ARTIGO ARTICLE

 

Fatores associados à necessidade subjetiva de tratamento odontológico em idosos brasileiros

 

Factors associated with subjective need for dental treatment in elderly Brazilians

 

 

Rafael da Silveira MoreiraI; Lucélia Silva NicoII; Maria da Luz Rosário de SousaIII

ICentro de Pesquisa Aggeu Magalhães, Fundação Oswaldo Cruz, Recife, Brasil
IIFaculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil
IIIFaculdade de Odontologia de Piracicaba, Universidade Estadual de Campinas, Piracicaba, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

A transição demográfica pela qual o Brasil vem passando nos últimos anos produz como efeito um fenômeno mundialmente conhecido como envelhecimento populacional. Dessa forma, o objetivo deste estudo foi conhecer os fatores relacionados à necessidade de tratamento odontológico percebida por idosos brasileiros. Foi realizado um aprofundamento dos resultados encontrados no levantamento epidemiológico nacional de saúde bucal de 2003. O tamanho total da amostra foi de 5.349 indivíduos. Modelos de regressão de Poisson foram realizadas para identificar as variáveis individuais envolvidas na autopercepção de necessidade de tratamento odontológico. As variáveis associadas à necessidade subjetiva de tratamento odontológico foram diferentes para idosos edêntulos e não edêntulos. Estes achados são importantes para o planejamento da oferta de serviços de saúde bucal para a população, fornecendo uma estimativa sobre os principais problemas que estes indivíduos demandam e quantos necessitariam de atendimento.

Assistência Odontológica; Saúde Bucal; Idoso


ABSTRACT

The demographic transition in Brazil in recent years had reproduced a phenomenon known worldwide as population aging. The objective of this study was thus to identify the factors related to self-perceived need for dental treatment among elderly Brazilians. An in-depth analysis was performed with data from the 2003 national oral health survey, with a sample of 5,349 elderly individuals. Poisson regression models were used to identify the individual variables involved in self-perceived need for dental treatment. The variables associated with subjective need for dental treatment were different for edentulous and non-edentulous elders. These findings are important for planning the supply of dental services to the population, providing estimates of the main problems reported by these individuals and the number requiring treatment.

Dental Care; Oral Health; Aged


 

 

Introdução

A transição demográfica pela qual o Brasil vem passando nos últimos anos é conseqüência, dentre outros indicadores, da redução da taxa de mortalidade, da queda na taxa de fecundidade e do aumento da expectativa de vida, o que produz como efeito um fenômeno mundialmente conhecido como "envelhecimento populacional".

Desta dinâmica demográfica e epidemiológica surgem no mínimo dois objetos de estudo a serem considerados nas pesquisas em saúde coletiva: o envelhecimento humano (com suas características e conseqüências) e as condições de vida e saúde dos idosos. Dentre os vários campos da saúde, a saúde bucal do idoso se apresenta em precárias condições, com alta prevalência de edentulismo (ausência total dos dentes), doenças periodontais, dentes cariados, necessidades de uso de próteses e sua má adaptação 1,2. Somando-se a estes agravos, existe ainda a grande possibilidade de o idoso ser portador de outras condições sistêmicas debilitantes, que acabam agindo em sinergismo com as doenças bucais nos idosos, repercutindo, dessa forma, no seu grau de autonomia, independência e, conseqüentemente, na sua qualidade de vida.

No Brasil, são escassos os estudos que descrevem o quadro epidemiológico da saúde bucal, em nível nacional. Os levantamentos epidemiológicos realizados pelo Ministério da Saúde nos anos de 1986 e 1996 tiveram como prioridade o grupo dos escolares, não contemplando os indivíduos maiores de 60 anos 3,4.

Mais recentemente, foi realizado um levantamento das condições de saúde bucal da população brasileira (Projeto SB Brasil 2003) 5. A média nacional encontrada nesse estudo para o grupo etário de 65-74 anos, referente ao número de dentes cariados, perdidos ou obturados (índice CPO-D), por indivíduos, foi de 27,93. Isto significa que cada pessoa desse grupo possui apenas quatro dentes livres da cárie e de suas conseqüências (obturação/extração). No caso dos idosos, ressalta-se maior participação do componente "perdido" (92,16%) na composição percentual do índice CPO-D. Quanto à necessidade do uso de prótese, 56% e 32,4% necessitam de próteses inferior e superior, respectivamente, sendo a prótese total o tipo de prótese com maior necessidade, indicando a alta prevalência de edentulismo 5.

Nesse sentido, conhecer como cada indivíduo percebe a própria saúde é um importante passo para se compreender o padrão de procura por um serviço de saúde. Os resultados da Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios de 1998 (PNAD 1998) 6 mostraram que o principal motivo de não procurar um atendimento de saúde foi a ausência de necessidade percebida (96%). Falta de dinheiro foi apontado como o segundo motivo (1,3%).

Segundo Sheiham & Tsakos 7, o conhecimento sobre as necessidades de cuidado à saúde proporciona oportunidade para: influenciar políticas públicas; acessar o impacto das doenças e necessidades da população local; compreender as necessidades e prioridades de pacientes e da população local; identificar áreas de necessidades não satisfeitas e propor objetivos para satisfazer estas necessidades; definição da viabilidade de tratamento nos serviços; quantificar o total de necessidades de tratamento odontológico para a população; decidir o modo de racionalizar os recursos para garantir a efetividade e a eficiência das ações e; propor métodos de monitoramento e promoção da equidade no uso dos serviços de saúde.

É válido ainda destacar a diferença entre necessidades de cuidados em saúde e necessidades em saúde. As primeiras são aquelas que se beneficiam de cuidados em saúde tais como prevenção de doenças, diagnósticos, tratamento e reabilitação. Já as necessidades em saúde incorporam os determinantes sociais e ambientais em saúde mais amplos tais como a privação, moradia, emprego, lazer, entre outros 7.

Com relação aos idosos, é crescente o número de estudos sobre a autopercepção da saúde bucal, principalmente com relação à perda dentária e aos aspectos psicológicos, sociais e funcionais relacionados ao edentulismo. Várias pesquisas mostram os prejuízos gerados pela perda dentária, porém, tais prejuízos são compensados pela reabilitação odontológica dos indivíduos, reabilitação não só funcional, mas também social e psicológica 8,9,10,11.

Outros estudos vêm demonstrando divergências entre a autopercepção (aspecto subjetivo) e condições objetivas de saúde bucal (aspectos normativos). Silva et al. 12 analisaram a autopercepção da saúde bucal de idosos por meio de um índice denominado Geriatric Oral Health Assesment Index (GOHAI), cujo objetivo é avaliar o impacto das doenças bucais em populações idosas. Complementando suas observações com informações clínico-epidemiológicas, os autores observaram uma satisfatória autopercepção da saúde bucal, porém, não confirmada pelas condições clínicas do exame epidemiológico, caracterizada pela alta prevalência de edentulismo.

Entretanto, apesar da grande quantidade de estudos que avaliam a autopercepção da saúde bucal de idosos e os aspectos clínicos relacionados a esta autopercepção, poucos estudos buscaram avaliar os fatores relacionados à necessidade percebida (critério subjetivo) e a necessidade clínica/objetiva (critério normativo) de tratamento odontológico em idosos. Peres et al. 13 encontraram diferenças entre autopercepção e critérios normativos na identificação de oclusopatias em adolescentes de Florianópolis, Santa Catarina, Brasil. Os autores observaram que existem graus de problemas oclusais tecnicamente definidos que são aceitáveis pela população e que devem influenciar na decisão de tratamento, interferindo diretamente na demanda para esse tipo de atendimento. Concluem sugerindo que medidas subjetivas poderiam ser incorporadas aos critérios clínicos atualmente utilizados.

Diante do exposto, objetivou-se com este estudo investigar os fatores associados à necessidade subjetiva de tratamento odontológico em idosos que participaram do último inquérito de saúde bucal no Brasil.

 

Procedimentos metodológicos

Trata-se de um estudo transversal que utilizou dados secundários do levantamento epidemiológico nacional de saúde bucal de 2003 (Projeto SB Brasil 2003) 5.

Com relação aos indivíduos idosos (65 a 74 anos) que participaram deste levantamento, grupo-índice da Organização Mundial da Saúde (OMS) que foi analisado no presente estudo, o tamanho total da amostra foi de 5.349 indivíduos. Apesar de o plano inicial ter previsto a pesquisa em 250 municípios, os dados disponíveis para a população idosa contaram com a participação de 247 municípios. Para a seleção amostral foi utilizada a técnica de amostragem probabilística por conglomerados, realizada em três estágios. Detalhes sobre o processo amostral encontram-se publicados no relatório contendo os resultados principais do Projeto SB Brasil 2003 5.

Caracterização dos instrumentos

Esse estudo utilizou os dados obtidos por intermédio das entrevistas (questionários) e exames clínicos realizados pelo Projeto SB Brasil 2003. Os códigos e critérios adotados são aqueles propostos pela OMS na publicação Oral Health Surveys: Basic Methods, quarta edição 14. A partir das entrevistas, foram obtidas informações sobre a avaliação sócio-econômica, acesso aos serviços de assistência odontológica e autopercepção em saúde bucal.

Descrição das variáveis

Para a avaliação subjetiva da necessidade atual de tratamento odontológico foi feita a seguinte pergunta: "Considera que necessita de tratamento atualmente?".

As respostas possíveis eram apenas Sim (1) ou Não (0). Esta foi considerada a variável dependente do estudo.

Foram construídos dois modelos de análise: um para os idosos edêntulos e outro para os idosos não edêntulos. As variáveis independentes utilizadas em cada um desses modelos estão ilustradas na Figura 1.

Formas de análise

Para a identificação dos fatores associados à necessidade subjetiva de tratamento odontológico foram calculadas medidas de associação expressas pelas razões de prevalências (RP) brutas e ajustadas, estimadas por modelos de regressão de Poisson univariados e múltiplos, com estimadores robustos da variância 15.

Foi realizada uma modelagem hierárquica 16 baseada em modelos teóricos para as variáveis explicativas da necessidade subjetiva de tratamento odontológico (Figura 1). Estes modelos foram baseados nas teorias da determinação social da doença com uma abordagem estruturalista do processo saúde-doença. Iniciou-se a análise univariada em cada bloco de associação. Dentro de cada nível hierárquico, as variáveis com p < 0,20 foram testadas em modelos múltiplos. Ao final, as variáveis com p < 0,05 permaneceram no modelo final de cada nível e foram consideradas fatores de ajuste para os blocos subseqüentes.

Para a análise descritiva e estimativa das medidas de associação foi utilizado o programa estatístico MLWin (Centre for Multilevel Modelling, Bristol, Reino Unido). Este programa de análise multinível possibilitou a correção do efeito de conglomerado (representado pela dependência dos indivíduos nos níveis amostrais) e a geração de estimativas mais precisas dos erros-padrão pelo particionamento das variâncias.

Aspectos éticos

O Levantamento Nacional das Condições de Saúde Bucal da População Brasileira (Projeto SB Brasil 2003) foi aprovado pelo Comitê Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), processo nº. 581/2000, e seus dados, devidamente sem a identificação dos sujeitos participantes da pesquisa, foram disponibilizados para uso público pelo Departamento de Atenção Básica do Ministério da Saúde.

O presente projeto de pesquisa, baseado em dados secundários, também foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (processo nº. 183/2008).

 

Resultados

Participaram da pesquisa 5.349 idosos entre 65 e 74 anos. Tanto a idade média quanto a mediana foi de 68 anos. O índice CPO-D foi igual a 27,8 (±6,7) e cerca de 26 dentes (±8,1) foram perdidos em média. Este aspecto justifica a baixa média de dentes permanentes (5,5 a ±7,9).

Com relação a alguns aspectos sócio-demográficos, pode-se destacar a baixa escolaridade média (2,7 a ±3,1), sendo que a metade dos idosos tinha apenas dois anos de estudo e renda familiar de 400 Reais.

Observou-se que a maioria dos idosos era do sexo feminino (61,2%). Aproximadamente metade dos idosos pertencia ao grupo étnico branco (48,1%).

Com relação à necessidade subjetiva de tratamento odontológico, observou-se que mais da metade dos idosos percebiam necessidade de tratamento (55%).

A prevalência de edentulismo foi elevada, cerca de 55% dos idosos não possuíam nenhum dente. Os idosos não-edêntulos sentiram maior necessidade subjetiva de tratamento odontológico do que os edêntulos (p < 0,05).

Existe uma diferença na autopercepção de tratamento odontológico entre os idosos edêntulos e não edêntulos. Diante disso, foram estabelecidos dois modelos teóricos e de regressão distintos para cada um desses grupos.

Na análise univariada do modelo para os idosos não-edêntulos (Figura 1), bloco 1, percebemos que as variáveis associadas à não necessidade de tratamento foram possuir até quatro anos de estudo e possuir um, dois ou mais automóveis. Já o aumento do número de pessoas por cômodo esteve associado à necessidade percebida de tratamento odontológico.

Com relação às variáveis do bloco 2, os idosos que nunca visitaram o dentista tiveram maior necessidade percebida, assim como aqueles que tiveram a última consulta odontológica em serviço público e por motivos de dor, sangramento gengival, cavidades nos dentes ou feridas na boca.

No bloco 3 observou-se que a necessidade normativa de combinação de próteses no arco superior aumentou a prevalência de necessidade subjetiva em 26%. No arco inferior, esta mesma variável aumentou a prevalência em 35%. A necessidade normativa de tratamento clínico também aumentou 1,32 vezes a prevalência de necessidade subjetiva de tratamento odontológico.

No bloco 4 pode-se constatar que o grupo étnico não branco esteve associado à necessidade subjetiva, porém, o aumento da idade esteve associado à menor necessidade percebida de tratamento odontológico.

Com relação às variáveis do bloco 5, constatou-se que os idosos que percebem a própria saúde bucal como regular, ruim ou péssima apresentaram maior prevalência de necessidade percebida de tratamento odontológico. O mesmo acontecendo para a autopercepção negativa da aparência dos dentes e gengivas, da mastigação e da fala. Aqueles que relataram que a saúde bucal afeta o relacionamento social ou que sentiram dor nos dentes e gengivas nos últimos seis meses também apresentaram maior prevalência de necessidade percebida de tratamento.

Os resultados da análise múltipla para os idosos não edêntulos (Tabela 1) apontaram que as variáveis que representavam melhor condição sócio-econômica (possuir automóvel e maior anos de estudo) estiveram associadas à menor necessidade subjetiva, enquanto que o aumento no número de pessoas por cômodos representou maior necessidade percebida. Nunca ter visitado o dentista e ter realizado a última consulta no serviço público e por motivo de dor ou sangramento gengival permaneceram no modelo associadas à autopercepção positiva de necessidade de tratamento. A necessidade de combinação de próteses tanto no arco superior quanto no inferior e a necessidade de tratamento clínico em um ou mais dentes mantiveram-se associadas à necessidade subjetiva. O aumento da idade foi associado à menor necessidade. Por último, as variáveis de autopercepção negativa da saúde bucal e da aparência dos dentes e gengivas, assim como ter sentido dor bucal, mantiveram-se associadas à necessidade subjetiva de tratamento odontológico.

 

 

Com relação aos fatores associados à autopercepção de necessidade de tratamento odontológico entre os idosos edêntulos foi construído um modelo teórico que guiou a análise nesse grupo, conforme ilustrado na Figura 1.

Na análise univariada observou-se que nenhuma variável do bloco 1 e do bloco 4 mostrou associação significativa com o desfecho analisado (necessidade percebida de tratamento odontológico).

No bloco 2 o fato de nunca ter ido ao dentista aumentou cerca de 45% a prevalência de necessidade subjetiva. Entretanto, ter ido ao dentista há três anos ou mais e por motivo de dor ou sangramento gengival estiveram associados à menor necessidade percebida de tratamento.

Aqueles que apresentavam necessidade de prótese total inferior e apresentam alguma alteração de tecido mole aumentaram 1,30 e 1,28 vezes a prevalência de necessidade subjetiva, respectivamente.

Entre os idosos edêntulos, todas as variáveis relacionadas à autopercepção negativa da saúde bucal (bloco 5) estiveram fortemente associadas à necessidade percebida de tratamento odontológico.

No modelo múltiplo (Tabela 2) permaneceu associada à necessidade subjetiva de tratamento a variável nunca ter ido ao dentista, enquanto ter ido ao dentista há três anos ou mais esteve associado à menor necessidade de tratamento. Presença de alteração de tecido mole e necessidade de prótese total inferior aumentaram cerca de 30% a prevalência de necessidade percebida. A maioria das variáveis do bloco 5 permaneceu no modelo final.

 

 

Discussão

O inquérito epidemiológico analisado neste estudo representou uma importante contribuição no conhecimento das condições de saúde bucal da população idosa no Brasil. Tradicionalmente, os inquéritos anteriores tanto nacionais quanto regionais se limitaram, em sua maioria, aos escolares e à descrição do índice de cárie aos 12 anos, excluindo os indivíduos idosos de suas abordagens. Adicionalmente, a coleta de informações em nível individual sobre os aspectos sócio-demográficos, de autopercepção e de acesso aos serviços odontológicos, realizada nesse inquérito, representou excelente oportunidade de conhecer o perfil da saúde bucal segundo diferentes fatores individuais.

Dessa forma, foi possível inicialmente constatar que os idosos edêntulos percebem necessidade de tratamento de forma diferente do que os idosos não-edêntulos. Entre os idosos não-edêntulos, as variáveis sócio-econômicas e demográficas estiveram associadas à necessidade subjetiva de tratamento odontológico, o que não aconteceu entre os idosos edêntulos. Nesses, apesar de o fato de nunca ter ido ao dentista ter apresentado associação com maior necessidade subjetiva, ter tido a última consulta odontológica há três anos ou mais esteve associado à menor necessidade. Este achado é interessante e sugere que os idosos que sofreram grandes mutilações dentárias (perda de todos os dentes) foram expostos a um procedimento que era bastante comum em sua época, independente da condição sócio-econômica do indivíduo. Além disso, revela também o fato de que não ter mais dentes representa não precisar mais de cuidados odontológicos, segundo sugere a associação da menor necessidade percebida com a última consulta realizada há três anos ou mais, fato que muitas vezes coincide com a instalação da prótese total.

Uma hipótese para essa percepção de necessidade de tratamento sugere que os idosos com maior número de dentes se sentem mais responsáveis pela própria saúde bucal e travam uma constante luta em prol da manutenção dessa boa saúde, já fragilizada pelos efeitos acumulativos expressos pelo elevado índice CPO-D. Dessa maneira, pode ocorrer que estes idosos se sintam mais facilmente insatisfeitos com a própria saúde bucal do que os idosos usuários de prótese total, aparentemente "livres" de tal responsabilidade.

Outro fato interessante foi o aumento da idade estar associado à menor necessidade subjetiva. Ettinger 17, em uma revisão internacional sobre necessidades em saúde bucal em idosos, constatou, a partir de dados dos Estados Unidos e Europa, que à medida que a população envelhece as visitas aos médicos aumentam e aos dentistas diminuem. Esta tendência foi atribuída a um aumento da prevalência de edentulismo associado ao aumento da idade. Nessa revisão, o fato de pessoas idosas não edêntulas utilizarem serviços odontológicos de maneira similar às coortes mais jovens sugeriu que tais diferenças no uso desses serviços estão mais associadas à presença ou ausência de dentição natural do que simplesmente ao aumento da idade.

Vários fatores estão em confronto para o sucesso no acesso aos serviços de saúde, mas não foram objetos do presente estudo. Embora a percepção de necessidade de tratamento odontológico seja uma causa necessária para a busca pelo acesso a estes serviços, ela não é suficiente.

O presente estudo revelou que entre aqueles que freqüentam serviço público houve maior necessidade subjetiva de tratamento. McGrath & Bedi 18 encontraram diferenças de percepção e condições de saúde bucal entre adultos usuários de serviços odontológicos particulares e serviços públicos. As melhores condições bucais se encontravam em usuários de serviços particulares que também apresentaram maior percepção sobre o impacto da saúde bucal na qualidade de vida. Entretanto, tais diferenças foram mais atribuídas aos aspectos sócio-demográficos e ao uso regular de serviços odontológicos do que simplesmente ao método de pagamento.

Com efeito, fatores subjetivos como a necessidade percebida de tratamento odontológico e a própria percepção da saúde bucal possuem influências, ou, no mínimo, associações com as condições objetivas de saúde e a procura por atendimento odontológico. Em Vancouver (Canadá), MacEntee et al. 19 também encontraram uma autopercepção otimista contrastando com uma precária saúde bucal. Dentre 186 idosos que relataram uma saúde bucal excelente, 90 foram classificados clinicamente como tendo uma saúde bucal precária, de acordo com os critérios utilizados.

Sugere-se que o inverso desse fenômeno, ou seja, uma percepção mais coerente com as condições bucais objetivas, provavelmente motivará as pessoas a um maior cuidado com a própria saúde bucal. Essa hipótese explicaria o fato de os idosos que declaram insatisfação com a saúde bucal apresentarem melhores condições bucais do que os que declaram total satisfação. De outra parte, os idosos que não se incomodam com a saúde bucal precária (do ponto de vista clínico) não irão procurar atendimento, por não sentirem tal necessidade. Por isso, é comum encontrar associações entre uma autopercepção positiva e uma condição bucal desfavorável, uma relação não esperada do ponto de vista epidemiológico, que cria uma falácia subjetiva de que ser edêntulo está associado a uma boa ou ótima saúde bucal.

Em um estudo conduzido no Município de São Paulo, Brasil, conhecido como Projeto SABE - Saúde, Bem-Estar e Envelhecimento, Narvai & Antunes 8 constataram que, apesar de apenas 1% dos idosos ter todos os dentes, eles não apresentaram uma autopercepção negativa. Apenas 12% declararam-se insatisfeitos com a imagem de seus dentes no espelho e 92% afirmaram que nunca deixaram de sair à rua ou conversar por causa de suas condições dentárias. Além disso, o fato de usar algum tipo de prótese estar associado a uma boa percepção da saúde bucal, o que aparentemente representa um paradoxo, pois revela uma satisfação com a mutilação dentária, parece ser mais considerado como um reconhecimento da Odontologia em prover algum bem-estar para os idosos nessa situação de incapacidades bucais. Vale ressaltar que, apesar de 99% terem perdido um ou mais dentes, os idosos não se perceberam como mutilados dentários. Possivelmente, o falso pensamento de que a perda dentária é um evento natural do processo de envelhecimento esteja influenciando os idosos a terem essa percepção.

Dessa forma, Tsakos 20, discorrendo sobre as relações entre percepções normativas e subjetivas de necessidade de tratamento ortodôntico, destaca a inadequação das medidas clínicas para acessar tanto os sentimentos e satisfações das pessoas sobre sua aparência dentária como as dimensões psicossociais e o bem-estar relacionado à saúde bucal. Mesmo com diferentes pontos de vista, ambas as percepções devem ser consideradas na avaliação das condições de saúde. O autor destaca que o desequilíbrio na consideração destas percepções possui grandes implicações relacionadas aos serviços de atenção odontológica, haja vista que o uso de serviços ortodônticos é primariamente determinado pela avaliação clínica.

Nesse sentido, o autor recomenda o uso de uma abordagem denominada "sócio-dental" para acessar as necessidades de tratamento ortodôntico, mas que pode servir para outras necessidades de tratamento odontológico. Os elementos dessa abordagem seriam: estimativas clínicas das necessidades percebidas; percepções subjetivas incluindo a necessidade de tratamento percebida e o impacto na saúde bucal em relação às dimensões funcionais, psicológicas e sociais; propensão do indivíduo a adotar comportamentos de promoção da saúde; evidência científica da efetividade do tratamento.

Ainda nesta perspectiva, Gherunpong et al. 21 destacam que os métodos normativos tradicionais de acessar necessidades bucais não correspondem aos atuais conceitos de saúde e de necessidade. Embora existam pesquisas em saúde bucal sobre qualidade de vida, práticas baseadas em evidências e comportamentos bucais, tais conceitos são raramente aplicados nas estimativas de necessidades bucais. Os autores testaram a abordagem sócio-dental para acessar necessidades bucais em escolares de 11 e 12 anos em uma província da Tailândia. Concluíram que esta abordagem diminui as estimativas de necessidades de tratamentos convencionais e possibilitou a introdução de uma abordagem mais ampla de cuidado, incluindo ações de promoção e educação em saúde.

Sheiham & Tsakos 7 apontam as limitações de medidas normativas citadas na literatura como sendo a falta de objetividade e confiabilidade dessas medidas, aliado ao fato de ignorar direito dos usuários (consumidores), de não considerar comportamentos relacionados à saúde e adesão ao tratamento, de negligenciar aspectos psicossociais e conceitos de qualidade de vida além de ser uma abordagem não realista com pouca consideração dos recursos limitados.

Os mesmos autores ressaltam que a definição de uma necessidade bucal mais compreensiva deve incluir os seguintes elementos: uma dimensão clínica baseada em conceitos da história natural das doenças, uma medida de limitação social, a necessidade percebida pelo indivíduo, a identificação da propensão do indivíduo a assumir atitudes preventivas e a perceber barreiras para a prevenção, a prescrição de tratamentos efetivos e aceitáveis, a avaliação das competências e recursos humanos adquiridos.

Porém, devem-se destacar importantes limitações do estudo inerente às deficiências próprias do inquérito analisado. Como destacado por Queiroz et al. 22, o procedimento de amostragem do Projeto SB Brasil 2003 não apresenta informações adicionais que favoreceriam uma análise mais detalhada, alertando seus potenciais usuários de que estimativas produzidas não são representativas da população brasileira, além de apontar para as possibilidades de correção dos problemas identificados. Entretanto, o artigo não avança na solução dos problemas indicados. Para tanto, seria necessário o resgate de informações constantes dos relatórios das equipes de campo, o que necessariamente passa pelo apoio do Ministério da Saúde e das coordenações estaduais e municipais do Projeto SB Brasil 2003. Todavia, tal fato não é suficiente para justificar a renúncia em trabalhar com os dados do referido inquérito como uma possível e disponível descrição do cenário epidemiológico da saúde bucal da população brasileira, mesmo com todas suas limitações.

 

Colaboradores

R. S. Moreira participou da redação e análise dos dados. L. S. Nico colaborou na revisão do texto. M. L. R. Sousa contribuiu na orientação do estudo e revisão do texto.

 

Referências

1. Colussi CF, Freitas SFT. Aspectos epidemiológicos da saúde bucal do idoso no Brasil. Cad Saúde Pública 2002; 18:1313-20.         

2. Moreira RS, Nico LS, Tomita NE, Ruiz T. A saúde bucal do idoso brasileiro: revisão sistemática sobre o quadro epidemiológico e acesso aos serviços de saúde bucal. Cad Saúde Pública 2005; 21:1665-75.         

3. Ministério da Saúde. Levantamento epidemiológico em saúde bucal: Brasil, zona urbana 1986. Brasília: Ministério da Saúde; 1988. (Série C: Estudos e Projetos, 4).         

4. Pinto VG. Saúde bucal coletiva. São Paulo: Editora Santos; 2000.         

5. Ministério da Saúde. Projeto SB Brasil 2003: condições de saúde bucal da população brasileira 2002-2003. Resultados principais. Brasília: Ministério da Saúde; 2004.         

6. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio 1998: análise dos resultados. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 1998.         

7. Sheiham A, Tsakos G. Oral health needs assessments. In: Pine C, Harris R, editors. Community oral health. Mew Malden: Quintessence Publishing Co. Limited; 2007. p. 59-79.         

8. Narvai PC, Antunes JLF. Saúde bucal: a autopercepção da mutilação e das incapacidades. In: Lebrão ML, Duarte YAO, organizadores. SABE - Saúde, Bem-estar e Envelhecimento. O projeto SABE no Município de São Paulo: uma abordagem inicial. Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde; 2003. p. 121-37.         

9. Reis SCGB, Marcelo VC. Saúde bucal na velhice: percepção dos idosos, Goiânia, 2005. Ciênc Saúde Coletiva 2006; 11:191-9.         

10. Unfer B, Braun K, Silva CP, Pereira-Filho LD. Autopercepção da perda de dentes em idosos. Interface Comun Saúde Educ 2006; 10:217-26.         

11. Wolf SMR. O significado psicológico da perda dos dentes em sujeitos adultos. Rev Assoc Paul Cir Dent 1998; 52:307-16.         

12. Silva DD, Sousa MLR, Wada RS. Autopercepção e condições de saúde bucal em uma população de idosos. Cad Saúde Pública 2005; 21:1251-9.         

13. Peres KG, Traebert ESA, Marcenes W. Diferenças entre autopercepção e critérios normativos na identificação das oclusopatias. Rev Saúde Pública 2002; 36:230-6.         

14. World Health Organization. Oral health surveys: basic methods. 4th Ed. Geneva: World Health Organization; 1997.         

15. Barros AJD, Hirakata VN. Alternatives for logistic regression in cross-sectional studies: an empirical comparison of models that directly estimate the prevalence ratio. BMC Med Res Methodol 2003; 3:21.         

16. Victora CG, Huttly SR, Fuchs SC, Olinto MT. The role of conceptual frameworks in epidemiological analysis: a hierarchical approach. Int J Epidemiol 1997; 26:224-7.         

17. Ettinger RL. Oral health needs of the elderly: an international review. Int Dent J 1993; 43:348-54.         

18. McGrath C, Bedi R. Dental services and perceived oral health: are patients better off going private? J Dent 2003; 31:217-21.         

19. MacEntee MI, Stolar E, Glick N. Influence of age and gender on oral health and related behaviour in an independent elderly population. Community Dent Oral Epidemiol 1993; 21:234-9.         

20. Tsakos G. Combining normative and psychosocial perceptions for assessing orthodontic treatment needs. J Dent Educ 2008; 72:876-85.         

21. Gherunpong S, Tsakos G, Sheiham A. A sociodental approach to assessing dental needs of children: concept and models. Int J Paediatr Dent 2006; 16:81-8.         

22. Queiroz RCS, Portela MC, Vasconcellos MTL. Pesquisa sobre as Condições de Saúde Bucal da População Brasileira (SB Brasil 2003): seus dados não produzem estimativas populacionais, mas há possibilidade de correção. Cad Saúde Pública 2009; 25:47-58.         

 

 

Correspondência:
R. S. Moreira
Centro de Pesquisa Aggeu Magalhães
Fundação Oswaldo Cruz
Av. Professor Moraes Rego s.n.
Recife, PE
50670-420, Brasil
moreirars@cpqam.fiocruz.br

Recebido em 18/Dez/2008
Versão final reapresentada em 15/Jun/2009
Aprovado em 11/Ago/2009

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br