (25,7%), as crianças buscaram assistência médico-hospitalar fora do município de residência. Nos municípios da Região Metropolitana, ocorreram 77,9% do total das internações registradas no Estado. O tempo médio de permanência, com grande amplitude, foi de cinco dias. Para a maioria das hospitalizações por diarréia (84,0%), nenhum agente etiológico foi especificado. Cerca de 6% das internações foram encaminhadas à UTI. A taxa de letalidade hospitalar por diarréia foi de 0,7%. Esta se mostrou inversamente associada à idade da criança internada, variando de 2,5%, no período neonatal, até 0,3%, entre maiores de seis meses. É preocupante observar que 47,7% das crianças morreram nas primeiras 48 horas de internação, tendo sido hospitalizadas em estado agônico ou pré-agônico, 70,4% destas.

 

 

Ainda na Tabela 1, a distribuição por grupo de idade mostra que, enquanto 60,3% das crianças internadas nos hospitais públicos/universitários contavam menos de seis meses, este porcentual reduziu-se para 47,3% entre os contratados/filantrópicos. Das crianças internadas em hospital contratado/filantrópico, 29,9% receberam assistência médica fora do município de residência; já para os públicos/universitários, o número reduziu-se para 14,4% (OR = 2,5). Dentre as internações que foram efetuadas em hospitais contratados/filantrópicos, 81,2% ocorreram na Região Metropolitana, ao passo que este percentual foi de 62,2% (OR = 0,4) nos públicos/privados. Confrontando-se a natureza do hospital, segundo a identificação do agente etiológico, percebe-se que os hospitais contratados/filantrópicos identificaram mais os agentes etiológicos que os públicos/ universitários, OR = 0,5. Também foi mais elevada a admissão em UTI nos hospitais contratados/filantrópicos (OR = 2,4).

Observou-se menor concentração de óbitos de crianças internadas por diarréia infecciosa nos hospitais contratados/filantrópicos, em comparação aos públicos/universitários (OR = de 0,5). A taxa média de permanência foi menor nos primeiros, com diferença de até dois dias (Tabela 2). Na média, as internações nos hospitais contratados/filantrópicos foram 14,2% mais caras do que as dos públicos/universitários, o que talvez se justifique pela maior utilização de UTI (6,3%), em cotejo com os públicos/universitários (2,7%). O uso de UTIs quadruplicou o valor da internação, independente da natureza jurídica do estabelecimento. A Tabela 3 expõe os resultados das regressões logísticas múltiplas para cada tipo de natureza jurídica do hospital, tendo a utilização ou não da UTI como variável resposta.

 

 

 

Tanto para os hospitais públicos/universitários quanto para os contratados/filantrópicos, a variável selecionada no primeiro passo da regressão foi o resultado da internação. Crianças que morreram durante a internação apresentaram maior probabilidade de serem encaminhadas à UTI, em relação àquelas que sobreviveram. A localização geográfica do hospital teve efeito para os dois tipos de estabelecimentos, apresentando, entretanto, direções opostas. Enquanto a chance de internar-se em UTI nos hospitais contratados/filantrópicos fora da região metropolitana foi 90% (OR = 0,1)) menor em comparação a este segmento fora da região metropolitana, a probabilidade para os hospitais públicos/universitários foi 82% maior (OR recíproco de 5,4).

A idade da criança também foi importante preditor para utilização da UTI nos dois tipos de estabelecimentos. As crianças menores de três meses apresentaram possibilidade maior de utilizar a UTI, em comparação com as mais velhas. Apenas para os hospitais contratados/ filantrópicos, a criança que buscou assistência fora do município de residência teve mais chance de internar-se na UTI do que as que foram atendidas no próprio município.

As diferenças observadas entre os dois segmentos hospitalares do SUS levaram a pesquisar em que medida estas evitaram ou não o óbito da criança, aqui tido como aproximação da qualidade da assistência prestada. Nesse sentido, observa-se na Tabela 4 que, do conjunto de variáveis independentes, quatro foram selecionadas para a inclusão no modelo, segundo os critérios definidos anteriormente. No primeiro passo, entrou a variável utilização da UTI, seguida da idade da criança. As outras variáveis de efeito parcial foram: a natureza jurídica do hospital e a definição da etiologia da diarréia.

 

 

 

Discussão

 

Os dados apontaram que a diarréia infecciosa ainda afeta de forma dramática a saúde das crianças menores de um ano, como também impõe uma carga considerável aos serviços hospitalares do Estado do Rio de Janeiro. A comparabilidade da taxa de internação encontrada neste estudo, com as de outros países não foi possível, pois estas referem-se ao conjunto de crianças menores de cinco anos (Andern-Holmer et al., 1999; Holman et al., 1999). Ainda assim, chama a atenção a alta taxa de internação verificada no presente trabalho, que foi de 284,68 por 10.000 nascidos vivos. Há que se considerar que a taxa calculada para o Estado do Rio de Janeiro, pode estar subnotificada, pois para seu cálculo empregou-se o total de nascidos vivos como denominador, enquanto o numerador correspondeu apenas às hospitalizações ocorridas no SUS. Estima-se que cerca de 32% da população do Estado conta com seguro-saúde privado (IBGE, 2000), portanto, não utilizou ou utilizou pouco os hospitais do SUS. Também há que se levar em conta que a fração da população que paga seguro-saúde tem melhores condições de vida (IBGE, 2000), reduzindo a probabilidade de adoecer e morrer por diarréia.

A maior concentração dos casos de diarréia nos hospitais contratados/filantrópicos poderia ser explicada pela diferença em determinadas características das crianças atendidas. Dentre estas, tem-se as da esfera sócio-econômica, a idade e a severidade do caso.

A renda familiar e a educação materna, que se têm mostrado cruciais na determinação do risco de internação hospitalar de crianças em vários estudos (Casanova et al., 1995; Cesar et al., 1996; Davis et al., 1981), não puderam ser consideradas em razão de estas informações não constarem nas AIHs. As crianças internadas nos hospitais públicos/universitários são mais jovens, em comparação com as internadas nos hospitais contratados/filantrópicos. Diversos estudos demonstram que a morbimortalidade por diarréia é inversamente associada à idade da criança (Glass et al., 1991).

Nos hospitais contratados/filantrópicos, o tempo médio de internação foi menor. Tal fato, aliado à maior concentração de clientela em faixas etárias tardias e, supostamente, portadora de menor gravidade da doença, pode estar indicando, dentre outros fatores, o pouco rigor nos critérios de internação, sugerindo internações desnecessárias de casos que poderiam ter alta resolutividade no nível ambulatorial com uso de TRO.

A observação do número expressivo de crianças que faleceram nas primeiras 48 horas de internação merece atenção. É razoável suspeitar que grande proporção dessas crianças teve acesso limitado aos serviços de atenção primária e, em conseqüência, foram hospitalizadas tardiamente. Tal constatação aponta para o desequilíbrio existente entre o cuidado ambulatorial e hospitalar com implicações na crise de financiamento do sistema.

Cerca de um quarto das crianças recebeu assistência hospitalar fora do município de residência e, nelas, a taxa de letalidade (0,76%) e o tempo médio de permanência (5,02 dias) foram comparáveis com as crianças que tiveram atendimento em seu próprio município (0,74% de taxa de letalidade e 5,00 dias de permanência). No entanto, para hospitais contratados/filantrópicos, o deslocamento determinou maior utilização dos serviços da UTI (OR = 1,4), indicando talvez gravidade mais acentuada do caso no momento da admissão hospitalar (Tabela 3).

Diante dos recursos limitados e das muitas doenças a tratar, as considerações econômicas no contexto da assistência médica tornam-se obrigatórias. O custo médio total das internações foi estimado em R$ 147,00, valor semelhante ao descrito por Koopman et al. (1984) para o atendimento ambulatorial de crianças menores de dois anos, portanto, um custo baixo que, em algumas situações, poderia comprometer a qualidade da assistência prestada. A observação da diferença de custo da internação por diarréia entre as duas categorias de hospitais apontou, como uma das razões, o uso intensivo da UTI pelos hospitais contratados/ filantrópicos.

Embora os dois modelos de regressão logística múltipla sejam semelhantes quanto às variáveis preditoras do encaminhamento à UTI nos dois tipos de estabelecimento hospitalar, é relevante destacar a diferença de magnitude da associação entre elas. Sem dúvida que a gravidade do caso da diarréia, medida pela ocorrência de óbito durante a hospitalização, foi o principal determinante da internação da criança na UTI, mas a diferença do odds ajustados de quase três vezes entre os dois tipos de hospitais, levanta a hipótese de distinção também na conduta médica para o encaminhamento à UTI.

Uma vez que, dos 684 leitos de UTI disponíveis nos hospitais que internaram crianças menores de um ano com diarréia infecciosa, 67,5% pertenciam aos hospitais públicos/universitários, segundo informações do DATASUS (1996b), constata-se que, no segmento contratados/filantrópicos, esse tipo de recurso é menos disponível, mas sua utilização foi mais intensiva para o tratamento da diarréia. Outra explicação é que pode haver grande demanda por utilização de UTIs nos hospitais públicos/universitários para outras patologias de maior gravidade, não ficando esses leitos disponíveis para tratamento das doenças diarréicas.

O efeito independente da área geográfica do hospital, segundo sua natureza jurídica, apresentou direção oposta, sugerindo distribuição diferenciada de UTI entre a região metropolitana e o restante do estado.

A identificação etiológica - um dos itens que aumentaram o custo da internação - foi mais freqüente no segmento privado do SUS. Procedimentos padronizados, recomendados pela OMS para o tratamento das diarréias infecciosas, dispensam a necessidade de identificação etiológica desta patologia (OPS, 1987). No entanto, a definição de diagnóstico etiológico poderia esclarecer as causas potencialmente associadas às diarréias, tais como a contaminação de alimentos, água e vetores (Mounts et al., 1999). Essas informações disponíveis, embora onerando os custos das hospitalizações, teriam algum sentido se servissem para subsidiar o Sistema de Vigilância Epidemiológica das doenças diarréicas, mas isto não está acontecendo.

Curioso ainda, é verificar que 57,3% das internações concentraram-se em apenas sete dos hospitais contratados/filantrópicos localizados na Região Metropolitana, sendo que um deles é responsável por 41% destas, ou seja, por 1.778 internações, com custo médio diário bem mais elevado, de R$ 41,80. Este resultado não é coerente com a distribuição geográfica da diarréia infecciosa no Estado do Rio de Janeiro.

Embora as internações nos hospitais contratados/filantrópicos sejam aparentemente excessivas e mais caras em comparação aos públicos/universitários, parece que o segmento contratado/filantrópico tem se apresentado mais efetivo no que diz respeito à evitabilidade do óbito por diarréia durante a internação, na medida em que as crianças internadas aí, tiveram probabilidade cerca de duas vezes menor (OR recíproco de 0,4) de ter como resultado o óbito, independente da idade e da utilização da UTI.

Dos resultados deste estudo, pode-se depreender que hospitalizações desnecessárias por diarréia ainda estão ocorrendo no Estado do Rio de Janeiro, o que representa sofrimento, riscos e custos para as crianças e suas famílias. Observa-se também, uma excessiva letalidade dos casos, decorrente de problemas no acesso e de diferenças nas condutas adotadas pelos serviços de saúde. Assim, identifica-se a urgente necessidade de integração e hierarquização dos diferentes níveis de atenção à criança com diarréia, bem como a importância de investir na qualificação dos profissionais e na supervisão das práticas médicas dos hospitais integrantes do SUS. Do ponto de vista epidemiológico, a utilização da AIH pode não só subsidiar o monitoramento da assistência prestada às doenças diarreicas, mas constituir um poderoso instrumento da Vigilância Epidemiológica clássica, detectando problemas a serem investigados e informando sobre a circulação de agentes etiológicos.

As principais limitações reveladas neste banco de dados foram a não universalidade - ou seja, só foram incluídas na análise as crianças que tiveram acesso à rede hospitalar do SUS - e a ausência de padronização e treinamento dos profissionais de saúde e dos codificadores para o preenchimento dos dados, o que pode acarretar variações nos diagnósticos e, por conseguinte, na fidedignidade das informações (Schramm, 2000). Apesar disso, este estudo é importante pelo tamanho do banco de dados, que inclui a grande maioria das hospitalizações realizadas no estado e todas as mortes resultantes.

Assim, toda a potencialidade do Sistema de Internação Hospitalar está na dependência de seu uso para fins epidemiológicos e do planejamento em saúde, bem como da realização de estudos de validação que permitam o seu aprimoramento.

 

 

Referências

 

ANDERN-HOLMES, S. L.; LENNON, D.; PINNOCK, R.; NICHOLSON, R.; GRAHAM, D.; TEELE, D.; SCHOUSBOE, M.; GILLIES, M.; HOLLIS, B.; CLARKIN, A. M.; LINDEMAN, J. & STEWART, J., 1999. Trends in hospitalization and mortality from rotavirus disease in New Zealand infants. Pediatrics Infectious Disease Journal, 18:614-619.         

CAMPOS, G. J. V.; REIS FILHO, A. S.; SILVA, A. A. M.; NOVOCHADLO, M. A. S.; SILVA, R. A. S. & GALVÃO, C. E. S., 1995. Morbimortalidade infantil por diarréia aguda em área metropolitana da região nordeste do Brasil, 1986-1989. Revista de Saúde Pública, 29:132-139.         

CARVALHO, D. M., 1997. Grandes sistemas nacionais de informação em saúde: Revisão e discussão da situação atual. Informe Epidemiológico do SUS, 5:7-46.         

CASANOVA, C. & STARFIELD, B., 1995. Hospitalizations of children and acess to primary care: A cross-national comparasion. International Journal of Health Services, 25:283-294.         

CÉSAR, J. A.; VICTORA, C. G.; BARROS, F. C.; RAMOS, F. A.; ALBERNAZ, E. P.; OLIVEIRA, L. M.; HALPERN, R.; BREITENBACH, A.; STONE, M. H. & FRACALOSSI, V., 1996. Hospitalizações em menores de um ano pertencentes a duas coortes de base populacional no Sul do Brasil: Tendências e diferenciais. Cadernos de Saúde Pública, 12(Sup. 1): 67-71.         

CONNELL, F. A.; DAY, R. W. & LOGERFO, J. P., 1981. Hospitalization of medicaid children: Analysis of small area variations in admission rates. American Journal of Public Health, 71:606-613.         

DATASUS (Departamento de Informática do SUS), 1996a. Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos, 1996 - Dados da Declaração de Nascidos Vivos. CD-ROM. Brasília: Ministério da Saúde.         

DATASUS (Departamento de Informática do SUS), 1996b. Rede Hospitalar do SUS, 1996. CD-ROM. Brasília: Ministério da Saúde.         

DAVIS, K.; GOLD, M. & MAKUC, D., 1981. Access to health care for the poor: Does the gap remain? Annual Review of Public Health, 2:159-182.         

ECHENIQUE, I., 2000. A importância da utilização de vários parâmetros de análise. Saúde em Foco, 20:11-17.         

GLASS, R. I.; LEW, J. F.; GANGAROSA, R. E.; LEBARON, C. W. & HO, M. S., 1991. Estimates of morbity and mortality rates for diarrheal diseases in American children. Journal of Pediatrics, 118:S27-33.         

HODGE, M. J.; DOUGHERTY, G. E. & PLESS, B., 1995. Pedriatric mortality and hospital use in Canada and United States, 1971 through 1987. American Journal of Public Health, 85:1276-1279.         

HOLMAN, R. C.; PARASHAR, U. D.; CLARKE, M. J.; KAUFMAN, S. F. & GLASS, R. I., 1999. Trends in diarrhea-associated hospitalizations among American Indian and Alaska native children, 1980-1995. Pediatrics, 103:E11.         

IBGE (Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), 2000. Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios: Acesso e Utilização de Serviços de Saúde: 1998. Rio de Janeiro: Departamento de Emprego e Rendimento, IBGE.         

JIN, S.; KILGORE, P. E.; HOLMAN, R. C.; CLARKE, M. J.; GANGAROSA, E. J. & GLASS, R. I., 1996. Trends in hospitalizations for diarrhea in United States children from 1979 through 1992: Estimates of morbity associated with rotavirus. Pediatrics Infectious Disease Journal, 15:397-404.         

KOOPMAN, J. S., 1984. Patterns and etiology of diarrhea in three clinical settings. American Journal of Epidemiology, 119:114-123.         

LEAL, M. C., 1996. Evolução da Mortalidade Infantil no Estado do Rio de Janeiro na Década de 80: Componente Neonatal. Tese de Doutorado, Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz.         

MOUNTS, A. W.; HOMAN, R. C.; CLARKE, M. J.; BRESEE, J. S. & GLASS, R. I., 1999. Trends in hospitalizations associated with gastroenteritis among adults in United States, 1979-1995. Epidemiology and Infections, 123:1-8.         

NEWACHECK, P. W. & STARFIELD, B., 1988. Morbity and use of ambulatory care services among poor and nonpoor children. American Journal of Public Health, 78:927-933.         

OMS (Organização Mundial da Saúde), 1985. Manual da Classificação Estatística Internacional de Doenças, Lesões e Causas de Óbitos - Nona Conferência de Revisão. São Paulo: Centro Brasileiro de Classificação de Doenças em Português.         

OPS (Organización Panamericana de la Salud), 1987. Manual de Tratamiento de la Diarrea. Serie Paltex 13. Washington, DC: OPS.         

PERRIN, J. M.; HOMER, C. J.; BERWICK, D. M.; WOOLF, A. D.; FREEMAN, J. L & WENNBERG, J. E., 1989. Variations in rates of hospitalization of children in three urban communities. New England Journal of Medicine, 320:1183-1187.         

SCHRAMM, J. M. A., 2000. A Natimortalidade, a Mortalidade Neonatal Precoce e o Sistema de Informações Hospitalares do Sistema Único de Saúde: Uma Abordagem Metodológica. Tese de Doutorado, Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro.         

SILVA, A. A. M.; GOMES, U. A. & SILVA, R. A., 1999. Fatores de risco para hospitalização de crianças de um a quatro anos em São Luís, Maranhão, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, 15:749-757.         

SPSS INCORPORATION, 1998. SPSS for Windows. Statistical Package for the Social Sciences. Release 9.0. Chicago: SPSS Inc.         

WENNBERG, J. E.; FREEMAN, J. L. & CULP, W. J., 1987. Are hospital services rationed in New Haven or over-utilised in Boston? Lancet, 1:1185-1189.         

YAZLLE-ROCHA, J. S. & SIMÕES, B. J. G., 1999. Estudo da assistência hospitalar pública e privada em bases populacionais, 1986-1996. Revista de Saúde Pública, 33:44-54.         

 

 

Recebido em 24 de julho de 2000
Versão final reapresentada em 26 de outubro de 2001
Aprovado em 14 de dezembro de 2001

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br