Fluoretação da água em cidades brasileiras na primeira década do século XXI

Paulo Frazão Paulo Capel Narvai Sobre os autores

RESUMO

OBJETIVO

Avaliar a cobertura da fluoretação da água de abastecimento público em municípios brasileiros na primeira década do século XXI, segundo porte demográfico e nível de desenvolvimento humano municipal (IDH-M).

MÉTODOS

Foram utilizados dados produzidos por agências nacionais de informação e pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. O porte demográfico foi separado em < 10 mil; 10-50 mil; > 50 mil habitantes. O IDH-M foi classificado em < 0,600; 0,600-0,699; 0,700-0,799; > 0,799. As desigualdades absoluta e relativa entre as categorias foram avaliadas por meio de indicadores de efeito e de impacto total.

RESULTADOS

Foram obtidas informações para 5.558 municípios. A taxa de cobertura da fluoretação da água aumentou de 67,7% para 76,3%. Passaram a ser beneficiados pela medida 884 (15,9%) municípios, e 29,6 milhões de habitantes. Observou-se ampliação expressiva em municípios com < 10 mil habitantes (aumento de 21,0 pontos percentuais) e com IDH-M baixo ou muito baixo (17,7 pontos percentuais).

CONCLUSÕES

A cobertura populacional da política pública aumentou 8,6%, sendo expressivas as reduções das desigualdades absoluta e relativa segundo o porte demográfico e o IDH-M. Quanto à taxa de cobertura municipal, houve também redução da desigualdade em todas as comparações com exceção da desigualdade absoluta entre as categorias de IDH-M. A política pública operou como fator de proteção sanitária no contexto das políticas de proteção social em curso no país.

Fluoretação, tendências; Abastecimento de Água; Políticas Públicas de Saúde; Saúde Bucal

INTRODUÇÃO

As condições do meio ambiente, notadamente as condições de saneamento, constituem uma particular dimensão do desenvolvimento. O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), indicador composto utilizado para dimensionar o grau do desenvolvimento humano, atribui peso às dimensões da escolaridade, da renda per capita e da expectativa de vida. O impacto das condições de saneamento sobre o desenvolvimento humano é capturado apenas indiretamente, na medida em que tais condições podem aumentar ou reduzir o risco da mortalidade precoce por doenças de veiculação hídrica e, consequentemente, os valores de expectativa de vida. Um dos objetivos do IDH era desviar o foco do desenvolvimento da economia e indicadores da renda nacional para políticas centradas em pessoas99. Haq MU. Reflections on human development. New York: Oxford University Press; 1996.. Não obstante, são recorrentes as referências à importância do saneamento para o desenvolvimento e as menções à água, reconhecida como um dos mais significativos determinantes dos níveis de saúde.

A água de abastecimento público, de especial interesse para a saúde pública, impacta a saúde de indivíduos e populações, tanto por ser essencial à vida, operando como fator de proteção para a saúde, como por ser veículo para microrganismos variados e, nesta medida, constitui-se em importante fator de risco sanitário55. Ferreira RGLA, Bógus CM, Marques RAA, Menezes LMB, Narvai PC. Fluoretação das águas de abastecimento público no Brasil: o olhar de lideranças de saúde. Cad Saude Publica. 2014;30(9):1884-90. https://doi.org/10.1590/S0102-311X2005000400005.
https://doi.org/10.1590/S0102-311X200500...
. Um exemplo de sua ação como fator de proteção é a fluoretação da água de abastecimento público, uma tecnologia amplamente utilizada em estratégias bem-sucedidas de saúde pública. A técnica de fluoretação corresponde a ajustar e controlar os teores de fluoretos em águas de abastecimento público para que estes, situando-se em determinados intervalos, possam produzir um efeito conhecido: a prevenção da cárie dentária. Estudos de revisão sistemática têm confirmado a efetividade preventiva da intervenção66. Frazão P, Peres MA, Cury JA. Qualidade da água para consumo humano e concentração de fluoreto. Rev Saude Publica. 2011;45(5):964-73. https://doi.org/10.1590/S0034-89102011005000046.
https://doi.org/10.1590/S0034-8910201100...
,1616. McDonagh MS, Whiting PF, Wilson PM, Sutton AJ, Cheestnutt I, Cooper J, et al. Systematic review of water fluoridation. Br Med J. 2000;321(7265):855-9. https://doi.org/10.1136/bmj.321.7265.855.
https://doi.org/10.1136/bmj.321.7265.855...
.

Normalmente as águas contêm fluoretos, mas predominam águas com teores pobres, insuficientes para a finalidade preventiva. O procedimento adotado é fazer o ajuste desses teores naturais até o patamar recomendado para cada localidade, variando de modo geral entre 0,7 e 1,2 mg F/L. Em estações de tratamento de água este controle é feito regularmente e integra a rotina da operação2727. World Health Organization. Fluorine and fluorides. Geneva: WHO; 1984 [cited 2017 Feb 14]. (Environmental Health Criteria, 36). Available from: http://www.inchem.org/documents/ehc/ehc/ehc36.htm
http://www.inchem.org/documents/ehc/ehc/...
. O método tem sido recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS)aaWorld Health Organization. Resolution WHA60.1. In: the Sixtieth World Health Assembly; 2007 May 26; Geneva, Swiss. Geneva: WHO; 2007 [citado 27 out 2015]. Disponível em: http://apps.who.int/gb/ebwha/pdf_files/WHASSA_WHA60-Rec1/E/reso-60-en.pdf e pela International Association for Dental Research (IADR)bbThe Liverpool Declaration: Promoting Oral Health in the 21st Century]. Geneva: WHO; 2007 [citado 27 out 2015]. Disponível em: http://www.who.int/oral_health/events/orh_liverpool_declaration_05.pdf , dentre outras importantes organizações de projeção internacional, por sua efetividade, segurança e baixo custo, devendo ser implementado e mantido onde for possível. No início do século XXI, a fluoretação para fins de prevenção da cárie beneficiava cerca de 400 milhões de pessoas no mundoccThe British Fluoridation Society. Extent of water fluoridation. Oldham: BFS; s.d. [citado 27 out 2015]. Disponível em: https://www.bfsweb.org/extent-of-water-fluoridation . Em decorrência, as relações entre a disponibilidade de água tratada fluoretada e o grau do desenvolvimento humano em cada localidade, região ou país são de interesse estratégico da saúde pública, a tal ponto que se pode considerá-la uma política pública, pela multiplicidade de interesses associados, pela complexidade das decisões envolvidas e pelos requisitos administrativos e de gestão relacionados com sua implementação1919. Narvai PC, Frazão P. Epidemiologia, política e saúde bucal coletiva. In: Antunes JLF, Peres MA, editores. Epidemiologia da saúde bucal. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2006. p.346-62..

A fluoretação das águas na estação de tratamento é obrigatória no Brasil desde 1974, conforme a Lei Federal 6.050. Desde então, a cobertura da fluoretação das águas vem aumentando2020. Narvai PC. Cárie dentária e flúor: uma relação do século XX. Cienc Saude Coletiva. 2000;5(2):381-92. http://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232000000200011.
http://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232000...
, e um exame da situação desta política pública é muito importante para avaliar as tendências de sua expansão.

Monitorar a cobertura das intervenções em saúde em subgrupos da população é essencial uma vez que mensurações de abrangência nacional podem ocultar importantes desigualdades locorregionais33. Barros AJD, Victora CG. Measuring coverage in MNCH: determining and interpreting inequalities in coverage of maternal, newborn, and child health Interventions. PLoS Med. 2013;10(5):e1001390. https://doi.org/10.1371/journal.pmed.1001390.
https://doi.org/10.1371/journal.pmed.100...
. Estudos têm mostrado que a cobertura da fluoretação das águas tende a ser maior nos municípios de maior porte44. Centers for Disease Control and Prevention - CDC. Achievements in Public Health, 1900-1999: fluoridation of drinking water to prevent dental caries. MMW Morb Mortal Wkly Rep. 1999 [cited 2017 Feb 16];48(41);933-40. Available from: https://www.cdc.gov/Mmwr/preview/mmwrhtml/mm4841a1.htm
https://www.cdc.gov/Mmwr/preview/mmwrhtm...
,1717. Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Básica, Coordenação Nacional de Saúde Bucal. Projeto SB Brasil 2003: condições de saúde bucal da população brasileira 2002-2003: resultados principais. Brasília (DF); 2004 [cited 2017 Feb 14]. (Série C. Projetos, Programas e Relatórios). Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/condicoes_saude_bucal.pdf
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoe...
e de mais alto nível de desenvolvimento humano88. Gabardo MC, Silva WJ, Olandoski M, Moysés ST, Moysés SJ. Inequalities in public water supply fluoridation in Brazil: an ecological study. BMC Oral Health. 2008;8:9. https://doi.org/10.1186/1472-6831-8-9.
https://doi.org/10.1186/1472-6831-8-9...
,1919. Narvai PC, Frazão P. Epidemiologia, política e saúde bucal coletiva. In: Antunes JLF, Peres MA, editores. Epidemiologia da saúde bucal. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2006. p.346-62.,2121. Peres MA, Fernandes LS, Peres KG. Inequality of water fluoridation in Southern Brazil: the inverse equity hypothesis revisited. Soc Sci Med. 2004;58(6):1181-9. https://doi.org/10.1016/S0277-9536(03)00289-2
https://doi.org/10.1016/S0277-9536(03)00...
. Entretanto, essa noção tem origem em dados transversais que expressam a cobertura da política pública em um determinado momento na linha do tempo. Para superar essa limitação, análises das tendências temporais são fundamentais para prover informações sobre a dinâmica da cobertura nos diferentes subgrupos populacionais.

O objetivo deste estudo é avaliar a cobertura da fluoretação da água de abastecimento público em municípios brasileiros em período histórico abrangido pela primeira década do século XXI, segundo o porte demográfico e o nível de desenvolvimento humano.

MÉTODOS

Para calcular as frequências absoluta e relativa dos municípios que eram beneficiados pela medida nos anos 2000 e 2008, foram utilizados dados sobre a situação da fluoretação da água de abastecimento público, obtidos a partir da Pesquisa Nacional de Saneamento Básico, realizada pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)1212. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional de Saneamento Básico. Brasília (DF): IBGE; 2000 [cited 2017 Feb 14]. Available from: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/condicaodevida/pnsb/
http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/...
,1313. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional de Saneamento Básico. Brasília (DF): IBGE; 2008 [cited 2017 Feb 14]. Available from: http://ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/condicaodevida/pnsb2008/default.shtm
http://ibge.gov.br/home/estatistica/popu...
.

Para analisar as alterações na implementação da política pública, no período entre 2000 e 2008, foram criadas quatro categorias: (a) política pública mantida – para os municípios que eram beneficiados pela medida no ano 2000 e que, segundo a informação no banco de dados, continuavam sendo beneficiados; (b) política pública implementada – para os municípios que não eram beneficiados pela medida no ano 2000 e que passaram a sê-lo conforme informação registrada em 2008; (c) política pública não implementada – para aqueles municípios que não eram beneficiados pela medida no ano 2000 e que permaneceram sem acesso ao benefício; (d) política pública interrompida – para aqueles que eram beneficiados pela medida no ano 2000 e que deixaram de sê-lo no ano 2008.

Estimativas populacionais para os anos 2000 e 2008 relativas a cada município fornecidas pelo IBGE, e o valor do Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDH-M) para o ano 2000 obtido junto ao Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento2121. Peres MA, Fernandes LS, Peres KG. Inequality of water fluoridation in Southern Brazil: the inverse equity hypothesis revisited. Soc Sci Med. 2004;58(6):1181-9. https://doi.org/10.1016/S0277-9536(03)00289-2
https://doi.org/10.1016/S0277-9536(03)00...
, foram concatenados.

Para 57 municípios, criados após o ano 2000, não havia informação relativa à população e ao IDH-M. Para não perder esses municípios, em relação à população foram considerados os valores estimados para 2002 e, em relação ao IDH-M, foram considerados os valores para o ano 2010, admitindo-se como uma boa aproximação do porte populacional e do nível de desenvolvimento humano do município, para efeito deste estudo. As informações sobre a situação da fluoretação para esses municípios foram obtidas a partir do Atlas Água Brasil, uma aplicação digital de visualização e análise de indicadores sobre a qualidade da água, saneamento e saúde, mantida pelo Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz1414. Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde. Atlas Água Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; c2010 [cited 2017 Feb 19]. Available from: http://www.aguabrasil.icict.fiocruz.br/index.php
http://www.aguabrasil.icict.fiocruz.br/i...
, em parceria com a Coordenação Geral de Vigilância em Saúde Ambiental da Secretaria de Vigilância em Saúde, do Ministério da Saúde.

Para aferir a relação entre a situação da fluoretação e o porte demográfico dos municípios, as estimativas populacionais relativas ao ano 2000 foram separadas em três categorias: municípios com menos de 10 mil habitantes; com 10 mil a 50 mil; e com mais de 50 mil habitantes. Esse critério tem sido adotado em outros estudos22. Baldani MH, Fadel CB, Possamai T, Queiroz MGS. A inclusão da odontologia no Programa Saúde da Família no Estado do Paraná, Brasil. Cad Saude Publica. 2005;21(4):1026-35. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-311X2005000400005.
http://dx.doi.org/10.1590/S0102-311X2005...
,2424. Rigo L, Abegg C, Bassani DG. Cárie dentária em escolares residentes em municípios do Rio Grande do Sul, Brasil, com e sem fluoretação nas águas. Rev Sul Bras Odontol. 2010 [cited 2017 Feb 14];7(1):57-65. Available from: http://pesquisa.bvs.br/brasil/resource/pt/lil-541644
http://pesquisa.bvs.br/brasil/resource/p...
e levou em consideração as evidências correntes que indicam que a proporção de municípios que dispõe de água tratada e fluoretada é maior conforme o porte populacional44. Centers for Disease Control and Prevention - CDC. Achievements in Public Health, 1900-1999: fluoridation of drinking water to prevent dental caries. MMW Morb Mortal Wkly Rep. 1999 [cited 2017 Feb 16];48(41);933-40. Available from: https://www.cdc.gov/Mmwr/preview/mmwrhtml/mm4841a1.htm
https://www.cdc.gov/Mmwr/preview/mmwrhtm...
,1919. Narvai PC, Frazão P. Epidemiologia, política e saúde bucal coletiva. In: Antunes JLF, Peres MA, editores. Epidemiologia da saúde bucal. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2006. p.346-62.,2121. Peres MA, Fernandes LS, Peres KG. Inequality of water fluoridation in Southern Brazil: the inverse equity hypothesis revisited. Soc Sci Med. 2004;58(6):1181-9. https://doi.org/10.1016/S0277-9536(03)00289-2
https://doi.org/10.1016/S0277-9536(03)00...
.

Para avaliar a relação com o grau de desenvolvimento humano, foram criadas quatro categorias: municípios com valor de IDH-M menor do que 0,600; municípios com valor entre 0,600 e 0,699; municípios com valor entre 0,700 e 0,799; e municípios com IDH-M acima de 0,799. Essas três últimas categorias correspondem às categorias adotadas pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento para médio, alto e muito alto desenvolvimento humano. A primeira categoria corresponde aos valores que representam muito baixo e baixo desenvolvimento2222. Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento; Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; Fundação João Pinheiro; Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil. Brasília (DF); 2010 [[cited 2014 Sep 26]. Available from: http://www.pnud.org.br
http://www.pnud.org.br...
.

As coberturas, absoluta e relativa, da política pública de fluoretação da água, tanto em termos populacionais quanto em relação ao número de municípios, foram calculadas considerando-se as estimativas populacionais para cada ano, admitindo-se que os registros encontrados sobre a situação da fluoretação constituem a melhor indicação disponível para se estimar sua cobertura. Diferenças absolutas e relativas entre as taxas foram mensuradas para avaliar as mudanças dentro de cada categoria de porte demográfico e de nível de desenvolvimento humano.

Diversos indicadores medem as desigualdades em saúde. Todos encerram juízos normativos que têm importantes consequências para a interpretação e avaliação das políticas de saúde, sendo recomendável evitar o uso acrítico de uma única medida1010. Harper S, Lynch J. Methods for measuring cancer disparities: a review using data relevant to Healthy People 2010 cancer-related objectives. Bethesda (MD): National Cancer Institute; 2006 [cited 2017 Feb 18]. (NCI Cancer Surveillance Monograph Series, 6). Available from: https://seer.cancer.gov/archive/publications/disparities/measuring_disparities.pdf
https://seer.cancer.gov/archive/publicat...
. Assim, para explorar as desigualdades absoluta e relativa entre as categorias de análise, foram selecionadas medidas de efeito e medidas de impacto total.

As medidas de efeito são úteis em um sentido mais estrito, quando se tem interesse em identificar tendências entre dois grupos populacionais tomando por referência a melhor situação encontrada. Para isso, foram comparadas as diferenças e as razões das taxas de cobertura adotando-se como referência a categoria de maior valor em cada ano. Esse critério foi utilizado para verificar se as disparidades entre cada município e a melhor situação, segundo o porte populacional e o nível de desenvolvimento humano, aumentaram, diminuíram ou se mantiveram estáveis.

As medidas de impacto total consideram todos os subgrupos populacionais na mensuração da desigualdade e são utilizadas quando se tem interesse em avaliar o grau de mudança entre todas as categorias, abrangendo, assim, tanto as de melhor quanto as de pior posição. Para esse fim, foi empregado o coeficiente angular de desigualdade, que mede a diferença absoluta nas taxas de cobertura entre as categorias de análise, e o índice de concentração relativa, que mede o percentual de mudança entre as taxas.

O coeficiente angular de desigualdade é calculado por meio de uma análise de regressão, na qual a diferença entre as taxas corresponde à inclinação da reta de regressão estimada pelo método dos mínimos quadrados ponderados, representando, neste estudo, a mudança na taxa de fluoretação conforme as categorias de análise (porte demográfico e nível de desenvolvimento humano) mudam de uma categoria para outra. As categorias são ordenadas da mais baixa para a mais alta (do menor para o maior porte demográfico e do menor para o maior IDH-M) e é atribuído um escore com base no ponto médio da variação da distribuição cumulativa da população correspondente a cada categoria. Por exemplo, se a frequência relativa de municípios com IDH-M < 0,600 é 15%, a variação de municípios nesta categoria é 0,0 a 0,15, com uma média de 0,075. Se a frequência relativa da categoria de municípios com IDH-M médio (0,600 a 0,699) for 30%, sua variação na distribuição cumulativa será entre 0,15 a 0,45, com média de 0,3, e assim por diante. O índice de concentração relativa pertence à classe geral das medidas de desproporcionalidade que expressam a desigualdade como uma função das diferenças entre as proporções do desfecho de saúde comparado com as proporções dos grupos ranqueados com valores entre -1 e +1, conforme as categorias de análise. Ambos os indicadores são ponderados pelo tamanho dos grupos populacionais e quanto maior a proximidade do seu valor ao zero, menor a desigualdade1010. Harper S, Lynch J. Methods for measuring cancer disparities: a review using data relevant to Healthy People 2010 cancer-related objectives. Bethesda (MD): National Cancer Institute; 2006 [cited 2017 Feb 18]. (NCI Cancer Surveillance Monograph Series, 6). Available from: https://seer.cancer.gov/archive/publications/disparities/measuring_disparities.pdf
https://seer.cancer.gov/archive/publicat...
.

Para responder à hipótese do estudo, buscou-se ir além dos conhecimentos produzidos por estudos transversais, analisando-se se a expansão da política pública, no período sob exame, alterou as disparidades e em qual direção, considerando-se na análise não apenas o número de municípios, aspecto de interesse jurídico-administrativo, mas, sobretudo, o número de habitantes, traço de interesse sanitário central na abordagem adotada.

Para a análise estatística foram usados o programa Stata versão 12.0 (Stata Corp., College Station, Estados Unidos) e o programa HD*Calc versão 1.2.4 (Health Disparities Calculator), um aplicativo de acesso público fornecido pelo Surveillance, Epidemiology and End Results Program, National Cancer Institute, Estados Unidos.

RESULTADOS

O exame dos dados disponíveis permitiu identificar 5.558 municípios com as informações completas para os anos 2000 e 2008. Os dados de seis municípios existentes em 2008 estavam indisponíveis. A Tabela 1 apresenta a distribuição de habitantes e municípios segundo o porte populacional, o IDH-M e a situação da política pública de fluoretação da água de abastecimento público entre os anos 2000 e 2008. Observa-se que a política pública foi expandida no período de tempo sob estudo. A Tabela 2 mostra as frequências, absoluta e relativa, de habitantes e municípios onde a política pública de fluoretação da água foi considerada implementada nos anos 2000 e 2008, assim como as diferenças entre os valores absolutos e as taxas observadas em cada ano. Descontando-se dos municípios que implementaram a medida (n = 989; 17,8%) aqueles que a interromperam (n = 105; 1,9%) (Tabela 1), essa expansão atingiu 884 (15,9%) municípios que passaram a ser beneficiados pela medida. No período, a cobertura relativa para o país como um todo aumentou em 8,6 pontos percentuais (pp) (de 67,7% para 76,3% dos habitantes). Em termos absolutos, isso representa cerca de 30 milhões de brasileiros, conforme as estimativas para 2008, que inclui o crescimento demográfico no período (Tabela 2). Permaneceram sem acesso à medida, 2.210 (39,8%) municípios, onde residiam mais de 40 milhões de habitantes no ano 2000 (Tabela 1).

Tabela 1
Frequência absoluta e relativa de habitantesa e de municípios segundo o porte populacional, o índice de desenvolvimento humano (IDH) e a situação da política pública de fluoretação da água de abastecimento público entre os anos 2000 e 2008.
Tabela 2
Frequência absoluta e relativa de habitantesa e municípios onde a política pública de fluoretação da água de abastecimento público estava implementada nos anos 2000 e 2008.

A magnitude da expansão foi diferente conforme as categorias de porte demográfico e desenvolvimento humano (Tabela 2). Quanto ao porte populacional, a diferença em pontos percentuais foi maior nos municípios com menos de 10 mil habitantes (21,0 pontos percentuais [pp]). A maior parte (63,3%) da população estava distribuída em 9,5% dos municípios (aqueles com mais de 50 mil habitantes) e 8,2% da população brasileira residia nos municípios com menos de 10 mil habitantes. Do ponto de vista da cobertura populacional absoluta, a expansão foi maior nos municípios com mais de 50 mil habitantes – cerca de 15,3 milhões de habitantes passaram a ser beneficiados pela medida, considerando-se as estimativas populacionais para o ano 2008.

Em relação ao IDH-M, a classe na qual houve maior aumento em pontos percentuais foi entre os municípios com IDH-M muito alto (19,6 pp), seguida pelos municípios com alto IDH-M (16,6 pp) (Tabela 2). Cerca de 10% dos municípios estavam incluídos na categoria de muito alto IDH-M e 15% nas categorias baixo ou muito baixo IDH-M. Em termos populacionais, a categoria de municípios com muito baixo e baixo IDH-M, uma classe que compreendia 6,6% dos habitantes, apresentou maior aumento em pontos percentuais de população (17,7 pp) que passou a ser beneficiada pela medida. O aumento da cobertura populacional absoluta foi maior na categoria de municípios com alto IDH-M, da qual mais de 14,1 milhões de habitantes passaram a usufruir da medida, considerando-se as estimativas populacionais para o ano 2008 (Tabela 2).

Quanto aos municípios, elevou-se de 44,3% para 60,2% a porcentagem de municípios em que a política pública estava implementada, correspondendo a um aumento de 15,9 pp e, em termos absolutos, uma diferença de 884 municípios, dos quais 45,7% (404) eram municípios com alto IDH-M e 23,7% (241) com médio IDH-M (Tabela 2).

A Tabela 3 apresenta os valores correspondentes às diferenças e às razões das taxas de cobertura populacional entre os municípios de diferentes portes demográficos e níveis de desenvolvimento humano, tomando-se como referência os municípios de mais de 50 mil habitantes e os de IDH-M muito alto. A comparação dos valores obtidos em 2000 e 2008 indica redução expressiva das desigualdades, absoluta e relativa, tanto na comparação de cada município com a categoria de referência, quanto na mudança total e quanto à cobertura populacional, e à cobertura do número de municípios segundo as categorias de porte demográfico e IDH-M. Em relação ao porte demográfico, o percentual de redução da desigualdade absoluta total foi 31,6% e o percentual de redução da desigualdade relativa total foi 39,0%, sendo as maiores reduções encontradas na comparação entre as categorias de menor e de maior porte populacional. Em relação ao IDH-M, os percentuais de redução absoluta e relativa foram, respectivamente, 15,9% e 28,6%, sendo as maiores reduções encontradas na comparação entre os municípios de médio IDH-M e a categoria de referência (em termos absolutos), e na comparação entre os municípios de muito baixo ou baixo IDH-M e a categoria de referência (em termos relativos).

Tabela 3
Valores de desigualdade absoluta e relativa obtidos entre as taxas de cobertura populacional da fluoretação da água de abastecimento público para 2000 e 2008.

Na Tabela 4, são mostrados os valores concernentes às taxas de cobertura municipal. Em relação às categorias de porte populacional, a comparação entre 2000 e 2008 indicou redução expressiva da desigualdade absoluta (47,1%) e relativa (66,6%). Em relação às categorias de desenvolvimento humano, observou-se aumento da desigualdade absoluta (6,6%) e redução da desigualdade relativa (23,1%), tanto na mudança total quanto na comparação de cada município com a categoria de referência.

Tabela 4
Valores de desigualdade absoluta e relativa obtidos entre as taxas de cobertura municipal da fluoretação da água de abastecimento público para 2000 e 2008.

DISCUSSÃO

Tendo em vista que o IDH não contempla diretamente a dimensão das condições ambientais e, nelas, a do provimento de água tratada, são pertinentes os estudos que, como este, ocupam-se dessas duas dimensões, buscando conectá-las para produzir conhecimento relevante para a avaliação da implementação de políticas públicas. Acresce que as políticas públicas, no caso da saúde, ademais de suas finalidades específicas, devem operar para diminuir desigualdades. Embora não seja este o efeito que se obtém em todas as situações, sendo frequente os casos em que a implementação de determinadas ações resulta em ampliação das desigualdades e não o contrário, é necessário proceder a análise de situações concretas de implementação dessas políticas para, dispondo desses conhecimentos, manter, reorientar ou mesmo cessar sua implementação.

Os resultados mostraram que, entre 2000 e 2008, 8,6% da população brasileira passou a receber o benefício, elevando-se a taxa de cobertura de 67,7% para 76,3%, uma das mais altas coberturas entre os 10 países mais populosos do planeta. Além disso, observou-se expansão da fluoretação da água em todos os subgrupos populacionais, tanto do ponto de vista da cobertura populacional quanto do número de municípios beneficiados.

No ano 2000, a proporção de municípios beneficiados pela política pública da fluoretação das águas de abastecimento público foi cerca de duas vezes menor nas cidades com até 10 mil habitantes quando esse conjunto de municípios é comparado com o conjunto representado pelas cidades com 50 mil habitantes ou mais, corroborando-se o valor obtido em pesquisa nacional a partir de uma amostra de 250 municípios1717. Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Básica, Coordenação Nacional de Saúde Bucal. Projeto SB Brasil 2003: condições de saúde bucal da população brasileira 2002-2003: resultados principais. Brasília (DF); 2004 [cited 2017 Feb 14]. (Série C. Projetos, Programas e Relatórios). Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/condicoes_saude_bucal.pdf
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoe...
. Em 2008, a desigualdade relativa diminuiu para 1,4. A obtenção de ampliações expressivas na cobertura relativa da população em municípios com menos de 10 mil habitantes (aumento de 21,0 pp) e com IDH-M baixo ou muito baixo (17,7 pp), e a redução da desigualdade total, absoluta e relativa, entre os subgrupos no período 2000 e 2008, sugerem um cenário distinto dos conhecimentos produzidos por estudos anteriores44. Centers for Disease Control and Prevention - CDC. Achievements in Public Health, 1900-1999: fluoridation of drinking water to prevent dental caries. MMW Morb Mortal Wkly Rep. 1999 [cited 2017 Feb 16];48(41);933-40. Available from: https://www.cdc.gov/Mmwr/preview/mmwrhtml/mm4841a1.htm
https://www.cdc.gov/Mmwr/preview/mmwrhtm...
,88. Gabardo MC, Silva WJ, Olandoski M, Moysés ST, Moysés SJ. Inequalities in public water supply fluoridation in Brazil: an ecological study. BMC Oral Health. 2008;8:9. https://doi.org/10.1186/1472-6831-8-9.
https://doi.org/10.1186/1472-6831-8-9...
,1717. Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Básica, Coordenação Nacional de Saúde Bucal. Projeto SB Brasil 2003: condições de saúde bucal da população brasileira 2002-2003: resultados principais. Brasília (DF); 2004 [cited 2017 Feb 14]. (Série C. Projetos, Programas e Relatórios). Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/condicoes_saude_bucal.pdf
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoe...
,1919. Narvai PC, Frazão P. Epidemiologia, política e saúde bucal coletiva. In: Antunes JLF, Peres MA, editores. Epidemiologia da saúde bucal. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2006. p.346-62.,2121. Peres MA, Fernandes LS, Peres KG. Inequality of water fluoridation in Southern Brazil: the inverse equity hypothesis revisited. Soc Sci Med. 2004;58(6):1181-9. https://doi.org/10.1016/S0277-9536(03)00289-2
https://doi.org/10.1016/S0277-9536(03)00...
, indicando que o Brasil parece estar superando uma característica da implementação dessa medida que o marcou na segunda metade do século XX.

Em estudo clássico, Hart1111. Hart JT. The inverse care law. Lancet. 1971;297(7696):405-12. https://doi.org/10.1016/S0140-6736(71)92410-X.
https://doi.org/10.1016/S0140-6736(71)92...
mostrou que, se implementadas sob as leis de mercado, ações de saúde frequentemente beneficiam mais aqueles segmentos populacionais mais bem situados na escala socioeconômica. Contextualizando essa assertiva para a saúde materno-infantil, pesquisadores mostraram que bons programas de saúde pública acabam sendo mais utilizados em um primeiro momento por aqueles que menos necessitam deles2626. Victora CG, Vaughan JP, Barros FC, Silva AC, Tomasi E. Explaining trends in inequities: evidence from Brazilian child health studies. Lancet 2000;356(9235):1093-8. https://doi.org/10.1016/S0140-6736(00)02741-0.
https://doi.org/10.1016/S0140-6736(00)02...
. Isso leva a pensar que certas intervenções, ainda que sob gestão do Estado e aparentemente imunes às leis de mercado, quando implementadas em contexto de elevada desigualdade socioeconômica, tenderiam primeiro a beneficiar os mais ricos, e somente algum tempo depois, os mais pobres.

No caso da fluoretação da água de abastecimento público, é relevante considerar que uma condição indispensável para sua implementação, é a existência de um sistema ou rede de tratamento e distribuição da água. Uma cidade onde a rede alcança tanto as áreas mais ricas quanto as mais pobres, sua aplicação representa um fator de proteção imediato a todos os domicílios conectados à rede, independentemente da condição socioeconômica de cada família. Em relação ao caso brasileiro – um contexto de elevada desigualdade socioeconômica, é pertinente assinalar que as diferenças na distribuição do benefício observadas entre os municípios na segunda metade do século XX88. Gabardo MC, Silva WJ, Olandoski M, Moysés ST, Moysés SJ. Inequalities in public water supply fluoridation in Brazil: an ecological study. BMC Oral Health. 2008;8:9. https://doi.org/10.1186/1472-6831-8-9.
https://doi.org/10.1186/1472-6831-8-9...
,1717. Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Básica, Coordenação Nacional de Saúde Bucal. Projeto SB Brasil 2003: condições de saúde bucal da população brasileira 2002-2003: resultados principais. Brasília (DF); 2004 [cited 2017 Feb 14]. (Série C. Projetos, Programas e Relatórios). Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/condicoes_saude_bucal.pdf
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoe...
,2121. Peres MA, Fernandes LS, Peres KG. Inequality of water fluoridation in Southern Brazil: the inverse equity hypothesis revisited. Soc Sci Med. 2004;58(6):1181-9. https://doi.org/10.1016/S0277-9536(03)00289-2
https://doi.org/10.1016/S0277-9536(03)00...
decorreram em grande parte do modelo de saneamento adotado pelo país, no qual a distribuição e o acesso aos serviços não constituíam exemplo de equidade1818. Najar AL, Fiszon JT. Política pública e o modelo de saneamento no Brasil. In: Costa NR, Minayo CS, Ramos CL, Stotz EN. Demandas populares, políticas públicas e saúde. Petrópolis: Vozes; 1989. v.1., predominando uma forte concepção empresarial, na qual os investimentos eram orientados para as obras que permitiam elevada rentabilidade e rápido retorno do capital investido1515. Jacobi PR. Movimentos sociais e Estado: efeitos político-institucionais da ação coletiva. In: Costa NR, Minayo MCS, Ramos CL, Stotz EM, Atiê E, Hollanda E, et al. Demandas populares, políticas públicas e saúde. V. 2. Movimentos Sociais e Cidadania. Petrópolis: Vozes; 1989. p.13-35..

A despeito dessa importante expansão da cobertura populacional justamente nos segmentos mais necessitados do acesso a esse benefício, cabe destacar que, dos 884 municípios que passaram a assegurar a política pública em 2008, 45,7% (404) eram municípios com alto IDH-M e 23,7% (241) com médio IDH-M, uma mudança que aumentou em 6,6% a desigualdade absoluta total entre as taxas de cobertura municipal, ensejando que a política pública permanece reproduzindo a “lei de Hart” em favor dos municípios melhor posicionados quanto ao nível de desenvolvimento humano.

Além disso, 105 municípios deixaram de ser beneficiados pela medida, dos quais 94 eram municípios com menos de 50 mil habitantes e 87 com nível de desenvolvimento humano médio ou alto, ensejando indagações sobre quais seriam as razões que teriam levado a essa interrupção. Considerando que a interrupção dessa política pública pode ser tecnicamente injustificada, juridicamente ilegal e eticamente injusta2020. Narvai PC. Cárie dentária e flúor: uma relação do século XX. Cienc Saude Coletiva. 2000;5(2):381-92. http://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232000000200011.
http://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232000...
, justifica-se investigar quais providências estariam sendo adotadas pelas autoridades e pelas comunidades para interpelar os responsáveis e agir para reverter a interrupção.

Entre as limitações deste estudo, cabe ponderar sobre os valores de cobertura da intervenção em saúde. Admite-se algum grau de imprecisão, pois os dados disponíveis resultam de processos não completamente validados com o emprego de técnicas adequadas77. Frazão P, Soares CCS, Fernandes GF, Marques RAA, Narvai PC. Fluoretação da água e insuficiências no sistema de informação da política de vigilância à saúde. Rev Assoc Paul Cir Dent. 2013 [cited 2017 Feb 14];67(2):94-100. Available from: http://revodonto.bvsalud.org/pdf/apcd/v67n2/a02v67n2.pdf
http://revodonto.bvsalud.org/pdf/apcd/v6...
. Pode haver alguma superestimação dos valores em relação às coberturas populacionais, devido ao número de habitantes residindo em área rural alcançados apenas indiretamente pela política pública. Adicionalmente, a superestimação pode decorrer das coberturas municipais, dado que a situação da fluoretação foi obtida pelo IBGE por meio de questionário junto às entidades prestadoras dos serviços de saneamento sem menção a nenhuma outra fonte de informação1212. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional de Saneamento Básico. Brasília (DF): IBGE; 2000 [cited 2017 Feb 14]. Available from: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/condicaodevida/pnsb/
http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/...
,1313. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional de Saneamento Básico. Brasília (DF): IBGE; 2008 [cited 2017 Feb 14]. Available from: http://ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/condicaodevida/pnsb2008/default.shtm
http://ibge.gov.br/home/estatistica/popu...
. Considerando que os desfechos decorrentes dessa medida preventiva podem ser medidos somente alguns anos após sua implementação, recomenda-se que o controle da fluoretação seja feito por organismos não diretamente responsáveis pelo tratamento da água (princípio do heterocontrole), por meio da avaliação direta de amostras de água colhidas na rede de distribuição2020. Narvai PC. Cárie dentária e flúor: uma relação do século XX. Cienc Saude Coletiva. 2000;5(2):381-92. http://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232000000200011.
http://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232000...
,2525. Schneider-Filho DA, Prado IT, Narvai PC, Barbosa SR. Fluoretação da água: como fazer a vigilância sanitária? Rio de Janeiro: Rede CEDROS; 1992. (Cadernos de Saúde Bucal, 2).. Assim, assegura-se a qualidade do processo, a validade da informação e a confiabilidade para alcance das metas de saúde bucal. Além disso, em muitos municípios brasileiros, apenas as populações dos núcleos urbanos têm acesso à água tratada.

Pode-se argumentar que algum estudo similar, utilizando critério distinto de classificação dos municípios segundo o tamanho da população, poderia produzir resultados distintos dos encontrados nesta pesquisa. De fato, é sempre difícil estabelecer critérios que permitam obter uma composição balanceada das categorias segundo o porte demográfico. A maioria dos municípios brasileiros concentra uma fração muito pequena da população total. De um lado, cerca de metade dos municípios brasileiros tem pouco mais de 10 mil habitantes, e de outro, 1/3 da população total reside em 56 municípios. Para explorar esse aspecto, foram calculados os valores de desigualdade absoluta e relativa dos indicadores de efeito e de impacto total, adotando duas outras possibilidades de classificação dos municípios. Na primeira, os municípios foram divididos em tercis segundo o tamanho da população, ou seja, um tercil dos menos populosos, um tercil intermediário e um tercil dos municípios mais populosos. Na segunda classificação, os municípios foram agrupados conforme o tercil da frequência acumulada da população, ou seja, cada um dos tercis concentrava 1/3 da população total. Pequenas variações foram notadas, mas em nenhuma das situações mencionadas houve mudança no sentido das inferências, confirmando os resultados mostrados neste estudo.

Em decorrência, pode-se concluir que, no período analisado, a taxa de cobertura da fluoretação da água aumentou 8,6%, com ampliação expressiva em municípios com menos de 10 mil habitantes (21,0 pp) e com IDH-M baixo e muito baixo (17,7 pp). Entre 2000 e 2008, observou-se redução expressiva da desigualdade total relativa, tanto em termos da cobertura populacional quanto da cobertura do número de municípios segundo as categorias de porte demográfico e IDH-M. A desigualdade total absoluta também diminuiu excetuando-se as taxas de cobertura municipal segundo as categorias de desenvolvimento humano. Segundo dados oficiais, no período de 2005 a 2008 foram instalados 711 novos sistemas de fluoretação, em 503 municípios, em 11 estados, beneficiando 7,6 milhões de brasileiros11. Antunes JLF, Narvai PC. Políticas de saúde bucal no Brasil e seu impacto sobre as desigualdades em saúde. Rev Saude Publica. 2010;44(2):360-5. https://doi.org/10.1590/S0034-89102010005000002.
https://doi.org/10.1590/S0034-8910201000...
,2323. Pucca Junior GA, Costa JFR, Chagas LD, Silvestre RM. Oral health policies in Brazil. Braz Oral Res. 2009;23 Suppl 1:9-16. https://doi.org/10.1590/S1806-83242009000500003.
https://doi.org/10.1590/S1806-8324200900...
. Os resultados observados sugerem que os esforços realizados tanto pelo nível federal, quanto pelos níveis estaduais de governo, não foram suficientes para acelerar a expansão da medida nos municípios de muito baixo ou baixo IDH-M e que é preciso reajustar as estratégias de implementação.

Apesar disso, a política pública da fluoretação obteve desempenho compatível com os requisitos de produzir benefícios em saúde e, concomitantemente, contribuir para a diminuição de desigualdades. Com isso, a água de abastecimento público, de especial interesse para a saúde pública, operou no cenário brasileiro, nos termos descritos neste artigo, como fator de proteção sanitária, no contexto das políticas de proteção social em curso no país.

Referências bibliográficas

  • 1
    Antunes JLF, Narvai PC. Políticas de saúde bucal no Brasil e seu impacto sobre as desigualdades em saúde. Rev Saude Publica 2010;44(2):360-5. https://doi.org/10.1590/S0034-89102010005000002
    » https://doi.org/10.1590/S0034-89102010005000002
  • 2
    Baldani MH, Fadel CB, Possamai T, Queiroz MGS. A inclusão da odontologia no Programa Saúde da Família no Estado do Paraná, Brasil. Cad Saude Publica 2005;21(4):1026-35. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-311X2005000400005
    » http://dx.doi.org/10.1590/S0102-311X2005000400005
  • 3
    Barros AJD, Victora CG. Measuring coverage in MNCH: determining and interpreting inequalities in coverage of maternal, newborn, and child health Interventions. PLoS Med 2013;10(5):e1001390. https://doi.org/10.1371/journal.pmed.1001390
    » https://doi.org/10.1371/journal.pmed.1001390
  • 4
    Centers for Disease Control and Prevention - CDC. Achievements in Public Health, 1900-1999: fluoridation of drinking water to prevent dental caries. MMW Morb Mortal Wkly Rep 1999 [cited 2017 Feb 16];48(41);933-40. Available from: https://www.cdc.gov/Mmwr/preview/mmwrhtml/mm4841a1.htm
    » https://www.cdc.gov/Mmwr/preview/mmwrhtml/mm4841a1.htm
  • 5
    Ferreira RGLA, Bógus CM, Marques RAA, Menezes LMB, Narvai PC. Fluoretação das águas de abastecimento público no Brasil: o olhar de lideranças de saúde. Cad Saude Publica 2014;30(9):1884-90. https://doi.org/10.1590/S0102-311X2005000400005
    » https://doi.org/10.1590/S0102-311X2005000400005
  • 6
    Frazão P, Peres MA, Cury JA. Qualidade da água para consumo humano e concentração de fluoreto. Rev Saude Publica 2011;45(5):964-73. https://doi.org/10.1590/S0034-89102011005000046
    » https://doi.org/10.1590/S0034-89102011005000046
  • 7
    Frazão P, Soares CCS, Fernandes GF, Marques RAA, Narvai PC. Fluoretação da água e insuficiências no sistema de informação da política de vigilância à saúde. Rev Assoc Paul Cir Dent 2013 [cited 2017 Feb 14];67(2):94-100. Available from: http://revodonto.bvsalud.org/pdf/apcd/v67n2/a02v67n2.pdf
    » http://revodonto.bvsalud.org/pdf/apcd/v67n2/a02v67n2.pdf
  • 8
    Gabardo MC, Silva WJ, Olandoski M, Moysés ST, Moysés SJ. Inequalities in public water supply fluoridation in Brazil: an ecological study. BMC Oral Health 2008;8:9. https://doi.org/10.1186/1472-6831-8-9
    » https://doi.org/10.1186/1472-6831-8-9
  • 9
    Haq MU. Reflections on human development. New York: Oxford University Press; 1996.
  • 10
    Harper S, Lynch J. Methods for measuring cancer disparities: a review using data relevant to Healthy People 2010 cancer-related objectives. Bethesda (MD): National Cancer Institute; 2006 [cited 2017 Feb 18]. (NCI Cancer Surveillance Monograph Series, 6). Available from: https://seer.cancer.gov/archive/publications/disparities/measuring_disparities.pdf
    » https://seer.cancer.gov/archive/publications/disparities/measuring_disparities.pdf
  • 11
    Hart JT. The inverse care law. Lancet 1971;297(7696):405-12. https://doi.org/10.1016/S0140-6736(71)92410-X
    » https://doi.org/10.1016/S0140-6736(71)92410-X
  • 12
    Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional de Saneamento Básico. Brasília (DF): IBGE; 2000 [cited 2017 Feb 14]. Available from: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/condicaodevida/pnsb/
    » http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/condicaodevida/pnsb/
  • 13
    Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional de Saneamento Básico. Brasília (DF): IBGE; 2008 [cited 2017 Feb 14]. Available from: http://ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/condicaodevida/pnsb2008/default.shtm
    » http://ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/condicaodevida/pnsb2008/default.shtm
  • 14
    Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde. Atlas Água Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; c2010 [cited 2017 Feb 19]. Available from: http://www.aguabrasil.icict.fiocruz.br/index.php
    » http://www.aguabrasil.icict.fiocruz.br/index.php
  • 15
    Jacobi PR. Movimentos sociais e Estado: efeitos político-institucionais da ação coletiva. In: Costa NR, Minayo MCS, Ramos CL, Stotz EM, Atiê E, Hollanda E, et al. Demandas populares, políticas públicas e saúde. V. 2. Movimentos Sociais e Cidadania. Petrópolis: Vozes; 1989. p.13-35.
  • 16
    McDonagh MS, Whiting PF, Wilson PM, Sutton AJ, Cheestnutt I, Cooper J, et al. Systematic review of water fluoridation. Br Med J 2000;321(7265):855-9. https://doi.org/10.1136/bmj.321.7265.855
    » https://doi.org/10.1136/bmj.321.7265.855
  • 17
    Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Básica, Coordenação Nacional de Saúde Bucal. Projeto SB Brasil 2003: condições de saúde bucal da população brasileira 2002-2003: resultados principais. Brasília (DF); 2004 [cited 2017 Feb 14]. (Série C. Projetos, Programas e Relatórios). Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/condicoes_saude_bucal.pdf
    » http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/condicoes_saude_bucal.pdf
  • 18
    Najar AL, Fiszon JT. Política pública e o modelo de saneamento no Brasil. In: Costa NR, Minayo CS, Ramos CL, Stotz EN. Demandas populares, políticas públicas e saúde. Petrópolis: Vozes; 1989. v.1.
  • 19
    Narvai PC, Frazão P. Epidemiologia, política e saúde bucal coletiva. In: Antunes JLF, Peres MA, editores. Epidemiologia da saúde bucal. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2006. p.346-62.
  • 20
    Narvai PC. Cárie dentária e flúor: uma relação do século XX. Cienc Saude Coletiva 2000;5(2):381-92. http://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232000000200011
    » http://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232000000200011
  • 21
    Peres MA, Fernandes LS, Peres KG. Inequality of water fluoridation in Southern Brazil: the inverse equity hypothesis revisited. Soc Sci Med 2004;58(6):1181-9. https://doi.org/10.1016/S0277-9536(03)00289-2
    » https://doi.org/10.1016/S0277-9536(03)00289-2
  • 22
    Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento; Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; Fundação João Pinheiro; Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil. Brasília (DF); 2010 [[cited 2014 Sep 26]. Available from: http://www.pnud.org.br
    » http://www.pnud.org.br
  • 23
    Pucca Junior GA, Costa JFR, Chagas LD, Silvestre RM. Oral health policies in Brazil. Braz Oral Res 2009;23 Suppl 1:9-16. https://doi.org/10.1590/S1806-83242009000500003
    » https://doi.org/10.1590/S1806-83242009000500003
  • 24
    Rigo L, Abegg C, Bassani DG. Cárie dentária em escolares residentes em municípios do Rio Grande do Sul, Brasil, com e sem fluoretação nas águas. Rev Sul Bras Odontol 2010 [cited 2017 Feb 14];7(1):57-65. Available from: http://pesquisa.bvs.br/brasil/resource/pt/lil-541644
    » http://pesquisa.bvs.br/brasil/resource/pt/lil-541644
  • 25
    Schneider-Filho DA, Prado IT, Narvai PC, Barbosa SR. Fluoretação da água: como fazer a vigilância sanitária? Rio de Janeiro: Rede CEDROS; 1992. (Cadernos de Saúde Bucal, 2).
  • 26
    Victora CG, Vaughan JP, Barros FC, Silva AC, Tomasi E. Explaining trends in inequities: evidence from Brazilian child health studies. Lancet 2000;356(9235):1093-8. https://doi.org/10.1016/S0140-6736(00)02741-0
    » https://doi.org/10.1016/S0140-6736(00)02741-0
  • 27
    World Health Organization. Fluorine and fluorides. Geneva: WHO; 1984 [cited 2017 Feb 14]. (Environmental Health Criteria, 36). Available from: http://www.inchem.org/documents/ehc/ehc/ehc36.htm
    » http://www.inchem.org/documents/ehc/ehc/ehc36.htm

  • Financiamento: O primeiro autor é pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq 303681/2016-0).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Maio 2017

Histórico

  • Recebido
    1 Maio 2015
  • Aceito
    4 Abr 2016
Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revsp@org.usp.br