Itinerários terapêuticos de travestis da região central do Rio Grande do Sul, Brasil

Therapeutic itineraries of transvestites from the central region of the state of Rio Grande do Sul, Brazil

Martha Helena Teixeira de Souza Marcos Claudio Signorelli Denise Martin Coviello Pedro Paulo Gomes Pereira Sobre os autores

Resumos

A proposta geral deste texto é apresentar os itinerários terapêuticos de travestis do município de Santa Maria, região central do Rio Grande do Sul. O estudo objetivou acompanhar as complexas trajetórias percorridas pelas travestis, em busca de cuidados com a saúde. A pesquisa de campo realizou-se no período compreendido de janeiro a novembro de 2012, com travestis advindas de municípios do Rio Grande do Sul, residindo em Santa Maria no momento da pesquisa. Trata-se de metodologia qualitativa por meio de pesquisa etnográfica. Os resultados demonstraram que as interlocutoras evitam os serviços institucionalizados de saúde, optando por outras formas de cuidado. Destacou-se em relação a esse aspecto que, das 49 travestis que fizeram parte da pesquisa, 48 frequentavam o que denominavam de "casas de religião afro" ou "batuque". As interlocutoras indicaram sua opção em frequentar as "casas de religião afro" por identificá-las como espaços que, sem questionar as modificações corporais e sua orientação sexual, ofereciam formas de cuidado e proteção. Este artigo pode contribuir proporcionando certa visibilidade às inusitadas trajetórias das travestis em busca de cuidado em saúde.

Travesti; Itinerário terapêutico; Cuidado; Religião


The scope of this paper is to shed light on the therapeutic itineraries of transvestites from Santa Maria in the central region of the state of Rio Grande do Sul in southern Brazil. The study sought to follow the complex trajectories followed by transvestites in their quest for health care. Field research was conducted between January and November 2012 with transvestites from different cities in the state who were living in Santa Maria at the time. It involved qualitative methodology using ethnographic research. The results showed that the interviewees avoid institutionalized health services, opting for other forms of health care. In this respect, it is noteworthy that of the group of 49 transvestites who were included in this study, 48 sought health care in "African religion groups" or "batuque" ("drumming"), as they refer to them. The transvestites stated that they opted for "African religion groups" as they saw them as places that were able to afford forms of care and protection, without questioning bodily changes and sexual orientation. This article may help to shed light on some of the unusual trajectories of transvestites in their quest for health care.

Transvestite; Therapeutic itinerary; Care; Religion


Introdução

O objetivo deste trabalho é apresentar os itinerários terapêuticos de travestis residentes em Santa Maria, município da região central do Rio Grande do Sul. Durante o trabalho de campo acompanhamos as complexas trajetórias percorridas pelas travestis em busca de cuidados com a saúde, em vários espaços e instâncias.

Alguns autores e autoras vêm se dedicando aos estudos sobre as travestis11. Silva H. Travesti: a invenção do feminino. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, ISER; 1993.

2. Kullick D. Travesti: Prostituição, Sexo, Gênero e Cultura no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2008.

3. Benedetti MR. Toda feita: o corpo e o gênero das travestis. Rio de Janeiro: Garamond; 2005.

4. Pelúcio L. Nos nervos, na carne, na pele: uma etnografia sobre prostituição travesti e o modelo de prevenção da aids [tese]. São Carlos: Universidade Federal de São Carlos; 2007.

5. Pelucio L, Miskolci R. A prevenção do desvio: o dispositivo da aids e a repatologização das sexualidades dissidentes. Revista Latinoamericana Sexualidad, Salud y Sociedad 2009; 1:125-157.

6. Duque T. Montagens e desmontagens: vergonha, estigma e desejo na construção das travestilidades na adolescência [dissertação]. São Carlos: Universidade Federal de São Carlos; 2009.

7. Ornat MJ. Território Descontínuo e Multiterritorialidade na Prostituição Travesti através do Sul do Brasil [tese]. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2011.
-88. Tagliamento G. (In)visibilidades caleidoscópicas: a perspectiva das mulheres trans sobre seu acesso a saúde integral [tese]. São Paulo: Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo; 2012.. Tais estudos permitiram ampliar o entendimento sobre numerosos aspectos do universo destas, promovendo reflexões sobre as questões de gênero, políticas públicas e espacialidades. Contudo, subsistem lacunas e indagações. Uma das lacunas recai sobre como as travestis percorrem os itinerários terapêuticos na busca do cuidado com a saúde.

Os estudos sobre itinerários terapêuticos são relativamente recentes. Apesar de sua potencialidade para a compreensão das particularidades em relação ao cuidado em saúde, há muito que se fazer na pesquisa dessa temática no Brasil99. Cabral ALLV, Hemáez AM, Andrade ELG, Cherchiglia ML. Itinerários terapêuticos: o estado da arte da produção científica no Brasil. Cien Saude Colet 2011; 16(11):4433-4442.. O modo de viver, delineado pelo contexto que cada sujeito está inserido, produz itinerários de cuidados diferenciados nas sociedades. O cuidado, em suas variadas formas, é também mediado pelas questões culturais.

Para compreender como as travestis percorrem trajetórias para o cuidado é importante conhecer as estratégias utilizadas em seus itinerários, e as soluções encontradas para evitar espaços em que sabidamente sofrerão preconceitos e violências por suas opções de gênero, por sua sexualidade e pelas modificações corporais.

As travestis desestabilizam as fronteiras de gênero tradicionalmente construídas, enfrentando dificuldades em múltiplos cenários, sendo um deles os serviços públicos de saúde. Como constroem para si uma imagem feminina (inserindo em seus corpos símbolos do que é socialmente tido como femininos), além de construir um biocorpo feminino sem, no entanto, extirpar sua genitália, as travestis desestabilizam as fronteiras de gênero e sexualidade. Tais características conduzem a conflitos constantes já que questionam a heteronormatividade. As travestis escolhem para sua identificação nomes de mulheres, geralmente glamourosos, evitando ao máximo utilizarem suas carteiras de identidade oficiais com nomes masculinos, o que conduz a processos de afastamentos dos serviços públicos.

A influência do gênero nas questões referentes à saúde/doença pode ser percebida em muitas dimensões, entre as quais a definição de itinerários terapêuticos e o acesso aos serviços e políticas públicas1010. Victora C, Knauth DR. Corpo, gênero e saúde: a contribuição da antropologia. In: Strey MN, Cabeda STL, organizadores. Corpos e subjetividade em exercício interdisciplinar. Porto Alegre: EdiPUCRS; 2004. p. 81-91..

Utilizaremos aqui o termo "itinerário terapêutico" como sinônimo de busca por cuidados terapêuticos, com o propósito de descrever e analisar os caminhos percorridos por indivíduos na tentativa de solucionar o seu problema de saúde, considerando as práticas individuais e socioculturais1111. Gerhardt TE. Itinerários terapêuticos em situações de pobreza: diversidade e pluralidade. Cad Saude Publica 2006; 22(11):2449-2463..

Metodologia

Baseamos este trabalho em metodologia qualitativa de estudo, por meio de uma pesquisa etnográfica, na qual se adotaram procedimentos de observação participante, entrevistas em profundidade e acompanhamento da vida cotidiana das interlocutoras. A opção pela investigação etnográfica deveu-se, em parte, por sua relevância e atualidade nas pesquisas em saúde1010. Victora C, Knauth DR. Corpo, gênero e saúde: a contribuição da antropologia. In: Strey MN, Cabeda STL, organizadores. Corpos e subjetividade em exercício interdisciplinar. Porto Alegre: EdiPUCRS; 2004. p. 81-91.,1212. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec; 2000.. Clifford Geertz1313. Geertz C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar; 1978. argumentou que etnografia não é definida pelas técnicas que emprega, como observação participante e entrevistas, mas por um tipo particular de esforço intelectual que ele descreve como uma 'descrição densa'. Esta descrição, tipicamente obtida por meio de imersão na vida diá ria do grupo pesquisado, focaliza-se nos detalhes e informações subjacentes, almejando explicar modos de vida e descrevendo padrões de significado que informam suas ações, assim como os tornam acessíveis.

Realizamos a pesquisa de campo no período de janeiro a novembro de 2012. Coletamos dados mediante observações cotidianas e anotamos as entrevistas em diário de campo. Os dados, registrados no caderno de campo, permitem captar informações que as entrevistas e máquinas fotográficas não alcançam1414. Magnani JG. O velho e bom caderno de campo. Revista Sexta Feira 1997; 1:8-12..

Gravamos as falas e, logo após, transcrevemos, para proporcionarem uma reflexão crítica dos dados coletados. Abordamos ao longo da pesquisa 49 travestis, residentes no município de Santa Maria (RS). Após a leitura exaustiva das transcrições, agrupamos os dados em categorias e estes foram analisados tematicamente de acordo com os objetivos do estudo. A análise antropológica foi resultado de todas as etapas de produção do conhecimento. O olhar (a observação), o ouvir (as entrevistas) e o escrever (a análise e a interpretação dos dados) como atos cognitivos são disciplinados no horizonte da Antropologia1515. Oliveira RC. O trabalho do antropólogo: olhar, ouvir, escrever. In: Oliveira RC, organizador. O trabalho do antropólogo. 2a ed. Brasília: Unesp; 2006. p. 17-36..

Informamos a todas as interlocutoras sobre os objetivos do estudo e estas assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. O projeto obteve a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Respeitamos a decisão voluntária de desejar ou não participar da pesquisa, bem como garantimos o anonimato e, para isso, se utilizaram pseudônimos para identificar as participantes.

Resultados e discussão

A idade das interlocutoras variou entre 18 e 53 anos tendo como escolaridade predominante o ensino fundamental incompleto. As travestis eram provenientes de municípios do Rio Grande do Sul, entre eles: Pelotas, Bagé, Cacequi, Itaqui, Cruz Alta, Porto Alegre, Santa Cruz, Ijuí, Rio Grande, São Gabriel, Campo Bom e Santa Maria. Com relação à atividade laboral, três participantes desta pesquisa atuam como mães de santo, uma como pai de santo, duas são diaristas, uma realiza serviços gerais na rodoviária, uma é presidente da Organização Não Governamental (ONG) Igualdade, e as demais são profissionais do sexo.

A ideia inicial deste estudo foi acompanhar as travestis durante seus atendimentos nos serviços institucionalizados de saúde. E assim procedemos por meses. No entanto, no decorrer da pesquisa, a experiência etnográfica transportou-nos para outro caminho, trilhado também em busca de cuidados, inclusive com a saúde: o "batuque" ou, como elas denominam, a "religião afro", como será mostrado no texto.

Essa opção das travestis e esses itinerários sugerem que embora a biomedicina detenha o monopólio legitimado das soluções curativas referentes às questões de enfermidade nas sociedades ocidentais contemporâneas, não se constitui como sendo a única forma de pensar o processo saúde-doença. Essa dimensão encontrada em nossa pesquisa também foi relatada por Luz1616. Luz M. Cultura contemporânea e medicinas alternativas: novos paradigmas em Saúde no fim do século XX. Physis 2005; 15(Supl.):145-176.. Conforme esta autora, particularmente as populações vivendo em condições de grandes desigualdades sociais, buscam itinerários de cuidados alternativos, como é o caso, por exemplo, de religiões afro-indígenas. Fato este que não atingiu apenas o Brasil, mas, o conjunto de países latino-americanos, principalmente a partir da década de 1980.

Há uma persistente opção por descrever os itinerários de maneira a pensá-los como relacionados ao trânsito de sujeitos pelos aparelhos oficiais de saúde. Esta seria apenas parte de uma trajetória que é mais complexa, como pretendemos demonstrar. Compreender os itinerários de forma parcial, vinculados somente às instâncias médico-hospitalares, acaba por indicar uma relação de exclusividade entre doença/cura e biomedicina1717. Pinho PA, Pereira PPG. Itinerários Terapêuticos: trajetórias entrecruzadas na busca por cuidados. Interface (Botucatu) 2012; 16(41):435-447..

Com o propósito de elucidar os itinerários terapêuticos aqui seguidos, organizamos o texto da seguinte forma: primeiro, a trajetória da construção travesti e as primeiras dificuldades encontradas, em seguida relatamos o itinerário de cuidados nos espaços percorridos por elas, tais como os locais públicos e também os serviços públicos de saúde. Por fim, apresentamos as considerações a respeito do que foi exposto pelas interlocutoras sobre o itinerário no "batuque".

A trajetória da construção travesti

Das interlocutoras que participaram da pesquisa, a maioria divide aluguel com outras travestis. Raramente residem com familiares, principalmente as que exercem a função de profissionais do sexo. É uma constante o perambular das travestis, de um município para outro, em busca de moradias. Após situações que envolvem a expulsão ou mesmo a rejeição das interlocutoras da família biológica, as pensões de travestis são as mais procuradas.

Ao buscarem formar "casas" de convivência entre travestis, elas criam novos laços muitas vezes ampliando a noção de família: ali elas constroem relações de afeto, sendo identificadas por manas. A fala de Jeny, 20 anos, esclarece esta nova relação familiar quando expõe que somos manas agora, cuidamos uma da outra, como família mesmo. Essa família nasce amiúde em contraste com as experiências da família nuclear, como indica o relato de Jessye, 18 anos, que apontou uma situação de violência vivenciada pela maioria do grupo:

Meu pai batia muito a minha cabeça na parede. Quando eu tinha uns cinco anos ele dava socos na minha cabeça e jogava o meu corpo em cima das coisas, pois já percebia que eu era gay, e não aceitava. Era bem ruim e eu chorava muito. Depois ele aceitou mais. Disse até que eu podia ser gay, mas usar roupas de mulher, nem morta! Um tempo depois comecei a me vestir de mulher. Um dia esqueci-me de tirar as roupas da minha mãe que estava usando. Quase me matou de tanto bater. Ele percebeu que eu já estava travesti. Então eu saí de casa e fui morar com outras travestis, porque não aguentava mais!

Morar junto em uma pensão implica em algumas regras que devem ser respeitadas. O grupo sempre comenta a drogadição, e quando algumas fazem o uso do crack não permanecem nas residências. O cuidado com o crack explica-se em falas como quem é pedreira sempre acaba roubando e morar junto vira um problema. O alerta sobre os efeitos do crack vem sempre das mais experientes que já assistiram ou mesmo vivenciaram situações envolvendo o uso de drogas, gerando situações de violência ou criminalização. Provavelmente, o que mais sensibilize para evitar o uso da droga, é que ela causa um descuido com o corpo, afetando a falta de clientela para as que trabalham como profissionais do sexo. Outro fator importante é o relato de histórias de dificuldade de largar o vício, ocasionando sérios problemas de saúde. De qualquer forma, a estética, o corpo, está no centro das preocupações, superando o cuidado mais diretamente relativo à esfera biomédica.

É nesse convívio com outras travestis que se ampliam as trajetórias para o cuidado com as mudanças corporais. As trocas de informações entre elas conduzem à realização de constantes alterações na sua aparência física. Para as alterações, há um movimento intenso na região a procura de uma "bombadeira". Estas, em geral, são travestis mais velhas, que adquiriram experiência em injetar silicone industrial. A utilização de hormônios e silicone é amplamente debatida e todas conhecem seus "problemas" e "riscos". Alguns motivos são apontados para o silicone industrial ser a primeira opção: facilidade de acesso, custo menor do que cirurgia, não serem julgadas pelo procedimento e também pelo fato de o líquido "se movimentar" no corpo e ser mais facilmente moldado (principalmente nos quadris e pernas). Durante as sessões de silicone, permanecem deitadas em média de 8 a 12 horas, dependendo da quantidade e local em que este será injetado. Nestas ocasiões são amarradas com meias de nylon ou ataduras de crepom próximas aos locais em que serão injetados o silicone, para evitar que escorra para outra parte do corpo. Ao término destas sessões, os orifícios que resultaram da retirada das agulhas são ocluídos com cola super bonder, impedindo que derrame para fora da pele. É necessária a utilização de pressão na seringa para a entrada do silicone no corpo das travestis. Todas garantem não sentir dor. Relatam apenas tonturas e dificuldades para os deslocamentos durante os longos períodos de inserção do silicone em seus corpos, como revela a fala de Ashley, 29 anos:

A gente sabe que é arriscado, portanto a culpa nunca vai ser da bombadeira se acontecer alguma coisa. Se morrermos em uma sessão para bombar ela pode jogar o corpo em qualquer lugar escondido e ninguém vai lá brigar. O importante é o corpo ficar belo. Difícil é aguentar o tempo de repouso para mostrar o corpo modelado. Porque precisa ficar deitada no mínimo uns 15 dias para ele [silicone] endurecer e poder sair de casa. Quando não aguentamos respeitar este tempo, as vezes o silicone escorre. Muitas têm problemas para conseguir sapato quando ele desce para os pés, por exemplo. Não dói nada, mas quando chega no final já estamos cansadas, ficamos tontas. É difícil para ir ao banheiro também. Se sentarmos no vaso, fica a marca da tampa, pois o líquido se move. Precisamos fazer tudo em pé, sempre com o chuveirinho do lado para limpar depois. Mas vale a pena, o corpo vai ficando lindo. (Ashley)

Todo esse movimento e deslocamentos são para produzir transformações no próprio corpo. A utilização de hormônios, de silicone, cirurgias, maquiagens cada vez mais sofisticadas, a retirada dos pelos, o preparo dos longos apliques de cabelos, a colocação de lentes de contato coloridas, formas de esconder o pênis, em processos de deslocamento de gênero e sexualidade. As travestis revelam que esta transformação corporal geralmente provoca preconceito e violência nos caminhos por onde passam, como sugere Francy, 25 anos: quando as pessoas cruzam por nós na rua apontam, gritam, se espantam e, às vezes, atiram coisas. Não suportam ver um corpo diferente. No sentido de evitarem a violência, utilizam de táticas de cuidados nas trajetórias percorridas, como exposto na sequência.

Itinerário de cuidados nos espaços percorridos pelas travestis

As travestis elaboram táticas específicas de cuidado nos espaços pelos quais circulam. Apresentam, no seu itinerário, formas de cuidado que representam um conjunto de performances que se flexibiliza ao longo dos espaços percorridos. A noção de espaço, aqui entendido também como espaço social, vai além da concepção de distâncias e de identificação de características de funcionalidade e de convivência. Trata-se de uma relação intrínseca entre o espaço configurado e seu próprio corpo, que estabelece limites e possibilidades de existência e socialidade. Esta íntima percepção espacial traduz-se em um aprendizado compartilhado entre o grupo. Importante destacar que a noção de espaço amplia-se, incluindo o seu próprio corpo, que vai sendo moldado e modificado durante o trajeto, como sugere a experiência de Katy.

Ao citar os locais permitidos para o trânsito livre das travestis, Katy, 25 anos, mãe de santo, salienta que na vida, a travesti sabe que pode escolher viver entre três salões: o salão de beleza, o salão dos orixás ou o salão da rua, que é a prostituição. No momento que faz esta revelação, explica que, assim como outras orientações, este ditame é aprendido com as mais experientes, desde o momento que começam suas transformações corporais. O início da tomada de hormônios femininos, a utilização de silicone, o cuidado com o crescimento dos cabelos e a retirada dos pelos vai transformando o corpo das travestis e ao mesmo tempo limitando ou não os trajetos por elas percorridos. Há espaços nos quais podem exibir todo seu glamour (boates, bares, desfiles de carnaval) bem como ambientes nos quais é necessário transitar discretamente ou mesmo evitar.

Como foi mostrado no ítem anterior, no sentido de esquivarem-se de dificuldades nos seus percursos, é comum as travestis, além de abandonarem o convívio familiar, evitarem o trânsito nos espaços públicos durante o dia: a rua, a farmácia, o mercado, a padaria e, muitas vezes, os serviços de saúde institucionalizados. Para tanto, utilizam-se dos serviços de tele entrega para os produtos farmacêuticos, visita de vendedoras de produtos de beleza no domicílio, a utilização de táxi com motorista de referência para os deslocamentos necessários e assim por diante. Uma alternativa utilizada é a venda de alimentos e bebidas na própria pensão das travestis, como esclarece Ashley: montei um mercadinho dentro de casa, assim evitamos sair na rua.

Percebemos que existem espaços nos quais podem exibir todo seu glamour (boates, bares, desfiles de carnaval) bem como ambientes nos quais é necessário transitar discretamente (locais públicos). Observamos também que quando precisam percorrer itinerários nos quais já sabem que sofrerão rejeição, modificam a postura, utilizando roupas discretas para circularem com menos obstáculos, evitando principalmente a violência.

Como resultado de situações de violência vivenciadas no seu caminho, comumente surgem ferimentos que necessitam de cuidados. Essas situações são comuns, fazendo parte do cotidiano das travestis. Durante o trabalho de campo, por exemplo, ocorreu uma tentativa de homicídio, com duas travestis, gêmeas. O relato de Whitney, 22 anos, abaixo, identifica trechos deste episódio:

Saímos com dois caras depois de uma boate. Quando perceberam que éramos travestis, nos trancaram no carro e agrediram muito, com alicate e chave de fenda. A Natallye conseguiu quebrar os vidros e fugir antes. Correu e pediu socorro. O segurança da boate chamou a polícia. Fomos todos para a delegacia. Mas, mesmo com testemunha, acabamos como bandidas. Ninguém acredita em travesti. Depois, precisamos ir até o serviço de saúde. Só colocaram umas gazes nos machucados. Mesmo explicando que estava doendo muito, não deram remédio. (Whitney)

Apesar das histórias de inadequação do atendimento do serviço público de saúde, as situações de violência enfrentadas levam as travestis a incluírem este itinerário no seu roteiro de cuidados, dos quais não conseguem se esquivar, mesmo quando esses serviços ampliam a violência, como será mostrado a seguir.

O itinerário nos serviços públicos de saúde

No município de Santa Maria não há serviço especializado para atender a diversidade, como é o caso de Uberlândia, em Minas Gerais1818. Teixeira FB. L'Italia dei Divieti: entre o sonho de ser europeia e o babado da prostituição. Cad Pagu 2008; 31:275-308., e de São Paulo1919. Biancarelli A. CRD: o acolhimento como porta de entrada. São Paulo, 2010, out. [acessado 2013 jun 10]. Disponível em: http://www.cepac.org.br/blog/wpcontent/uploads/2011/07/a_diversidade_revelada. pdf
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. Quando procuram os serviços públicos de saúde, de ordinário recorrem ao Pronto Atendimento do município, para o cuidado com ferimentos, ou no Centro de Testagem e Aconselhamento, para a realização de diagnóstico e tratamento para as Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST). Atender à demanda da população com dificuldades agravadas pelos problemas sociais como o estigma nos serviços tem sido um grande desafio para a saúde pública. Tais dificuldades favorecem o redirecionamento de trajetórias dos usuários em busca de cuidados alternativos.

Durante a realização da pesquisa foram frequentes as observações sobre a dificuldade para o atendimento a contento nos serviços públicos de saúde, como se nota na fala de Kelly, 30 anos: Na saúde não é diferente do dia a dia. Tratam a gente como não humanos, por isto eu não vou ao SUS, de jeito nenhum. Se preciso de atendimento, vou onde posso pagar. Pagando sempre respeitam mais. SUS, nem pensar.

Autores como Benedetti33. Benedetti MR. Toda feita: o corpo e o gênero das travestis. Rio de Janeiro: Garamond; 2005. e Pelúcio44. Pelúcio L. Nos nervos, na carne, na pele: uma etnografia sobre prostituição travesti e o modelo de prevenção da aids [tese]. São Carlos: Universidade Federal de São Carlos; 2007. apontaram que a saúde das travestis é relegada à automedicação ou à ação de "bombadeiras". As narrativas de nossas interlocutoras sustentam uma busca por redirecionar as trajetórias sempre que possível, procurando, muitas vezes, a resposta para o cuidado com sua saúde nos serviços particulares. Elas percebem, desde a primeira tentativa, uma barreira no atendimento, que já começa pela sua identificação:

Outro dia fui fazer meu teste anti-HIV e a sala estava cheia de gente. Todo mundo já olha atravessado, é como se tu já tivesse [aids], entende? Deixaram a porta aberta durante o atendimento. Levantei constrangida e tentei fechar a porta. Disseram para eu deixar a porta aberta. Pedi que colocassem meu nome de mulher no prontuário. Mas que nada! Passei o maior constrangimento quando me chamaram pelo nome de homem. Fiz de conta que não era comigo e saí disfarçada. Mas não adianta. Quem está ali percebe que é tu. Além disto, é um descaso, não resolvem o problema. Imagina, se o meu teste tivesse dado positivo para o HIV eu não iria mais lá. É por estas e outras que as pessoas não se tratam. (Ashley)

O relato de Ashley evidencia que sua experiên cia aponta para profissionais de saúde que não atentam às especificidades desses sujeitos, desconhecendo as iniciativas governamentais na tentativa de respeitar a diversidade dos usuários. Lionço2020. Lionço T. Atenção integral à saúde e diversidade sexual no Processo Transexualizador do SUS: avanços, impasses, desafios. Physis 2009; 19(1):43-63. alegou uma ação importante para a promoção do acesso universal ao sistema de saúde com a introdução do direito ao nome social na Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde, em quaisquer serviços dispostos na rede pública de saúde. Com o objetivo de estruturar uma Política Nacional de saúde para a população LGBT, o governo federal lançou o "Programa Brasil sem Homofobia". Outras ações dentro deste programa referem-se à produção de conhecimentos sobre a população LGBT e à capacitação de profissionais de saúde2121. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Brasil sem Homofobia: Programa de Combate à Violência e à Discriminação contra GLBT e Promoção da Cidadania Homossexual. Brasília: MS; 2004.. Visando a cumprir os princípios da universalidade, equidade e integralidade que orientam o SUS, no ano de 2008, o Ministério da Saúde apresentou a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais2222. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais - LGBT. Brasília: MS; 2008.. A área da saúde coletiva, a qual teve um papel determinante na concepção e implementação do Sistema Único de Saúde, tem agora função importante no sentido de fornecer evidências científicas para a elaboração e avaliação das políticas públicas2323. Knauth DR. Mudanças na saúde coletiva e suas inflexões na incorporação da categoria gênero. Cien Saude Colet 2009; 14(4):1014-1016..

Todavia, neste estudo, observamos um hiato entre o que consta no texto das políticas e a prática nos serviços. A fala de Jhesyka, 25 anos, retrata esta problemática:

Quando estamos trabalhando no ponto de prostituição e somos agredidas na rua, procuramos o serviço de saúde para levar pontos, tomar remédio ou outra coisa qualquer. Mas, às vezes é melhor ir para casa e curar sozinha. Em qualquer serviço de saúde que a gente vá nos chamam pelo nome masculino. Mal olham para nós e ainda ficam debochando. Parece que não somos gente. Então, é melhor aguentar a dor em casa.

A situação apontada por Jhesyka demonstra o afastamento do serviço de saúde. Estas situações sugerem uma reflexão sobre as políticas públicas, as quais atuam em uma gramática binária, com políticas de "saúde da mulher" e "saúde do homem"2424. Villela WV, Pereira PPG. Gênero, uma categoria útil (para orientar políticas)? Cien Saude Colet 2012; 17(10):2585-2587.. As transformações corporais, a inadequação entre nome nos documentos e a aparência física parecem também transformar esses corpos estranhos, ambíguos e que não se conformam em corpos precários. As travestis, ao evitarem o serviço de saúde, mobilizam um cuidado de maneira a se protegerem das condições de "vidas precárias": vidas que experimentam terrenos hostis, cuja socialização é marcada pelo rechaço social. O termo vida precária de J Butler2525. Butler J. Vida precária. Contemporânea - Revista de Sociologia da UFSCar 2011; 1:13-33. nos conta sobre todas e todos que aprenderam a compreender-se a partir da injúria da experiência de serem ofendidas por estarem sob suspeita ou serem comprovadamente sujeitos fora da norma heterossexual.

Essas vias precárias, no entanto, constroem para si novos espaços e novas formas de circulação. Acompanhando as travestis nesses complexos caminhos, deparamo-nos com a busca de cuidados que extrapolam os serviços oficiais de saúde. As travestis têm como espaço mais frequentado em busca de cuidados as casas de santo, aspecto que será explorado com mais detalhes a seguir.

O itinerário na "religião afro", o "batuque"

A etnografia mostrou que as travestis optam por outras formas de cuidado: as "casas de religião afro", "casas de santo" ou "batuque". Estudos2626. Carvalho JJ. Violência e caos na experiência religiosa: a dimensão dionisíaca dos cultos afro-brasileiros. In: Moura CEM, organizador. As senhoras do pássaro da noite: Escritos sobre a religião dos orixás. São Paulo: EdUSP, Axis Mundi; 1994. p. 85-120.

27. Correa N. O batuque no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: EdUFRGS; 1992.

28. Correa N. Panorama das religiões afro-brasileiras do Rio Grande do Sul. In: Oro AP, organizador. As religiões afro-brasileiras do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: EdUFRGS; 1994. p. 9-46.

29. Motta R. Sacrifício, mesa, festa e transe na religião afro-brasileira. Horizontes Antropológicos 1995; 3:31-38.

30. Oro A, organizador. As religiões afro-brasileiras do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: EdUFRGS; 1994.

31. Oro A. A Desterritorialização das Religiões Afro-Brasileiras. Horizontes Antropológicos, 1995; 1(3):69-79.

32. Oro A. As religiões afro-brasileiras do Rio Grande do Sul. Debates do NER 2008; 9(13):9.

33. Prandi R. O Brasil com axé: candomblé e umbanda no mercado religioso. Estudos avançados 2004; 18(52):223-238.
-3434. Segato RL. Santos e Daimones: o politeísmo afro-brasileiro e a tradição arquetipal. 2a ed. Brasília: EdUnB; 2005. demonstraram que as religiões afro-brasileiras possuem especificidades ao longo do território brasileiro, entretanto, as interlocutoras desta pesquisa falavam genericamente de "religião afro". No decorrer do trabalho de campo, as nossas interlocutoras argumentaram sistematicamente que a proteção dos orixás, caboclos, pretos velhos, Pombagiras e Exus é fundamental nas suas vidas. Indagada sobre o assunto, Nicky, 32 anos ponderou que trazem saúde, proteção e progresso.

Para dar um panorama daquilo que se denomina religião afro-brasileira, Ari Pedro Oro32 32. Oro A. As religiões afro-brasileiras do Rio Grande do Sul. Debates do NER 2008; 9(13):9.divide essas religiões em modelos de três expressões ritualísticas: a) A primeira cultua os orixás e privilegia os elementos mitológicos, simbólicos, linguísticos, doutrinários e ritualísticos das tradições banto e nagô. Neste grupo estão o candomblé da Bahia, o xangô do Recife, o batuque do Rio Grande do Sul e a casa de mina do Maranhão. b) A segunda, parece ter surgido a partir do candomblé, mesclando tradições e adaptando-se à vida urbana no Brasil. Neste grupo está a macumba e, de acordo com as variações regionais, também se denomina de quimbanda, linha negra, magia negra, umbanda cruzada e linha cruzada. c) A terceira é a umbanda composta por elementos das tradições religiosas católica, africana, indígena, kardecista, oriental. Sobre as religiões afro-brasileiras no Rio Grande do Sul, Correa27 27. Correa N. O batuque no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: EdUFRGS; 1992.e Oro3030. Oro A, organizador. As religiões afro-brasileiras do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: EdUFRGS; 1994.,3535. Oro A. Religiões Afro-brasileiras do Rio Grande do Sul: passado e presente. Estudos Afro-asiáticos 2002; 24(2):345-384. vêm desenvolvendo trabalhos importantes. E sobre batuque no Rio Grande do Sul, Correa2828. Correa N. Panorama das religiões afro-brasileiras do Rio Grande do Sul. In: Oro AP, organizador. As religiões afro-brasileiras do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: EdUFRGS; 1994. p. 9-46. delimitou bem suas especificidades.

Um ponto considerado fundamental para a escolha do "batuque" como forma de cuidado é a maneira como são não apenas recebidas, mas, além disto, aceitas, respeitadas e valorizadas, como salienta Katy. As interlocutoras explicam que nos terreiros de pais e mães de santo não questionam nossa forma de ser, somos aceitas assim, do nosso jeito e isto faz toda a diferença, como ressaltou Lolla, 22 anos. Um dos indícios de como as travestis eram acolhidas nas "casas de santo" pode ser observado no fato de que das seis "casas de santo" que fizeram parte do itinerário desta pesquisa, em quatro delas o pai de santo ou a mãe de santo eram travestis.

A experiência com o "batuque" deve-se a múltiplos fatores. Segundo as interlocutoras, alguns deles são: tradição da família nuclear (Minha avó paterna era de Salvador e também era de batuque); busca de soluções para problemas do cotidiano (quando estou triste vou ao terreiro conversar com meu pai de religião); procura por um amor (algumas travestis vêm na religião afro para arrumar marido); e, proteção contra a violência (pedimos para o nosso pai de santo nos proteger das agressões na rua). Pedir por saúde também é comum.

A terapêutica religiosa constitui uma das alternativas de cura, cuja adesão por parte de seus seguidores é influenciada por experiências individuais ou coletivas de sua eficácia e/ou pela fidelidade a uma religião que regula a vida em geral, incluindo as condutas relativas ao cuidado com o corpo e com a saúde3636. Mota CS, Trad LAB. A gente vive pra cuidar da população: estratégias de cuidado e sentidos para a saúde, doença e cura em terreiros de candomblé. Saúde Soc 2011; 20(2):325-337.. A maioria das religiões e, entre elas, as religiões afro-brasileiras, oferece formulações para lidar com as aflições. Vasconcelos3737. Vasconcelos MO. O xangô do Recife: agenciador de saúde? In: XIII Congresso Brasileiro de Sociologia; 2007 Maio 29-Jun 1; UFPE, Recife (PE). GT 4: O fenômeno religioso. argumenta mesmo que um dos principais sofrimentos que levam as pessoas a se aproximarem dessas religiões é a busca do alívio ou cura de doenças. Já Magnani3838. Magnani JGC. Doença mental e cura na Umbanda. Rev. bras. Ci. Soc. 2002; 17(49):11-29. alerta que a religião, antes de qualquer coisa, oferece um conjunto de noções que constituem pontos de referência diante da imprevisibilidade da vida cotidiana.

As interlocutoras confirmaram que o cuidado para não adoecer é importante na "religião afro", narrando que trabalham mais o lado do cuidado e da proteção e reforçam que a única que apoia e cuida das travestis é o batuque. Alegam que nas "casas de santo" oferecem bandejas de comidas e presentes aos seus orixás, pedindo em troca saúde e proteção. Soraya, 27 anos, explica que cada um tem a sua preferência, sendo que Oxum gosta das coisas belas como espelhos e colares, já Iemanjá recebe lindas flores. Para Exu levamos charutos, cigarros e bebidas e assim por diante. Agradar os orixás na Nação, os caboclos e índios na Umbanda e os Exus na Quimbanda são formas de retribuir o cuidado recebido nos terreiros. Algumas vezes, quando o cuidado para a saúde no "batuque" não resolve a situação, é o próprio pai de santo que faz o encaminhamento ao serviço de saúde, conforme justifica Julye, 27 anos: sempre faço proteção com meu pai de santo para não ficar doente. Mas outro dia ele falou que eu não estava bem, que eu precisava ir ao médico. Só procurei o serviço de saúde porque foi ele quem encaminhou.

As adversidades enfrentadas na vida das travestis podem induzir a busca pela segurança, proteção e cuidado delas na "religião afro". Justificando a procura pela religião, Segato3434. Segato RL. Santos e Daimones: o politeísmo afro-brasileiro e a tradição arquetipal. 2a ed. Brasília: EdUnB; 2005. sugeriu que é no seio de um conturbado e denso contexto, a mercê de arranjos incertos de sociabilidade e da falta das instituições como família, escola, trabalho que, principalmente nos meios urbanos, as religiões afro operam como fontes estruturadoras de modelos de identificação, nas quais os orixás emergiram com a função tutelar em relação à pessoa. Mas não apenas para resolverem seus problemas as travestis frequentam os terreiros de "batuque". Trata-se de um quadro complexo que envolve de uma só vez personagens os quais manejam saberes míticos sofisticados e que constroem uma gramática de gênero e sexualidade que em muito se afasta da heterossexualidade compulsória; reconstruções de corpos por tecnologias; performances rituais nas quais os corpos estão no centro, perfazendo um processo de evocar e produzir esses mesmos corpos3939. Pereira PPG. Queer nos trópicos. Contemporânea. Revista de Sociologia da UFSCar 2012; 2(2):371-394..

Em Santa Maria, os pais e mães de santo dizem que consideram os três lados: Nação, Umbanda e Quimbanda. A pesquisa mostrou que as travestis preferem participar dos rituais da Quimbanda, nos quais reina Exu, pois é o local onde as permite incorporar Pombagira e dançar ao som do batuque, bem como desempenhar performances corporais. Conforme a fala de um pai de santo, as travestis já vêm mais é para o Exu. Gostam bem mais, porque podem receber as Pombagiras. Vêm vestidas de mulher, com saia de armação, usam brincos, colares.

Nas noites de sessão de Quimbanda, as travestis vestem-se com roupas bem femininas e saem à noite, dispensando para isso sua atividade remunerada que geralmente é a prostituição, e dirigem-se às "casas de santo", indo direto para os terreiros de Quimbanda. Ao som de um batuque que estremece as paredes, entram em transe, incorporando a Pombagira, o espírito de uma mulher (e não orixá), que em vida teria sido uma prostituta, mulher capaz de dominar os homens por suas proezas sexuais, amante do luxo, do dinheiro e dos prazeres4040. Prandi R. Pombagira e as faces inconfessas do Brasil. In: Prandi R. Herdeiras do Axé. São Paulo: Hucitec; 1996. p.139-164..

A explicação de um pai de santo reforça o cuidado ofertado pela religião: as travestis matam no peito nesta parte de cuidado. Como elas não têm a proteção que imaginam [necessitar] ter, procuram as Entidades para protegê-las. Então ela vai dizer: eu tenho a Pombagira que me protege. A religião cuida, e cuida muito!

Ao identificarem-se com Pombagira, as travestis dançam na sessão de Exu. Ali soltam largas risadas, sendo reverenciadas pelos homens que beijam suas mãos enquanto giram no salão. Ao observar as travestis montadas com a sua Pombagira, rodando nos salões de Exu, notamos que elas não frequentam estes locais só para "arrumar marido, cuidar da saúde e buscar proteção". Elas estão ali para se divertir. Conforme Prandi4040. Prandi R. Pombagira e as faces inconfessas do Brasil. In: Prandi R. Herdeiras do Axé. São Paulo: Hucitec; 1996. p.139-164., Pombagira não vive só de feitiços e de trabalhos, e nas festas de Exu vai para se divertir, ser apreciada e homenageada. Nesses espaços, as travestis - corpos estranhos, vidas precárias, as quais se veem na condição de ter que reinventar a "família", que desenvolvem táticas de cuidados nas novas moradias, que têm dificuldades para circular livremente em espaços públicos e não se sentem acolhidas nos serviços públicos de saúde - têm seus corpos, com as mudanças e contornos duramente construídos, no centro dos acontecimentos, em experiências nas quais se sentem aceitas.

As "casas de santo", então, tornam-se trajetórias de destaque para as interlocutoras, pois são espaços que possibilitam experiências que escapam dos processos de normalização dos corpos. O cuidado ofertado nos terreiros permite que as travestis escapem do modelo heteronormativo imposto tradicionalmente nos espaços por onde passam, tornando-se um itinerário nos quais podem montar-se no feminino sem serem criminalizadas e julgadas por isto.

Para Magnani3838. Magnani JGC. Doença mental e cura na Umbanda. Rev. bras. Ci. Soc. 2002; 17(49):11-29., o Exu, além de ser o orixá que estabelece mediação entre os mundos dos homens e dos deuses, não evoca o mal, mas a ambiguidade, sendo que o seu correspondente feminino, a Pombagira, geralmente, assume a forma estereotipada da prostituta. Essa ambiguidade, presente também nas travestis, oferece algumas vantagens: podem montar seu corpo feminino na sua Pombagira, e enseja a possibilidade de serem aceitas. Talvez daí sentirem-se cuidadas.

Considerações finais

Com o objetivo geral de etnografar os itinerários em saúde das travestis do município de Santa Maria (RS), buscando compreender como elas experienciam as trajetórias de atendimento e cuidado, percebemos que evitam os serviços públicos de saúde. Cuidar da saúde para elas, portanto, não é um movimento em círculos neste itinerário, em busca de resolutividade para seus problemas, já que envolve outros cenários e práticas de saúde.

As travestis compreendem que saúde é algo que se constrói nos espaços da moradia, nos pontos de prostituição, nos espaços públicos, nas "casas de santo". Aquilo que definem como saúde em muito extrapola a visão apenas vinculada aos processos de adoecimento e mesmo aos serviços de saúde.

Em realidade, as raras situações em que os serviços de saúde institucionalizados fizeram parte da trajetória de cuidado e atendimento das travestis, não atingiram às suas expectativas e demandas e foram por elas considerados inadequados. Uma das questões pungentes foi a forma de nominá-las nos serviços de saúde. Apesar de algumas travestis saberem de legislação específica que confere a elas o direito à identificação pelo nome social, os serviços não cumprem tal prerrogativa. O desconhecimento das trajetórias de cuidados das travestis, por parte dos serviços de saúde, torna a situação mais complexa para o atendimento, pois relatam que profissionais de saúde estranham o cuidado com o silicone, com a utilização de hormônios e o desejo da feminilidade da travesti.

Observamos então, a partir dessa experiência de campo, que o modo de cuidado em saúde de pessoas travestis transcende as noções de saúde e doença exclusivamente vinculadas ao biológico, assim como vai além do aparato institucionalizado e burocratizado do SUS. Pensar o cuidado em saúde desse grupo requer uma ampliação do olhar sobre o processo saúde-doença, incorporando elementos próprios desses sujeitos, como as modificações corporais, a vida em coletividade e a influência das religiões afro-brasileiras em sua saúde, proteção e bem-estar.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul 2014

Histórico

  • Recebido
    02 Maio 2013
  • Aceito
    02 Jul 2013
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