NOTA RESEARCH NOTE

 

Aferição da pressão arterial: experiência de treinamento de pessoal e controle de qualidade no Estudo Pró-Saúde

 

Blood pressure measurement: the experience of personnel training and quality control in the Pro-Saúde Study

 

 

Eduardo FaersteinI; Dóra ChorII; Rosane Harter GriepIII; Márcia Guimarães de Mello AlvesIV, V; Guilherme L.WerneckI, VI; Cláudia S. LopesI

IInstituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil
IIEscola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil
IIIEscola de Enfermagem Anna Nery, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil
IVFundação Municipal de Saúde de Niterói, Niterói, Brasil
VAgência Nacional de Saúde Suplementar, Rio de Janeiro, Brasil
VIFaculdade de Medicina, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

A adequação das condutas terapêuticas e a validade das inferências epidemiológicas sobre a hipertensão arterial dependem crucialmente da acurácia dos procedimentos para sua aferição. Este artigo relata a experiência dos procedimentos adotados para o treinamento e controle de qualidade da aferição da pressão arterial na Fase 2 do Estudo Pró-Saúde, conduzido entre 3.574 funcionários de uma universidade no Rio de Janeiro, Brasil, em 2001. Foram utilizados aparelhos de coluna de mercúrios e técnicas padronizadas de aferição, baseada em protocolos internacionais. Foram monitoradas a adesão dos aferidores às técnicas preconizadas, a preferência por dígitos terminais, a diferença entre aferições consecutivas e a proporção de dados faltantes. O conjunto de procedimentos utilizados contribuiu para minimizar possíveis erros sistemáticos associados à técnica auscultatória de aferição da pressão arterial, possibilitando análises válidas acerca de fatores associados à ocorrência da hipertensão arterial.

Pressão Arterial; Determinação da Pressão Arterial; Técnicas, Medidas, Equipamentos de Medição


ABSTRACT

The adequacy of medical management and the validity of epidemiological inference on arterial hypertension depend crucially on the accuracy of measurement procedures. This article reports on our experience with the procedures used for personnel training and quality control of blood pressure measurements in the Pro-Saude Study phase 2, which was conducted among 3,574 civil servants at a university in Rio de Janeiro, Brazil, in 2001. We utilized mercury sphygmomanometers and standard techniques according to international protocols. We monitored the technicians' adherence to adopted guidelines, final digit preference, differences between subsequent measurements, and proportion of missing data. Overall, these procedures helped minimize the potential for systematic errors related to the auscultatory method of blood pressure measurement, thus allowing valid analyses of factors associated with hypertension.

Blood Pressure; Blood Pressure Determination; Techniques, Measures, Measurement Equipment


 

 

Introdução

A aferição da pressão arterial permite guiar condutas terapêuticas individuais, monitorar prevalências populacionais e identificar fatores de risco associados à hipertensão arterial 1. O esfigmomanômetro de coluna de mercúrio tem sido considerado o padrão-ouro na medida da pressão arterial por mais de um século 1,2. Sua substituição por novos aparelhos tem sido recomendada recentemente 3, tendo em vista a toxicidade do mercúrio, os erros humanos relacionados ao método auscultatório, a variabilidade da pressão arterial, e a tendência do aumento da pressão arterial na presença do profissional de saúde 2. Entretanto, exposições acidentais ao mercúrio de esfigmomanômetros são raras, outros aparelhos não estão livres de erros, e em geral, ainda não foram suficientemente validados 1,4,5. Por isso, a escolha do melhor tipo de aparelho para substituir aqueles de coluna de mercúrio ainda não é consensual 1,3,4,5, especialmente em países em desenvolvimento 6, onde o custo dos aparelhos automáticos ainda limita seu uso em pesquisas populacionais.

A adequação das condutas terapêuticas e a validade das inferências epidemiológicas dependem essencialmente da acurácia dos métodos e procedimentos de aferição da pressão arterial 4. Assim, a minimização de erros de aferição é crucial, e é buscada por meio de aparelhos calibrados, utilizados por aferidores bem treinados 4,7,8.

Neste artigo, relatamos os procedimentos relacionados ao treinamento, certificação e controle de qualidade da aferição da pressão arterial no Estudo Pró-Saúde, investigação longitudinal de determinantes sociais da saúde realizada entre funcionários de uma universidade no Rio de Janeiro, Brasil 9. A segunda fase da coleta de dados para constituição da linha de base do estudo, realizada entre setembro de 2001 e março de 2002, abrangeu 3.574 funcionários (83% dos elegíveis) e envolveu a aferição da pressão arterial dos participantes.

Foram utilizados dez esfigmomanômetros de coluna de mercúrio da marca Tycos (Welch Allyn Tycos 5097-30, Desk Mercurial, Arden, Estados Unidos), calibrados no início da coleta dos dados por técnico especializado. A técnica para aferição da pressão arterial foi padronizada segundo recomendações da British Hypertension Society 10,11. Houve duas aferições da pressão arterial, com intervalo de um minuto entre ambas, após a estimação da pressão arterial sistólica pelo método palpatório. Os passos detalhados dos procedimentos adotados podem ser visualizados na Figura 1: a medida da circunferência do braço para escolha do tamanho do manguito (pequeno: < 25,3cm; médio: 25,3-34,3cm; grande: > 34,3cm, segundo especificações do fabricante); a aferição e registro da pressão arterial; e o preenchimento do cartão de medidas do participante. Maiores detalhes acerca dos procedimentos padronizados sobre cada etapa da aferição constam do Manual de Operações do Estudo Pró-Saúde, disponível em http://www.ims.uerj.br/prosaude.

 

 

Treinamento e certificação dos aferidores

O programa de treinamento teve duração de quarenta horas e constou das seguintes etapas: (i) treinamento e teste das fitas K7 com os sons de Korotkoff 12; (ii) manipulação da válvula do manguito (desinsuflação de 2-3mmHg por segundo); (iii) padronização da medida da circunferência do braço e da técnica da aferição da pressão arterial; (iv) registro dos valores no formulário de medidas; (v) medida da pressão arterial em pares utilizando-se estetoscópio bi-auricular; (vi) avaliação da concordância intra e interaferidor (por intermédio de duas leituras em cinco voluntários, simultaneamente com o supervisor, pelo uso do estetoscópio bi-auricular). Utilizou-se ainda um CD-ROM 10 como recurso audiovisual interativo, que detalha a técnica e contém uma série de 34 aferições, demonstrando a coluna de mercúrio em queda no manômetro e os sons de Korotkoff, com gabarito padronizado.

Os aferidores eram estudantes de Nutrição, sem treinamento prévio para aferição da pressão arterial, minimizando possíveis vícios que dificultassem a padronização das medidas. Dentre os 25 aferidores que participaram do treinamento, vinte foram selecionados para a pesquisa pelos seguintes critérios: aprovação no teste das fitas de treinamento propostas por Rose 12; alcance dos mesmos padrões propostos por Rose 12 para os valores de concordância intraobservador e interobservador; destreza com a técnica e sensibilidade necessária para lidar com os participantes.

 

Controle de qualidade da aferição na pesquisa de campo

Supervisão das medidas durante o trabalho de campo

A observação das medidas efetuadas durante o trabalho de campo foi realizada por duas supervisoras, que utilizaram formulário "checklist" (Figura 1), adaptado de pesquisa epidemiológica norte-americana 7 e testado durante o treinamento. Esta observação foi realizada semanalmente para cada aferidor, com o objetivo de acompanhar o processo das medidas e detectar erros nas técnicas. A adesão dos aferidores às técnicas estabelecidas foi alta; os problemas detectados – em geral relacionados à altura adequada do braço e ao tempo de deflação do manguito – eram discutidos e corrigidos com o aferidor imediatamente após o término da aferição.

Monitoramento de preferência de dígito terminal

Os valores das aferições da pressão arterial foram digitados imediatamente após a coleta e revisão de dados, o que permitiu a identificação precoce de problemas na medida e/ou no seu registro. Esses problemas foram minimizados por meio da repetição do treinamento em alguns casos e, em duas situações extremas, pela substituição do aferidor. Entre os procedimentos adotados para o controle de qualidade destacou-se a obtenção dos relatórios individuais dos registros dos valores da pressão arterial dos aferidores, com o monitoramento da preferência por dígitos terminais. Essa avaliação, descrita a seguir, foi realizada mensalmente em função da necessidade de se obter pelo menos 25 medidas por aferidor 7. O fato de o aparelho de coluna de mercúrio permitir precisão de 2mmHg implica que os valores da pressão arterial terminem em 0, 2, 4, 6 ou 8, ou seja, cinco dígitos terminais (k = 5). Portanto, considerando-se um aferidor sem nenhuma tendência a preferir determinados dígitos terminais, a freqüência esperada para cada dígito era n/k, ou seja, 20% 4,7,8. Assim, a estatística de qui-quadrado de Person (c2) pode ser utilizada para testar a hipótese nula de que todos os possíveis dígitos terminais registrados eram observados com a freqüência n/k. O cálculo foi realizado com a utilização da seguinte fórmula 7,8:

sendo 0i a freqüência observada na ith possível dígito e .

Para grandes amostras, tal estatística tem distribuição aproximadamente de c2, com k-1 graus de liberdade. O ponto de corte do valor de p < 0,05 foi utilizado para determinar se a divergência da distribuição uniforme de dígitos era estatisticamente significante. Já que para grandes amostras, mesmo pequenos desvios da uniformidade podem ser considerados estatisticamente significativos, recomenda-se utilizar 7,8 o escore de preferência de dígito terminal (EPD), cuja fórmula é a seguinte:

Esse escore toma valores entre 0 e 100 (0 quando todas as freqüências de dígitos terminais são iguais a N/k e 100 quando todas as observações estão em um único dígito terminal). O EPD > 20 é considerado o ponto de corte para definição de preferência de dígito terminal 7. A distribuição deste indicador nesse estudo é apresentada na Tabela 1, onde, para o conjunto dos dados, não se observou tendência de preferência por dígitos terminais. Para os aferidores que inicialmente demostraram essa tendência, enfatizou-se a importância da acurácia das aferições durante o retreinamento e ainda sua recertificação dois meses após o início da coleta dos dados.

Consistência entre a primeira e a segunda aferições

O registro do valor da pressão arterial considerou a média entre a primeira e a segunda aferição. Considerou-se também que diferenças maiores que 10mmHg na pressão sistólica e de 6mmHg na pressão diastólica seriam inadequadas 4. Uma certa variabilidade da pressão arterial é esperada e sua ausência sugere inacurácia entre as aferições 8; proporções superiores a 50% de dados idênticos entre as pressões sistólicas ou diastólicas foram consideradas inadequadas 8. No Estudo Pró-Saúde, tanto as diferenças como a variabilidade esperada entre as pressões sistólicas e diastólicas foram consideradas adequadas para o conjunto das avaliações e para a grande maioria dos aferidores (Tabela 1).

Proporção de dados faltantes

O monitoramento de dados faltantes relacionados à aferição da pressão arterial complementou o controle de qualidade. Na contracapa do questionário, eram registrados o número do kit utilizado pelo aferidor, as aferições feitas sobre a pele ou sobre a roupa; o valor da circunferência do braço, o tamanho do manguito, e os valores das pressão arterial. A variável com maior freqüência de informações ausentes foi o tamanho do manguito (4,6%); para o conjunto das outras variáveis este problema foi detectado em menos de 1% dos dados.

 

Comentários finais

Estudos sobre a associação entre diversos fatores sociais e piscossociais (p. ex. estresse no trabalho, discriminação racial) e hipertensão arterial figuram entre os objetivos centrais do Estudo Pró-Saúde. Para a validade dessas análises, consideramos decisivos os procedimentos de treinamento, supervisão e controle de qualidade que possibilitaram monitorar e minimizar possíveis erros associados à técnica auscultatória de verificação da pressão arterial. Os procedimentos descritos devem ser adaptados a diferentes instrumentos de medida, sem perder de vista a importância da padronização de técnicas e o controle de qualidade de sua utilização.

 

Colaboradores

E. Faerstein coordenou a coleta de dados, idealizou o artigo, participou da análise e interpretação de dados e coordenou a redação do artigo. D. Chor coordenou a coleta de dados e participou de sua análise e interpretação e participou da redação do artigo. R. H. Griep participou da coleta e análise de dados e da redação do artigo. M. G. M. Alves participou da coleta e análise de dados e da redação do artigo. G. L. Werneck coordenou a coleta de dados e participou da redação do artigo. C. S. Lopes coordenou a coleta de dados e participou da redação do artigo.

 

REFERÊNCIAS

1. Jones DW, Frohlich ED, Grim CM, Grim CE, Taubert KA. Mercury sphygmomanometers should not be abandoned: an advisory statement from the Council for High Blood Pressure Research, American Heart Association. Hypertension 2001; 37:185-6.        

2. Pickering TG, Hall JE, Appel LJ, Falkner BE, Graves G, Hill MN, et al. Recommendations for blood pressure measurement in humans and experimental animals: Part 1: blood pressure measurement in humans: a statement for professionals from the Subcommittee of Professional and Public Education of the American Heart Association Council on High Blood Pressure Research. Hypertension 2005; 45:142-61.        

3. O’Brien EO. Has conventional sphygmomanometry ended with the banning of mercury? Blood Press Monit 2002; 7:37-40.         

4. Reid CM, Ryan P, Miles R, Willxon K, Beilin LJ, Brown MA, et al. Who’s really hypertensive? Quality control issues in the assessment of blood pressure for randomized trials. Blood Press 2005; 14: 133-8.        

5. Varughese G, Lip GYH. Goodbye mercury? Blood pressure measurement and its future. J R Soc Med 2005; 96:89-90.        

6. Pickering T. The measurement of blood pressure in developing countries. Blood Press Monit 2005; 10:11-2.        

7. Atherosclerosis Risk in Communities. Atherosclerosis Risk in Communities study protocol manual 11 and 12. http://www.cscc.unc.edu/aric(acessado em 29/Set/2005).        

8. Kuulasmaa K, Hense H-W, Tolonen, H. Quality assessment of data on blood pressure in the WHO MONICA Project. 1998. http://www.ktl.fi/publications/ monica/ (acessado em 29/Set/2005).        

9. Faerstein E, Lopes CS, Valente K, Plá MAS, Ferreira MB. Pré-testes de um questionário multidimensional autopreenchível: a experiência do Estudo Pró-Saúde. Physis 1999; 9:117-30.        

10. The British Hypertension Society. Blood pressure measurement [CD-ROM]. London: BMJ Books; 1998.        

11. Beevers G, Lip GYH, O’Brien E. ABC of hypertension: blood pressure measurement. Part II-conventional sphygmomanometry: technique of auscultatory blood pressure measurement. BMJ 2001; 322:1043-7.        

12. Rose G. Standardization of observes in blood pressure measurement. Lancet 1965; 27:673-4.        

 

 

Correspondência
E. Faerstein
Departamento de Epidemiologia
Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Rua São Francisco Xavier 524
Rio de Janeiro, RJ 20559-900, Brasil
eduardof@umich.edu

Recebido em 19/Dez/2005
Aprovado em 15/Mai/2006

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br