ARTIGO ARTICLE

 

Satisfação dos usuários com serviços da farmácia: tradução e validação do Pharmacy Services Questionnaire para o Brasil

 

Patient satisfaction with pharmacy services: translation and validation of the Pharmacy Services Questionnaire for Brazil

 

 

Cassyano Januário CorrerI; Roberto PontaroloI; Ana Carolina MelchiorsI; Rodrigo Augusto de Paula e SouzaI, II; Paula RossignoliII; Fernando Fernández-LlimósIII

IGrupo de Pesquisa em Prática Farmacêutica, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, Brasil
IIFarmácia Escola NetPharma, Universidade Positivo, Curitiba, Brasil
IIIDepartamento de Farmácia Social. Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal

Correspondência

 

 


RESUMO

Este estudo teve por objetivo traduzir e validar para o português o Pharmacy Services Questionnaire (PSQ). O instrumento possui 20 questões que medem a satisfação dos usuários com serviços da farmácia, organizadas em dois domínios. Utiliza uma escala de respostas Likert de 1 (ruim) a 5 (excelente). O Questionário de Satisfação com os Serviços da Farmácia (QSSF) foi aplicado a 137 diabéticos entre 31 e 89 anos (60,6% mulheres), clientes de farmácias privadas, em sua maioria usuários de serviços públicos de saúde (65,7%), com baixa escolaridade (67,9% até ensino fundamental) e utilizando em média 4,3 medicamentos por pessoa. O escore geral na população estudada foi de 3,6 [DP = 1,1 (IC95%: 3,4-3,8)]. Após análise fatorial, os domínios "exposição agradável" e "manejo da terapia" incluíram 8 e 12 itens, respectivamente, e se correlacionaram significativamente entre si (r = 0,92; p < 0,001) e com o escore geral. O instrumento obteve um a de Cronbach de 0,98 para o escore geral. Os domínios exposição agradável e manejo da terapia mostraram um a de 0,941 e 0,980. O QSSF apresenta aspectos de confiabilidade e validade adequados para sua utilização.

Serviços de Assistência Farmacêutica; Satisfação do Usuário; Questionários


ABSTRACT

The aim of this study was to translate into Portuguese and validate the Pharmacy Services Questionnaire (PSQ). The instrument includes 20 questions that measure user satisfaction with pharmacy services, and is organized according to two factors. It uses a Likert scale of answers from 1 (poor) to 5 (excellent). The PSQ-Brazil was applied to 137 diabetics from 31 to 89 years of age (60.6% women), clients of private pharmacies, mostly users of public health services (65.7%), with low education (67.9% elementary schooling or less), and who used an average of 4.3 medicines per person. Overall score in the sample was 3.6 (SD = 1.1 [95%CI 3.4-3.8]). After factor analysis, "pleasant exposure" and "treatment management" included 8 and 12 items, respectively, and were significantly correlated with each other (r = 0.92, p < 0.001) and with the overall score. The instrument obtained a Cronbach's alpha of 0.98 for the overall score. The pleasant exposure and treatment management variables showed alphas of 0.94 and 0.98. PSQ-Brazil shows adequate reliability and validity for use in the country.

Pharmaceutical Services; Consumer Satisfaction; Questionnaires


 

 

Introdução

Nas últimas décadas, a prática farmacêutica mudou radicalmente seu foco de atuação com os produtos farmacêuticos para o desenvolvimento do cuidado de pacientes. Essa evolução ocorre consoante às necessidades da população e oportunidades do mercado de trabalho, que cada vez mais exige profissionais especializados no manejo da farmacoterapia e nos desfechos terapêuticos dos pacientes. Esse processo se dá com diferentes velocidades nos diversos países, dependendo substancialmente da estrutura organizacional dos sistemas de saúde, da qualidade da regulação dos mercados de medicamentos e dos modelos pré-existentes de pagamento dos profissionais 1.

No Brasil, ainda que a prática clínica farmacêutica seja incipiente e insuficiente para atender às demandas dos usuários, as mudanças ocorridas nas últimas décadas não podem ser subestimadas. Dentre elas, os avanços nos processos de fiscalização do exercício profissional e das farmácias, a definição mais clara do âmbito de competência profissional e dos serviços farmacêuticos e o aprimoramento dos mecanismos de regulamentação da cadeia do medicamento merecem destaque. A freqüência da provisão de serviços cognitivos em farmácias comunitárias e a formação de farmacêuticos mais voltados à clínica também têm aumentado 2.

Donabedian 3 descreve a avaliação do cuidado dos pacientes em duas dimensões: o desempenho técnico, referente ao balanço obtido entre benefícios esperados e riscos, e o relacionamento profissional-paciente, correspondente ao alcance das expectativas do paciente (nesse ponto inserida a satisfação) e das normas sociais e profissionais. Sob a ótica dos componentes avaliáveis de estrutura (recursos disponíveis), processos (procedimentos e ações) e desfechos (estado de saúde resultante da interação paciente-serviço), a satisfação é comumente caracterizada como um indicador de desfechos 3,4. Kozma 5 organiza os desfechos em clínicos, humanísticos e econômicos, sendo a satisfação do paciente, juntamente com a qualidade de vida, considerada um desfecho humanístico.

Os pressupostos teóricos e conceituais que embasam a avaliação da satisfação, entretanto, são controversos. Esperidião & Trad 6, em um excelente artigo de revisão, discutem o conceito de satisfação em profundidade, identificando diversas abordagens como a teoria da atitude, da equidade, da realização (de expectativas e de necessidades) e da discrepância, sendo as duas últimas as mais desenvolvidas e comentadas na literatura. Na teoria da discrepância, o nível de satisfação é medido pela diferença entre as expectativas dos pacientes e sua percepção da experiência vivenciada. Na teoria da realização, a satisfação é dada pela diferença entre o que é desejado ou esperado pelo paciente e o que é obtido durante ou após a provisão dos serviços 6. Outros autores argumentam que além da satisfação, outras percepções auto-relatadas pelos pacientes são de igual importância, entre elas cura ou alívio de sintomas, o entendimento sobre o problema, a confiança no profissional, a confirmação ou refutação das hipóteses do próprio paciente e a mudança na auto-percepção da doença 7.

No campo da farmácia, os primeiros trabalhos voltados à avaliação da satisfação dos pacientes datam da década de 1980. Em 1989, MacKeigan & Larson 8 desenvolveram e validaram um instrumento de medida da satisfação dos pacientes com serviços da farmácia com base no Patient Satisfaction Questionnaire, originalmente criado por Ware et al. 9 para avaliação da atenção médica. O questionário de MacKeigan & Larson ficou conhecido como Pharmacy Services Questionnaire (PSQ) e continha 44 perguntas relacionadas principalmente à dispensação de medicamentos. Em 2002, Larson et al. 10 atualizaram esse instrumento para a prática da atenção farmacêutica. Este novo instrumento contém vinte perguntas, agrupadas em dois domínios: exposição agradável (friendly explanation), com 11 itens que tratam dos serviços ligados à dispensação e aspectos estruturais da farmácia, e manejo da terapia (managing therapy), com nove itens que tratam dos serviços providos pelo farmacêutico relacionados ao manejo do tratamento do paciente. Os pacientes respondem cada pergunta numa escala de cinco pontos do tipo Likert que incluía as opções: excelente, muito bom, bom, regular e ruim 10. Além do original em inglês, este questionário encontra-se atualmente traduzido para o português de Portugal 11.

No Brasil, o tema da satisfação com usuários vem crescendo em importância especialmente a partir da segunda metade da década de 1990, com o desenvolvimento do Sistema Único de Saúde (SUS), da busca da humanização dos serviços e do controle social na saúde. Há trabalhos publicados de avaliação da satisfação em diferentes cenários (incluindo a atenção farmacêutica em unidade de saúde) 12,13,14,15, abordando o desenvolvimento e validação de instrumentos de medida 16,17 e de revisão 6,18.

Até o momento, não se dispõe no Brasil de um instrumento validado para avaliação da satisfação dos pacientes com serviços farmacêuticos e da farmácia. Este trabalho tem por objetivo apresentar os resultados da adaptação e validação do questionário desenvolvido por Larson et al. 10 para o português do Brasil.

 

Métodos

Participantes

Os dados desta pesquisa foram coletados entre julho e dezembro de 2004 em quatro farmácias e uma unidade de saúde de Curitiba e região, Estado do Paraná, Brasil. O questionário foi aplicado a pacientes acima de 30 anos com diagnóstico de diabetes tipo 2, participantes de um estudo clínico desenvolvido pelo Departamento de Farmácia da Universidade Federal do Paraná. A amostra foi composta por todos os pacientes participantes do estudo clínico. Os pacientes faziam uso contínuo de medicamentos e utilizavam serviços de farmácias privadas regularmente. Os pacientes foram caracterizados de acordo com sexo, idade, tempo de diagnóstico de diabetes, data da última consulta médica, escolaridade e tipo de acesso ao serviço de saúde.

Etapa de tradução

O processo de adaptação transcultural do PSQ seguiu a metodologia proposta por Guillemin et al. 19, modificada por Falcão 20 para instrumentos de avaliação de qualidade de vida. A escolha da metodologia baseou-se no fato de a satisfação com serviços e a qualidade de vida serem ambas variáveis de desfechos humanísticos. Protocolo semelhante foi seguido para a tradução do instrumento para o português de Portugal 11. O autor principal do PSQ, Dr. Lon N. Larson, foi contatado e foi obtida sua autorização para tradução e adaptação do instrumento para o português do Brasil.

Na primeira fase, foi realizada a tradução por dois profissionais da saúde independentes, fluentes na interpretação da língua inglesa, tendo como língua mãe o português. Eles conheciam os objetivos do estudo e os conceitos subjacentes ao documento em questão. Traduzido o documento, os pesquisadores reuniram-se gerando a versão 1 do instrumento. Na segunda fase, etapa de retrotradução, a versão 1 foi traduzida de volta ao inglês por um tradutor nativo que desconhecia os objetivos iniciais do estudo e a versão original do instrumento gerando a versão 2. Em seguida foi constituído um comitê formado por farmacêuticos e pesquisadores da área de prática farmacêutica que compararam a versão original, com a versão em português (versão 1) e com a da retrotradução (versão 2). Verificaram o título, a introdução inicial, as instruções de preenchimento, a escala das respostas e o conteúdo dos vinte itens. A versão 3 do questionário produzida, em português, mediante a última análise foi submetida à fase seguinte de validação, sendo administrada aos pacientes participantes do estudo.

Etapa de validação

O PSQ foi administrado por meio de entrevista ou auto-administração supervisionada e foi solicitado que os respondentes considerassem os serviços recebidos, nos últimos trinta dias, nas farmácias que freqüentavam. Durante o preenchimento, os pacientes responderam aos questionários sozinhos e um entrevistador treinado permaneceu à disposição para eventuais dúvidas 21. Somente para os pacientes com limitações de leitura ou escrita, o questionário foi aplicado por meio de entrevista estruturada, fazendo-se a leitura das perguntas e das opções de respostas, procurando minimizar a influência nas respostas. A pontuação do instrumento foi calculada pela escala Likert de cinco pontos conforme instrumento original, sendo: 1 = ruim, 2 = regular, 3 = bom, 4 = muito bom e 5 = excelente. Para o instrumento todo, ou para cada domínio, o escore é calculado pela soma das respostas do usuário dividido pelo número de questões correspondentes. Assim, quanto mais próximo de 5, maior a satisfação com o serviço e quanto mais próximo de 1, maior a insatisfação.

Foram realizadas análises da validade de construto (consistência interna, análise fatorial, validade convergente). Para a análise da consistência interna, foi realizado o cálculo pelo a de Cronbach. Nesta análise, valores de a superiores a 0,70 foram considerados aceitáveis, refletindo a correlação dos itens entre si e com o escore total. Além disso, foi analisado o impacto da retirada de cada questão ao valor de a referente ao domínio e ao escore geral. Casos em que a retirada da questão implicasse um acréscimo superior a 1% ao valor α do domínio ou geral conduziam à exclusão da pergunta da versão traduzida do instrumento.

Foram feitas ainda análises fatorial e da validade convergente, correlacionando-se os escores médios obtidos para cada questão do PSQ com os escores dos domínios a que pertenciam e a que não pertenciam. Foram considerados aceitáveis valores significativos de r > 0,40.

Análise estatística

Os dados resultantes da aplicação do PSQ foram testados quanto à distribuição normal pelo teste de Kolmogorov-Smirnov e os testes estatísticos apropriados foram selecionados. Além dos testes psicométricos já referidos, para análise de correlação foi utilizado teste de Spearman e, para comparação de médias, teste U de Mann-Whitney. Foi realizada análise fatorial dos itens do instrumento utilizando extração em componentes principais com rotação varimax. O teste de Kaiser-Meyer-Olkin foi conduzido a fim de avaliar a adequação dos dados à análise fatorial. Para análise dos dados foi utilizado o programa estatístico SPSS versão 12.0 para Windows (SPSS Inc., Chicago, Estados Unidos).

Aspectos éticos

Este estudo foi desenvolvido de acordo com as normas de pesquisa envolvendo seres humanos e obteve aprovação do comitê de ética em pesquisa do Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná (nº. 092ext046/2003-08).

 

Resultados

A versão brasileira do PSQ foi denominada Questionário de Satisfação com os Serviços da Farmácia (QSSF). Cada item do questionário iniciava com a proposição "Como você classificaria" seguida do restante da pergunta. As instruções do questionário pediam ao respondente que lesse cada questão cuidadosamente e procurasse recordar a farmácia a que estava indo atualmente.

Ao todo 154 pacientes responderam ao questionário, entre os quais dezessete apresentaram resposta(s) em branco e não foram considerados para testes de validação. Ao final, 137 pacientes (88,9%) responderam adequadamente o instrumento e compuseram a base de dados para análise psicométrica. A aplicação do questionário levou entre 10 e 15 minutos. Os pacientes que não responderam a todas as questões do instrumento não apresentaram diferença significativa quanto a sexo, idade e escolaridade em relação ao restante do grupo e em sua maioria deixaram de responder a apenas uma questão do teste. Entre os itens deixados em branco pelos respondentes, os mais comuns foram as perguntas de números 3, 5, 9 e 17, com ocorrência entre três e cinco respondentes. Tais questões tratam da relação com o farmacêutico, prontidão de atendimento, ajuda do farmacêutico e privacidade nos atendimentos.

Os respondentes foram majoritariamente femininos (60,6%), tinham em média 58,2 anos (desvio-padrão - DP = 11,4; 31-89 anos), tempo de diagnóstico de diabetes de 8,6 anos (DP = 7,5) e 94,2% haviam consultado o médico no último ano (68,6% no último trimestre). Com relação à escolaridade, 67,9% possuíam até o ensino fundamental e apenas 6,6% haviam cursado o ensino superior. A maioria dos pacientes era usuária do serviço público de saúde (65,7%), 14,6% utilizavam serviço privado e 19,7%, ambos os serviços.

Os pacientes utilizavam em média 4,3 medicamentos (mediana = 4,0; intervalo interquartis = 1 a 7). A média de uso de antidiabéticos foi de 1,5 (DP = 0,6). Os grupos farmacológicos mais significativos, além de antidiabéticos, foram os anti-hipertensivos (49,6% dos pacientes), antiagregantes plaquetários (28,5%) e hipolipemiantes (13,9%).

A análise da consistência interna apresentou um a de Cronbach de 0,98 para o total de vinte itens. Os domínios exposição agradável e manejo da terapia (organizados após análise fatorial) mostraram um a de 0,941 e 0,980, respectivamente.

A média geral das respostas foi de 3,6 (DP = 1,1 [IC95%: 3,4-3,8]). A Tabela 1 traz todos os itens do questionário, a média e desvio-padrão das respostas e a análise da confiabilidade, incluindo correlação de cada item com a pontuação total e a resultante do a de Cronbach no caso da retirada de cada item. Todos os itens apresentaram correlação significativa com o total do questionário (p < 0,001). A média geral de ocorrência da resposta "excelente" foi de 36,1%. As maiores ocorrências da resposta "excelente" foram nos itens 2, 6, 12 e 16; as menores foram nos itens 4, 9, 17, 18 e 20.

A análise do impacto da retirada de cada uma das questões sobre a consistência interna do instrumento (α de Cronbach) mostra resultados praticamente idênticos ao a calculado para o total de itens (α = 0,98). Assim, nenhuma questão precisou ser retirada da versão traduzida do questionário.

A fim de avaliar a distribuição dos itens em domínios na versão brasileira do instrumento, foi realizada uma análise fatorial, utilizando extração em dois componentes principais (1 e 2) com rotação varimax. Os domínios foram compostos pelos itens apresentando o maior resultado de "loading" em cada componente. Os itens incluídos em cada componente são apresentados na Tabela 2.

Na análise fatorial, a medida da adequação da amostra (Kaiser-Meyer-Olkin) foi de 0,95. Tendo como critério valores absolutos da variância explicada (eigenvalues) acima de 1, foram considerados dois fatores (componentes principais). O primeiro componente principal corresponde a 72,2% da variância e o segundo a 5,8%, totalizando 78% de toda variância. Todos os vinte itens apresentaram ao menos um valor de loading superior a 0,65, com exceção do item 3, que apresentou valor acima de 0,60. Ambos considerados muito significativos.

O primeiro domínio (exposição agradável) constituiu-se de oito itens agrupados no componente 2. Este domínio agrupou questões referentes aos aspectos gerais do atendimento da farmácia, incluindo a aparência e a qualidade de atendimento da equipe, a disponibilidade do farmacêutico e sua relação com o paciente, a qualidade de suas respostas e a cortesia e respeito de toda equipe da farmácia. A correlação entre os itens deste domínio foi em média de 0,66 (0,51-0,83).

O segundo domínio (manejo da terapia) foi formado por 12 itens, agrupados com maiores valores de loading no componente 1. Eles incluem aspectos de serviços cognitivos prestados pelo farmacêutico, mais fortemente relacionados à atenção farmacêutica. Entre eles, o interesse, empenho e responsabilidade assumidos pelo farmacêutico na resolução de problemas do tratamento e melhoria/manutenção da saúde do paciente, a qualidade das orientações dadas pelo farmacêutico, a privacidade do atendimento e a disponibilidade de tempo para passar com o paciente. A correlação entre os itens deste domínio foi em média 0,79 (0,71-0,87).

Os domínios exposição agradável e manejo da terapia apresentaram diferença na média (± DP) das respostas (3,86±1,03 vs. 3,49±1,31; p < 0,001). Os dois domínios se correlacionaram significativamente (r = 0,92; p < 0,001) e tiveram boa correlação com o escore geral, sendo de 0,97 (p < 0,001) para exposição agradável e 0,98 (p < 0,001) para manejo da terapia. Todos os itens do instrumento mostraram correlação altamente significativa com o escore total dos dois domínios. Os itens do primeiro domínio apresentaram correlação na faixa de 0,71 a 0,91 (p < 0,001) com o primeiro domínio e de 0,58 a 0,84 (p < 0,001) com o segundo domínio. Os itens do segundo domínio apresentaram correlação na faixa de 0,79 a 0,86 (p < 0,001) com o primeiro domínio e de 0,80 a 0,93 (p < 0,001) com o segundo domínio.

Os resultados gerais de satisfação não estiveram correlacionados de modo significativo à idade (r = 0,15, p = 0,069), tempo de diagnóstico de diabetes (r = 0,01, p = 0,860), número de medicamentos em uso (r = -0,01, p = 0,832) ou escolaridade (r = -0,09; p = 0,264). Comparando-se as médias de satisfação entre usuários do sistema público de saúde, usuários do sistema privado ou de ambos, não foram encontradas diferenças significativas entre os grupos (p = 0,144). Entre homens e mulheres também não houve diferença significativa nos resultados de satisfação (p = 0,846). O mesmo ocorreu ao se analisarem os resultados de cada domínio separadamente.

 

Discussão

A população participante deste estudo se caracteriza pela utilização simultânea de vários medicamentos, por ser em sua maioria composta de mulheres e usuários do sistema público de saúde, com assistência médica regular e que utiliza medicamentos para vários problemas de saúde além do diabetes mellitus. Esses fatores se destacam por influenciarem as respostas do questionário tendo em vista que o diabetes é uma doença crônica e leva o paciente portador desta enfermidade a ter um relacionamento maior com a equipe da farmácia, inclusive o farmacêutico. Tal relacionamento permite que os pacientes compreendam mais facilmente as características dos serviços farmacêuticos e possuam expectativas mais bem elaboradas sobre a qualidade deles. Em populações com enfermidades não crônicas, poder-se-ia obter um grau diferente de satisfação com esses serviços.

Neste estudo, apesar de a maioria da população ser usuária do sistema público, todos os pacientes entrevistados adquiriam medicamentos em farmácias privadas, além dos medicamentos retirados na unidade de saúde, e desta forma estavam aptos a avaliarem os serviços prestados nos estabelecimentos.

Com relação à etapa de adaptação transcultural do instrumento, cabe ressaltar que a tradução do título do questionário levou em consideração a distinção feita entre "serviços farmacêuticos", que se referem aos serviços de atenção à saúde prestados pelo farmacêutico e "serviços da farmácia", que incluem serviços de toda equipe da farmácia, incluindo o próprio farmacêutico 22.

Durante a aplicação do questionário, o número de respondentes que deixou perguntas em branco foi pequeno e com características comuns ao restante do grupo. Não houve destaque de nenhum item com número de não respondentes acima da média e, de fato, quase a totalidade das perguntas obteve pelo menos uma ocorrência em branco em algum questionário. Assim, não foi identificada nenhuma característica especial dos participantes ou alguma questão que tenha demonstrado maior dificuldade para ser compreendida e respondida pelos pacientes.

Na etapa de validação, os resultados de consistência interna do instrumento foram semelhantes ao instrumento original e à versão traduzida para o português europeu. Larson et al. 10 encontraram um a de Cronbach de 0,957 para o domínio exposição agradável e de 0,962 para o domínio manejo da terapia em uma amostra com 428 indivíduos. No trabalho português, a confiabilidade para os mesmos domínios foi de 0,939 e 0,960, respectivamente, em uma amostra com 230 indivíduos 11. No estudo americano, a maioria dos respondentes (82,2%) possuía ensino médio (high school) ou mais, enquanto no estudo português 57,8% possuem escolaridade além do ensino fundamental (1º Ciclo Básico). No estudo brasileiro, apenas 32,1% dos respondentes haviam cursado além do ensino fundamental. As diferenças de escolaridade e tamanho amostral da população deste estudo não influenciaram, entretanto, os resultados de consistência interna, demonstrando a estabilidade do instrumento independentemente desses fatores.

Assim como ocorreu no estudo realizado em Portugal, a distribuição dos itens nos domínios após análise fatorial diferiu do instrumento original 11. As questões 4, 7 e 12, que no instrumento original pertencem ao domínio exposição agradável, obtiveram na versão brasileira maiores cargas fatoriais no domínio manejo da terapia, sofrendo migração de domínio. Essas questões, que estão mais ligadas à dispensação de medicamentos do que ao manejo da farmacoterapia, se referem à habilidade de o farmacêutico informar sobre problemas da medicação e à qualidade das explicações sobre como os medicamentos funcionam e sobre como utilizá-los corretamente. A distribuição fatorial mostrou que os pacientes não distinguem essas atividades "tradicionais" do grupo de atividades ligadas à atenção farmacêutica. Uma possível explicação para isso estaria no fato de o Brasil ainda não possuir um nível adequado de qualidade na dispensação de medicamentos, o que faz com que os pacientes percebam as ações de orientação como algo novo, no mesmo plano de atividades como envolvimento e responsabilidade com resultados terapêuticos e resolução de problemas. Isso de certa forma reflete a incipiente incorporação desses serviços clínicos nas farmácias brasileiras.

Na aplicação do QSSF, o menor percentual de respostas "excelente" foi de 29,9%. No estudo original do instrumento, a questão 15 (empenho do farmacêutico em manter ou melhorar a saúde do paciente) obteve excelente de apenas 27,7% dos pacientes, e a questão 17 (privacidade nas conversas) obteve excelente em 25,6% dos casos. No Brasil, os piores índices de excelente foram para as questões 9 (ajuda do farmacêutico no uso dos medicamentos) e 4 (habilidade do farmacêutico em avisar sobre problemas com medicamentos). As questões referentes à privacidade, empenho do farmacêutico em assegurar que os medicamentos façam o efeito esperado e ajuda no uso dos medicamentos também receberam escores mais baixos da população respondente no Brasil.

Os piores escores de satisfação, no Brasil e nos Estados Unidos, foram obtidos no domínio manejo da terapia 10. No estudo de Portugal, ainda que não se disponha dos escores individuais de cada pergunta, o pior escore médio também surgiu no domínio manejo da terapia 11. As melhores avaliações feitas pelos pacientes americanos foram relativas à disponibilidade do farmacêutico em responder às dúvidas, habilidade em orientar, qualidade das instruções, cortesia e respeito demonstrados pela equipe da farmácia. No Brasil, entre os quatro itens com maiores escores, dois deles se referiam à equipe da farmácia (P6 e P16) e apenas um deles fazia parte do manejo da terapia (P12). Ainda que o objetivo deste estudo não seja a avaliação da satisfação do ponto de vista absoluto, mas sim a avaliação psicométrica do instrumento, estas diferenças podem fornecer indícios das diferenças de prática entre farmacêuticos americanos e brasileiros, sob a ótica dos pacientes.

No instrumento brasileiro, todos os itens organizados em cada domínio e os dois domínios entre si estiveram altamente correlacionados. Após análise fatorial, normalmente é esperado que os itens que apresentam maior carga fatorial (loading) para um determinado fator (1 ou 2) venham a apresentar maior correlação com este domínio e baixa correlação com os demais. Isso não ocorreu para o QSSF, tampouco para o instrumento original em inglês ou na versão portuguesa 10,11. Conforme discutem Larson et al. 10, esse resultado não chega a ser inesperado, considerando o momento de mudança de prática em que a farmácia se encontra. Em muitos aspectos, a atenção farmacêutica representa para a prática farmacêutica muito mais um processo evolucionário do que revolucionário. Conseqüentemente, itens que visam capturar a satisfação dos usuários com a atenção farmacêutica apresentam-se altamente correlacionados com aspectos mais tradicionais da prática, como é o caso da dispensação 10. Além disso, ainda que o QSSF esteja dividido em dois domínios, ambos têm por objetivo medir a mesma variável: a satisfação dos usuários.

Neste estudo, não foram identificadas relações entre os resultados de satisfação e o perfil dos pacientes quanto à idade, sexo, tratamento ou escolaridade. Aparentemente estes fatores têm pouca influência sobre a satisfação, contudo, para melhor avaliação destes aspectos, são necessários novos estudos abrangendo uma população maior e, preferencialmente, mais heterogênea.

A aplicabilidade do QSSF na prática farmacêutica pode dar-se em várias circunstâncias e locais de trabalho. Além de farmácias comunitárias, o instrumento pode ser aplicado em outros locais onde se realize dispensação e prestação de serviços clínicos farmacêuticos como ambulatórios, unidades de saúde ou mesmo clínicas especializadas. Ainda que se recomende o uso pleno do instrumento, em locais onde não haja dispensação, os itens do domínio manejo da terapia podem ser utilizados isoladamente. Recomenda-se, em todos os casos, que os usuários observem os resultados de consistência interna do instrumento (α de Cronbach) para populações que difiram da analisada neste trabalho.

A medida realizada da satisfação dos usuários pode ser feita também em uma única farmácia ou comparada entre farmácias de uma mesma rede, por exemplo. Farmacêuticos que estejam iniciando serviços de atenção farmacêutica em suas farmácias podem monitorar a evolução da satisfação de seus pacientes ao longo do tempo, conforme avanços no desenvolvimento dos serviços. Por mais que a análise das respostas de cada pergunta isoladamente possa revelar aspectos falhos de um serviço, recomenda-se considerar a média das respostas do instrumento e de seus domínios. Isso aumenta a consistência dos resultados e torna a análise mais fidedigna.

Do ponto de vista de pesquisa, a disponibilidade de um instrumento validado de medida da satisfação abre novas possibilidades de avaliação da prática farmacêutica. Em estudos que avaliem o impacto de programas de atenção farmacêutica em populações diversas (p. ex.: idosos, diabéticos ou hipertensos) a satisfação pode ser considerada como um desfecho humanístico e análises antes-depois, ou comparação entre grupos recebendo atenção farmacêutica e controles podem ajudar a entender melhor a influência dos serviços farmacêuticos na satisfação dos usuários ao longo do tempo. Trabalhos que avaliam a qualidade de estudos de atenção farmacêutica têm mostrado que uma das falhas metodológicas mais comuns consiste em somente considerar desfechos clínicos, em detrimento de desfechos humanísticos e econômicos 23.

As principais limitações deste estudo são ligadas à ausência de uma avaliação prévia dos pacientes quanto ao que eles acreditavam ser os serviços farmacêuticos e os recursos importantes para aplicá-los. Além disso, não foram investigados os serviços recebidos pelos pacientes nas farmácias por eles avaliadas, tampouco se os mesmos foram atendidos em mais de uma farmácia anteriormente à aplicação do questionário. Todos esses fatores são capazes de influenciar as expectativas dos pacientes e conseqüentemente suas avaliações de satisfação. Os escores de satisfação encontrados devem ser avaliados em termos absolutos, se considerados esses aspectos. Um segundo ponto a ser levado em consideração é a capacidade de distinção pelos pacientes entre o técnico que trabalha na farmácia e o farmacêutico, o que poderia influenciar as respostas referentes ao desempenho deste profissional. Além disso, a forma de recrutamento dos pacientes pode ser fonte de vieses, tendo em conta que esta não foi randomizada e apenas pacientes que aceitavam participar do estudo clínico respondiam ao questionário.

O objetivo central deste estudo não foi avaliar a satisfação dos pacientes com os serviços da farmácia em termos absolutos, o que requereria uma amostra representativa que pudesse alcançar boa validade externa e o uso de um instrumento já validado anteriormente. O foco do trabalho encontra-se em avaliar o desempenho psicométrico da versão traduzida para o português do PSQ e sua capacidade em medir a satisfação dos pacientes. Finalmente, cabe lembrar que a validação de um instrumento não termina quando o primeiro estudo contendo dados de tradução e psicometria é concluído. Trata-se de um processo contínuo de avaliação pelo uso continuado do instrumento 24. No caso da satisfação com serviços da farmácia, tal continuidade dependerá sobremaneira do esforço da profissão farmacêutica em continuar avançando com intuito de uma maior participação na equipe de saúde e envolvimento no processo de cuidado dos pacientes.

 

Conclusão

A versão brasileira do PSQ, denominado QSSF, apresenta aspectos de validade adequados para sua utilização. Este instrumento pode ser útil em estudos populacionais e ensaios clínicos, a fim de medir a satisfação dos pacientes em um dado momento ou sua evolução ao longo do tempo.

 

Colaboradores

C. J. Correr participou do delineamento da pesquisa, da comissão de tradução, coleta e análise de dados, elaboração e revisão do manuscrito. R. Pontarolo participou do delineamento da pesquisa, elaboração e revisão do manuscrito. A. C. Melchiors participou da coleta e análise de dados e revisão do manuscrito. P. Rossignoli participou do delineamento da pesquisa, coleta de dados e revisão do manuscrito. R. A. P. Souza participou da coleta de dados e elaboração do manuscrito. F. Fernández-Llimós participou do delineamento da pesquisa, análise de dados e revisão do manuscrito.

 

Agradecimentos

Os autores agradecem aos farmacêuticos participantes do estudo clínico que originou este trabalho: Marcelo Marcicano, Paola Barrichelo, Claudia Boscheco, Fernanda Ostrovski e Márcia Merony e aos acadêmicos do curso de farmácia da Universidade Positivo e Universidade Federal do Paraná.

 

Referências

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Correspondência:
C. J. Correr
Grupo de Pesquisa em Prática Farmacêutica
Departamento de Farmácia
Universidade Federal do Paraná.
Av. Prefeito Lothário Meissner 632, Curitiba, PR
80210-170, Brasil.
cassyano@ufpr.br

Recebido em 05/Mar/2008
Versão final reapresentada em 19/Jun/2008
Aprovado em 01/Jul/2008

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br