Desigualdades socioeconômicas no acesso e qualidade da atenção nos serviços de saúde

Bruno Pereira Nunes Elaine Thumé Elaine Tomasi Suele Manjourany Silva Duro Luiz Augusto Facchini Sobre os autores

Resumo

OBJETIVO

Avaliar desigualdades no acesso, utilização e qualidade da atenção à saúde associadas a características socioeconômicas.

MÉTODOS

Estudo transversal de base populacional que realizou inquérito domiciliar com 2.927 indivíduos de 20 anos ou mais, em Pelotas, RS, em 2012. Variáveis de classificação econômica e escolaridade foram utilizadas para estimar associação com os desfechos: falta de acesso, utilização dos serviços de saúde, dias de espera para atendimento e tempo na fila de espera. Utilizou-se regressão de Poisson para as análises bruta e ajustada.

RESULTADOS

A falta de acesso foi referida por 6,5% dos indivíduos que buscaram atendimento. A prevalência de utilização de serviços de saúde nos 30 dias anteriores à entrevista foi de 29,3%. Destes, 26,4% esperaram cinco dias ou mais para o atendimento, 32,1% esperaram uma hora ou mais na fila. Aproximadamente metade dos atendimentos foi realizada nos serviços do Sistema Único de Saúde. O uso de serviços de saúde foi semelhante entre os estratos dos indicadores socioeconômicos. A falta de acesso e o tempo na fila de espera foram maiores entre os indivíduos de piores posições socioeconômicas, mesmo após ajuste para necessidades em saúde. O número de dias de espera para atendimento foi maior entre aqueles com melhor poder aquisitivo.

CONCLUSÕES

Embora não tenham sido observadas diferenças socioeconômicas no uso de serviços de saúde, foram evidenciadas desigualdades no acesso e na qualidade da atenção à saúde.

Acesso aos Serviços de Saúde; Qualidade da Assistência à Saúde; Listas de Espera; Fatores Socioeconômicos; Equidade no Acesso; Desigualdades em Saúde; Atenção Primária à Saúde; Estudos Transversais


INTRODUÇÃO

A mensuração das desigualdades socioeconômicas no acesso e na qualidade da atenção é uma importante estratégia de avaliação do desempenho dos sistemas de saúde.88 Facchini LA, Piccini RX, Tomasi E, Thumé E, Silveira DS, Siqueira FV, et al. Desempenho do PSF no Sul e no Nordeste do Brasil: avaliação institucional e epidemiológica da Atenção Básica à Saúde. Cienc Saude Coletiva. 2006;11(3):669-81. DOI:10.1590/S1413-81232006000300015,1111 Macinko J, Starfield B. Annotated bibliography on equity in health, 1980-2001. Int J Equity Health. 2002;1(1):1. DOI:10.1186/1475-9276-1-1,2020 Viacava F, Ugá MAD, Porto S, Laguardia J, Moreira RS. Avaliação de Desempenho de Sistemas de Saúde: um modelo de análise. Cienc Saude Coletiva. 2012;17(4):921-34. DOI:10.1590/S1413-81232012000400014 No Brasil, o Sistema Único de Saúde (SUS), criado em 1988, alcançou inúmeros avanços, porém a relação da população com os serviços de saúde ainda continua desigual e necessita de monitoramento.2121 Victora CG, Barreto ML, do Carmo Leal M, Monteiro CA, Schmidt MI, Paim J, et al. Health conditions and health-policy innovations in Brazil: the way forward. Lancet. 2011;377(9782):2042-53. DOI:10.1016/S0140-6736(11)60055-X Pesquisas populacionais sobre fatores associados ao uso dos serviços de saúde têm observado desigualdades sociais,1313 Mendoza-Sassi R, Béria JU. Utilización de los servicios de salud: una revisión sistemática sobre los factores relacionados. Cad Saude Publica. 2001;17(4):819-32. DOI:10.1590/S0102-311X2001000400016 com pequeno declínio da iniquidade horizontal.1212 Macinko J, Lima-Costa M. Horizontal equity in health care utilization in Brazil, 1998-2008. Int J Equity Health. 2012;11(1):33. DOI:10.1186/1475-9276-11-33 Entretanto, avaliar as diferenças entre grupos socioeconômicos somente a partir da utilização dos serviços pode apresentar fragilidades, considerando que a relação entre os serviços de saúde e a população envolvem inúmeras características que extrapolam o atendimento à demanda.

Informações referentes aos indivíduos que não conseguiram atendimento diante da busca por atenção à saúde (entendido como falta de acesso) e o tempo de espera para receber atendimento são indicadores da qualidade da atenção menos frequentes na literatura,33 Campbell SM, Roland MO, Buetow SA. Defining quality of care. Soc Sci Med. 2000;51(11):1611-25. DOI:10.1016/S0277-9536(00)00057-5 sobretudo em pesquisas com representatividade populacional.

O objetivo do presente estudo foi avaliar desigualdades no acesso, utilização e qualidade da atenção à saúde associadas a características socioeconômicas.

MÉTODOS

Estudo transversal de base populacional com 2.927 indivíduos de 20 anos de idade ou mais, com dados de inquérito de saúde, denominado consórcio de pesquisas, realizado na zona urbana do município de Pelotas, RS, em 2012.

Em 2010, Pelotas possuía 306.193 habitantes na zona urbana. A adesão à Gestão Plena do Sistema Municipal foi realizada no ano de 2000, conforme preconizado na Norma Operacional Básica 01/96. A rede de saúde era composta por 51 unidades básicas de saúde; um pronto-socorro municipal; cinco pronto-atendimentos (um público e os demais de planos de saúde); um centro de especialidades (público); sete centros de atenção psicossocial (CAPS); cinco hospitais gerais e um psiquiátrico; e aproximadamente 600 consultórios particulares.

A seleção da amostra foi realizada em dois estágios de forma aleatória e sistemática. O primeiro consistiu na seleção dos setores censitários do Censo de 2010aa Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo demográfico 2010: famílias e domicílios, resultados da amostra. Rio de Janeiro: IBGE; 2012. e o segundo, na seleção dos domicílios. Dos 495 setores censitários da zona urbana, foram selecionados 130. Dentre esses, foram localizados 1.722 domicílios, respeitando-se a estratégia de amostragem sistemática com probabilidade proporcional ao tamanho do setor. Em cada domicílio selecionado, todos os indivíduos com dez anos ou mais foram convidados a participar do estudo. Foram excluídos aqueles institucionalizados e com incapacidade emocional ou mental severa que impossibilitasse responder ao questionário. A presente análise foi realizada com indivíduos adultos (20 anos ou mais).

Antes das entrevistas, todos os domicílios selecionados foram visitados pelos supervisores de campo, os quais entregavam uma carta de apresentação do estudo e convidavam os moradores a participar. Após o aceite, era agendada a visita das entrevistadoras. As entrevistas foram realizadas por equipe treinada. Consideraram-se perdas e recusas as entrevistas não realizadas após três tentativas em dias e horários diferentes, sendo uma realizada por um supervisor do estudo. O controle de qualidade foi realizado por diferentes estratégias durante a coleta de dados, e.g., a checagem de inconsistências no banco de dados. Após as entrevistas, realizou-se uma nova visita a 10,0% dos indivíduos da amostra, selecionados de forma aleatória. Esse controle foi feito com a aplicação de um questionário reduzido contendo 14 questões.

A coleta de dados ocorreu entre fevereiro e junho de 2012. A aplicação dos questionários eletrônicos estruturados com questões pré-codificadas foi realizada usando netbooks.

Os desfechos avaliados foram: utilização de serviços de saúde; falta de acesso; dias de espera para o atendimento; e minutos na fila de espera. A utilização dos serviços de saúde foi verificada com a pergunta: “Desde <dia do mês passado>, o(a) sr.(a) foi atendido em algum serviço de saúde?”. A pergunta era precedida de uma introdução citando os serviços de saúde existentes na cidade a fim de que o entrevistado não desconsiderasse algum tipo de serviço de saúde. Foram caracterizados o tipo de serviço de saúde e o financiamento do último atendimento recebido no último mês.

A falta de acesso aos serviços de saúde foi verificada por meio das respostas afirmativas para duas perguntas: “Mesmo não tendo utilizado, o(a) sr.(a) precisou de atendimento em algum serviço de saúde desde <dia do mês passado>?” e “O(a) sr.(a) buscou atendimento em algum serviço de saúde desde <dia do mês passado>?”. Essas perguntas foram feitas somente para os indivíduos que referiram não utilizar algum serviço de saúde no último mês. A falta de acesso foi aferida pelo número de indivíduos que buscaram atendimento em algum serviço de saúde (denominador), mas não conseguiram atendimento (numerador). Ainda, foram caracterizados o tipo de serviço de saúde e o motivo da falta de acesso no primeiro serviço procurado no último mês.

Os dias de espera para o atendimento foram mensurados por meio do seguinte questionamento: “Quanto dias o(a) sr.(a) demorou para conseguir o atendimento no <nome do serviço de saúde>?”. A variável foi dicotomizada em cinco dias ou mais para receber atendimento,99 Forrest CB, Starfield B. Entry into primary care and continuity: the effects of access. Am J Public Health. 1998;88(9):1330-6. DOI:10.2105/AJPH.88.9.1330 valor que representou o percentil 75 na distribuição. O denominador dessa variável foi o total de indivíduos que utilizaram serviços de saúde.

Os minutos na fila de espera foram obtidos com a pergunta: “Desde que chegou no serviço, quanto tempo você ficou esperando até ser atendido?”. A variável foi dicotomizada no percentil 75, que representou uma hora ou mais de espera para o atendimento. O denominador dessa variável foi o total de indivíduos que utilizaram serviços de saúde, excluindo os indivíduos que foram hospitalizados.

Com exceção do tempo na fila de espera, os demais desfechos foram operacionalizados segundo modelo de outra pesquisa de base nacional.1616 Piccini RX, Facchini LA, Tomasi E, Siqueira FV, Silveira DS, Thumé E, et al. Promoção, prevenção e cuidado da hipertensão arterial no Brasil. Rev Saude Publica. 2012;46(3):543-50. DOI:10.1590/S0034-89102012005000027

As principais variáveis independentes utilizadas foram a classificação econômica, medida pela Associação Brasileira de Empresas de Pesquisabb Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa. Critério de classificação econômica do Brasil. São Paulo; 2008 [citado 2012 out]. Disponível em: http://www.abep.org (A e B, C, D e E) e a escolaridade em anos completos de estudo (até quatro, cinco a oito, nove ou mais), consideradas indicadores de posição socioeconômica.1010 Galobardes B, Shaw M, Lawlor DA, Lynch JW, Smith GD. Indicators of socioeconomic position (part 1). J Epidemiol Community Health. 2006;60(1):7-12. DOI:10.1136/jech.2004.023531 As variáveis utilizadas para ajuste de confusão e/ou mediação foram: sexo (masculino/feminino), idade (20 a 29, 30 a 39, 40 a 49, 50 a 59, 60 anos ou mais), cor da pele autorreferida (branca, preta, parda, amarela e indígena), situação conjugal (com companheiro/sem companheiro), morbidades autorreferidas (não/sim) – hipertensão arterial, diabetes, problema cardíaco, asma e algum problema de saúde no último mês – e tipo de serviço de saúde procurado (consultório, unidade básica de saúde, urgência e emergência, ambulatório, centro de especialidades, centro de atenção psicossocial, serviços de saúde de outra cidade, hospital). Caracterizou-se a natureza jurídica do serviço (SUS, convênio e plano de saúde, particular) para análises complementares.

Realizou-se análise descritiva com cálculo de prevalências e seus respectivos intervalos de confiança. Utilizou-se regressão de Poisson nas análises22 Barros AJ, Hirakata VN. Alternatives for logistic regression in cross-sectional studies: an empirical comparison of models that directly estimate the prevalence ratio. BMC Med Res Methodol. 2003;3:21. DOI:10.1186/1471-2288-3-21 para obtenção das razões de prevalências brutas e ajustadas, e respectivos valores de p. Para a análise ajustada, adotaram-se três modelos de análise. O modelo 1 verificou a associação entre os desfechos e os indicadores socioeconômicos (classificação econômica e escolaridade), ajustado para as variáveis: sexo, idade, cor da pele, situação conjugal e escolaridade ou classe econômica, com o intuito de retirar o efeito de possíveis variáveis de confusão. O modelo 2 incluiu o modelo 1 e as morbidades autorreferidas a fim de controlar o efeito das necessidades em saúde nas associações avaliadas. O modelo 3 foi composto pelo modelo 2 e a variável tipo de serviço de saúde procurado. Esse modelo foi elaborado a fim de indicar o papel mediador dos serviços de saúde nas associações dos desfechos com classe econômica e escolaridade, considerando que o tipo de serviço de saúde é um fator determinante da qualidade da atenção à saúde, além de representar um proxy da urgência/emergência do atendimento em saúde. Associações com p < 0,05 foram consideradas estatisticamente significativas. As análises foram realizadas no software Stata 12.1, utilizando o comando syv para considerar o processo de amostragem do estudo.

Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas (Protocolo 77/11, 1 de dezembro de 2011). Os participantes assinaram termo de consentimento livre e esclarecido.

RESULTADOS

Foram entrevistados 2.927 adultos com 20 anos ou mais. O estudo apresentou 13,4% de perdas e recusas. Das perdas, 43,6% eram mulheres e a média de idade foi 45,8 anos.

A amostra foi composta por 58,9% de mulheres. A média geral de idade foi 45,7 anos (DP = 16,6). A cor da pele branca foi a mais referida (80,1%), seguida pela preta (12,1%). Indivíduos com companheiro representaram 59,4% da amostra. Mais da metade dos indivíduos (54,1%) tinham nove anos ou mais de estudo e 18,0% tinham até quatro anos de estudo. A classificação econômica predominante foi o estrato A/B (46,4%), seguida pelo C (43,4%) e D/E (10,2%). Dentre as morbidades investigadas, o diagnóstico médico de hipertensão foi referido por 32,7% dos entrevistados, seguido de doença cardíaca (11,5%), diabetes (7,9%) e asma (6,0%). Pouco mais de um quinto (22,8%) referiu algum problema de saúde no último mês (Tabela 1).

Tabela 1
Características demográficas e socioeconômicas e distribuição de morbidades, falta de acesso, utilização dos serviços e qualidade da atenção à saúde. Pelotas, RS, 2012.

A prevalência da utilização de serviços de saúde no mês anterior à entrevista foi 29,3% (IC95% 27,6;31,0). Do total de indivíduos que procuraram serviços de saúde, 6,5% (IC95% 4,6;8,3) referiram falta de acesso, principalmente por não ter ficha para atendimento (42,4%) e pela falta de médicos (30,5%). Dos adultos que utilizaram serviços de saúde, 26,4% (IC95% 22,7;30,1) esperaram cinco dias ou mais para receber atendimento. O tempo na fila de espera foi uma hora ou mais para 32,1% (IC95% 28,4;35,7) dos indivíduos (Tabela 1).

Com relação ao tipo de serviço utilizado, 12,6% dos adultos utilizaram consultórios médicos, 7,4% foram atendidos em unidades básicas de saúde, 5,1% em serviços de urgência e emergência, 3,5% em ambulatórios, centros de especialidades, centros de atenção psicossocial ou serviços de outra cidade e 0,7% foram internados. No total, o SUS financiou 45,7% dos atendimentos, enquanto os convênios e pagamento particular financiaram 41,2% e 13,1%, respectivamente. Quanto menores a classe econômica e a escolaridade, maior o financiamento pelo SUS.

Foram observadas maiores prevalências de falta de acesso e minutos na fila de espera entre indivíduos com menor capacidade econômica e com menor escolaridade. A espera em dias para o atendimento foi maior quanto maior o poder aquisitivo e a escolaridade. A utilização dos serviços de saúde foi semelhante entre as categorias de classe econômica e escolaridade (Tabela 2).

Tabela 2
Distribuição das prevalências dos desfechos de acordo com a classificação econômica e escolaridade. Pelotas, RS, 2012.

As maiores prevalências de falta de acesso (16,7%) e tempo igual ou superior a uma hora na fila de espera (53,0%) foram registradas para quem procurou ou utilizou as unidades básicas de saúde (Figura).

Figura
Prevalências de falta de acesso e indicadores de qualidade da atenção segundo os tipos de serviços de saúde.a Pelotas, RS, 2012.

As análises dos modelos não ajustados mostraram associação estatisticamente significativa com todos os desfechos, exceto com a utilização dos serviços de saúde e classificação econômica. Após ajuste para os modelos 1 (variáveis sociodemográficas) e 2 (modelo 1 acrescido das necessidades em saúde), as associações foram semelhantes. Indivíduos das classes econômicas D/E e C apresentaram mais falta de acesso e tempo na fila de espera (60 minutos ou mais) em comparação aos indivíduos da classe A/B. Adultos com menor escolaridade (até oito anos de estudo) apresentaram menor probabilidade de esperar cinco dias ou mais para receber o atendimento do que aqueles com nove anos ou mais de estudo. No modelo 3 (modelo 1, 2, acrescido do tipo de serviço de saúde procurado) houve perda de significância para as associações, com exceção de cinco dias ou mais para atendimento e a variável escolaridade (Tabela 3).

Tabela 3
Análise bruta e ajustada da utilização, falta de acesso e qualidade da atenção nos serviços de saúde e indicadores socioeconômicos. Pelotas, RS, 2012.

DISCUSSÃO

A igualdade entre os diferentes estratos da classificação econômica na utilização dos serviços de saúde, observada neste estudo, pode estar representando avanços no sistema público de saúde.1515 Paim J, Travassos C, Almeida C, Bahia L, Macinko J. The Brazilian health system: history, advances, and challenges. Lancet. 2011;377(9779):1778-97. DOI:10.1016/S0140-6736(11)60054-8 Não obstante, verificaram-se desigualdades socioeconômicas no acesso e na qualidade da atenção para os indivíduos mais pobres e menos escolarizados, mesmo após ajuste para necessidades em saúde.

O acesso e a utilização dos serviços de saúde vêm sendo objeto de estudo ao longo do tempo com consequente criação de modelos que busquem compreender sua determinação.11 Andersen RM. Revisiting the behavioral model and access to medical care: does it matter? J Health Soc Behav. 1995;36(1):1-10. DOI:10.2307/2137284,77 Donabedian A. The effectiveness of quality assurance. Int J Qual Health Care. 1996;8(4):401-7. DOI:10.1093/intqhc/8.4.401 A maioria dos modelos emprega acesso como sinônimo de utilização dos serviços de saúde ou o define como uma dimensão que contempla várias características da relação da população com os serviços, desde aspectos individuais (necessidades e características demográficas) até aspectos da organização dos serviços de saúde. A utilização caracteriza a efetivação do acesso aos serviços, sendo indicador do desempenho dos sistemas de saúde. Entretanto, sua aplicação como proxy de acesso pode apresentar distorções na avaliação em saúde, pois desconsidera os indivíduos que buscaram e não conseguiram o atendimento. A verificação da falta de acesso deve também ser priorizada para a avaliação dos serviços e das iniquidades em saúde.44 Capilheira MF, Santos IS. Fatores individuais associados à utilização de consultas médicas por adultos. Rev Saude Publica. 2006;40(3):436-43. DOI:10.1590/S0034-89102006000300011,1414 Oliver A, Mossialos E. Equity of access to health care: outlining the foundations for action. J Epidemiol Community Health. 2004;58(8):655-8. DOI:10.1136/jech.2003.017731,1717 Ribeiro MCSA, Barata RB, Almeida MF, Silva ZP. Perfil sociodemográfico e padrão de utilização de serviços de saúde para usuários e não-usuários do SUS - PNAD 2003. Cienc Saude Coletiva. 2006;11(4):1011-22. DOI:10.1590/S1413-81232006000400022

A falta de acesso aos serviços de saúde foi maior entre os indivíduos com menor capacidade econômica. A igualdade observada na utilização dos serviços não expressou a variabilidade na falta de acesso aos cuidados de saúde. Tal resultado serve de alerta para as diferenças conceituais e operacionais entre uso e acesso aos serviços de saúde.1919 Travassos C, Martins M. Uma revisão sobre os conceitos de acesso e utilização de serviços de saúde. Cad Saude Publica. 2004;20 Suppl 2:190-8. DOI:10.1590/S0102-311X2004000800014

O percentual de indivíduos sem acesso aos serviços foi similar ao encontrado no Canadá2323 Wilson K, Rosenberg MW. Accessibility and the Canadian health care system: squaring perceptions and realities. Health Policy. 2004;67(2):137-48. DOI:http://dx.doi.org/10.1016/S0168-8510(03)00101-5
https://doi.org/10.1016/S0168-8510(03)00...
e em inquéritos brasileiros de representatividade nacional.1515 Paim J, Travassos C, Almeida C, Bahia L, Macinko J. The Brazilian health system: history, advances, and challenges. Lancet. 2011;377(9779):1778-97. DOI:10.1016/S0140-6736(11)60054-8 Essa prevalência de falta de acesso é relativamente baixa, mas o percentual esperado para a falta de acesso seria zero, uma vez que o acesso aos serviços de saúde é um direito do cidadão e dever do Estado.cc Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília (DF); 1998. Artigo 196. Além disso, no período recordatório, um número expressivo de indivíduos pode ter vivenciado problemas de falta de acesso, mas ter obtido atendimento em saúde no último mês. Cabe ressaltar que as perguntas referentes à falta de acesso só foram feitas aos indivíduos que referiram não utilizar algum serviço de saúde. Assim, a forma de mensuração do desfecho pode ter minimizado a magnitude do problema.

A cidade de Pelotas possui 51 unidades básicas de saúde (38 na zona urbana), o que poderia garantir oferta suficiente de atendimentos à população. Entretanto, a maior prevalência de falta de acesso nessas unidades sinaliza o foco de intervenções a serem realizadas. A não obtenção de atendimento nesses serviços dificulta o estabelecimento da atenção primária como ordenadora da rede e coordenadora do cuidado.dd Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Política Nacional de Atenção Básica. Brasília (DF); 2012. O cumprimento das diretrizes propostas para o acolhimento da demanda espontâneaee Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Acolhimento à demanda espontânea. Brasília (DF); 2011. com adoção da estratificação de risco e a avaliação de vulnerabilidades deve ser seguido, evitando que a “porta de entrada” do sistema de saúde seja um obstáculo para os indivíduos na busca da resolução de seus problemas e acarrete em uso inapropriado de serviços de emergência.55 Carret ML, Fassa AC, Domingues MR. Inappropriate use of emergency services: a systematic review of prevalence and associated factors. Cad Saude Publica. 2009;25(1):7-28. DOI:10.1590/S0102-311X2009000100002

O número de dias para atendimento foi o único indicador que apresentou desigualdade em favor dos indivíduos de menor posição socioeconômica. Embora sua associação com a classificação econômica não tenha se mantido na análise ajustada, indivíduos com menor escolaridade obtiveram atendimento mais ágil, mesmo após ajuste para as necessidades em saúde. Entretanto, esse resultado deve ser analisado com cautela dada à complexidade de sua determinação. O financiamento da utilização de cuidados de saúde pode ter influenciado significativamente este achado. O menor tempo (em dias) para atendimento nas unidades básicas de saúde pode resultar, em boa medida, da insistência cotidiana para conseguir atendimento, inclusive enfrentando filas desde a madrugada.66 Cunha ABO, Vieira-da-Silva LM. Acessibilidade aos serviços de saúde em um município do Estado da Bahia, Brasil, em gestão plena do sistema. Cad Saude Publica. 2010;26(4):725-37. DOI:10.1590/S0102-311X2010000400015

O maior tempo na fila de espera entre os menos escolarizados sugere, mais uma vez, entraves importantes na organização dos serviços públicos. Em municípios do Rio de Janeiro, os atendimentos no SUS também apresentaram maior tempo na fila de espera quando comparados aos não SUS.1818 Szwarcwald CL, Mendonça MHM, Andrade CLT. Indicadores de atenção básica em quatro municípios do Estado do Rio de Janeiro, 2005: resultados de inquérito domiciliar de base populacional. Cienc Saude Coletiva. 2006;11(3):643-55. DOI:10.1590/S1413-81232006000300013 Intervenções para redução das filas evitáveis realizadas em Salvador, BA, apresentaram melhorias significativas na diminuição do tempo na fila de espera.2222 Vieira-da-Silva LM, Chaves SC, Esperidiao MA, Lopes-Martinho RM. Accessibility to primary healthcare in the capital city of a northeastern state of Brazil: an evaluation of the results of a programme. J Epidemiol Community Health. 2010;64(12):1100-5. DOI:10.1136/jech.2009.097220

Os achados indicam que os serviços de saúde podem reduzir as iniquidades econômicas no acesso e na qualidade da atenção. Os serviços foram mediadores do efeito da classificação econômica sobre a falta de acesso e o tempo na fila de espera, refletindo sua importância na determinação social da saúde.

Algumas limitações do estudo devem ser ponderadas. Primeiro, as perdas e recusas foram diferentes da população avaliada em relação ao sexo, podendo gerar viés na prevalência dos desfechos. Porém, é improvável que as medidas de efeito tenham sido afetadas, uma vez que, a princípio, não há motivo para suspeitar que as perdas foram diferentes na relação entre desfecho e as exposições classificação econômica e escolaridade. Além disso, a variável sexo foi utilizada nos modelos de ajuste para evitar distorção nas medidas de efeito. Segundo, a validade externa dos achados é dificultada devido às características econômicas e de atenção à saúde da cidade de Pelotas. Terceiro, a avaliação de diferentes serviços de saúde contidos nessa análise dificulta a especificidade de algumas discussões, mas oferece informações em nível populacional, que indicam possíveis aspectos a serem detalhadamente avaliados em outros estudos, e.g., maior detalhamento sobre as dificuldades de acesso nos serviços de atenção primária à saúde.

Os achados do presente estudo sinalizam problemas na atenção prestada pelos serviços de saúde, especialmente entre a população que utiliza unidades básicas de saúde da zona urbana do município de Pelotas. A falta de acesso e o maior tempo na fila de espera foram mais frequentes entre os mais pobres, indicando iniquidades potencialmente evitáveis a partir de uma atenção primária à saúde mais efetiva.

DESTAQUES

Este artigo avalia os serviços de saúde a partir de uma abordagem populacional, incluindo, além de sua utilização, a falta de acesso e o tempo de espera para receber o atendimento. Avaliou-se também desigualdade socioeconômica na ocorrência desses indicadores.

Essa avaliação possibilita maior conhecimento sobre a ocorrência e os fatores condicionantes da falta de acesso e da qualidade da atenção, superando os estudos mais tradicionais que abordam apenas a utilização de serviços de saúde. Foram utilizados dados de amostra representativa da população adulta (20 anos ou mais) de um município de médio porte do sul do Brasil (Pelotas-RS).

Os resultados mostraram igualdade socioeconômica no uso de serviços de saúde, atribuível aos avanços do Sistema Único de Saúde, nos últimos anos, já que as desigualdades eram observadas na maioria das pesquisas anteriores. Entretanto, entre os indivíduos que buscaram serviços de saúde, 6,5% não obtiveram atendimento, representando aproximadamente 4.500 adultos (extrapolação para a população-alvo) da cidade de Pelotas que não tiveram acesso aos serviços de saúde no mês anterior à pesquisa. A falta de acesso foi maior entre indivíduos com menor capacidade econômica e que buscaram serviços de atenção primária à saúde. A falta de médicos e de senhas para atendimento foram os principais motivos relatados.

A provisão de recursos humanos nos serviços de atenção primária à saúde e as mudanças na organização da oferta e do processo de trabalho das equipes são fundamentais para que esses serviços estejam mais aptos a ordenar a rede de atenção e coordenar o cuidado da população no sistema de saúde.

Rita de Cássia Barradas Barata

Editora Científica

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2014

Histórico

  • Recebido
    18 Fev 2014
  • Aceito
    1 Jul 2014
Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo São Paulo - SP - Brazil
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