NOTA RESEARCH NOTE

Vânia Aparecida da Costa 1
Maria Júlia Acedo 1
Newton Carlos Polimeno 1
Carmen Sílvia Bertuzzo 2


Contribuição para a estimativa da freqüência populacional da Persistência Hereditária da Hemoglobina Fetal no Brasil

 

Estimation of the frequency of Hereditary Persistence of Fetal Hemoglobin in Brazil

1 Laboratório Universitário de Análises Clínicas, Hospital Universitário São Francisco, Universidade São Francisco. Av. São Francisco de Assis 218, Bragança Paulista, SP 12916-900, Brasil.
vaniacosta@usf.com.br
2 Departamento de Genética Médica, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas. Rua Tessalia Vieira de Camargo 126, Campinas, SP 13081-970, Brasil.
vaniacosta@usf.com.br

 

Abstract Hereditary Persistence of Fetal Hemoglobin (HPFH) is a benign clinical condition characterized by the synthesis of HbF and which continues without hematological alterations during adult life. Since the function of HPFH in many hemoglobinopathies is that of a severity modulator, it is important to learn its frequency. To obtain this information, a study was conducted on 1,846 blood donors from Bragança Paulista, São Paulo State. Hemoglobin was qualitatively analyzed by hemolytic electrophoresis on agarose gel. Qualitative analysis of gG and gA chains was performed by electrophoresis in polyacrylamide-triton-urea. Two individuals were found to have a high fetal index (0.1%). The percentage of FHb in one individual was 17% and in the other 18%. The gamma G chain was missing in both electrophoretic chains. Cases screened according to laboratory characteristics were of the pancellular hereditary persistence type due to mutation. The frequency in this sample was thus 1/1,000 individuals.
Key words Fetal Hemoglobin; Hemoglobinopathies; Abnormal Hemoglobines; Genetics

 

Resumo Persistência Hereditária de Hemoglobina Fetal (PHHF) é uma condição clinicamente benigna, caracterizada pela síntese contínua da HbF na vida adulta, sem alterações hematológicas. A PHHF funciona como um modulador de gravidade em várias hemoglobinopatias, razão pela qual torna-se importante conhecer a sua freqüência em nosso meio. Desse modo, por intermédio da análise de 1.846 doadores voluntários de sangue da região de Bragança Paulista, São Paulo, procuramos contribuir para a estimativa dessa freqüência populacional. Realizou-se uma análise qualitativa das hemoglobinas pela eletroforese em gel de agarose. A análise qualitativa das cadeias gG e gA foi realizada pela eletroforese em gel de poliacrilamida-Triton-Uréia. Foram encontrados dois indivíduos com alto índice de hemoglobina fetal (0,1%). Em um dos indivíduos encontramos um percentual de HbF de 17% e no outro de 18%. Nos dois casos a eletroforese de cadeias mostrou uma ausência da cadeia gG. Os casos triados, pelas suas características laboratoriais, correspondem à forma pancelular de PHHF, por mutação de ponto. Tal resultado nos permitiu estimar a incidência da PHHF em 1/1.000 indivíduos na população estudada.
Palavras-chave Hemoglobina Fetal; Hemoglobinopatias; Hemoglobinas Anormais; Genética

 

 

Introdução

 

As hemoglobinas humanas compreendem um grupo de moléculas com estrutura e propriedades funcionais similares, cuja principal função é o transporte de oxigênio para os tecidos.

Durante a ontogenia, diferentes genes de globinas são sucessivamente expressos, para que a hemoglobina predominante esteja adaptada às diferentes fases do desenvolvimento. Ao nascimento, por exemplo, poucas cadeias bsão expressas, e a cadeia b-símile predominante é a cadeia g, que se associa com a cadeia a para formar a hemoglobina fetal (a2g2). Há uma substituição gradual da hemoglobina fetal pelas hemoglobinas adultas (A2 e A), de tal modo que, após o sexto mês de vida do indivíduo, essa substituição estará completa.

A cadeia humana g difere da b em 39 dos 146 resíduos aminoácidos. Ao contrário de outras subunidades de globina humana, a cadeia g tem uma heterogeneidade estrutural. Em recém-nascidos, cerca de 2/3 da cadeia g apresentam glicina na posição 136, enquanto no restante dessas cadeias o aminoácido dessa posição é a alanina. A percentagem da Hemoglobina F está aumentada na vida adulta em várias anomalias hereditárias, incluindo a talassemia b, a persistência hereditária de hemoglobina fetal e a anemia falciforme. Em adição, um aumento do nível de hemoglobina fetal pode ser visto em uma variedade de anomalias hematológicas adquiridas, incluindo anemia megaloblástica, anemia aplástica e leucemias, particularmente leucemia mielóide crônica em crianças (Newman et al., 1973). Em homozigotos da talassemia b e na anemia falciforme, o aumento percentual da hemoglobina fetal se traduz em um melhor prognóstico da doença.

Persistência Hereditária de Hemoglobina Fetal (PHHF) é uma condição clinicamente benigna, caracterizada pela síntese contínua da HbF na vida adulta, sem alterações hematológicas e com uma relação equilibrada entre a síntese de cadeias a e não-a (Weatheral & Clegg, 1981; Wood et al., 1979). As PHHF são caracterizadas como condições que possuem um fenótipo similar, mas que resultam de defeitos moleculares múltiplos e complexos.

As PHHF são classificadas pela análise dos parâmetros hematológicos e da lesão molecular existente. Entre os dados hematológicos, são de importância os níveis relativos das cadeias gG, gA, b e d, a percentagem de HbF e seu padrão de distribuição nas hemácias. Com isso, tem-se basicamente classificado as PHHF como pancelulares (aquelas que possuem níveis elevados de síntese de HbF e distribuição uniforme entre todas as células vermelhas) e heterocelulares (com níveis moderados de hemoglobina fetal e uma distribuição clonal de células com HbF).

Em relação à lesão molecular, as PHHF são classificadas em dois grandes grupos: PHHF por deficiências ou deleções gênicas e PHHF por mutações de ponto. As deficiências gênicas envolvem grande parte do grupo de genes b e as mutações de ponto são encontradas na região promotora dos genes g(Stamatoyannopoulos et al., 1987). O estudo molecular da PHHF tem tido grande interesse científico por propiciar um entendimento dos mecanismos regulatórios dos genes da hemoglobina. Além disso, como a Persistência Hereditária de Hemoglobina Fetal atua como um modulador de gravidade em várias hemoglobinopatias, torna-se essencial conhecer a sua freqüência em nosso meio. Portanto, nosso objetivo foi contribuir para a estimativa dessa freqüência populacional, com a investigação dessa entidade entre doadores voluntários de sangue da região de Bragança Paulista, São Paulo.

 

 

Casuística e métodos

 

O estudo foi realizado em 1.846 doadores voluntários de sangue, no período de outubro de 1998 a abril de 1999, no Hemonúcleo da Universidade São Francisco (USF) na Cidade de Bragança Paulista, interior de São Paulo.

A investigação laboratorial foi realizada no Laboratório Universitário de Análises Clínicas do Hospital Universitário São Francisco da USF. As amostras de sangue venoso (4,5ml) foram colhidas em Vacutainers com EDTA (sal disódico do ácido etilenodinitrotetracético) como anticoagulante, na concentração de 1,5mg/ml (Dacie & Lewis, 1984). Os dados hematológicos foram determinados com a utilização de um equipamento HemoCue Blood Hemoglobin.

Realizou-se uma análise qualitativa das hemoglobinas pela corrida eletroforética do hemolisado em fitas de gel de agarose e tampão barbital 0,05 M pH 8,6, por 20 minutos a 240 V. A hemoglobina fetal foi dosada segundo Betke et al. (1959) e a análise de globinas segundo Alter et al.(1980).

 

 

Resultados

 

Foram encontrados dois indivíduos não aparentados com alto índice de hemoglobina fetal (0,1%). Em um dos indivíduos, encontramos um percentual de HbF de 17% (sexo masculino e hemoglobina de 16,6 g/dl), e, no outro, de 18% (sexo feminino e hemoglobina de 13, 5 g/dl). Nos dois casos a eletroforese de cadeias mostrou uma ausência da cadeia gama G.

 

 

Discussão e conclusão

 

Existem poucos trabalhos a respeito da freqüência da hemoglobina fetal na literatura internacional. Tem-se dado prioridade a estudos moleculares, uma vez que a persistência hereditária da hemoglobina fetal é um modulador de gravidade em várias hemoglobinopatias e possibilita um melhor entendimento dos mecanismos regulatórios do grupamento beta. Assim, existem muitos relatos na literatura internacional sobre as mutações que dão origem a essa entidade genética, mas são pouquíssimos os dados sobre sua distribuição populacional.

Na população brasileira, são conhecidos apenas os dados obtidos entre pacientes do Hospital das Clínicas da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), onde encontrou-se a prevalência de 0,1% (Kimura et al., 2000).

Nossos dados são concordantes com os encontrados em Campinas, mostrando que a freqüência em nossa região seria em torno de 0,1%; por outro lado, em termos de classificação da PHHF, na maior parte dos casos de PHHF de Campinas, havia uma sugestão de que a causa molecular seria deleção gênica, visto que foi detectada a presença dos dois tipos de cadeias g. Já nossos casos seriam de mutação de ponto na região promotora do gene gA. Tanto em nosso estudo, como no de Kimura (Kimura et al., 2000), não foi detectada a presença da mutação brasileira gA, -195 C®G, descrita por Costa em 1990 (Costa et al., 1990). Esses dados só vêm de encontro à assertiva de que as bases moleculares da Persistência Hereditária da Hemoglobina Fetal são extremamente heterogêneas.

 

 

Agradecimentos

 

Os autores agradecem ao Hemonúcleo e ao Laboratório Universitário de Análises Clínicas da Universidade São Francisco pela colaboração prestada na realização desse trabalho.

 

 

Referências

 

ALTER, B. P.; GOFF, S. C.; EFREMOV, G. D.; GRAVELY, M. E. & HUISMAN, T. H. J., 1980. Globin chain electrophoresis: A new approach to the determination of the gG/gA ratio in fetal haemoglobin and to studies of globin synthesis. British Journal of Haematology, 44:525-534.         

BETKE, K.; MARTI, H. R. & SCHLICHT, I.,1959. Estimation of small percentage of foetal haemoglobin. Nature, 184:1977-1878.         

COSTA, F. F.; ZAGO, M. A.; CHENG, G.; NECHTMAN, J. F.; STOMING, T. A. & HUISMAN, T. H., 1990. The Brazilian type of nondeletional A gamma-fetal hemoglobin has a C®G substitution at nucleotide -195 of the a gamma-globin gene. Blood, 76:1896-1897.         

DACIE, J. V. & LEWIS, S. M., 1984. Pratical Haematology. 6th Ed. Edinburgh/London/Melbourne/New York: Churchill Livinsgstone.         

KIMURA, E. M.; DUARTE, D. F.; SANTANA, S. C.; BORGES, E.; SILVA, N. M.; GERVASIO, A. S.; COSTA, F. F. & SONATI, M. F., 2000. Hereditary persistence of fetal hemoglobin (HPFH) an structural alterations of g globin in Brazil. Genetics and Molecular Biology, 23:573.         

NEWMAN, D. R.; PIERRE, R. V. & LINMAN, J. W., 1973. Studies on the diagnostic significancy of hemoglobin F level. Mayo Clinic Proceedings, 48:199-202.         

STAMATOYANNOPOULOS, G.; NIENHUIS, A. W.; LEDER, P. & MAJERUS, P. W., 1987. The Molecular Basis of Blood Diseases. Philadelphia: WB Saunders Company.         

WEATHERALL, D. J. & CLEGG, J. B., 1981. The Thalassemia Syndromes. 3th Ed. Oxford: Blackwell.         

WOOD, W. G., 1993. Increased HbF in adult life. Baillieres Clinic Hematology, 6:177-213.         

WOOD, W. G.; CLEGG, J. B. & WEATHERALL, D. J., 1979. Hereditary persistence of fetal haemoglobin (HPFH) and delta beta thalassaemia. British Journal of Haematology, 43:509-520.         

 

 

Recebido em 29 de junho de 2001
Versão final reapresentada em 25 de janeiro de 2002
Aprovado em 3 de abril de 2002

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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