ERICA: prevalência de transtornos mentais comuns em adolescentes brasileiros

Claudia S Lopes Gabriela de Azevedo Abreu Debora França dos Santos Paulo Rossi Menezes Kenia Mara Baiocchi de Carvalho Cristiane de Freitas Cunha Mauricio Teixeira Leite de Vasconcellos Katia Vergetti Bloch Moyses Szklo Sobre os autores

RESUMO

OBJETIVO

Descrever a prevalência de transtornos mentais comuns em adolescentes escolares brasileiros, segundo macrorregiões, tipo de escola, sexo e idade.

MÉTODOS

Foram avaliados 74.589 adolescentes participantes do Estudo de Riscos Cardiovasculares em Adolescentes (ERICA), estudo transversal, nacional, de base escolar, realizado em 2013-2014 em municípios com mais de 100 mil habitantes. Utilizou-se questionário autopreenchível e coletor eletrônico de dados. Presença de transtornos mentais comuns foi avaliada por meio do General Health Questionnaire (GHQ-12). Estimaram-se prevalências e intervalos de confiança de 95% de transtornos mentais comuns por sexo, idade e tipo de escola, no Brasil e nas macrorregiões, considerando o desenho da amostra.

RESULTADOS

A prevalência de transtornos mentais comuns foi de 30,0% (IC95% 29,2-30,8), sendo mais elevada entre meninas (38,4%; IC95% 37,1-39,7), quando comparadas aos meninos (21,6%; IC95% 20,5-22,8) e entre os adolescentes de 15 a 17 anos (33,6%; IC95% 32,2-35,0), em relação àqueles entre 12 e 14 anos (26,7%; IC95% 25,8-27,6). As prevalências de transtornos mentais comuns aumentaram conforme a idade, para ambos os sexos, sempre maior nas meninas (variando de 28,1% aos 12 anos, até 44,1% aos 17 anos), do que nos meninos (variando de 18,5% aos 12 anos até 27,7% aos 17 anos). Não houve diferença importante por macrorregião ou tipo de escola. Análises estratificadas mostraram maior prevalência de transtornos mentais comuns entre meninas de 15 a 17 anos de escolas privadas da região Norte (53,1; IC95% 46,8-59,4).

CONCLUSÕES

A elevada prevalência de transtornos mentais comuns entre os adolescentes e o fato de os sintomas serem muitas vezes vagos fazem com que esses transtornos sejam pouco identificados por gestores escolares ou mesmo serviços de saúde. Os resultados deste estudo podem ajudar na proposição de medidas de prevenção e controle mais específicas e voltadas para os subgrupos sob maior risco.

Adolescente; Transtornos Mentais, epidemiologia; Prevalência; Saúde Mental; Estudos Transversais

INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas, os padrões de adoecimento físico e mental de crianças e adolescentes têm mudado consideravelmente. A prevalência de problemas emocionais e de conduta é em torno de 10,0%-20,0%, constituindo uma carga de doença expressiva, com prejuízo na vida escolar e nas relações familiares e sociais dessas crianças e adolescentes11. Belfer ML. Child and adolescent mental disorders: the magnitude of the problem across the globe. J Child Psychol Psychiatry. 2008;49(3):226-36. DOI:10.1111/j.1469-7610.2007.01855.x. Além disso, problemas de saúde mental são altamente persistentes, fazendo com que parcela importante desses indivíduos tenha algum prejuízo na vida adulta2121. Patel V, Flisher AJ, Hetrick S, McGorry P. Mental health of young people: a global public-health challenge. Lancet. 2007;369(9569):1302-13. DOI:10.1016/S0140-6736(07)60368-7.

Estudo sobre a carga global de doenças em adolescentes e jovens entre 10 e 24 anos mostrou que, mundialmente, as três principais causas de anos de vida perdidos por incapacidade nessa faixa etária são, respectivamente, os transtornos neuropsiquiátricos (45,0%), as lesões não intencionais (12,0%) e as doenças infecciosas e parasitárias (10,0%)99. Gore FM, Bloem PJ, Patton GC, Ferguson J, Joseph V, Coffey C et al. Global burden of disease in young people aged 10-24 years: a systematic analysis. Lancet. 2011;377(9783):2093-102. DOI:10.1016/S0140-6736(11)60512-6.

No Brasil, estudo de base populacional conduzido em São Paulo (Sao Paulo Megacity Mental Health Study)2929. Viana MC, Andrade LH. Lifetime prevalence, age and gender distribution and age-of-onset of psychiatric disorders in the São Paulo Metropolitan Area, Brazil: results from the São Paulo Megacity Mental Health Survey. Rev Bras Psiquiatr. 2012;34(3):249-60. DOI:10.1016/j.rbp.2012.03.001 mostrou que a idade média de início de transtornos psiquiátricos é mais precoce para os transtornos de ansiedade (13 anos de idade) e transtornos do controle de impulsos (14 anos de idade), quando comparados aos transtornos de abuso de substâncias (24 anos de idade) e transtornos do humor (36 anos de idade). Outro estudo de base populacional, conduzido em quatro cidades de quatro regiões do Brasil (Sudeste, Centro-Oeste, Nordeste e Norte)2222. Paula CS, Bordin IA, Mari JJ, Velasque L, Rohde LA, Coutinho ES. The mental health care gap among children and adolescents: data from an epidemiological survey from four Brazilian regions. PLoS One. 2014;9(2):e88241. DOI:10.1371/journal.pone.0088241, avaliou a prevalência de transtornos psiquiátricos em 1.676 crianças e adolescentes escolares de seis a 16 anos que cursavam do segundo ao sexto ano do ensino fundamental. A prevalência total para a presença de pelo menos um transtorno psiquiátrico foi de 13,1%, semelhante àquela encontrada em outros estudos de base populacional no mundo33. Costello EJ, Egger HL, Angold A. The developmental epidemiology of anxiety disorders: phenomenology, prevalence, and comorbidity. Child Adolesc Psychiatr Clin N Am. 2005;14(4):631-48, vii. DOI:10.1016/j.chc.2005.06.003,1919. Merikangas KR, He JP, Brody D, Fisher PW, Bourdon K, Koretz DS. Prevalence and treatment of mental disorders among US children in the 2001-2004 NHANES. Pediatrics. 2010;125(1):75-81. DOI:10.1542/peds.2008-2598.

Cerca de 90,0% dos transtornos mentais compõem-se de transtornos não psicóticos3030. World Health Organization. Towards a common language for functioning disability and health – ICF. Geneva: World Health Organization; 2002.. Tais transtornos, em virtude de sua elevada prevalência na população geral (20,0%-30,0%), são usualmente denominados transtornos mentais comuns (TMC), caracterizados principalmente pela presença de sintomas de depressão e ansiedade, além de diversas queixas inespecíficas e somáticas88. Goldberg DP, Huxley PY. Common mental disorders: a bio-social model. London: Tavistock/Routledge; 1992.. Os TMC afetam indivíduos em diferentes faixas etárias e, quando presentes em crianças e adolescentes, podem ser manifestações iniciais e menos específicas de transtornos mentais mais graves, além de causarem prejuízo nas relações sociais e no aproveitamento escolar dessa população2121. Patel V, Flisher AJ, Hetrick S, McGorry P. Mental health of young people: a global public-health challenge. Lancet. 2007;369(9569):1302-13. DOI:10.1016/S0140-6736(07)60368-7. A identificação precoce de TMC e dos seus principais fatores de risco pode contribuir para intervenções específicas e melhor prognóstico.

No Brasil, alguns estudos avaliaram prevalência e fatores de risco para TMC na população adulta1313. Lopes CS, Faerstein E, Chor D, Werneck GL. Higher risk of common mental disorders after experiencing physical violence in Rio de Janeiro, Brazil: the Pró-Saude Study. Int J Soc Psychiatry. 2008;54(2):112-7. DOI:10.1177/0020764007083876

14. Lopes CS, Moraes CL, Junger WL, Werneck GL, Ponce de Leon AC, Faerstein E. Direct and indirect exposure to violence and psychological distress among civil servants in Rio de Janeiro, Brazil: a prospective cohort study. BMC Psychiatry. 2015;15(1):109. DOI:10.1186/s12888-015-0487-9
-1515. Ludermir AB, Araújo TV, Valongueiro SA, Lewis G. Common mental disorders in late pregnancy in women who wanted or attempted an abortion. Psychol Med. 2010;40(9):1467-73. DOI:10.1017/S003329170999184X,2525. Rocha SV, Almeida MMG, Araújo TM, Virtuoso Júnior JS. Prevalence of common mental disorders among the residents of urban areas in Feira de Santana, Bahia. Rev Bras Epidemiol. 2010;13(4):630-40. DOI:10.1590/S1415-790X2010000400008; entretanto, a literatura sobre TMC em adolescentes é escassa. Identificamos apenas um estudo transversal, de base populacional, conduzido entre adolescentes de 15 a 18 anos de Pelotas, RS, cuja prevalência de TMC foi de 28,8% e os principais fatores associados foram baixa escolaridade da mãe, fumo, comportamento sedentário e insatisfação com a imagem corporal2323. Pinheiro KAT, Horta BL, Pinheiro RT, Horta LL, Terres NG, Silva RA. Common mental disorders in adolescents: a population based cross-sectional study. Rev Bras Psiquiatr. 2007;29(3):241-5. DOI:10.1590/S1516-44462006005000040.

O presente estudo teve como objetivo descrever a prevalência de transtornos mentais comuns na população de adolescentes escolares brasileiros, segundo macrorregiões, tipo da escola e características sociodemográficas.

MÉTODOS

Este estudo faz parte do Estudo de Riscos Cardiovasculares em Adolescentes (ERICA), um estudo transversal, nacional, de base escolar, conduzido em 2013-2014, com o objetivo de estimar a prevalência de síndrome metabólica, diabetes mellitus, obesidade, fatores de risco cardiovascular e de marcadores de resistência à insulina e inflamatórios em adolescentes de 12 a 17 anos que frequentam escolas em municípios brasileiros com mais de 100 mil habitantes.

Foram avaliados 74.589 adolescentes de 1.247 escolas em 124 municípios brasileiros. A população da pesquisa foi estratificada em 32 estratos constituídos por 27 capitais e cinco conjuntos de municípios com mais de 100 mil habitantes em cada macrorregião geográfica do País. Para cada estrato geográfico, as escolas foram selecionadas com probabilidade proporcional ao tamanho e inversamente proporcional à distância da capital. A amostra é representativa para o conjunto de municípios de mais de 100 mil habitantes em âmbito nacional, regional e para as capitais. Mais detalhes sobre o desenho de amostragem encontram-se em publicação anterior2828. Vasconcellos MTL, Silva PLN, Szklo M, Kuschnir MCC, Klein CH, Abreu GA et al. Sampling design for the Study of Cardiovascular Risks in Adolescents (ERICA). Cad Saude Publica. 2015;31(5):921-30. DOI:10.1590/0102-311X00043214. Foram excluídos das análises, por não serem considerados elegíveis, adolescentes que não pertenciam à faixa etária de 12 a 17 anos, adolescentes grávidas e aqueles com deficiência física ou mental, temporária ou permanente. O protocolo do estudo foi previamente descrito.

Os dados foram coletados usando-se questionário autopreenchível e inseridos no coletor eletrônico de dados PDA (personal digital assistant). O questionário foi constituído por cerca de 100 questões divididas em 11 blocos: aspectos sociodemográficos, atividades ocupacionais, atividade física, comportamento alimentar, tabagismo, uso de bebidas alcoólicas, saúde reprodutiva, saúde bucal, duração do sono, morbidade física (autorreferida) e saúde mental.

No presente estudo, foram analisadas as seguintes características: sexo, idade, tipo de escola (pública ou privada), macrorregião geográfica (Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul) e presença de TMC. A variável idade foi utilizada de forma categórica, considerando dois grupos: de 12-14 anos e de 15-17 anos.

Para avaliação de TMC, foi utilizado o General Health Questionnaire, versão de 12 itens (GHQ-12)66. Goldberg DP. The detection of psychiatric illness by questionnaire: a technique for the identification and assessment of non-psychotic psychiatric illness. London: Oxford University Press; 1972.. Os escores dos itens individuais foram codificados como “ausente” ou “presente” (0 ou 1, respectivamente) e então somados; adolescentes com escore de três ou mais foram classificados como casos de TMC77. Goldberg DP, Williams P. A user’s guide to the General Health Questionnaire - GHQ. Windsor: Nfer-Nelson; 1988.. A versão brasileira, utilizada no presente estudo, foi submetida a estudo de validação, tendo uma entrevista psiquiátrica estruturada como padrão ouro e o mesmo critério de três ou mais para caso de TMC. Os resultados mostraram sensibilidade de 85,0% e especificidade de 79,0% e área abaixo da curva ROC (Receiver Operating Characteristics) de 0,871717. Mari JJ, Williams P. A comparison of the validity of two psychiatric screening questionnaires (GHQ-12 and SRQ-20) in Brazil, using Relative Operating Characteristic (ROC) analysis. Psychol Med. 1985;15(3):651-9..

Foram calculadas as prevalências e intervalos de 95% de confiança (IC95%) de TMC por sexo, idade, e tipo de escola, contemplando os âmbitos nacional, regional e por capitais.

As análises foram realizadas com o pacote estatístico Stata 14.0. As distribuições das características foram ajustadas segundo o desenho amostral, com o uso de rotinas estatísticas para amostragem complexa. A amostra do ERICA é uma amostra complexa2626. Skinner CJ, Holt D, Smith TMF. Analysis of complex surveys. Chichester: John Wiley and Sons; 1989., uma vez que emprega estratificação e conglomeração em seus estágios de seleção. Os pesos amostrais foram calculados pelo produto dos inversos das probabilidades de inclusão em cada estágio da amostra e foram calibrados considerando a projeção do número de adolescentes matriculados em escolas localizadas nos estratos geográficos considerados em 31/12/2013. Foi utilizado um estimador de pós-estratificação, que modifica o peso natural do desenho por um fator de calibração que corresponde à razão entre o total populacional e o total estimado pelo peso natural do desenho para o pós-estrato ou domínio de estimação considerado.

Todos os alunos participantes assinaram o termo de assentimento e trouxeram o termo de consentimento livre e esclarecido assinado pelos responsáveis (quando exigido pelo Comitê de Ética em Pesquisa local). O estudo foi aprovado pelos Comitês de Ética em Pesquisa da instituição da Coordenação Central do estudo (IESC/UFRJ – Processo 45/2008) e de cada estado brasileiro.

RESULTADOS

Dos 102.327 adolescentes elegíveis cadastrados nas escolas selecionadas, participaram do estudo 74.589 (72,9%).

Quase um terço dos adolescentes de municípios de mais de 100 mil habitantes do Brasil apresentaram TMC. A prevalência foi mais elevada no sexo feminino e nos adolescentes mais velhos. As prevalências não apresentaram diferenças por macrorregião e tipo de escola (Tabela 1).

Tabela 1
Tamanho da amostra, população e prevalências de transtornos mentais comuns nos municípios com mais de 100 mil habitantes, segundo sexo, faixa etária, natureza da escola e macrorregião. ERICA, Brasil, 2013-2014.

Com relação aos municípios, também não foram encontradas diferenças importantes, sendo que a maior prevalência de TMC foi observada em Manaus, AM, e a menor em Campo Grande, MS (Figura 1).

Figura 1
Prevalência e IC95% de transtorno mental comum nos municípios com mais de 100 mil habitantes por macrorregião e capital. ERICA, Brasil, 2013-2014.

As prevalências de TMC entre as meninas foi sempre maior do que entre os meninos, para todas as faixas etárias (Figura 2). Observa-se também uma tendência de aumento das prevalências de TMC com o aumento da idade.

Figura 2
Prevalência e IC95% de transtorno mental comum nos municípios de mais de 100 mil habitantes por sexo e idade. ERICA, Brasil, 2013-2014.

Nas análises estratificadas por sexo, faixa etária, tipo de escola e macrorregião, observa-se que a maior prevalência de TMC foi entre as meninas, na faixa etária de 15 a 17 anos e de escolas privadas da região Norte. A menor prevalência foi entre os meninos, na faixa etária de 12 a 14 anos, de escolas privadas da região Sudeste (Tabela 2).

Tabela 2
Prevalência e IC95% de transtornos mentais comuns em adolescentes por macrorregião, segundo natureza da escola, sexo e faixa etária. ERICA, Brasil, 2013-2014.

DISCUSSÃO

Este é o primeiro estudo epidemiológico conduzido no Brasil, com representatividade para os municípios de 100 mil habitantes ou mais em nível nacional, que avaliou dados de morbidade mental em adolescentes.

A prevalência geral destes transtornos foi elevada, sendo maior entre as meninas mais velhas (15-17 anos), de escolas privadas da região Norte, seguidas daquelas de escolas públicas da mesma região. As prevalências gerais por macrorregiões e por tipo de escola, entretanto, não mostraram diferenças marcantes.

Apesar de não dispormos de dados de saúde mental de adolescentes brasileiros, com representatividade nacional, a prevalência geral de TMC encontrada no ERICA (30,0%) foi semelhante àquela observada em estudo de base-populacional conduzido entre adolescentes de 15 a 18 anos residentes em Pelotas, município de médio porte no Sul do Brasil (28,8%)2323. Pinheiro KAT, Horta BL, Pinheiro RT, Horta LL, Terres NG, Silva RA. Common mental disorders in adolescents: a population based cross-sectional study. Rev Bras Psiquiatr. 2007;29(3):241-5. DOI:10.1590/S1516-44462006005000040. A maior prevalência de TMC entre meninas (38,4%) quando comparada à dos meninos (21,6%), encontrada no presente estudo, também é consistente com os achados do estudo de Pelotas, em que a prevalência de TMC entre as meninas foi de 37,2% e a dos meninos de 19,9%. Estudo brasileiro conduzido em quatro municípios de quatro regiões do Brasil (Norte, Nordeste, Centro-Oeste e Sudeste) encontrou uma prevalência geral de 13,1% (nos últimos 12 meses) para pelo menos um transtorno psiquiátrico2222. Paula CS, Bordin IA, Mari JJ, Velasque L, Rohde LA, Coutinho ES. The mental health care gap among children and adolescents: data from an epidemiological survey from four Brazilian regions. PLoS One. 2014;9(2):e88241. DOI:10.1371/journal.pone.0088241. Essa prevalência é bem menor do que a encontrada em nosso estudo e reflete, provavelmente, algumas diferenças entre os dois estudos, a saber: 1) o fato de no ERICA ter sido utilizado um instrumento de rastreamento para transtornos mentais (GHQ-12), enquanto que no estudo conduzido por Paula et al2222. Paula CS, Bordin IA, Mari JJ, Velasque L, Rohde LA, Coutinho ES. The mental health care gap among children and adolescents: data from an epidemiological survey from four Brazilian regions. PLoS One. 2014;9(2):e88241. DOI:10.1371/journal.pone.0088241, foi aplicado um instrumento para o diagnóstico de transtornos psiquiátricos (Schedule for Affective Disorders and Schizophrenia for School-Age Children – K-SADS-PL); 2) no ERICA, a faixa etária dos participantes foi de 12 a 17 anos, enquanto que, no estudo de Paula et al., os participantes tinham entre seis a 16 anos de idade; e 3) o ERICA é um estudo com representatividade nacional, conduzido entre 75.000 estudantes, enquanto, no estudo de Paula et al., a amostra foi apenas em quatro cidades. Além disso, no estudo de Paula et al., foi observada prevalência mais elevada (18,5%) de transtornos psiquiátricos (qualquer transtorno) na cidade localizada na região Centro-Oeste. No presente estudo, encontramos diferenças pouco marcantes nas prevalências de TMC por macrorregiões, sendo um pouco mais elevadas nas regiões Centro-Oeste e Norte.

Comparações com estudos internacionais são ainda mais difíceis, pelas diferenças de métodos, de tipos de transtornos e de faixas etárias entre os estudos. Entretanto, revisão de resultados de inquéritos de base populacional conduzidos em diferentes partes do mundo, mostra que, a despeito da variação substancial nos resultados, aproximadamente um quarto dos adolescentes experimentaram algum transtorno mental no ano anterior e um terço ao longo da vida1818. Merikangas KR, Nakamura EF, Kessler RC. Epidemiology of mental disorders in children and adolescents. Dialogues Clin Neurosci. 2009;11(1):7-20.. Estudos também têm sido consistentes em apontar maiores prevalências de transtornos de ansiedade e humor entre as meninas, enquanto meninos apresentam maiores taxas de transtornos do comportamento e conduta1919. Merikangas KR, He JP, Brody D, Fisher PW, Bourdon K, Koretz DS. Prevalence and treatment of mental disorders among US children in the 2001-2004 NHANES. Pediatrics. 2010;125(1):75-81. DOI:10.1542/peds.2008-2598,2020. Navarro-Pardo E, Meléndez Moral JC, Sales Galan A, Sancerni Beitia MD. Desarrollo infantil y adolescente: trastornos mentales más frecuentes en función de la edad y el género. Psicothema. 2012;24(3):377-83.,2424. Ravens-Sieberer U, Wille N, Erhart M, Bettge S, Wittchen HU, Rothenberger A et al. Prevalence of mental health problems among children and adolescents in Germany: results of the BELLA study within the National Health Interview and Examination Survey. Eur Child Adolesc Psychiatry. 2008;17 Suppl 1:22-33. DOI:10.1007/s00787-008-1003-2, havendo variação com relação ao grau de renda e desenvolvimento dos países. Transtornos de conduta, de comunicação e transtornos globais do desenvolvimento são mais frequentes na fase inicial da infância, enquanto na adolescência são mais prevalentes os transtornos de conduta e depressão2020. Navarro-Pardo E, Meléndez Moral JC, Sales Galan A, Sancerni Beitia MD. Desarrollo infantil y adolescente: trastornos mentales más frecuentes en función de la edad y el género. Psicothema. 2012;24(3):377-83.,2424. Ravens-Sieberer U, Wille N, Erhart M, Bettge S, Wittchen HU, Rothenberger A et al. Prevalence of mental health problems among children and adolescents in Germany: results of the BELLA study within the National Health Interview and Examination Survey. Eur Child Adolesc Psychiatry. 2008;17 Suppl 1:22-33. DOI:10.1007/s00787-008-1003-2.

Estudos mostram maior prevalência de transtornos entre adolescentes vivendo em países ou regiões menos favorecidos; porém, há inconsistência nos achados, refletindo prováveis diferenças de métodos. Giel et al.55. Giel R, Arango MV, Climent CE, Harding TW, Ibrahim HH, Ladrido-Ignacio L et al. Childhood mental disorders in primary health care: results of observations in four developing countries: a report from the WHO collaborative Study on Strategies for Extending Mental Health Care. Pediatrics. 1981;68(5):677-83. (1981) encontraram prevalências de transtornos mentais variando de 12,0% a 29,0% em crianças e adolescentes de cinco a 15 anos em quatro países de renda baixa ou média (Sudão, Filipinas, Colômbia e Índia). Estudo conduzido em Omã, na Arábia, com 5.409 adolescentes e adultos jovens de ambos os sexos, entre 14 e 23 anos, encontrou prevalência de 20,0% para pelo menos um diagnóstico psiquiátrico, de acordo com os critérios do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, Fourth Edition (DSM-IV) e 32,7% para transtornos mentais leves (qualquer transtorno nos últimos 12 meses)1111. Jaju S, Al-Adawi S, Al-Kharusi H, Morsi M, Al-Riyami A. Prevalence and age-of-onset distributions of DSM IV mental disorders and their severity among school going Omani adolescents and youths: WMH-CIDI findings. Child Adolesc Psychiatry Ment Health. 2009;3(1):29. DOI:10.1186/1753-2000-3-29. Thabet e Vostanis2727. Thabet AA, Vostanis P. Social adversities and anxiety disorders in the Gaza Strip. Arch Dis Child. 1998;78(5):439-42. DOI:10.1136/adc.78.5.439 (1998) reportaram prevalência de 21,0% de sintomas de ansiedade e transtornos relacionados entre crianças vivendo na Faixa de Gaza, comparáveis às encontradas por Kashani e Orvaschel1212. Kashani JH, Orvaschel H. A community study of anxiety in children and adolescents. Am J Psychiatry. 1990;147(3):313-8. DOI:10.1176/ajp.147.3.313 (1990) na população de crianças e adolescentes dos EUA. Na Índia, meta-análise recente sobre a prevalência de transtornos mentais em crianças e adolescentes mostrou que, entre escolares de cinco a 15 anos, a taxa de prevalência de transtornos psiquiátricos foi de 23,3%1616. Malhotra S, Patra BN. Prevalence of child and adolescent psychiatric disorders in India: a systematic review and meta-analysis. Child Adolesc Psychiatry Ment Health. 2014;8(1):22. DOI:10.1186/1753-2000-8-22. Tais prevalências são menores do que a encontrada no presente estudo, em que foi usado instrumento para avaliação de TMC e não diagnósticos psiquiátricos, como os estudos acima descritos.

Este é o primeiro estudo que avaliou dados de saúde física e mental de adolescentes escolares, com representatividade para os municípios com mais de 100 mil habitantes, do Brasil, das macrorregiões e das capitais. Os TMC foram avaliados por instrumento padronizado e validado para a população de crianças e adolescentes44. French DJ, Tait RJ. Measurement invariance in the General Health Questionnaire-12 in young Australian adolescents. Eur Child Adolesc Psychiatry. 2004;13(1):1-7. DOI:10.1007/s00787-004-0345-7, permitindo comparações com estudos nacionais e internacionais. Entretanto, deve-se considerar que o GHQ-12 é um instrumento de rastreamento sensível a mudanças psicológicas recentes, podendo levar a um número maior de falsos positivos, com sintomas transitórios de transtornos psicológicos, superestimando, portanto, a prevalência de TMC. Além disso, informações socioeconômicas mais detalhadas não foram incluídas nas análises e deverão ser consideradas em análises futuras.

Os transtornos mentais destacam-se como principais desafios a serem enfrentados pelos serviços de saúde. Muitas vezes, antes do diagnóstico formal de um transtorno psiquiátrico, já é possível encontrar indícios de sofrimento psíquico, na clínica, em adolescentes. Assim, a identificação precoce de TMC, bem como seus principais fatores de risco, pode ajudar na proposição de medidas de prevenção e controle mais específicos ao longo de todo o processo de desenvolvimento da adolescência.

O presente estudo, por estar inserido em um estudo maior, cujo principal objetivo é investigar fatores de risco cardiovasculares em adolescentes, incluiu, além da saúde mental, a mensuração de um número considerável de fatores, como características sociodemográficas, de estilo de vida, de morbidade referida e antropométricas e dados bioquímicos (em uma subamostra). Assim, espera-se que os resultados do presente estudo, que mostram elevada prevalência de TMC em crianças e adolescentes, forneçam evidência importante para estudos futuros que avaliem mecanismos comuns subjacentes aos transtornos mentais e às doenças cardiovasculares e, em uma perspectiva longitudinal, investiguem o papel das doenças cardiovasculares na ocorrência e persistência dos transtornos mentais. Tais estudos permitirão melhor compreensão dessa comorbidade, possibilitando o desenvolvimento de tratamentos e intervenções eficazes1010. Grippo AJ, Johnson AK. Stress, depression and cardiovascular dysregulation: a review of neurobiological mechanisms and the integration of research from preclinical disease models. Stress. 2009;12(1):1-21. DOI:10.1080/10253890802046281.

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  • Financiamento: Ministério da Saúde (Departamento de Ciência e Tecnologia), Ministério da Ciência e Tecnologia (Financiadora de Estudos e Projetos [FINEP – Processo 01090421]) e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq – Processos 565037/2010-2 e 405.009/2012-7). Debora França dos Santos é bolsista do CNPq (Processo 444138/2014-5).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Fev 2016

Histórico

  • Recebido
    15 Set 2015
  • Aceito
    28 Out 2015
Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revsp@org.usp.br