ARTIGO ARTICLE

 

Atendimento de emergência a mulheres que sofreram violência sexual: características das mulheres e resultados até seis meses pós-agressão

 

Emergency care for women following sexual assault: characteristics of women and six-month post-aggression follow-up

 

 

Carlos Tadayuki OshikataI; Aloísio José BedoneI; Anibal FaúndesI, II

IFaculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, Brasil
IICentro de Pesquisas das Doenças Materno Infantis de Campinas, Campinas, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Avaliou-se o processo e os resultados do tratamento a mulheres vítimas de violência sexual em Hospital Universitário. Estudo prospectivo para avaliar o atendimento de emergência e o seguimento ambulatorial por seis meses de 166 mulheres, pós-púberes, atendidas no Centro de Atenção Integral à Saúde da Mulher da Universidade Estadual de Campinas, entre outubro de 1999 e fevereiro de 2002. Metade era menor de vinte anos, duas não eram alfabetizadas, 70,0% eram solteiras, 20,0% usavam anticoncepcionais, 80,1% foram atendidas até 24 horas pós-agressão. Os agressores eram desconhecidos em 80,0% dos casos e 95,0% tiveram relação vaginal. Anticoncepção de emergência foi administrada a 76,0% das mulheres, antibióticos a 98,0%, imunoglobulina para hepatite B a 95,0% e anti-retrovirais a 90,0%. Retornaram aos 14 dias 137 mulheres, 37,0% não retornaram aos 45 dias e 29,0% completaram seis meses de seguimento. Foi diagnosticado hepatite B e HPV em 2,6%, doença inflamatória pélvica e tricomoníase em 2,1%, sífilis 1,3%, além de três gestações entre 127 que receberam anticoncepção de emergência (2,6%). Não houve infecção pelo HIV. O atendimento de emergência a vítimas de violência sexual é eficiente em reduzir o número de gestações indesejadas e das DST.

Mulheres Vítimas de Abuso; Saúde da Mulher; Atendimento de Emergência


ABSTRACT 

This study evaluated the process and results of treatment for women at a university hospital after sexual violence. A prospective study of 166 women (> 12 years of age) treated from October 1999 to February 2002 included six months follow-up after aggression. Half of the women were under 20 years of age, two were illiterate, 70.0% unmarried, 20.0% used contraceptives, and 80.0% received treatment within the first 24 hours post-aggression. Nearly 80.0% of aggressors were unknown to victims and 95.0% of the cases involved vaginal penetration. Emergency contraception was administered to 76.0%, antibiotics to 98.0%, hepatitis B immunoglobulin to 95.0%, and HIV anti-retroviral prophylaxis to 90.0%. The first follow-up consultation (at 14 days) was attended by 137 women, whereas 37.0% dropped out before the 45-day visit and only 29.0% complied with the six-month follow-up. During follow-up, hepatitis B and HPV were identified in 2.6%, pelvic inflammatory disease and Trichomonas vaginalis in 2.1%, and syphilis in 1.3%. Three pregnancies were observed among 127 women who received emergency contraception (2.6%). No cases of HIV seroconversion were observed. Emergency care for victims of sexual assault is effective in reducing unwanted pregnancies and infections.

Battered Women; Women's Health; Emergency Medical Services


 

 

Introdução

A violência sexual é um crime universal, clandestino e subnotificado praticado contra a liberdade sexual de uma pessoa. É definido como um ato sexual não consentido em que ocorre a penetração genital, oral ou anal por parte do agressor 1. Dentre as violências sexuais, o estupro é o mais praticado contra as mulheres, atingindo-as independentemente da idade, raça e condição social. É considerado um problema de saúde pública devido à sua elevada incidência e as graves conseqüências para a saúde da mulher 2,3, tais como traumas emocionais, físicos, doenças sexualmente transmissíveis, gravidez indesejada e outros problemas ginecológicos a mais longo prazo 4,5,6.

No Brasil, a violência sexual é considerada causa importante de morbidade, atingindo principalmente as mulheres jovens em idade reprodutiva 7,8. É difícil, entretanto, estabelecer a prevalência da violência sexual porque os casos denunciados são apenas uma pequena proporção do total, seguramente menos de 20,0% 9,10. Uma das causas que contribuem para o baixo índice de denúncias é que a maioria das agressões ocorre em ambientes familiares ou são praticadas por pessoas conhecidas, onde existe um vínculo sentimental ou hierárquico entre os agressores e as vítimas. Mas também o medo de vingança, a sensação de culpa, o desconhecimento dos direitos legais e o descrédito na Justiça são fatores que contribuem para a falta de denúncia 4,7.

A solução do problema de violência sexual contra a mulher requer ações integradas da Justiça, Educação, Ação Social e Saúde, junto com a sociedade civil. À área da Saúde compete principalmente o atendimento de urgência da mulher agredida sexualmente, para atender as suas necessidades imediatas e protegê-las dos riscos de gravidez, ou doenças de transmissão sexual, e das conseqüências psicológicas da violência.

No Brasil, os serviços médicos em geral não estão equipados para diagnosticar e tratar as mulheres vítimas de violência sexual, devido à falta de médicos treinados e à relativa "invisibilidade" do problema, apesar de existir uma norma técnica específica emitida pelo Ministério da Saúde (MS) em 1998 7.

O Centro de Atenção Integral à Saúde da Mulher (CAISM) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) tem sido pioneiro no atendimento destas mulheres e no treinamento de outros profissionais do país. O Departamento de Tocoginecologia foi organizador, junto com o CEMICAMP (Centro de Pesquisas das Doenças Materno Infantis de Campinas), do I Fórum Interprofissional para Implementação do Atendimento ao Aborto Previsto por Lei, fóruns que têm se repetido todos os anos cada vez com maior participação 11. Por meio desses fóruns foram criadas normas de atendimento imediato à mulher agredida sexualmente. Enquanto essas normas estão bem definidas, não há consenso sobre o seguimento posterior e não se sabe muito bem como melhorar a continuidade deste seguimento. Surgiu, pois, a necessidade de verificar o perfil das mulheres que demandam o atendimento no serviço, avaliar o processo de atendimento, e se as condutas estão de acordo com o protocolo pré-estabelecido e avaliar os resultados da prevenção de gravidez não desejada e de infecções de transmissão sexual.

 

Sujeitos e métodos

Foi realizado um estudo prospectivo com 166 mulheres vítimas de violência sexual, atendidas no setor de urgências do CAISM, da UNICAMP, entre outubro de 1999 e fevereiro de 2002. Essas mulheres foram seguidas ambulatorialmente de acordo com um protocolo pré-determinado e pré-testado, com a primeira consulta entre 8 e 14 dias e as demais após 45, 90 e 180 dias. Todos os dados deste estudo foram obtidos de uma ficha própria, pré-testada, tanto de urgência como de seguimento ambulatorial, subdividida em tópicos. Essa ficha própria é preenchida na urgência pelo médico chefe de plantão e revisada pelos pesquisadores. No seguimento ambulatorial todos os dados foram coletados prospectivamente pelos pesquisadores.

No atendimento de urgência as mulheres também foram avaliadas pela psicóloga e pela assistente social. O atendimento médico de urgência incluiu: exame físico geral, coleta e guarda de material biológico encontrado nos genitais ou em outra parte do corpo, coleta de sangue periférico para sorologias de sífilis, HIV e hepatites B e C, prescrição da anticoncepção de emergência com levonorgestrel 1.500µg (dividido em duas doses de 12 em 12 horas), imunoglobulina para profilaxia da hepatite B, Azitromicina 1,0g para profilaxia de doenças sexualmente transmissíveis (DST) bacterianas. Em caso de gestante foi administrado Amoxicilina ou Eritromicina 1,5g por 7 dias, em substituição à Azitromicina. Neste primeiro atendimento se registraram os dados básicos da mulher, da agressão e do agressor.

Para a prevenção da transmissão do HIV foram utilizados anti-retrovirais por quatro semanas em todas as mulheres atendidas, que consultaram dentro das 72 horas seguintes à agressão. Usaram-se dois esquemas diferentes segundo o risco. Nos casos de relação oral e/ou vaginal sem traumas ou sangramentos foram utilizados Zidovudina (AZT) e Lamivudina (3TC). Nos casos de relação sexual anal ou relação vaginal ou oral com traumas ou sangramentos ou múltiplos agressores, se administrou terapia tríplice com AZT+3TC+Nelfinavir ou Indinavir.

Todas as mulheres foram orientadas sobre o uso de condom durante seis meses e aquelas que não aceitaram esta recomendação foram excluídas da avaliação do seguimento. Nas demais consultas foram colhidas amostras sangüíneas para as mesmas sorologias realizadas na admissão. As pacientes recebiam alta ambulatorial após seis meses se nenhuma anormalidade fosse detectada e o impacto psicológico da agressão estivesse bem controlado. Todos os procedimentos realizados estavam de acordo com o protocolo próprio, desenvolvido pelo serviço. As análises dos dados foram feitas pelo programa SAS versão 8.2. Este trabalho foi aprovado pela Comissão de Pesquisa do Departamento de Tocoginecologia e pela Comissão de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP.

 

Resultados

Característica das mulheres violentadas sexualmente

A metade (50,6%) das mulheres vitimadas sexualmente tinha menos de 20 anos de idade e 8,0% menos de 15 anos. Apenas 3,0% tinham mais de 39 anos. A maioria (70,0%) era de cor branca. Apenas duas mulheres não tinham instrução. Proporções semelhantes, de aproximadamente 45,0%, tinham primeiro ou segundo grau incompleto ou completo. Perto de 10,0% tinham curso superior. A maioria era solteira (70,0%), 21,0% casadas e menos de 10,0% eram separadas ou viúvas (Tabela 1). Quase um terço das mulheres agredidas (30,7%) não tinha vida sexual prévia à agressão e apenas pouco mais de 20,0% usavam contracepção eficaz. Duas mulheres agredidas eram gestantes (dados não mostrados em tabela).

 

 

Características da agressão

Pouco mais de 10,0% dos agressores eram da própria família e porcentagens semelhantes eram de conhecidos. A maior parte dos agressores, quase 80,0%, era desconhecida.

Oitenta por cento das agressões aconteceram entre as 18 horas e 6 da manhã, com a metade do total no horário das 18 às 24 horas. Quase 60,0% das vítimas foram ameaçadas com arma de fogo, 10,0% com arma branca e 20,0% pela força física. Dez por cento foram submetidas à grave ameaça. Em 95,0% dos casos houve relação vaginal, a metade das mulheres teve relação oral e quase 30,0% relação anal, sendo excepcionalmente oral ou retal exclusivamente (Tabela 2).

 

 

Características do primeiro atendimento

A maior parte das mulheres atendidas no CAISM veio encaminhada de outros serviços de saúde e pouco menos de 40,0% pela polícia. Apenas uma de cada seis chegou a consultar diretamente no CAISM. Oitenta por cento consultaram dentro das 24 horas seguintes à agressão e apenas 7,0% o fizeram após 72 horas (Tabela 3). Nove de cada dez não apresentavam lesão física, mas 4,0% das mulheres precisaram de sutura de lacerações na área genital, 2,0% precisaram de internação e 4,0% de outros atendimentos (Tabela 3). As lesões genitais mais freqüentemente encontradas nas mulheres avaliadas foram: ruptura ou fissura himenal, laceração vaginal e fissura anal. Os traumas extragenitais ocorreram em um terço das mulheres. A maior parte destas lesões foram escoriações e equimoses, mas também se observaram duas fraturas na face.

 

 

Quase todas as mulheres (163 de 166) receberam profilaxia para DST bacterianas, 95,0% para hepatite B e 90,0% para HIV. O principal motivo para não receber profilaxia foi que a consulta aconteceu mais de 72 horas após a violência. A proporção que recebeu anticoncepção de emergência foi um pouco menor, 76,0%, principalmente porque 14,0% usavam anticoncepção eficaz, mas também pela mulher não estar exposta a risco de gravidez (menopausa, menstruada, sem coito vaginal). Apenas em cinco casos o motivo foi que a consulta ocorreu mais de 72 horas após a agressão.

Seguimento

Vinte e nove das 166 mulheres não tiveram seguimento: 17 (10,0%) se recusaram, sete (4,0%) foram encaminhadas a outros serviços e quatro porque não houve penetração durante a violência.

Pouco mais de 80,0% das mulheres fizeram o primeiro controle, mas menos de 50,0% retornaram a segunda consulta de seguimento e pouco menos de um terço retornou três meses após a violência. A perda foi bem menor entre três e seis meses, mas apenas 29,0% dos casos completaram os seis meses de seguimento (Tabela 4).

 

 

Conseqüências da agressão a médio prazo:

Observaram-se três gravidezes entre as 137 mulheres que tiveram pelo menos uma consulta de retorno. As três tinham entre 18 e 25 anos, não usavam contraceptivos antes da agressão, utilizaram anticoncepção de emergência dentro das primeiras 36 horas após o estupro e optaram pelo aborto legal. Quanto às infecções, houve três casos de doença inflamatória pélvica sem identificação do germe causal, dois de hepatite B e um de sífilis (Tabela 5). Exceto o caso de sífilis, todas as outras tinham consultado precocemente e recebido a profilaxia recomendada. A mulher contaminada com sífilis consultou além das 72 horas e não recebeu Azitromicina. Houve também dois casos que tornaram-se HPV+ na citologia de colo, em que não há medida pós-agressão que possa prevenir a contaminação.

 

 

Discussão

As características das mulheres estudadas, jovens e solteiras, correspondem ao esperado de acordo com a literatura e a dinâmica do fenômeno da violência sexual 12. A possível explicação da preferência dos agressores por mulheres jovens, não é apenas o suposto maior atrativo sexual, mas também a sua menor capacidade de reação em comparação com a mulher mais madura. Essas mesmas características foram observadas por Peipert & Domagalski 13.

O nível de escolaridade dos casos estudados é superior ao da população de mulheres adultas da Região Sudeste, segundo o Censo Demográfico do ano 2000 14. O possível maior nível de escolaridade da população de Campinas em comparação ao total da região não é suficiente para explicar esta diferença. Temos de aceitar, portanto, que estes serviços à mulher violentada sexualmente não atinge ainda as camadas menos favorecidas da população, visto que as mulheres sem escolaridade, que representam 11,0% do total das mulheres adultas da Região Sudeste no último censo, aparecem representadas por apenas duas mulheres neste estudo.

No extremo oposto, as mulheres com educação média e superior estão sobre-representadas entre as que solicitaram atenção por violência sexual. Seguramente, isto é reflexo do hospital estar dentro de um campus universitário, mas também da melhor informação e assertividade na proteção da saúde das pessoas com maior escolaridade.

A alta proporção de agressores desconhecidos para as vítimas está em desacordo com o que se sabe da literatura e mostra o que também já se sabe, isto é, que a agressão por conhecidos e, sobretudo, por familiares, não se denuncia nem provoca consulta, ainda que seja um longo processo que se repete por meses e anos. Segundo dados de delegacias de polícia locais, 70,0% da violência sexual contra as mulheres acontecem em casa e o agressor é o próprio marido 7,15.

A agressão sexual mais comum foi o estupro. Praticamente todas as mulheres sofreram este tipo de violência, acompanhada ou não de relações anais e/ou orais. Estes resultados foram semelhantes aos observados por Drezett 16 e McGregor 17. Chama a atenção a elevada porcentagem em que as vítimas sofreram penetração oral e anal, mostrando a severidade de agressão e fazendo com que o risco de transmissão de DST e HIV seja ainda maior.

Resultado interessante foi verificar que houve mais encaminhamentos de serviços de saúde que da polícia. A preferência em solicitar ajuda no setor saúde sugere que as mulheres que sofrem este tipo de violência estão mais preocupadas com sua própria saúde do que perseguir o agressor. A alta proporção dessas mulheres que consultaram dentro das primeiras 24 horas após a agressão sinaliza no mesmo sentido, isto é, de melhor informação sobre os serviços e da necessidade de solicitar atenção o mais precocemente possível. Apesar dessa perspectiva positiva, não podemos ignorar que ainda tivemos 7,0% de mulheres que consultaram além das 72 horas após a agressão, e 11,0% que consultaram além das 48 horas. Considerando que a profilaxia para HIV e outras infecções virais, provavelmente tem pouca efetividade se iniciada além das 48 horas e ainda das 24 horas após a contaminação, não podemos sentir-nos ainda satisfeitos e maiores esforços devem ser feitos para que toda a população esteja informada da necessidade da consulta precoce após a violência sexual.

A baixa freqüência de lesões graves nos casos atendidos coincide com o observado em praticamente todos os serviços que realizam tal atendimento. Estes resultados estão de acordo com os dados do American College of Obstetricians and Gynecologists 4, que mostra que a maioria das mulheres sofre traumas físicos leves, necessitando de procedimentos terapêuticos simples, sendo necessária internação em 1,0% dos casos.

Os resultados mostram que no primeiro atendimento se aplicaram as medidas profiláticas recomendadas de acordo com os critérios preconizados pela norma do MS e as propostas dos Fóruns Interprofissionais para atendimento integral da mulher vítima de violência sexual 7,18. O único ponto que deverá ser corrigido no futuro é a prolongação do prazo para administrar a anticoncepção de emergência até o quinto dia após a agressão, de acordo com publicações que não estavam disponíveis no período avaliado por este estudo 19.

O intervalo entre o atendimento de emergência e a primeira consulta ambulatorial ocorreu entre 8 e 14 dias, com média de 13 dias. Esta é a recomendação do American College of Obstetricians and Gynecologists e tem sido seguida em outros serviços 4,20.

A baixa proporção de casos com seguimento até seis meses é semelhante ou até melhor que o relatado na literatura. Segundo estudos de Bang 12, 59,0% das mulheres retornaram para controle ambulatorial entre 8 e 10 dias após o exame inicial, inferior aos 82,0% observados em Campinas. Já Holmes et al. 21, relataram que 24,0% das mulheres retornaram após seis semanas, enquanto nós tivemos quase 50,0% de retorno em um mês e mais de 30,0% aos três meses. Apesar desse sucesso relativo, precisamos conseguir uma melhor continuidade de seguimento por meio de um esforço muito maior de aconselhamento e, talvez, de aprimorar a coordenação com os serviços de saúde do Município de Campinas e alguns municípios vizinhos.

A falta de um melhor seguimento dificulta a interpretação dos dados sobre as conseqüências a médio prazo da agressão e a efetividade das medidas profiláticas. Exceto um caso de transmissão de sífilis em que a mulher consultou além das 72 horas após a violência, todos os outros casos de transmissão de hepatite B, DIP e de gravidez, tinham recebido a medicação recomendada. Os três casos de gravidez detectados correspondem a um índice de falha da anticoncepção de emergência de 2,3%, considerando-se o número de 127 mulheres às quais foi administrado o levonorgestrel. Esta proporção está dentro dos limites esperados, já que de acordo com os estudos mais completos publicados, a taxa de gravidez com o levonorgestrel é de 1,1%, contra 3,2% do método de Yuzpe 22.

A taxa de infecções de transmissão sexual entre as mulheres estudadas foi baixa se comparada com a literatura. Segundo diversos autores, o risco de uma mulher adulta, vítima de estupro adquirir gonorréia varia de 0,0% a 26,3%; clamídia de 3,9% a 17,0%; vaginose bacteriana 50,0%; tricomoníase 0,0% a 22,0%; candidíase 42,0%; sífilis de 0,0% a 5,6%; HPV de 0,6% a 2,3% e AIDS menos de 1,0% 21,23,24,25.

O pequeno número de infecções vaginais encontradas sugere que a conduta de utilizar-se apenas a Azitromicina deve ser mantida. Deve-se ponderar que as mulheres vítimas de violência são obrigadas a receber várias medicações. Por isso, a tentativa de procurar-se utilizar o menor número de drogas possíveis deve sempre ser estimulada.

A utilização de anti-retrovirais é controvertida, porém a experiência na profilaxia contra AIDS em casos de exposição biológica estimulou a extrapolação desta conduta para os casos de violência sexual 16,26,27. A experiência da UNICAMP na prevenção da transmissão do HIV é motivo de uma análise em separado, motivo pelo qual não nos estenderemos em detalhes neste ponto específico.

São poucos os serviços no Brasil que oferecem atendimento médico às mulheres vítimas de violência sexual. Até novembro de 2002 eram conhecidos 245 serviços médicos, distribuídos irregularmente pelo país 28. A atual estrutura e organização dos serviços de saúde, na maioria dos estados e municípios, não supre adequadamente as necessidades da demanda das mulheres em situação de violência, nem mesmo para o primeiro acolhimento. Na maioria dos locais não se tem condições físicas de suporte e nem uma equipe capacitada para receber essas mulheres 7.

Sendo a violência sexual um problema tão freqüente, de conseqüências tão graves e que são passíveis de prevenção quando essas mulheres recebem atendimento oportuno e eficaz, não existe justificativa para que ainda existam tantos serviços de urgência gineco-obstétricos que não estejam preparados para oferecer esses serviços. Esperamos que nossos resultados, que mostram a eficácia do atendimento de emergência, assim como o seguimento ambulatorial, sirvam de estímulo para que cada vez mais o atendimento a essas mulheres esteja assegurado em toda a extensão do território nacional.

 

Colaboradores

A. J. Bedone e A. Faúndes foram os principais organizadores do serviço de atendimento às mulheres que sofrem violência sexual que deu origem ao trabalho. C. T. Oshitaka fez o seguimento das mulheres incluídas no estudo e a coleta dos dados. Os três autores participaram no processamento e análise dos dados e na redação final deste trabalho.

 

Referências

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Endereço para correspondência
A. Faúndes
Centro de Pesquisas das Doenças Materno Infantis de Campinas
C. P. 6181, Campinas, SP 13083-888, Brasil
cemicamp@cemicamp.org.br

Recebido em 02/Fev/2004
Versão final reapresentada em 29/Jun/2004
Aprovado em 03/Ago/2004

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