Abordagem na rua às pessoas usuárias de substâncias psicoativas: um relato de experiência

Satila Evely Figuereido de Souza Cleiana Francisca Bezerra Mesquita Fernando Sérgio Pereira de Sousa Sobre os autores

RESUMO

Relatou-se a experiência da Equipe de Abordagem de Rua do Centro de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas. Estudo descritivo, relato de experiência, a partir de relatórios mensais e diário de campo. Evidencia-se a desafiadora inserção e convivência dessa equipe em uma comunidade em situação de rua que sobrevive com a exclusão social por ser usuária de drogas, assim, os profissionais disponibilizam um acompanhamento alicerçado na acolhida, escuta e vínculo. As práticas possibilitaram ações singulares ao trabalhar no contexto 'extramuros' com a subjetividade de cada usuário no meio social, proporcionando a conexão entre o cuidado de saúde integral e a realidade social.

PALAVRAS-CHAVE:
Saúde mental; Transtornos relacionados ao uso de substâncias; Promoção da saúde; Meio social

Introdução

As Políticas Públicas de Saúde, historicamente, permitiram a existência de uma lacuna assistencial em relação ao cuidado aos usuários de Substâncias Psicoativas (SPAs), uma vez que a questão das drogas era referenciada para instituições de justiça, segurança pública e associações religiosas. Assim, sendo o indivíduo considerado doente e incapaz de responder por suas escolhas, os modelos de tratamento tradicionais convergiam para o uso imperativo da abstinência da droga como a única opção de tratamento (PASSOS; SOUZA, 2011PASSOS E. E.; SOUZA T. P. Redução de Danos e Saúde Pública: construções alternativas à política global de guerra às drogas. Psicologia & Sociedade, Belo Horizonte, v. 23, n. 1, p. 154-162, 2011.).

Durante as últimas décadas, houve significativos avanços na Política Nacional sobre Drogas, modificações importantes na lei sobre drogas, novos dispositivos para promoção de acolhimento e cuidado, além de ações voltadas para redução de danos.

Nesse sentido, a Lei Federal nº 11.343/2006 institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad) que prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas, define crime e fez avançar um pouco mais, na medida em que afastou o uso de drogas do âmbito policial (supressão da pena de prisão para usuários de drogas), aproximando-o mais das questões da saúde (FONSÊCA, 2012FONSÊCA, C. J. B. D. Conhecendo a redução de danos enquanto uma proposta ética. Psicologia & Saberes, Maceió, v. 1, n. 1, 2012.).

É nessa linha de entendimento que a Política de Redução de Danos (PRD), principal pilar da atenção aos usuários de SPAs na perspectiva do modelo psicossocial defendido como política pública no Brasil, constitui-se como um conjunto de ações de saúde pública voltadas para a minimização das consequências adversas causadas pelo o uso abusivo relacionadas com o uso de drogas. Sabe-se que, embora a grande maioria dos usuários de álcool e outras drogas não tenha muitas complicações/problemas em suas vidas, devido ao seu uso, muitas pessoas desenvolvem problemas, em especial agravos à saúde, em consequência do uso de drogas, alguns muito graves. É de responsabilidade do poder público cuidar desses agravos, e a PRD amplia a possibilidade desse cuidar (UFSC, 2014UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA (UFSC). Álcool e outras drogas da coerção à coesão. Módulo Recursos e Estratégicos do Cuidado. Florianópolis: UFSC, 2014. Disponível em: <https://unasus.ufsc.br/alcooleoutrasdrogas/files/2015/03/M%C3%B3dulo-6.pdf>. Acesso em: 15 mar. 2017.
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).

A PRD entende saúde, em seu sentido mais amplo, como saúde integral do ser humano que, para esse fim, considera que a autonomia é indispensável. A pessoa que faz uso de SPAs, na perspectiva da PRD, é vista como ser ativo, capaz e útil para seus pares e para a sociedade, sendo o protagonista de sua própria história de vida, e não relegado a um papel passivo. É um cidadão de direitos, e não deve perder seus direitos por fazer uso de SPAs ilícitas (SANTOS; MALHEIROS, 2010SANTOS, A. M. S.; MALHEIRO, L. Redução de danos: uma estratégia construída para além dos muros institucionais. In: NERY FILHO, A; VALÉRIO, A. L. R. (Org.). Módulo para capacitação dos profissionais do projeto consultório de rua. Brasília, DF: SENAD ; Salvador: CETAD, 2010, p. 49-53.).

O desenvolvimento de ações de atenção integral ao uso de álcool e outras drogas deve ser articulado e planejado de forma a considerar toda a complexidade e amplitude envolvida no cenário histórico, político e social do ritual do uso de SPAs, compreendendo que o processo do sofrimento que acarreta o uso abusivo dessas substâncias não se restringe à esfera biológica ou orgânica, mas a uma vivência de desconforto na sociedade e à relação subjetiva do usuário com a SPAs trazendo consigo suas experiências pessoais na forma de se relacionarem consigo e com a vida em coletividade, bem como a forma de reagir ao ser moldado por essa expressão social que constrói e ressignifica o seu viver.

A redução de danos situa o uso de drogas como uma questão de saúde pública, visando à elaboração de estratégias de cuidado mais próximas da realidade, juntamente com as pessoas que fazem uso/abuso de psicoativos. Ao adotar uma postura pragmática e ampliada, a redução de danos traz noções de cuidado e autocuidado contextualizadas e compartilhadas, valorizando a autonomia da pessoa que faz uso de drogas (DANTAS; CABRAL; MORAES, 2014DANTAS, S.; CABRAL, B.; MORAES, M. Sentidos produzidos a partir de experiências de bad trip: drogas, prevenção e redução de danos. Saúde em Debate. Rio de Janeiro, v. 38, n. 102, p. 539-550, jul./set. 2014.).

Ao seguir essa lógica, a Equipe de Abordagem de Rua (EAR) foi criada, em outubro de 2013, com o intuito de realizar atividades de redução de danos em locais onde os usuários de SPAs se concentram. Essa equipe inicialmente foi formada por uma psicóloga, um redutor de danos, uma enfermeira e um técnico em enfermagem, posteriormente foi adicionada a essa equipe uma assistente social.

Diante da implantação das ações dessa EAR e em conformidade com a Política de Saúde Mental e a Política sobre Drogas, este estudo tem por objetivo relatar uma experiência vivenciada por uma EAR do Centro de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas 24h (Capsad tipo III), na abordagem na rua sob a lógica da PRD, evidenciando a atenção integral à pessoa que faz uso de SPAs.

Métodos

Trata-se de um estudo descritivo, tipo relato de experiência, a partir da experiência de uma equipe do Capsad III que trabalha com a abordagem na rua de usuários de substâncias psicoativas.

O relato de experiências é um tipo de fonte de informação dedicada à coleta de depoimentos e registro de situações e casos relevantes que ocorreram durante a implementação de um programa, projeto ou em uma dada situação problema (BIREME, 2011CENTRO LATINO-AMERICANO E DO CARIBE DE INFORMAÇÃO EM CIÊNCIAS DA SAÚDE (BIREME). Organização Pan-americana de Saúde (OPAS). Organização Mundial de Saúde (OMS). Guia BVS 2011. São Paulo: Bireme, 2011. Disponível em: <http://bvsmodelo.bvsalud.org/download/bvs/Guia_da_BVS_2011_pt.pdf>. Acesso em: 10 jan. 2016.
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).

O cenário escolhido foi o bairro Bosque, situado na cidade de Floriano, estado do Piauí. Esse espaço comunitário é considerado de baixa renda e com concentração de pessoas que vivem em vulnerabilidade social, localizado próximo às margens do rio Parnaíba, onde há uma grande concentração de usuários de substâncias psicoativas, baseado em dados empíricos e comercialização frequente de SPAs. Havendo também outras problemáticas, entre elas: situação de pobreza, com nenhum ou pouco acesso ao sistema formal de saúde e educação, que vivem em situação de risco pessoal e social. Desemprego, prostituição, venda de objetos furtados, rompimento de laços afetivos, familiares e sociais, violência de todas as formas são alguns dos motivos mais citados que conduzem essas pessoas à situação de rua, espaço público precarizado por elas utilizado como moradia ou provedor do sustento.

O relato tem como base os relatórios mensais e o diário de campo utilizado pela equipe multidisciplinar, que foram preenchidos pelos profissionais (enfermeiro, técnico de enfermagem, redutor de danos, assistente social e psicólogo), após a finalização da rotina da abordagem, que foram desenvolvidas nos primeiros seis meses de intervenção (outubro de 2013 a março de 2014).

As atividades da equipe foram iniciadas, e estabeleceram-se as sextas-feiras como os dias para realização das ações. A proposta é trabalhar a redução de riscos e danos no local onde o usuário faz uso frequente, desenvolvendo assim uma relação de cuidado e respeitando suas particularidades, bem como o contexto em que está inserido esse sujeito.

Foram realizadas reuniões pré-campo e pós-campo, com o intuito de discutir estratégias e planejar as ações a serem desenvolvidas. É válido destacar as principais barreiras encontradas no início do trabalho, entre elas, a dificuldade na formação de vínculo com os usuários de SPAs, em que se pôde perceber a questão do receio inicial por parte desses sujeitos, sendo questionadas as intencionalidades dos profissionais. No entanto, logo essa dificuldade foi superada, possibilitando a construção de vínculos com alguns usuários, que prontamente repassavam para os outros as reais intenções da equipe.

Resultados e discussão

O caminhar da experiência

Os primeiros passos, dados pela EAR, deram-se pela necessidade de trabalhar na perspectiva 'extramuros' para promoção de cuidados direcionados às pessoas que fazem uso de SPAs.

O modelo dessa abordagem se desenvolveu sob a ótica da PRD e foi espelhado, também, na atuação do Consultório de Rua. Devido ao fato de o município em questão não possuir população suficiente para adesão a este dispositivo, partiu-se desses pressupostos.

O surgimento dos Consultórios de Rua, com base em uma experiência idealizada e proposta pelo Dr. Antônio Nery Filho, na cidade de Salvador, estado da Bahia, Brasil, com ofertas de serviços na modalidade de atendimento extramuros, objetivando promover acessibilidade aos serviços de saúde, assistência integral aos usuários de rua e promoção de laços sociais com enfoque intersetorial. A avaliação dessa experiência, realizada entre 1999 e 2006, foi considerada exitosa, permitindo a inclusão do Consultório de Rua no Plano Emergencial de Ampliação de Acesso ao Tratamento e Prevenção em Álcool e outras Drogas (Pead), e em 2010, no Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack (BRASIL, 2010B______. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Consultório de Rua do SUS. Brasília, DF. 2010b. Disponível em: <http://www.defensoria.sp.gov.br/dpesp/Repositorio/31/Documentos/consultorio_rua_SUS.pdf>. Acesso em: 15 mar. 2017.
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).

O trabalho da EAR consistiu na prestação de cuidados, por meio da promoção de estratégias de PRD relacionada com os cuidados das pessoas que fazem uso de SPAs, propondo orientações e intervenções em relação à saúde e problemáticas sociais.

Essa abordagem na rua se justifica pelo fato que o consumo de álcool e outras drogas e as consequências sanitárias e sociais tanto para a comunidade como para os usuários chamam a atenção de diversos segmentos da sociedade, pois não raro relaciona-se com a dependência dessas substâncias e com a vulnerabilidade social (BRASIL, 2010B______. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Consultório de Rua do SUS. Brasília, DF. 2010b. Disponível em: <http://www.defensoria.sp.gov.br/dpesp/Repositorio/31/Documentos/consultorio_rua_SUS.pdf>. Acesso em: 15 mar. 2017.
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, 2011). Algumas pesquisas alegam que o (aumento do) consumo dessas substâncias é reflexo de uma sociedade que estimula o consumo imediato de objetos (incluindo as drogas psicoativas) como uma alternativa para aliviar os sofrimentos (TONDIN; BARROS NETA; PASSOS, 2013TONDIN, M. C.; BARROS NETA, M. A. P.; PASSOS, L. A. Consultório de rua: Intervenção ao uso de drogas com pessoas em situação de rua. Revista de Educação Pública, Cuiabá, v. 22, n. 49/2, p. 485-501, 2013.).

Sobre a PRD, Nery Filho (2009)NERY FILHO, A. et al. Toxicomanias Incidências clínicas e socioantropológicas. Entrevista realizada com o Prof. Antônio Nery Filho Salvador: EDUFBA; CETAD, 2009. colocam que é uma estratégia de trabalho que não se desenvolve em função da substância, mas das circunstâncias humanas de uso; a redução de danos tem de ser uma ferramenta permanente de proteção à vida.

Entre as promoções de cuidado, encontravam-se o acolhimento no território, escuta terapêutica, orientações acerca da saúde e também questões relacionadas com a cidadania, como orientação sobre emissão de documentos, além alguns encaminhamentos para rede de saúde e rede socioassistencial. Em campo, também foram realizadas orientações sobre as estratégias da PRD (gerais e específicas para cada substância), aferição de pressão arterial, distribuição de suco (para hidratação), preservativos (masculino e feminino) e materiais informativos.

Inicialmente, foi enfrentada resistência por parte do público em questão, pois a grande maioria achava que a equipe tinha alguma ligação com a polícia e/ou não entendiam o real significado do trabalho. Como exemplo, nas intervenções no campo, era ofertado suco de fruta, entretanto, alguns desses sujeitos acreditavam que a equipe colocava algum fármaco no suco, e não tomavam; posteriormente, esse entrave foi superado em decorrência da construção de vínculos.

O método da PRD enfrentou, em princípio, grande resistência de muitos setores da sociedade, que tratavam a distribuição de seringas entre os usuários de drogas como uma forma de incentivar o consumo de substâncias psicoativas. Esse conceito, portanto, foi sendo desmistificado, visto que a distribuição de seringas diminuía a disseminação do Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV) entre os usuários além de não aumentar o consumo de drogas, oferecendo vantagens em relação ao custo-benefício (ANDRADE, 2011ANDRADE, T. M. Reflexões sobre políticas de drogas no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 12, p. 4665-4674, 2011.). Além disso, ampliou-se o entendimento que a redução de danos é uma política de saúde que se propõe a reduzir os prejuízos de natureza biológica, social e econômica do uso de drogas, pautada no respeito ao indivíduo e no seu direito de consumir drogas (NIEL; SILVEIRA, 2008NIEL, M.; SILVEIRA, D. X. Drogas e Redução de Danos: uma cartilha para os profissionais da saúde. São Paulo: PROAD; UNIFESP; Brasília, DF: MS, 2008. Disponível em: <http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/direitos_humanos/Cartilha%20para%20profissionais%20da%20saude.pdf>. Acesso em: 15 mar. 2017.
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).

Nota-se que é muito importante aos profissionais que lidam diretamente com esses sujeitos ultrapassarem as barreiras do estigma do usuário de drogas psicoativas em situação de rua, pois, além desse estereótipo, há um sujeito de direitos que deve ser respeitado (MÜLLER, 2013MÜLLER, G. S. Atenção e cuidado aos habitantes da rua: perspectivas enunciadas pelo consultório na rua. 2013. 50 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Saúde Coletiva) - Escola de Enfermagem, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2013.). Ampliar o olhar e a escuta possibilita entender a complexidade da vida dos usuários e a maneira de os trabalhadores compreenderem os sofrimentos da vida, implica, também, colocar o usuário em outro lugar, em outra posição: a de agente ativo na produção de sua saúde e no encontro com os trabalhadores de saúde (MERHY; FEUERWERKER, 2009MERHY, E. E.; FEUERWERKER, L. C. M. Novo olhar sobre as tecnologias de saúde: uma necessidade contemporânea. In: MANDARINO, A. C. S.; GOMBERG, E. (Org.). Leituras de Novas Tecnologias e Saúde. São Cristóvão: Editora UFS, 2009. p. 29-56.).

Com o tempo, foi crescente o número de pessoas que participaram das atividades. Ao longo dos meses, foi realizado um processo de esclarecimento sobre o trabalho que estava acontecendo; as pessoas abordadas, inicialmente, foram divulgando e, aos poucos, a confiabilidade foi adquirida. É fato que não se adentrava nos locais onde não era permitido. Somente após algumas idas a campo foi que o vínculo entre a equipe e essas pessoas estabeleceu-se, viabilizando, assim, a melhoria na atuação.

A partir dos relatórios e diário de campo, percebe-se que os profissionais refletem sobre as suas práticas e destacam que o propósito fundamental da ação exercida no território por eles é acolher e oportunizar maneiras de proteger as vidas dos usuários, possibilitando a construção de vínculos sociais e afetivos, intervindo nas situações vivenciadas por eles, sob a lógica do respeito a sua subjetividade.

Segundo Bueno e Merhy (2002), o acolhimento na saúde deve construir uma nova ética, da diversidade e da tolerância aos diferentes, da inclusão social com escuta clínica solidária, comprometendo-se com a construção da cidadania.

Além disso, acolher significa o compromisso de reconhecimento do outro em sua individualidade, como um ser que tem suas diferenças, alegrias, frustrações, um modo de viver, sentir na vida. Inclusive, promove uma escuta de qualidade. Também nessa perspectiva, o vínculo, quando estabelecido, permite uma parceria alicerçada na sinceridade e responsabilidade e permite que haja um atendimento que abranja as necessidades dos usuários e de suas famílias, assumindo um caráter de equipe, a qual estará mais sensível à identificação de riscos ou vulnerabilidades, contribuindo para a construção de intervenções terapêuticas adequadas às necessidades percebidas (BRASIL, 2010ABRASIL. Ministério da Saúde. Acolhimento nas práticas de produção de saúde. 2 ed. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2010a.).

Ao fomentar a discussão, percebe-se que a dificuldade inicial da equipe em inserir-se no espaço coletivo dessas pessoas em situação de rua estava mergulhada em sentimentos de medo e angustia por parte dos usuários de SPAs, pois no imaginário emergia: o medo que eles tinham perante a equipe por acharem que iriam ser levados à força para o internamento ou para a polícia.

Nessa modalidade de oferta de atenção e cuidados em saúde, é comum deparar-se com os medos (compreendidos como estado afetivo suscitado pela consciência do perigo real ou suposto) e com as expectativas (compreendidas como crenças em mudanças da realidade imediata) das pessoas em situação de rua, haja vista as condições marginalizadas e excludentes às quais estão expostas (SANTOS, 2003SANTOS, L. O. O medo contemporâneo: abordando suas diferentes dimensões. Psicol. cienc. prof, Brasília, DF, v. 23, n. 2, p. 48-55, 2003.; NEIVA-SILVA, 2003NEIVA-SILVA, L. Expectativas futuras de adolescentes em situação de rua: um estudo autofotográfico. 2003. 176 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia do Desenvolvimento) - Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2003.).

Evidencia-se que a condição de vulnerabilidade e risco social potencialmente expõe as pessoas em situação de rua a perigos que despertam medos relativos ao espaço da rua como, por exemplo, o medo de ser violentado, capturado à força pela polícia, o que leva a um estado constante de alerta e tensão.

Todavia, é importante compreender como tais medos e expectativas são significados e vivenciados por essa população específica, respeitando, portanto, as particularidades dessa condição e agrupamento. Assim, conforme Santos (2003)SANTOS, L. O. O medo contemporâneo: abordando suas diferentes dimensões. Psicol. cienc. prof, Brasília, DF, v. 23, n. 2, p. 48-55, 2003., o medo pode ser compreendido como uma reação (retração, negação, precaução ou inibição), configurando um conjunto de emoções repleto de diferentes significados considerando o contexto de vulnerabilidade dos indivíduos.

Historicamente, a questão do uso abusivo e/ou dependência de álcool e outras drogas tem sido abordada por uma ótica predominantemente policial, psiquiátrica ou médica (CARDOSO , 2014CARDOSO, M. P. et al. A percepção dos usuários sobre a abordagem de álcool e outras drogas na atenção primária à saúde. Aletheia, Canoas, n. 45, p. 72-86, dez. 2014.); em que a repressão, o controle e a 'guerra contra as drogas e contra seus usuários' era o pilar das ações e se materializava, em sua maioria, na rotulação dos usuários de SPAs como marginais e, assim, na prisão ou submetidos a uma dosagem exagerada de medicação como contenção e a internação involuntária e compulsiva como forma de tratamento e de cuidado em saúde.

O uso indiscriminado de substâncias psicoativas é continuamente associado à criminalidade e às práticas antissociais relacionadas com o comportamento irresponsável do usuário, que acaba por cometer atos de delinquência e envolver-se com problemas de ordem judiciária. Isso acarreta perdas individuais e sociais, o que leva o dependente à exclusão social (SILVA 2010SILVA, L. H. P. et al. Perfil dos dependentes químicos atendidos em uma unidade de reabilitação de um hospital psiquiátrico. Esc. Anna Nery, Rio de Janeiro, v. 14, n. 3, p. 585-590, 2010.).

Aos poucos, foi possível o conhecimento do território e das pessoas que circulavam por ele. Inicialmente, o acesso para a EAR era apenas o começo da rua, com o passar do tempo, a equipe passa a ser convidada para adentrar no território, e foi concedida a permissão de frequentar a parte ribeirinha (onde o uso abusivo da SPAs era mais frequente).

A rejeição inicial foi substituída paulatinamente pela aceitação; o receio e a desconfiança, pela credibilidade. Assim, a compreensão foi ampliada para o cuidado e atenção dedicada a esses usuários, que começaram a manifestar que passavam a semana inteira esperando pela equipe para conversar e fazer perguntas e que o trabalho desenvolvido era muito bonito, pois ajudavam aqueles que eram rejeitados pela família e pela sociedade.

Nesse sentido, vale ressaltar o receio da solidão diante do temor da ruptura total dos laços familiares e sociais, sendo esse um sofrimento que denota abandono e rejeição. Dessa forma, em tempos de violência e competição generalizada que apresentam um quadro social em constante mudança, um mundo de insegurança e de medo constante é gerado, sendo o consumo de drogas a uma provável resposta ao desamparo dos sujeitos (SANTOS, 2003SANTOS, L. O. O medo contemporâneo: abordando suas diferentes dimensões. Psicol. cienc. prof, Brasília, DF, v. 23, n. 2, p. 48-55, 2003.; TONDIN; BARROS NETA; PASSOS, 2013TONDIN, M. C.; BARROS NETA, M. A. P.; PASSOS, L. A. Consultório de rua: Intervenção ao uso de drogas com pessoas em situação de rua. Revista de Educação Pública, Cuiabá, v. 22, n. 49/2, p. 485-501, 2013.).

Na sequência do acompanhamento, em um determinado encontro, a equipe realizou uma dinâmica em grupo com alguns desses usuários utilizando um questionamento (quais as expectativas, sonhos e desejos na vida de vocês?) como fio condutor dos discursos. Diante dessa questão, com relação às expectativas, a mais recorrente foi a de que um dia eles pudessem sair daquela vida, isto é, que deixassem de ser usuários de drogas psicoativas em situação de rua, com grande esperança depositada na família, mais precisamente na reconquista do parceiro amoroso e na retomada da confiança de pais e filhos, além de retomarem as atividades (laborais, de lazer, sociais etc.) que exerciam antes do consumo das drogas e da situação de rua. Ainda houve relato da esperança de alertar a população em geral de que a vida na rua consumindo drogas psicoativas não é digna e tampouco fácil, além de apelarem por mais respeito e melhor tratamento aos usuários de drogas psicoativas em situação de rua.

Assim, a apropriação da rua como expressão de aspectos subjetivos de cada indivíduo é algo compreensível, pois é nesse espaço que muitos irão construir seus referenciais de identidade, de sobrevivência e de relação com o outro (NERY FILHO; VALÉRIO, 2010NERY FILHO, A.; VALÉRIO, A. L. R. Módulo para capacitação dos profissionais do projeto consultório de rua. Salvador: CETAD, 2010.).

Ter sonhos, vontades e desejos é algo extremamente presente na vida dos usuários acompanhados. Planos são elaborados, e perspectivas são traçadas sobre os mais diversos temas, principalmente os relacionados com a própria existência. Para Neiva-Silva (2003)NEIVA-SILVA, L. Expectativas futuras de adolescentes em situação de rua: um estudo autofotográfico. 2003. 176 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia do Desenvolvimento) - Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2003., no caso das pessoas em situação de rua, muitas vezes, por não encontrarem em seu cotidiano oportunidades para estruturar e desenvolver um novo projeto de vida, o papel exercido pelas expectativas e crenças em mudanças da realidade imediata é fundamental.

Dentre as queixas mais frequentes, ouvidas pela equipe, destacam-se: a dificuldade em ter acesso aos serviços de saúde e assistência social, a violência policial e o estigma social. Assim, a escuta foi a principal ferramenta do trabalho, visto que o ato de escutar em si produz uma significativa proposta para promoção do cuidado. Nessa perspectiva, a escuta foi basilar para compreensão das trajetórias e dos repertórios que compuseram as vidas desses sujeitos, não podendo ser desprezados os contextos sociais, as situações socioeconômicas que posicionam esses sujeitos e os mais diversos problemas sociais.

Houve a possibilidade de ouvir queixas, sonhos, anseios e desejos, possibilitando as trocas de experiências enriquecedoras do ponto de vista profissional e também humano. Logo, a PRD permite uma mobilidade, servindo de referência e ponte entre o sujeito e o laço social do qual parece apartado. Criam-se as condições de trabalho favoráveis ao acolhimento desses sujeitos, construindo com eles esquemas de proteção e de autocuidado, fundamentais para o exercício da cidadania dos usuários de drogas (CONTE , 2004CONTE, M. et al. Redução de danos e saúde mental na perspectiva da atenção básica. Boletim da Saúde, Porto Alegre, v. 18, n. 1, p. 59-76, 2004.).

Conclusões

A realidade encontrada em campo estava imersa em problemáticas sociais e de saúde que circundavam a vida desses sujeitos, além de questões relacionadas com os preconceitos e estigmas, enraizados na sociedade, que, por vezes, posicionam esses sujeitos em uma situação considerada 'marginalizada'. Os desafios colocados aqui condicionam a necessidade de um 'novo olhar', que envolva as pessoas que fazem uso de substâncias psicoativas, em uma lógica de garantia de direitos e liberdade de escolha.

As diversas situações que apareceram no campo foram bem peculiares e muitas vezes inerentes aos sujeitos, ocasionando demandas imprevisíveis, reforçando, assim, a necessidade de que os profissionais compreendam a importância da subjetividade, do trabalho articulado com as redes de cuidado, alargando o olhar sobre as especificidades que o sujeito traz consigo.

Contudo, observou-se, com essa experiência, que se dispor a promover cuidado a esse público, no seio da comunidade, faz-se extremamente necessário, pois muitos usuários de SPAs não procuram ou não aceitam (de certa forma) um acompanhamento pelos dispositivos de saúde mental. Com isso, traz à tona a possibilidade de rever as condicionalidades para implantação de alguns dispositivos nos municípios, considerando a valiosa experiência com a abordagem na rua realizada por profissionais do Capsad III de Floriano (PI).

É válido salientar que a abordagem na rua ainda é incipiente e tem sua dinâmica de trabalho planejada e pautada de acordo com as legislações e com as políticas públicas, entre elas, à política de drogas.

Por fim, pode-se afirmar que as práticas produzidas pela a equipe de abordagem na rua permitiram ações dinâmicas que proporcionaram o entendimento sobre o desafio de trabalhar no contexto extramuros, além da compreensão do universo particular (em que os sujeitos estão inseridos), com a finalidade de proporcionar cuidados de saúde que sejam integrais, éticos e humanizados.

  • Suporte financeiro: não houve

Referências

  • ANDRADE, T. M. Reflexões sobre políticas de drogas no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 12, p. 4665-4674, 2011.
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Acolhimento nas práticas de produção de saúde 2 ed. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2010a.
  • ______. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Consultório de Rua do SUS. Brasília, DF. 2010b. Disponível em: <http://www.defensoria.sp.gov.br/dpesp/Repositorio/31/Documentos/consultorio_rua_SUS.pdf>. Acesso em: 15 mar. 2017.
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  • ______. Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas. Prevenção do uso de drogas: capacitação para conselheiros e lideranças comunitárias. 5. ed. Brasília, DF: SENAD, 2013.
  • BUENO, W. S.; MERHY, E. E. Os equívocos da NOB 96: uma proposta em sintonia com os projetos neoliberalizantes. 1997. Disponível em: <http://www.uff.br/saudecoletiva/professores/merhy/artigos-14.pdf>. Acesso em: 15 mar. 2017.
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  • CARDOSO, M. P. et al A percepção dos usuários sobre a abordagem de álcool e outras drogas na atenção primária à saúde. Aletheia, Canoas, n. 45, p. 72-86, dez. 2014.
  • CENTRO LATINO-AMERICANO E DO CARIBE DE INFORMAÇÃO EM CIÊNCIAS DA SAÚDE (BIREME). Organização Pan-americana de Saúde (OPAS). Organização Mundial de Saúde (OMS). Guia BVS 2011 São Paulo: Bireme, 2011. Disponível em: <http://bvsmodelo.bvsalud.org/download/bvs/Guia_da_BVS_2011_pt.pdf>. Acesso em: 10 jan. 2016.
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  • CONTE, M. et al Redução de danos e saúde mental na perspectiva da atenção básica. Boletim da Saúde, Porto Alegre, v. 18, n. 1, p. 59-76, 2004.
  • DANTAS, S.; CABRAL, B.; MORAES, M. Sentidos produzidos a partir de experiências de bad trip: drogas, prevenção e redução de danos. Saúde em Debate Rio de Janeiro, v. 38, n. 102, p. 539-550, jul./set. 2014.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2017

Histórico

  • Recebido
    Set 2016
  • Aceito
    Mar 2017
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