ARTIGO ARTICLE

 

Atenção médica, transplante de órgão e tecidos e políticas de focalização

 

Medical care, organ and tissue transplants, and targeted policies

 

 

Carlos Dimas Martins Ribeiro; Fermin Roland Schramm

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

O artigo visa à reflexão sobre a legitimidade moral de implementar políticas públicas de focalização na área da atenção médica avançada; em particular, no caso de transplantes de órgãos e tecidos. Para tanto, foi feita referência a duas abordagens teóricas: a teoria das capacidades (capabilities), elaborada por Nussbaum e Sen, e à bioética de proteção desenvolvida por Schramm e Kottow, por considerá-las abordagens complementares. Num primeiro momento, caracteriza-se, por um lado, o problema da escassez de recursos na área dos transplantes e, por outro, as estratégias para tentar superá-lo. Em seguida, apresenta-se, brevemente, a abordagem das capacidades e a bioética de proteção. Finalmente, sustenta-se que, do ponto de vista das abordagens éticas consideradas, em situações de escassez dos recursos sanitários, como o brasileiro, seria moralmente justificado adotar políticas de focalização na área da atenção médica avançada, incluindo o transplante de órgãos.

Transplante de Órgãos; Transplante de Tecidos; Cuidados Médicos


ABSTRACT

This article reflects on the moral legitimacy of implementing public policies for targeting advanced medical care, specifically in the case of organ and tissue transplants. The article refers to two theoretical approaches: the theory of capabilities by Nussbaum and Sen and the bioethics of protection by Schramm and Kottow, considered complementary in this context. The article begins by characterizing the issue of resource scarcity in transplantation, as well as strategies to overcome this problem. Next, the capabilities approach and bioethics of protection are briefly presented. Finally, from the perspective of the above-mentioned ethical approaches, in situations of scarce health resources such as the Brazilian case, the author contends that it would be morally justified to adopt targeted policies in advanced medical care, including organ transplantation.

Organ Transplantation; Tissue Transplantation; Medical Care


 

 

Introdução

No Brasil, o primeiro transplante renal com doador vivo e com doador cadáver foram realizados em São Paulo, respectivamente, em 1965, no Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, e em 1967, no Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo 1. Dessas iniciativas pioneiras até os dias atuais transcorreu um período de mais de trinta anos, mas foi apenas a partir de 1997, com a publicação da Lei n. 9.434 2 – que regulamenta a remoção de órgãos e tecidos do corpo humano para transplante – que o mesmo teve um crescimento significativo no Brasil. Nesse momento, travou-se, na sociedade brasileira, um amplo debate sobre o transplante, iniciando um período bastante significativo para a incorporação desta técnica médica no Sistema Único de Saúde (SUS), com uma maior regulamentação de sua prática, a criação de uma estrutura institucional nacional para a sua realização e um aumento da atividade de transplantes.

Conforme a Legislação Brasileira, a aquisição de partes do corpo humano, para fins terapêuticos ou humanitários, poderá ser feita apenas pela doação gratuita, em vida ou post mortem 2. No primeiro caso, estabelece-se que a doação em vida para transplante é permitida à pessoa juridicamente capaz para o cônjuge ou parentes consangüíneos até o quarto grau, ou para qualquer outra pessoa, mediante autorização judicial, dispensada no caso da medula óssea 3.

A remoção post mortem de órgãos e tecidos destinados a transplante deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica, conforme resolução do Conselho Federal de Medicina, e a doação dependerá da autorização do cônjuge ou parente, maior de idade, obedecida a linha sucessória, reta ou colateral, até o segundo grau inclusive 2,4.

O transplante apenas poderá ser feito após o consentimento expresso do receptor do órgão ou tecido, devidamente inscrito em lista única de espera, após aconselhamento sobre os riscos e benefícios do procedimento 3. As listas únicas são formadas para cada tipo de órgão ou tecido, estabelecendo-se critérios mínimos para a seleção de pacientes para os mesmos 5.

Do ponto de vista institucional, cria-se o Sistema Nacional de Transplante (SNT), com o objetivo de desenvolver nacionalmente o processo de captação e distribuição de órgão e tecidos, sob a responsabilidade das três esferas de governo – nas suas competências específicas –, e formado pelas Centrais de Notificação, Captação e Distribuição de Órgãos (CNCDO); os centros de transplantes; e as equipes especializadas credenciadas para a realização dos transplantes 6.

Ressalta-se a obrigatoriedade de todos os serviços de saúde notificarem às CNCDO do Estado onde ocorrer o óbito, o diagnóstico de morte encefálica em pacientes atendidos pelos mesmos 2. É também de responsabilidade dos serviços de saúde inscrever o potencial receptor no sistema de lista única, na CNCDO de sua área de residência, bem como fornecer as explicações específicas sobre os critérios de distribuição do órgão ou tecido ao qual se relaciona como possível receptor 5,6.

Conforme dados disponíveis no portal do SNT, foram realizados no Brasil, em 2003, 12.710 transplantes. Destes, 8.544 foram realizados pelo SUS, quando, em 1995, foram realizados 4.122 transplantes, representando um aumento de 107% no número de transplantes realizados pelo sistema público. Contudo, a lista de espera para o transplante alcançou até novembro de 2004, 63.600 pacientes, ainda conforme os dados publicados pelo SNT em seu portal (http://www.saude.gov.br/transplantes).

 

O problema da escassez de recursos

Como observa Lamb 7, as principais preocupações éticas, no estágio atual da prática do transplante, estão ligadas à obtenção e distribuição dos órgãos numa situação de recursos escassos. De fato, a escassez de recursos é um dos graves problemas práticos, ou seja, concretos e morais, tanto da saúde pública como da ética aplicada em geral e da bioética em particular 8,9,10,11,12,13,14; sobretudo em sociedades democráticas e pluralistas nas quais, via de regra, existem várias concepções legítimas de qualidade de vida ou bem-estar, inclusive várias concepções sobre o que pode ser considerado um "bem", várias hierarquias de valores e comunidades morais, conforme enfatiza Engelhardt 15. No âmbito dos transplantes, essa escassez refere-se tanto à obtenção de órgãos e tecidos, quanto à estrutura necessária para a realização dos mesmos. Tal problema não é especifico dos assim chamados países subdesenvolvidos e em desenvolvimento, mas atinge também os assim chamados países desenvolvidos, embora seja mais agudo nos primeiros, que, reconhecidamente, possuem menos recursos para implantar uma estrutura adequada para a atividade de transplante 16,17.

As estratégias para enfrentar este problema podem ser agrupadas em quatro grandes tipos, que podem ser utilizadas complementarmente. A primeira consiste em atuar tanto na prevenção da doença como na promoção da saúde, tentando evitar que as pessoas venham a precisar de um transplante. Assim, por exemplo, ações de prevenção/promoção podem diminuir a incidência de hipertensão arterial e diabetes mellitus, ou suas complicações, reduzindo a necessidade de transplante de rins, considerando-se que elas são as principais causas de falência renal 8,18.

A segunda diz respeito ao progresso médico e consiste em buscar alternativas terapêuticas menos custosas e/ou prescindir dos órgãos e tecidos de pessoas vivas ou mortas. Nesta perspectiva cita-se a engenharia genética e, em particular, a utilização das células-tronco, que podem ser vistas como fontes "a princípio inesgotável de criação (...) de 'peças de reposição' para intervenções terapêuticas" 13 (p. 44).

A terceira objetiva aumentar a obtenção de órgãos e tecidos, seja utilizando a prática da doação seja a estrutura do mercado. No primeiro caso, são debatidas as concepções da doação post mortem como obrigação moral ou ideal solidário, buscando-se abordagens éticas que dêem um maior peso ao interesse do receptor em preservar sua qualidade de vida ou, simplesmente, sua sobrevida, ao invés do interesse do doador em controlar aquilo que os outros podem fazer com o seu corpo após sua morte. Desse modo, num extremo, temos a concepção de que o doente tem direito aos órgãos de uma pessoa morta e de que o Estado deveria, portanto, garantir tal direito, retirando-os rotineiramente para beneficiar os necessitados 19. Noutro extremo está a concepção de que os órgãos somente podem ser retirados se o indivíduo houver expressado, antes de morrer, o desejo de doar os órgãos para beneficiar outras pessoas, tratando-se, portanto, de uma doação previamente consentida 20.

A quarta estratégia centra-se nos mecanismos e critérios de seleção dos pacientes que deveriam se beneficiar de uma política pública de transplante de órgãos e tecidos. Neste artigo, sustenta-se, com base na abordagem da teoria das capacidades e na proposta da bioética de proteção que, no contexto brasileiro, uma política pública de transplante de órgãos e tecidos deveria estar baseada na focalização.

 

A abordagem pela teoria das capacidades

A teoria das "capacidades" (capabilities) pertence ao campo das teorias contemporâneas de justiça e foi desenvolvida por Martha Nussbaum 21,22 e Amartya Sen 23,24. Na opinião de seus autores, pode ser utilizada para prover uma base moral para princípios constitucionais que os governos de todas as nações deveriam implementar, buscando promover uma vida digna para todos os cidadãos e respeitando as especificidades de cada um, podendo, portanto, ser também pertinente e legítima para tentar fundamentar políticas sanitárias em princípio capazes de coadunar o interesse coletivo e os interesses individuais.

A premissa subjacente à teoria das capacidades é a de que certas funções são centrais na vida humana, incluindo a saúde – estar bem nutrido, livre de doenças evitáveis e de morte prematura etc. –, a razão prática e a afiliação, entre outras 22,24. Para Nussbaum 22, estas duas últimas são particularmente importantes em virtude de tornar o exercício das outras efetivamente humano. A razão prática refere-se à capacidade de formular, revisar e implantar uma concepção do bem ou de um plano de vida. A afiliação diz respeito à capacidade de engajar-se em várias formas de interação social e de "ser tratado como um ser digno cujo valor é igual ao de [qualquer] outro" 22 (p. 79). Nesse ponto, devemos ressaltar que Nussbaum adota uma idéia de dignidade ou de valor humano – o modo "verdadeiramente humano de viver" – de inspiração kantiana, baseada na concepção dos seres humanos como seres livres, capazes de exercer a razão prática e de afiliação, devendo cada pessoa ser vista como um fim em si mesmo e não meramente como um meio para satisfazer fins de terceiros 25. Em outros termos, a referência ao imperativo "personalista" kantiano, endossado pela autora, permite encarar a difícil, e aparentemente insolúvel, questão de tornar compatíveis – pelo menos no plano teórico – os princípios da igualdade e da eqüidade, ou seja, do respeito, simultâneo, da igualdade de todas as pessoas e de cada pessoa.

Na perspectiva da teoria das capacidades, cada sociedade, por intermédio do conjunto das instituições econômicas, sociais e políticas que compõem sua estrutura básica, deve promover, pelo menos, num nível mínimo, cada uma das capacidades humanas centrais, propiciando, desta forma, uma vida digna para todos os cidadãos e para cada um em particular 22. O mínimo, contudo, deverá ser definido conforme as circunstâncias e crenças locais – desenvolvimento tecnológico, recursos disponíveis e o imaginário social do que seja este limiar mínimo, entre outros aspectos –, sendo objeto de um acordo entre os indivíduos e os grupos sociais no interior de cada sociedade 22,23.

 

Bioética de proteção

Conforme caracterizam Schramm & Kottow 26, uma bioética de proteção se expressa na obrigação de cobertura das necessidades essenciais dos outros que não podem ser cobertas por outros meios, podendo incluir no termo "outros", não só os seres humanos, mas também os animais ou a natureza como um todo. No âmbito específico das necessidades humanas, essas "são aquelas que devem ser satisfeitas para que o afetado possa atender a outras necessidades" 26 (p. 953) e escolher entre projetos de vida alternativos.

Uma bioética de proteção é especialmente importante num contexto de escassez de recursos em que muitas pessoas não usufruem das condições sociais mínimas para satisfazer suas necessidades básicas, como nos países latino-americanos e, em nosso caso, no Brasil. Nesses tipos de situações, importa distinguir, como faz Kottow 27, a vulnerabilidade, considerada uma condição universal da espécie humana e, mutatis mutandis, de qualquer ser vivo, em vista da qual todos os seres vivos merecem em tese igual proteção para poder deter ameaças evitáveis, e a vulneração profunda, variável e seletiva – também chamada pelo autor de suscetibilidade – à qual podem estar sujeitos seres humanos que vivem em circunstâncias particulares de privação de suas necessidades básicas. Em outros termos, se a vulnerabilidade constitui uma condição ontológica e existencial de qualquer humano enquanto ser vivo, a suscetibilidade depende das circunstâncias nas quais determinados indivíduos e grupos sociais se encontram, não pelo fato de serem ser vivos e, portanto, vulneráveis, mas sim, de fato, vulnerados.

Em nossa avaliação, as necessidades em que a bioética de proteção está prioritariamente interessada são precisamente aquelas que dizem respeito às condições sociais necessárias – tanto lógica quanto praticamente – para que sujeitos que sejam objeto de preocupação moral possam ter uma vida digna; vale dizer, para que tais sujeitos, objetos da correspondente preocupação moral, possam exercer – pelo menos num nível "mínimo" – as capacidades humanas centrais delineadas por Nussbaum 22.

Assim sendo, o foco da preocupação moral proposto pela abordagem das capacidades é aquele com as pessoas e populações que estão abaixo desse limiar mínimo, que é o dos seres humanos suscetíveis ou vulnerados, conforme definidos pela bioética de proteção, razão pela qual podemos considerar as duas abordagens como complementares para o assunto que nos ocupa e preocupa aqui.

 

Saúde pública e atenção médica: é possível integrar universalização e focalização?

A bioética de proteção enfatiza a tarefa do Estado, consistente em implementar – por meio de suas instituições econômicas, políticas e sociais – políticas públicas que busquem impedir que alguma pessoa ou população possa estar abaixo do um limiar necessário para exercer suas capacidades humanas básicas, como ter uma integridade psicofísica e uma saúde que possam ser avaliadas como razoáveis. Para tanto, um Estado moralmente legítimo deve assumir a sua responsabilidade relativa à saúde dos indivíduos e populações que compõem a sociedade que representa e que estão sob sua gestão, incluindo tanto ações de prevenção do adoecimento como aquelas de promoção da saúde. Isso quanto aos serviços de atenção médica de fato prestados, inclusive considerando aquelas tecnologias tidas como eficazes, eficientes e efetivas; qualidades sem as quais sua incorporação pode ser questionável tanto do ponto de vista da pertinência como da legitimidade dos recursos investidos, isto é, do ponto de vista pragmático 28.

No entanto, numa situação de escassez de recursos, pode ser necessário – para que o Estado cumpra com sua responsabilidade de proteger os cidadãos de acordo com suas necessidades específicas e buscando promover sua capacitação básica – que se implementem políticas focalizadas em áreas específicas das políticas públicas de atenção à saúde. A esse respeito deve-se observar que o conteúdo universalista das políticas públicas de um Estado protetor reside na superação das desigualdades existentes entre os que estão e os que não estão abaixo deste limiar mínimo, criando condições sociais para que todos os cidadãos estejam acima do mesmo, inclusive adotando medidas compensatórias para que se realize de facto a igualdade de jure, garantida pelas constituições democráticas e pluralistas contemporâneas, inclusive a brasileira. Concretamente, isso implica que se, para realizar o objetivo da igualdade democrática, for necessário utilizar políticas focalizadas, elas devem ser implementadas, concebendo-as como um meio pragmático para alcançar tal objetivo moralmente legítimo 13,29.

As tecnologias médicas avançadas (diálise renal, transplante de órgãos, medicina intensiva etc.) encontram-se entre aquelas que poderiam ser distribuídas com base em uma política de focalização, responsabilizando-se o Estado por cobrir, ou subsidiar, os custos com a atenção médica cobrindo "todas as enfermidades que os cidadãos não possam arcar com seus próprios meios" 12 (p. 72). Assim sendo, na área da atenção à saúde, deve-se definir que população vai requerer apoio total (os mais suscetíveis ou vulnerados), parcial ou nenhum suporte do Estado (os que podem garantir parcial ou totalmente suas necessidades de saúde), priorizando aqueles indivíduos ou grupos em piores condições 30. Em outros termos, o Estado deveria oferecer uma gama indispensável e razoável de serviços médicos, priorizados com base numa focalização que considerasse pertinente e moralmente relevante as condições sócio-econômicas dos indivíduos e grupos sociais vulnerados em suas contingências específicas. Nesta perspectiva, as tecnologias médicas avançadas seriam oferecidas não somente em função das necessidades médicas dos pacientes – que podem eventualmente ter os meios para satisfazê-las – mas também em função dos recursos de que eles dispõem para adquiri-los – parcial ou totalmente – e garantir, conseqüentemente, a atenção 10,30. Mas, para tanto, deve-se dispor de informações fidedignas tanto sobre as necessidades médicas dos pacientes quanto sobre suas condições sócio-econômicas 23.

Três razões podem ser aduzidas para sustentar a moralidade de se distribuir as técnicas médicas avançadas com base na focalização, a qual nada mais é que uma modalidade das políticas compensatórias, isto é, das controvertidas ações afirmativas, as quais, no entanto, visam dar conteúdo concreto ao princípio de justiça entendendo-a no sentido da equidade. Em primeiro lugar porque essas técnicas beneficiam, via de regra, mais os indivíduos do que a sociedade como um todo, sendo o seu uso fonte de iniqüidades, visto que acabam privilegiando aqueles que, comparativamente, precisam menos 10. Com efeito, o progresso médico e o padrão de incorporação tecnológica nos serviços públicos e privados de saúde tendem a fortalecer uma atenção médica que busca satisfazer, de forma ilimitada, às necessidades médicas individuais – independentemente de outras necessidades sociais e da carga sobre a sociedade como um todo –, com a erosão conceitual da distinção entre necessidade e desejo, por um lado, e entre saúde e enfermidade, por outro 31,32. Assim, alarga-se o descompasso (gap) entre necessidades individuais e grupais, ampliando a distância entre os custos requeridos, por exemplo, por uma paciente que exige tecnologias mais baratas e os custos da atenção a um paciente que exige tecnologias mais caras; incluindo pacientes com condições comuns e raras, tratáveis ou não 31. Em suma, aprofunda-se a desigualdade entre aqueles que se beneficiam e os que não se beneficiam dos frutos do progresso médico, tornando o acesso às tecnologias médicas, cada vez mais, um privilégio daqueles que, já possuidores de outros privilégios, como o econômico, podem pagar pelos serviços.

Em segundo lugar, essas técnicas não contribuem para manter a saúde pública num padrão alto ou, pelo menos, razoável – isto é, condições sociais básicas que permitam a todos os cidadãos terem determinados funcionamentos tais como estar bem nutrido, abrigado, livre de doenças evitáveis e de morte prematura, dentre outros –, atuando, muitas vezes, nos efeitos do descaso do Estado no campo da prevenção da doença e promoção da saúde 10. No caso específico do transplante – como ressalta com muita propriedade Berlinguer 8 (p. 116) – trata-se da "manifestação de dois malogros: porque um indivíduo (o doador) morreu precocemente, às vezes jovem, muitas vezes em acidentes, e outro (o receptor) adoeceu tão gravemente a ponto de não poder sobreviver a não ser com a aplicação, para o bem, do princípio mors tua, vita mea".

A terceira razão relaciona-se com a natureza da atenção médica que pode ser mais facilmente objeto de manipulação pelos mecanismos de mercado, com vistas ao consumo individual, do que, por exemplo, com a promoção à saúde, que visar "bens públicos, que as pessoas consomem juntas, e não separadamente" 23 (p. 155). Discutir os defeitos e as virtudes do mercado, tampouco refletir sobre as formas mais apropriadas para a interação entre o Estado e o mercado no campo da medicina, não é o objetivo deste artigo. Apenas gostaríamos de assinalar que vários países, entre eles o Brasil, têm adotado sistemas de saúde que combinam os setores públicos e privados na prestação de atenção médica 33, razão pela qual não vemos motivos para pensar que esta interação não possa ser feita preservando-se o bem público, mesmo que para isso seja necessária uma forte regulação governamental do mercado, além da incorporação, pelos atores econômicos, de valores morais que possam limitar um comportamento meramente auto-interessado próprio das transações comerciais 10,23,34.

 

Transplante de órgão e tecidos

Diante da escassez de recursos – órgãos e tecidos para transplantes e recursos para a realização do mesmo – vários podem ser os critérios e mecanismos utilizados para selecionar os pacientes que serão beneficiados, em circunstâncias nas quais suas necessidades de atenção à saúde estejam em competição. Entretanto, seja qual for o sistema de seleção adotado, este deverá determinar o "grupo de pessoas aptas a serem potenciais receptores" 14 (p. 412) de órgãos e tecidos e beneficiários do sistema público de transplantação; dentre estes, selecionar um paciente específico para receber um determinado órgão e ter acesso ao sistema público de saúde para a realização do transplante.

Na seleção dos pacientes, utilizam-se tanto estratégias de tipo igualitário, que enfatizam "o igual valor das pessoas e a justa oportunidade" 14 (p. 412), como as listas de espera e o sorteio, quanto estratégias utilitárias, que priorizam a maximização do bem-estar, seja em relação ao paciente – como na utilidade médica – seja em relação à sociedade – como na utilidade social 14. Enquanto no enfoque da utilidade médica utilizam-se critérios relativos às necessidades médicas dos pacientes e à probabilidade de sucesso do tratamento, no enfoque da utilidade social são utilizados critérios tais como sexo, raça, idade, estilo de vida e estrutura social de apoio. Contudo, este último enfoque é altamente controverso, sendo objeto de criticas tais como aquelas referentes "às dificuldades para desenvolver critérios aceitáveis de valor social" 14 (p. 412) em sociedades onde existem muitas concepções diferentes do que seja uma vida de valor.

O conflito se torna patente se consideramos que, conforme estabelece a legislação brasileira, a saúde é "um direito de todos e um dever do Estado", sendo que este deveria garantir o "acesso universal igualitário às ações e serviços" de saúde, incluindo-se a atenção médica e o transplante de órgãos e tecidos (Constituição da República Federativa do Brasil; Art. 196). Desta forma, todos os potenciais beneficiários do transplante deveriam estar inscritos em lista única, dentre os quais serão escolhidos os que receberam o órgão e se beneficiarão com o transplante, conforme critérios mínimos estabelecidos para cada órgão ou tecido, dentre os quais a compatibilidade sangüínea; a idade do receptor e o tempo decorrido da inscrição na lista única 2,6. Além disso, são estabelecidos, para cada tipo de órgão, os critérios de urgência do transplante.

Deve-se observar que o processo de seleção dos pacientes que irão beneficiar-se do transplante refere-se a dois recursos de natureza diferente, implicando duas decisões distintas: a escolha de quem deve receber o órgão e a escolha de quem deve realizar o transplante no sistema público de saúde.

No caso do Brasil – em que a legislação estabelece um sistema de distribuição de órgãos baseada na doação e na universalização do direito à atenção à saúde – todo potencial beneficiário do transplante tem direito aos dois recursos necessários para sua execução, obedecidos os critérios e mecanismos estabelecidos pela legislação: o órgão, que após ser doado constitui um bem público, e o sistema público de saúde responsável por realizar todos os procedimentos do transplante.

Outras possibilidades podem ser imaginadas. Por exemplo, pode-se conceber um sistema de transplante que operasse com a focalização e combinasse a doação e o mercado de órgãos, privilegiando as pessoas que não podem pagar pela atenção. Dessa forma, as pessoas que possuíssem os recursos comprariam os órgãos no mercado e realizariam o transplante no setor privado de atenção médica, de forma que os órgãos doados e os recursos públicos pudessem ser poupados e investidos para aqueles que estão em piores condições sócio-econômicas. Entretanto, este sistema de transplante aprofundaria as desigualdades entre os que possuem os recursos e os grupos populacionais mais suscetíveis ou vulnerados, sobretudo numa realidade como a brasileira, em que prolifera, em muitas áreas, um mercado que funciona sem as mínimas condições de regulação estatal, e em que o controle dos recursos públicos ainda é muito deficiente, permitindo freqüentemente o uso privado dos mesmos. Ademais, no Brasil, o mercado de órgão e tecidos não é legalmente permitido, não sendo abordada neste artigo a moralidade, ou não, de se usar esta modalidade de aquisição de partes do corpo humano, como estratégia para lidar com a escassez de órgão 35,36,37.

Logo, consideremos um sistema de transplantação em que a distribuição dos órgãos esteja baseada na doação, enfocando o órgão, doado, como um bem público, e um sistema misto formado pelos setores público e privado para a execução do transplante, priorizando-se, no sistema público, os pacientes que não podem pagar e respeitando a cláusula ceteris paribus, ou seja, mantendo iguais, ou pelo menos pertinentemente parecidas, as outras condições. Nesse sistema, após o órgão ter sido distribuído para um paciente específico – respeitando-se a lista única e os critérios estabelecidos para cada órgão – realiza-se a política de focalização, de modo que os pacientes que podem pagar pelo serviço possam fazer o transplante no sistema privado, enquanto os que não podem, fariam no sistema público. Esse seria o sistema que, na perspectiva da abordagem das capacidades e de uma bioética de proteção, deveria ser implementado num contexto de escassez de recursos, como é o caso brasileiro.

Complementarmente, este sistema de transplante poderia também ser justificado, aplicando-se uma abordagem comunitarista "extensa", segundo a qual os indivíduos, como membros da comunidade, partilham entre si interesses, necessidades e valores, buscando formas apropriadas de ajuda mútua capazes de garantir a cidadania para todos 38. Por mais que não seja obrigação específica de nenhum indivíduo assegurar que a pessoa usufrua de uma vida digna – sendo este o dever do Estado –, pode-se estender tal obrigação, direta ou indiretamente – por exemplo, mediante alguma forma de impostos –, a todos que têm condições de ajudar 23. Com efeito, um sistema de transplante pode ser visto como um recurso comunitário que deve ser partilhado por todos que participam do mesmo, numa relação de reciprocidade que distribua adequadamente as cargas e benefícios gerados pelo sistema 39,40,41.

Dessa forma, indivíduos que vêm satisfazendo, no curso de suas vidas, os seus interesses e necessidades, mormente aqueles que têm um padrão de vida muito acima do das condições sociais mínimas para uma vida digna, têm a obrigação de contribuir para satisfazer as carências de outros indivíduos, cedendo sua parcela de recursos públicos para outra pessoa realizarem o transplante e pagando pelo procedimento no setor privado.

Esta obrigação torna-se mais forte se entendermos que indivíduos pertencentes a grupos da população com padrão de vida abaixo do mínimo social digno freqüentemente não têm acesso ao sistema de transplante, participando somente como provedor de órgão e não como receptor 40. Além disso, os diferentes grupos sociais são colocados na lista de espera em vários estágios da sua doença e com várias probabilidades de sucesso 42. De fato, pacientes com inadequado acesso aos serviços tendem a se inscrever na fila mais tardiamente e com um quadro clínico menos satisfatório para um transplante de sucesso, sendo inclusive preteridos se o sistema utiliza critérios de resultados 43.

 

Conclusão

Neste artigo argumentamos, com base na abordagem das capacidades e na bioética de proteção, que o objetivo fundamental das políticas públicas implementadas pelo Estado deve ser o de promover, pelo menos num limiar mínimo, as capacidades centrais dos cidadãos, privilegiando aqueles que são suscetíveis ou vulnerados porque situados abaixo deste limiar.

Sustentamos também que, em contextos de escassez de recursos – como o dos países latino-americano, dentre eles o Brasil –, onde grandes grupos populacionais estão situados abaixo do limiar básico ou mínimo, a implementação de políticas de focalização estaria moralmente justificada, por tratar-se de um meio para contribuir na promoção, pelo menos num nível básico, das capacidades centrais de todos os cidadãos. Certas áreas, em particular, poderiam estar sujeitas às políticas de focalização, como a atenção médica avançada e, dentre elas, o transplante de órgão e tecidos.

Na perspectiva adotada aqui, a principal desigualdade a ser enfrentada pelo Estado e pela sociedade, nos países latino-americanos, é a que separa os que estão situados acima deste limiar e aqueles colocados abaixo. Não se abordou o problema das desigualdades, maiores ou menores, que possam existir entre os que estão acima desse limiar, mesmo depois de se promover um limiar mínimo para todos os cidadãos.

Obviamente que muitas controvérsias podem existir em relação à definição desse limiar mínimo das capacidades humanas centrais. Elas sempre vão existir em sociedades democráticas e pluralistas, como é, a princípio, a brasileira, nas quais convivem indivíduos e grupos sociais partilhando diferentes concepções do bem. O que a abordagem no limiar básico ou mínimo faz é direcionar nosso foco de preocupação para os que são "mais vulneráveis", ou seja, já vulnerados de facto, observando-se o ônus para estes das nossas escolhas relacionadas às políticas públicas. Além disso, pressupõe-se que, independente de nossas diferentes concepções do bem, todos desejamos usufruir das condições sociais mínimas necessárias para perseguir o projeto de vida que cada qual valoriza e deseja.

 

Colaboradores

Ambos os autores participaram da elaboração do artigo, definindo sua estrutura e seu conteúdo. C. D. M. Ribeiro desenvolveu a primeira versão do artigo. F. R. Schramm contribuiu na revisão do artigo, do ponto de vista da bioética de proteção.

 

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Correspondência
C. D. M. Ribeiro
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz
Rua Cândido Mendes 76, apto. 304
Rio de Janeiro, RJ 20241-220, Brasil
dimasribeiro@cremerj.com.br

Recebido em 04/Mai/2005
Versão final reapresentada em 03/Nov/2005
Aprovado em 14/Dez/2005

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br