NOTA RESEARCH NOTE

 

Estudo da incidência de abuso sexual contra crianças no Rio de Janeiro, Brasil

 

Sexual abuse of children and adolescents in Rio de Janeiro, Brazil: an incidence study

 

 

Naura Liane de Oliveira AdedI, II, III; Bruno Luís Galluzzi da Silva DalcinII, IV; Maria Tavares CavalcantiI, V

IInstituto de Psiquiatria, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil
IIPolícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil
IIICentro de Ciências Médicas, Universidade Federal Fluminense, Niterói, Brasil
IVDepartamento de Ciências Fisiológicas, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil
VFaculdade de Medicina, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

Foi realizada uma análise da incidência de exames realizados no Instituto Médico-Legal Afrânio Peixoto, Rio de Janeiro, Brasil, entre janeiro e julho de 2000. Foram selecionados 124 casos suspeitos de abuso sexual, envolvendo ambos os sexos em indivíduos com idade entre 0 e 17 anos. Os menores entre 0 e 14 anos representaram 81,45% da amostra, coincidindo com os índices observados em estudo anterior que abrangeu o primeiro trimestre do mesmo ano. O sexo masculino predominou nos casos suspeitos de atentado violento ao pudor – 20,97% do grupo, não havendo registro, em ambos os gêneros, entre 15 e 17 anos. O maior número de casos alegados de conjunção carnal (cópula vaginal) foi observado no grupo de menores do sexo feminino entre 10 e 17 anos. Dos alegados agressores, 44,36% eram relacionados às vítimas; os desconhecidos corresponderam a 13,71% do grupo estudado. Em 30,65% dos casos não havia informação sobre o agressor. A maior parte dos registros de ocorrências policiais diz respeito às Zonas Norte e Oeste da cidade. O perfil sócio-econômico-cultural dos indivíduos examinados não foi contemplado no presente estudo.

Maus-Tratos Sexuais Infantis; Prova Pericial; Incidência


ABSTRACT

We present an incidence analysis of forensic medical examinations at the Afrânio Peixoto Institute of Forensic Medicine in Rio de Janeiro, Brazil, from January to July 2000. A sample of 124 cases of suspected sexual abuse was selected, both male and female, aged 0 to 17 years. Minors from 0 to 14 years of age represented 81.45% of the sample, coinciding with rates from a former study spanning the first quarter of 2000. Other than vaginal rape, young male subjects prevailed in cases of suspected anal, oral, or other forms of sexual violence and comprised 20.97% of the total sample, with no such cases, either male or female, in the 15-17-year group. Most cases of alleged vaginal sexual abuse were detected in the 10-17-year group. 44.36% of the alleged aggressors were related to the victims; non-related aggressors represented 13.71% of the study group. 30.65% of all cases lacked information about the aggressor. Most police complaints were recorded in the North and East Sides of the city of Rio de Janeiro. The present study did not analyze the victims' social, economic, or cultural characteristics.

Sexual Child Abuse; Expert Testimonial; Incidence


 

 

Introdução

O abuso físico e o sexual são potencialmente fáceis de caracterizar ao exame médico-legal. Entretanto, voyeurismo, manipulação dos genitais ou corrupção de menores não possuem substrato médico-legal, dificultando sua verificação.

Este trabalho pretende estender a pesquisa de campo realizada anteriormente – levantamento de casos suspeitos de abuso sexual examinados no Instituto Médico-Legal Afrânio Peixoto da cidade do Rio de Janeiro (IML-RJ), Brasil, entre janeiro e março de 2000 – que analisou 1.419 laudos de mulheres e menores de idade submetidos a exame de corpo de delito, com redução da amostra a 44 casos 1.

 

Procedimentos metodológicos

Revisão dos laudos de exames de corpo de delito do serviço de Clínica Médico-Legal do IML-RJ, acautelados em arquivo da instituição. O procedimento foi autorizado pela chefia de Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, tendo sido revistos 3.985 laudos de mulheres, crianças e adolescentes, de janeiro a julho de 2000.

Os critérios foram idade (entre 0 e 17 anos e 11 meses, inclusive) e tipo de exame (conjunção carnal, atentado violento ao pudor, associação destes e combinação com lesão corporal). A alegação inicial de encaminhamento ao IML-RJ serviu à classificação.

A designação dos tipos foi (a) conjunção carnal – ocorrência ou não de cópula vaginal; (b) atentado violento ao pudor – ocorrência ou não de atos libidinosos diferentes da conjunção carnal; (c) lesão corporal – ocorrência de ofensa à integridade física ou à saúde.

Compilaram-se os seguintes itens: data, autoridade requisitante; tipo de exame, idade, sexo, cor, histórico alegado pela vítima (relação vítimas/agressores).

Não identificamos os periciados, visando ao sigilo na tramitação legal e à ética.

 

Resultados

A primeira seleção (idade vs. gênero) reduziu a amostra a 554 laudos. A segunda considerou a suspeita de agressão sexual – amostra final de 124 casos.

Foram 71 os laudos de conjunção carnal (57,26%); vê-se a distribuição por idades na Tabela 1. Inexistiram exames de menores de um ano. A associação conjunção carnal/lesão corporal representou 1,61% dos casos (Tabela 1).

Efetuaram-se 42 exames de atentado violento ao pudor (33,87%), com distribuição por idade e gênero (Tabelas 1 e 2). Não houve exames de atentado violento ao pudor na faixa entre 15 e 17 anos e 11 meses.

 

 

A associação atentado violento ao pudor/conjunção carnal ocorreu em seis laudos (4,84%) e atentado violento ao pudor/lesão corporal, em três laudos do sexo masculino – 2,42% (Tabela 1). Não consta vítima menor de um ano.

A relação vítimas/agressores foi (a) pai/padrasto/responsável – 20 casos (16,13%), sendo 16 casos femininos; (b) parente/conhecido – 35 casos (28,23%), sendo 28 femininos; (c) desconhecido – 17 casos (13,71%), sendo 16 femininos; (d) não informada – 38 (30,65%), sendo 30 femininos.

Seis casos foram atribuídos a outros menores (4,84%); três foram encaminhados por serviços médicos para esclarecimento (2,42%), dois (1,61%) compareceram para constatação de virgindade, dois (1,61%) alegavam tentativa de estupro e um (0,8%) teria ocorrido em um estabelecimento de ensino. A Tabela 3 demonstra a distribuição das ocorrências.

 

 

Discussão

A incidência de casos entre 0 e 14 anos (81,45%), semelhante a estudo anterior 2, reafirma a noção de abusos físico e sexual inversamente proporcionais à idade e capacidade de resistência das vítimas.

Os casos de atentado violento ao pudor no sexo masculino entre 0 e 14 anos – 20,97% – mostram-se novamente acima dos dados relatados na literatura científica 3.

Não houve registros envolvendo meninos de 15 a 17 anos e 11 meses. Isso pode indicar serem tais ataques menos freqüentes por esses jovens oferecerem maior capacidade de resistência, ou por terem mais dificuldade em denunciar o abuso sexual pelas conseqüências acarretáveis na família e sociedade.

Os 98 casos suspeitos de abuso sexual contra meninas e adolescentes do sexo feminino (79,03%) confirmam amplamente a predominância de ataques ao gênero descrita na literatura científica 3,4,5.

Houve 65 exames de conjunção carnal na faixa etária de 10 a 17 anos e 11 meses associada ou não a outras práticas sexuais, restando 12 nos grupos mais jovens, o que permite supor que, com as alterações anatômicas puberais, os agressores passem a ter como objetivo consumar a cópula vaginal. Islam & Islam 6 observaram que a maioria dos ataques ocorre dos 12 aos 15 anos de idade, como encontrado em outros estudos 2,7,8.

Os casos suspeitos de atentado violento ao pudor contra meninas somente foram registrados no grupo entre 0 e 14 anos.

Os alegados agressores tinham algum vínculo com suas vítimas em 55 casos: 20 dos casos (16,13%) foram atribuídos a responsáveis, pais ou padrastos; 35 (28,23%), a parentes (tios, avós, primos) ou conhecidos.

Considerando estudo anterior 2, os casos sem informação sobre o agressor diminuíram, embora constituam parcela significativa da amostra (30,65%). Pode-se considerar que tal falta de informação seja decorrente do receio das vítimas em declarar a natureza do vínculo com o agente, ou da falta de percepção do perito-legista sobre sua importância.

Os ataques atribuídos a desconhecidos aumentaram consideravelmente – 13,71% contra 2,27% do estudo anterior 2, o que pode ter derivado do tamanho da amostra à época, pela natureza randômica dos casos que se apresentam ao IML-RJ.

A maioria dos exames resultou de registros nas Zonas Norte (47,42%) e Oeste (13,71%), coincidindo com os índices percentuais das ocorrências referentes ao período de janeiro a julho de 2006. Os valores expressos referem-se à média desses meses: Zona Norte – (47,94%); Zona Oeste (28,21%) 9,10,11,12,13,14.

Os resultados não revelam o total na Zona Oeste, porque os registros das 33ª, 34ª 35ª e 36ª Delegacias Policiais são examinados no Posto de Polícia Técnico-Científica de Campo Grande.

Dos casos registrados, 4,3% foram na zona sul da cidade; 3,23%, nas delegacias policiais do centro. Aqui, também, os resultados se assemelham aos índices de janeiro a julho de 2006 na documentação oficial do Governo do Estado e do Instituto de Segurança Pública 9,10,11,12,13,14: respectivamente, 12,51% e 11,34%.

A média dos percentuais de registro de crimes contra os costumes – 1,71% –, entre janeiro e julho de 2006, na cidade do Rio de Janeiro, permite confirmar a subnotificação desse tipo criminal.

A comparação com a estatística oficial do Governo do Estado e do Instituto de Segurança Pública aponta que nos últimos seis anos não variou a incidência e distribuição geográfica dos registros dessa natureza.

O estudo não analisou a condição sócio-econômico-cultural dos periciados, não podendo afirmar se o número reduzido de ocorrências na Zona Sul e no Centro, bem abaixo dos resultados observados nas Zonas Norte e Oeste, resulta apenas de possíveis diferenças sócio-econômico-culturais entre seus habitantes, uma vez que as Regiões Sul e Oeste abrigam os extremos da pirâmide social.

 

Conclusão

Há necessidade de mais investigação sobre casos de atentado violento ao pudor a fim de esclarecer se realmente ocorre maior incidência da prática abusiva de atos libidinosos contra indivíduos do sexo masculino em nossa cidade, e se há influência de fatores ambientais e/ou culturais.

As condições sócio-econômico-culturais de vítimas e agressores exigem estudo apurado, buscando fatores estressores e/ou de risco que possam contribuir para o abuso sexual de crianças e adolescentes.

 

Colaboradores

N. L. O. Aded participou da concepção do trabalho, pesquisa bibliográfica, levantamento e análise de dados e redação do artigo. B. L. G. S. Dalcin fez a revisão técnica, correção do texto em português, e versão do Abstract em inglês. M. T. Cavalcanti realizou a orientação científica do trabalho e a correção final.

 

Referências

1. Aded NLO. Maus tratos contra crianças e adolescentes: o abuso sexual um século depois. O que pode ser afirmado? Levantamento de casos examinados no Instituto Médico-Legal Afrânio Peixoto – cidade do Rio de Janeiro [Dissertação de Mestrado]. Rio de Janeiro: Instituto de Psiquiatria, Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2005.        

2. Oliveira Aded NL, Oliveira SF, Silva Dalcin BL, Moraes TM, Cavalcanti MT. Children and adolescents victimized by sexual abuse in the city of Rio. J Clin Forensic Med; no prelo.        

3. Aded NLO, Dalcin BLGS, Moraes TM, Cavalcanti MT. Abuso sexual em crianças e adolescentes: revisão de 100 anos de literatura. Rev Psiq Clín 2006; 33:204-13.        

4. Azevedo MA, Guerra VNA. As políticas sociais e a violência doméstica contra crianças e adolescentes: um desafio recusado em São Paulo? In: Azevedo MA, Guerra VNA, organizadores. Infância e violência doméstica: fronteiras do conhecimento. 3ª Ed. São Paulo: Cortez Editora; 2000. p. 228-306.        

5. Weiss EL, Longhurst JG, Mazure CM. Childhood sexual abuse as a risk factor for depression in women: psychosocial and neurobiological correlates. Am J Psychiatry 1999; 156:816-28.        

6. Islam MN, Islam MN. Retrospective study of alleged rape victims attended at Forensic Medicine Department of Dhaka Medical College, Bangladesh. Leg Med (Tokyo) 2003; 5 Suppl 1:S351-3.        

7. Santos JC, Neves A, Rodrigues M, Ferrao P. Victims of sexual offences: medicolegal examinations in emergency settings. J Clin Forensic Med 2006; 13:300-3.        

8. Drezett J, Caballero M, Juliano Y, Prieto ET, Marques JA, Fernández CE. Estudo de mecanismos e fatores relacionados com o abuso sexual em crianças e adolescentes do sexo feminino. J Pediatr (Rio de J) 2001; 77:413-9.        

9. Núcleo de Pesquisa em Justiça Criminal e Segurança Pública, Instituto de Segurança Pública, Secretaria de Estado de Segurança Pública, Governo do Estado do Rio de Janeiro. Boletim mensal de monitoramento e análise. Dados oficiais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: ano 4 – nº. 30 – fevereiro 2006 (mês base: janeiro 06) http://urutau.proderj.rj.gov.br/isp/admin/paginas/upboletim/2006_01_Bol.pdf (acessado em Out/2006).        

10. Núcleo de Pesquisa em Justiça Criminal e Segurança Pública, Instituto de Segurança Pública, Secretaria de Estado de Segurança Pública, Governo do Estado do Rio de Janeiro. Boletim mensal de monitoramento e análise. Dados oficiais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: ano 4 – nº. 31 – abril 2006 (mês base: fevereiro e março 06). http://urutau.proderj.rj.gov.br/isp/admin/paginas/upboletim/ 2006_03_Bol.pdf (acessado em Out/2006).        

11. Núcleo de Pesquisa em Justiça Criminal e Segurança Pública, Instituto de Segurança Pública, Secretaria de Estado de Segurança Pública, Governo do Estado do Rio de Janeiro. Boletim mensal de monitoramento e análise. Dados oficiais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: ano 4 – nº. 32 – maio 2006 (mês base: abril 06). http://urutau.proderj.rj.gov.br/isp/admin/paginas/upboletim/2006_04_Bol.pdf (acessado em Out/2006).        

12. Núcleo de Pesquisa em Justiça Criminal e Segurança Pública, Instituto de Segurança Pública, Secretaria de Estado de Segurança Pública, Governo do Estado do Rio de Janeiro. Boletim mensal de monitoramento e análise. Dados oficiais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: ano 4 – nº. 33 – julho 2006 (mês base: maio 06). http://urutau.proderj.rj.gov.br/isp/admin/paginas/upboletim/2006_05_Bol.pdf (acessado em Out/2006).        

13. Núcleo de Pesquisa em Justiça Criminal e Segurança Pública, Instituto de Segurança Pública, Secretaria de Estado de Segurança Pública, Governo do Estado do Rio de Janeiro. Boletim mensal de monitoramento e análise. Dados oficiais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: ano 4 – nº. 34 – agosto 2006 (mês base: junho 06). http://urutau.proderj.rj.gov.br/isp/admin/paginas/upboletim/2006_06_Bol.pdf (acessado em Out/2006).        

14. Núcleo de Pesquisa em Justiça Criminal e Segurança Pública, Instituto de Segurança Pública, Secretaria de Estado de Segurança Pública, Governo do Estado do Rio de Janeiro. Boletim mensal de monitoramento e análise. Dados oficiais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: ano 4 – nº. 35 – setembro 2006 (mês base: julho 06).         [ Links ]http://urutau.proderj.rj.gov.br/isp/admin/paginas/upboletim/2006_07_Bol.pdf (acessado em Out/2006).

 

 

Correspondência:
N. L. O. Aded
Instituto de Psiquiatria
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Rua Voluntários da Pátria 236, apto. 203
Rio de Janeiro, RJ 22270-010, Brasil
naded@superig.com.br

Recebido em 21/Nov/2006
Versão final reapresentada em 05/Mar/2007
Aprovado em 13/Mar/2007

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