OPINIÃO OPINION

 

 

Moisés Goldbaum


Epidemiologia e serviços de saúde

Epidemiology and health services

Departamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo. Av. Dr. Arnaldo 455, 2o andar 01246-903, São Paulo, SP. mgoldbau@usp.br   Abstract The growing application of epidemiological investigation to the health and medical field has consolidated its various uses in health care services. Brazilian legislation now provides back-up for four different types of applications, although their implementation is still precarious: analysis of the health situation, epidemiological surveillance, etiological studies, and evaluation of health care services, programs, and technologies. Proper deployment of such epidemiological applications on both the political/institutional and operational levels will provide relevant subsidies for health services in conducting their activities.
Key words Epidemiology; Health Services; Epidemiologic Surveillance

Resumo A aplicação crescente da metodologia epidemiológica no campo médico-sanitário consolida os seus usos em serviços de saúde. Embora de implementação ainda precária, a legitimação de quatro de seus usos, na análise de situação de saúde, na vigilância epidemiológica, nos estudos etiológicos e na avaliação de serviços, programas e tecnologias consagra-se na Lei Orgânica de Saúde brasileira. A sua atuação no eixo político-institucional e no plano operacional, se devidamente implementada, permitirá fornecer importantes subsídios para os serviços na condução de suas atividades.
Palavras-chave Epidemiologia; Serviços de Saúde; Vigilância Epidemiológica

 

 

O método epidemiológico, como instrumento para produção de conhecimentos do processo saúde-doença, vem alcançando espaços e aplicação crescentes no campo médico-sanitário. Ao lado de se ocupar, como já o fazia tradicionalmente, das doenças infecciosas e parasitárias, caracterizando-se como elemento central para orientar a Saúde Pública, incorporou ao seu objeto de estudo todo o conjunto de afecções que compreende a nosologia humana. No bojo da "transição epidemiológica", no qual as doenças crônicas, entre outras, passaram a compor, também, o quadro de prioridades sanitárias, a Epidemiologia teve (e está tendo) a oportunidade de demonstrar a notável capacidade de buscar explicações sobre a ocorrência e distribuição das doenças em populações humanas. Isto se visualiza, de forma imediata e direta, através da sua incorporação nos programas clínicos de pesquisa, de modo geral, da sua expansão em áreas disciplinares outras, como a genética, ou da sua articulação no conjunto das modernas áreas científicas, como a biologia molecular. Assumindo diferentes denominações e adjetivações, o método epidemiológico consolidou-se totalmente na sua área específica de atuação - Saúde Coletiva - e legitimou-se, igualmente, como instrumento de investigação para a produção de conhecimentos sobre as questões de natureza individual - Clínica.

Este século assistiu ao seu rápido desenvolvimento, que se acelerou, ainda mais, nos últimos tempos, como conseqüência dos impressionantes avanços experimentados pelas distintas áreas científicas e tecnológicas que a compõem, em especial aqueles referentes à área da informática. Dessa forma assentaram-se modernas bases para estabelecer associações entre fatores lesivos e a ocorrência de doenças, bem como a descrição de elementos protetores à saúde (Rothman, 1986). O caráter nocivo do tabaco na promoção de doenças, os fatores de risco para explicar o aumento de doenças cardiovasculares e cânceres e, mais recentemente, a introdução da noção de estilos de vida como fatores associados a maior ou menor presença de doenças são alguns exemplos das comprovações que a Epidemiologia permite evidenciar. Do mesmo modo, quando se fala de efeitos protetores, essa disciplina trouxe, entre outras evidências, o papel do flúor na prevenção da cárie dental, assim como permitiu estabelecer os vínculos entre as vacinas e suas eficácia e efetividade.

Uma definição singela da Epidemiologia (entre as inúmeras existentes) apresentada por Rouquayrol (1993) - "ciência que estuda o processo saúde-doença em coletividades humanas, analisando a distribuição e os fatores determinantes das enfermidades, danos à saúde e eventos associados à saúde coletiva, propondo medidas específicas de prevenção, controle, ou erradicação de doenças, e fornecendo indicadores que sirvam de suporte ao planejamento, administração e avaliação das ações de saúde" - permite, de um lado, identificar o seu objeto específico, que é a busca da explicação da distribuição e ocorrência das doenças em grupos populacionais, e, de outro lado, compreendê-la como importante instrumento para a administração e planejamento das ações de saúde.

Dessa última compreensão surge um dos campos privilegiados de sua aplicação mais recentemente discutida e que se refere aos serviços de saúde. No Brasil, são reafirmadas no processo de construção e consolidação do seu Sistema Único de Saúde - SUS, reforçando a sua aplicação nos serviços de saúde. Isso se comprova quando, da perspectiva político-jurídica, a Lei Orgânica de Saúde - Lei no 8080 -, publicada no Diário Oficial da União de 19 de setembro de 1970, assinala em vários de seus capítulos e artigos a "utilização da epidemiologia para o estabelecimento de prioridades, a alocação de recursos e a orientação programática". Desse modo, pode-se constatar a sua importância na implementação das competências e atribuições do Sistema Único de Saúde.

O processo de descentralização, uma das diretrizes do SUS, introduziu o compartilhamento, ainda que parcialmente, de responsabilidades administrativas, obrigando as diferentes esferas de atuação a organizarem-se a fim de incorporar de modo ativo a Epidemiologia para responder adequadamente às novas formas de condução das ações de saúde.

Acompanhando diferentes autores e publicações pode-se reconhecer, num processo de sistematização (Castellanos, 1987), quatro grandes usos da Epidemiologia na perspectiva dos serviços de saúde, que é o núcleo temático desse número da revista. São eles: nos estudos de situação de saúde, na vigilância epidemiológica, nos estudos "causais" e na avaliação de serviços, programas e tecnologias. À uma inspeção superficial, pode-se, de imediato, depreender que, não obstante o desenvolvimento da Epidemiologia - assentado, como já o dissemos, entre outras, nas modernas e práticas técnicas de análise originárias, especialmente, dos avanços computacionais e da informática, existe um enorme descompasso na sua incorporação pelos serviços de saúde.

Algumas razões podem ser apontadas para esse descompasso e a sua identificação revela a necessidade reiterada de buscar o seu melhor entendimento, para mais rapidamente estreitar o que separa a produção de conhecimentos da sua aplicação na prestação de serviços à comunidade. De uma perspectiva, há que se reconhecer que a transferência de conhecimentos não obedece a uma lógica linear somente, ou seja, a incorporação da produção científica e tecnológica, como toda produção social, não se efetiva a partir de relações diretas e unívocas; atende a mediações de diferentes ordens, entre as quais, política, social e econômica. Essa afirmação reitera a necessidade de aprofundarmos o debate sobre Políticas de Ciência e Tecnologia e Políticas de Saúde e suas relações, em que essas mediações podem ser mais bem entendidas e esclarecidas.

De outra perspectiva, tomando o interior do setor Saúde e em especial a Epidemiologia, verifica-se que, embora registrado nos discursos oficiais, a sua utilização não tem sido considerada em toda a sua plenitude. Isto se explica, em parte, pela sua não-consideração no momento da definição das políticas e ações de saúde (embora reconhecendo que se identifica nos dias de hoje uma inflexão nesse processo) e, por outra parte, pela ausência de profissionais de saúde devidamente preparados, em qualidade e quantidade suficientes, para desenvolvê-la e utilizá-la de modo adequado. Isto se reforça, na medida que as funções desse tipo de profissional são pouco valorizadas, a julgar pelos seus níveis salariais. Não se pode deixar de mencionar que a própria infra-estrutura dos serviços de saúde, quando não está sucateada, é de tal forma obsoleta que inviabiliza tentativas de modernização.

Retomando cada um dos quatro grandes usos de Epidemiologia nos serviços de saúde, verifica-se na esfera dos estudos de situação de saúde que, salvo alguns exemplos pontuais, eles vêm se restringindo à realização de diagnósticos de saúde, de natureza descritiva e com desenvolvimento analítico incipiente, tornando-os em instrumentos de análises com pequeno poder discriminante. Ressalte-se, entretanto, que mais recentemente, no Brasil, novas perspectivas vêm se abrindo a partir da informatização e da disponibilidade bastante atualizadas de dados de mortalidade e de internações hospitalares oferecidas por órgãos da administração federal e de alguns estados e municípios. Da mesma forma, vêm se empregando alguns esforços para compreender esses diagnósticos de saúde à luz das condições de vida, pretendendo, dessa forma, atribuir a historicidade e contextualização necessárias para orientar, concretamente, a definição das estratégias e prioridades em saúde.

Quanto à vigilância epidemiológica, que tem se constituído em uma das atividades centrais das estruturas de saúde coletiva, identifica-se uma carência de maior grau de desenvolvimento. Freqüentemente os sistemas de vigilância epidemiológica utilizam-se da metodologia epidemiológica para promover, apenas, uma melhor organização e/ou apresentação dos dados coletados sobre doenças submetidas aos esquemas de notificação. De forma esporádica, esses dados são submetidos a procedimentos analíticos, não se aproveitando todo o seu potencial explicativo da ocorrência das doenças. Isso explica, em parte, seu papel predominantemente passivo, que se espelha na retardada tomada de ações para o controle de doenças e agravos.

Já os estudos de investigação causal, mais apropriados para explicar a etiologia das doenças, vêm sendo bastante aplicados em estudos de natureza clínica. Poder-se-iam, neste terreno, incluir os progressos alcançados na utilização da metodologia em ensaios clínicos, o que tem emprestado maior cientificidade aos estudos dessa natureza. Entretanto, fora dos meios universitários, por razões já apontadas, o seu emprego tem sido muito escasso e, certamente, em virtude das facilidades que se apresentam hoje para realizar esses tipos de estudo, deveriam merecer maior atenção e difusão, especialmente na apreciação de situações peculiares e bem delimitadas.

O último dos núcleos da utilização da Epidemiologia, na avaliação de serviços, programas e tecnologias, vem apresentando, também, notável desenvolvimento, especialmente no que se refere a investigações sobre a qualidade da atenção médica. Nesse sentido, assiste-se à organização de um novo campo interdisciplinar, promovido pela interface da Epidemiologia, Clínica, Planejamento e Administração, definido na avaliação de tecnologias. A despeito dos diferentes movimentos nesse sentido e de publicações oferecidas na literatura, o grau de sua utilização nos serviços de saúde é ainda bastante incipiente no Brasil e os dados coletados para essa finalidade têm servido, em geral, para trabalhar com aspectos financeiros e contábeis da prestação de serviços, operando mais como instrumento administrativo e menos como elemento de avaliação.

Todas essas questões antes abordadas merecem ser apreciadas e debatidas no interior do processo de implantação do Sistema Único de Saúde, visando, de um lado, ao seu mais adequado fortalecimento e, de outro, rever como a metodologia epidemiológica pode e deve ser trabalhada para atender a todo o seu potencial de uso.

Nesse sentido, como já havia sido proposto em outro trabalho, identificam-se nos serviços de saúde, especialmente para os seus gestores, dois grandes eixos de atuação, que, se devidamente implementados, permitirão explorar da metodologia epidemiológica o seu papel de oferta de subsídios para aqueles serviços na condução de suas atividades.

O primeiro deles refere-se ao eixo político-institucional, no qual as análises de situação de saúde, enriquecidas por sua interpretação à luz das condições de vida das populações, permitem estabelecer alguns dos elementos, pelo menos na perspectiva do setor Saúde, para o estabelecimento das prioridades e estratégias setoriais nos diferentes níveis de atuação. Vale-se aqui das descrições e análises dos registros existentes nos grandes bancos de dados, compreendendo os dados de morbidade e de mortalidade, aliados àqueles de ordem extra-setorial de interesse, como são os demográficos, econômicos e sociais. A análise desses dados assentados nos métodos observacionais da Epidemiologia, mais especificamente nas suas técnicas descritivas, exigem, para sua efetivação, graus de complexidade e sofisticação de natureza tal que os tornem perfeitamente operacionais para os profissionais de saúde. Entende-se que, para tanto, devem ser, obviamente, atendidas as necessidades de adequação, capacitação e atualização contínua de seus recursos humanos, bem como garantidas as condições de trabalho, a partir de uma infra-estrutura adequada.

O segundo eixo, compreendendo o plano operacional, atende aquele da gerência de serviços. Esta se beneficia de análises epidemiológicas que permitam a avaliação do impacto de sua atuação, nos diferentes níveis que compõem o sistema. Assim é a avaliação de serviços e de programas, destacando-se a sua utilização na vigilância epidemiológica, ou na análise da incorporação de tecnologias de caráter diagnóstico e/ou terapêutico. Nesse ponto, podem ser contempladas desde as análises menos sofisticadas, como as de natureza estritamente operacional, até aquelas mais complexas, que exigem o emprego das técnicas epidemiológico-estatísticas mais modernas. A avaliação de tecnologias, compondo, do ponto de vista de emprego de técnicas, um paralelo com estudos de natureza causal, exige o emprego do arsenal epidemiológico, às vezes, de difícil absorção pelos gestores da saúde. Nesse caso, impõe-se, respeitadas as diferentes vocações institucionais, o estabelecimento de mecanismos ágeis e dinâmicos de interação entre serviços, universidades e institutos de pesquisa que, além de promover as respostas exigidas, contribui para a superação do falso dilema que é a dicotomia entre serviços e universidade/academias. Evidentemente, se essa articulação é impositiva para tratar dessa última questão, ela não é dispensável, igualmente, para o tratamento do primeiro dos planos. O que aqui se pretende resgatar é que a plena utilização da Epidemiologia nos serviços de saúde só frutificará com a desejável interação entre os estudos de cunho mais acadêmico e aqueles demandados e/ou desenvolvidos no cotidiano dos serviços de saúde.

 

 

Referências

 

CASTELLANOS, P. L., 1987. Epidemiologia y organización de los servicios. In: La Formación en Epidemiologia para el Desarrollo de los Servicios de Salud. Publ. OPS, Serie Desarrollo de Recursos Humanos, no 88.         

ROTHMAN, K. S., 1986. Modern Epidemioly. Boston: Little Brown & Co.         

ROUQUAYROL, M. Z., 1993. Epidemiologia e Saúde. 4a ed., Rio de Janeiro: MEDSI.         

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br