Estabelecimento de prioridades em saúde numa comunidade: análise de um percurso

Fábio Alexandre Melo do Rego Sousa Maria José Garcia Goulart Antonieta Manuela dos Santos Braga Clara Maria Oliveira Medeiros Débora Cristina Martins Rego Flávio Garcia Vieira Helder José Alves da Rocha Pereira Helena Margarida Correia Vicente Tavares Marta Maria Puim Loura Sobre os autores

RESUMO

OBJETIVO

Descrever a metodologia utilizada no processo de estabelecimento de prioridades em saúde para intervenção comunitária, numa comunidade idosa.

MÉTODOS

Partindo dos resultados de um diagnóstico de saúde no âmbito da promoção do envelhecimento ativo, concebeu-se um processo de estabelecimento de prioridades a fim de selecionar o problema prioritário para intervenção. O processo integrou quatro etapas sucessivas de análise e classificação dos problemas: (1) agrupamento por nível de similitude, (2) classificação de acordo com critérios epidemiológicos, (3) ordenação por peritos e (4) aplicação do método de Hanlon. No decurso destas etapas, combinaram-se, de forma integrada, as perspetivas dos profissionais da equipe de saúde, de peritos em enfermagem comunitária e gerontologia e da própria comunidade.

RESULTADOS

Na primeira etapa, agruparam-se por nível de similitude os problemas identificados, constituindo-se um corpo de 19 problemas para análise. Na segunda, esses problemas foram classificados pelos elementos da equipe de saúde, mediante a aplicação de critérios de cariz epidemiológico (magnitude, vulnerabilidade e transcendência). Os nove problemas mais relevantes resultantes da operacionalização da segunda etapa do processo foram submetidos a análise por peritos, e selecionados os cinco problemas com maior pertinência de atuação. Na última etapa, com recurso à participação de líderes formais e informais da comunidade, identificou-se o problema prioritário para intervenção nessa comunidade específica: a Baixa Interação Social na Participação Comunitária.

CONCLUSÕES

O processo de estabelecimento de prioridades é uma etapa fundamental do planejamento em saúde, permitindo identificar os problemas prioritários a intervir numa determinada comunidade e num determinado momento. Não existem fórmulas predeterminadas para a seleção de problemas prioritários. Cabe a cada equipe de intervenção comunitária a definição de um processo próprio com diferentes métodos/técnicas que possibilitem a identificação e intervenção em necessidades classificadas como prioritárias pela comunidade.

Prioridades em Saúde; Planejamento em Saúde, métodos; Técnicas de Planejamento; Planejamento Social; Participação Comunitária; Método de Hanlon

INTRODUÇÃO

A intervenção em saúde implica considerar realidades multicausais e multifatoriais. Os profissionais de saúde que atuam na comunidade têm como desafios: manter a qualidade das intervenções em saúde em contextos de grande complexidade, recorrendo a práticas profissionais baseadas na evidência científica disponível; e facilitar o acesso a cuidados de saúde eficazes e de proximidade com vista à promoção do empoderamento comunitário77. Lock S. Prática baseada na evidência. In: Stanhope M, Lancaster J. 7a ed. Enfermagem de saúde pública. Loures: Lusodidacta; 2011. p. 290-301..

A definição de prioridades em investigação, assim como o processo de formulação de políticas públicas de saúde, reforçam a importância do planejamento de estratégias de atuação no âmbito da saúde. Esse planejamento é um processo pelo qual se estabelecem prioridades dando-lhes direção e continuidade, considerando os limites definidos pelos recursos existentes e os contextos político, social, cultural, institucional, financeiro económico e internacional1212. Preteleiro M, Marques R, Galhardo T. Uma análise crítica das orientações estratégicas: o plano nacional de saúde português. Lisboa: Observatório Português dos Sistemas de Saúde; 2004.. Esses contextos estão interligados e influenciam-se mutuamente, reagindo às alterações que neles possam ocorrer. Assim, o planejamento em saúde é um instrumento valioso para a intervenção estruturada nas comunidades e para a necessária definição de prioridades a intervir88. Martínez D, Palacio J, Oliver A, Fuente N, Mariscal C, Corral M et al. Conceptos generales en atención primária para enfermaria. Sevilha: Edufarma; 2007..

É necessário definir contextualmente os problemas que exigem intervenção prioritária num determinado momento, uma vez que raramente existem recursos suficientes para intervenções dirigidas a todas as necessidades numa determinada comunidade55. Keller L, Strohshein S, Briske L. Prática de enfermagem de saúde pública centrada na população: a roda de intervenção. Stanhope M, Lancaster J. 7a ed. Enfermagem de saúde pública. Loures: Lusodidacta; 2011. p. 196-23.,99. Pallàs J, Baiges J. Análisis de la situación de salud. In: Zurro A, Pérez J. 5a ed. Atención primaria: conceptos, organización y práctica clínica. Madrid: Elsevier; 2003. p. 327-44.. Assim, são imprescindíveis metodologias de estabelecimento de prioridades em saúde que suportem cientificamente o processo de tomada de decisão e orientem a intervenção comunitária.

Existem diferentes métodos/técnicas que podem ser utilizadas neste processo, cuja aplicação pode ocorrer de forma isolada ou combinada88. Martínez D, Palacio J, Oliver A, Fuente N, Mariscal C, Corral M et al. Conceptos generales en atención primária para enfermaria. Sevilha: Edufarma; 2007.,1010. Pallàs J, Bertrán E, Baiges J. Bases para la programación en atencíon primaria. In: Zurro A, Pérez J. 5a ed. Atención primaria: conceptos, organización y práctica clínica. Madrid: Elsevier; 2003. p. 408-19.. Cabe às equipes de intervenção comunitária a definição de um processo próprio, com etapas, e que incorpore critérios e procedimentos que possibilitem a identificação e intervenção em necessidades prioritárias da comunidade.

O objetivo deste estudo foi descrever o processo de estabelecimento de prioridades em saúde para intervenção comunitária numa comunidade idosa.

MÉTODOS

O processo de estabelecimento de prioridades em saúde foi realizado com a participação de diversos atores (equipe de saúde, peritos e comunidade) com foco na promoção do envelhecimento ativo. Os problemas apresentados servem para ilustrar e descrever a forma como se concebeu uma estratégia progressivamente mais refinada e integrada de análise, tendo em vista a identificação de problemas de saúde mais relevantes numa comunidade concreta na perspetiva ativa dos atores implicados. Para melhor compreensão dos problemas, importa clarificar a moldura interpretativa utilizada quanto ao envelhecimento ativo. O Envelhecimento ativo pode ser concetualizado individualmente e nos grupos populacionais. Sua operacionalização permite que as pessoas percebam o seu potencial de desenvolvimento físico, social, mental e de bem-estar e possam participar socialmente de acordo com as suas necessidades, desejos e capacidades, e receber proteção adequada, segurança e cuidados quando necessitam de assistência1111. Paúl C. Envelhecimento activo e redes de suporte social. Rev Fac Letras Univ Porto: Sociologia. 2005;15(1):275-88.,1414. Veras R. Envelhecimento populacional contemporâneo: demandas, desafios e inovações. Rev Saude Publica. 2009;43(3):548-54. https://doi.org/10.1590/S0034-89102009005000025
https://doi.org/10.1590/S0034-8910200900...
,1616. World Health Organization. Active ageing: a policy framework. Geneva: World Health Organization; 2002..

Os dados iniciais utilizados no processo de análise resultam de um diagnóstico de saúde efetuado previamente pela equipe com 100 idosos independentes, com idades entre 65 e 84 anos residentes na freguesia de Fajã de Baixo, na ilha de São Miguel, do arquipélago dos Açores, Portugal. O instrumento utilizado no diagnóstico foi um questionário construído com base em determinantes considerados relevantes para o envelhecimento ativo descritos na literatura e organizados em diferentes domínios: determinantes materiais (ambiente físico e económico), biológicos (características biológicas e de saúde), comportamentais (estilos de vida e comportamentos de adesão aos cuidados de saúde) e psicossociais (estado emocional, rede social de apoio, formação e espiritualidade)11. Buss PM, Pellegrini Filho A. A saúde e seus determinantes sociais. Physis. 2007;17(1):77-93. https://doi.org/10.1590/S0103-73312007000100006
https://doi.org/10.1590/S0103-7331200700...
,99. Pallàs J, Baiges J. Análisis de la situación de salud. In: Zurro A, Pérez J. 5a ed. Atención primaria: conceptos, organización y práctica clínica. Madrid: Elsevier; 2003. p. 327-44.,1313. Rodrigues R, Crespo S, Loureiro L, Silva S, Azeredo Z, Silva C. Os muito idosos: avaliação funcional multidimensional. Rev Enferm Refer. 2015;4(5):65-75. https://doi.org/10.12707/RIV14040
https://doi.org/10.12707/RIV14040...
,1616. World Health Organization. Active ageing: a policy framework. Geneva: World Health Organization; 2002.,a.

A identificação das necessidades de saúde da comunidade idosa, decorrente da avaliação desses determinantes de saúde, permitiu identificar um conjunto diversificado de problemas. Foi construída uma classificação que permitisse selecionar o(s) problema(s) a intervir prioritariamente.

A fase de priorização foi estruturada em quatro etapas, com recurso à utilização de procedimentos e critérios diversificados:

  1. Agrupamento das necessidades de saúde de acordo com o seu nível de similitude;

  2. Classificação, pelos elementos da equipe de intervenção comunitária, das necessidades agrupadas, mediante a aplicação de critérios clássicos de cariz epidemiológico – magnitude, vulnerabilidade e transcendência44. Gonçalves A. Problema de saúde pública: caraterizando e avaliando aplicações. Rev Bras Epidemiol. 2006;9(2):251-6. https://doi.org/10.1590/S1415-790X2006000200013
    https://doi.org/10.1590/S1415-790X200600...
    ,88. Martínez D, Palacio J, Oliver A, Fuente N, Mariscal C, Corral M et al. Conceptos generales en atención primária para enfermaria. Sevilha: Edufarma; 2007.. Foram utilizadas diferentes estratégias que contribuíram para que o grau de subjetividade na aplicação dos critérios fosse reduzido: a) revisão de literatura inicial/recolha de evidência acerca dos achados agrupados; b) divisão da equipe em subgrupos para classificação independente da lista de problemas e c) discussão e consensualização, em grupo, das classificações atribuídas a cada problema – obtenção de consenso.

  3. Ordenação dos problemas mais pontuados na etapa anterior, por peritos da área de gerontologia e de enfermagem comunitária e saúde pública. Foi calculado o valor médio obtido pela somatória dos valores correspondentes à posição na escala de prioridades, determinada por cada perito, dividido pelo número de peritos;

  4. Aplicação do método de Hanlon22. Chao R, Alvarez M. Diagnóstico comunitário de la situation de salud. Rev Cubana Med Gen Integr. 1996;12(3):289-94.,88. Martínez D, Palacio J, Oliver A, Fuente N, Mariscal C, Corral M et al. Conceptos generales en atención primária para enfermaria. Sevilha: Edufarma; 2007.,b para priorização dos problemas com maior classificação por parte dos peritos. Esse método possibilita a avaliação das necessidades de saúde mediante a aplicação de critérios, agregados em componentes, por meio da fórmula:

ordem de prioridade = (A+B) C x D,

em que A representa a magnitude do problema, B a Severidade do problema; C a eficácia da solução e D a exequibilidade da intervenção classificada pelo acrónimo PEARL (pertinência, exequibilidade económica, aceitação, recursos e legalidade) (Tabela 1).

Tabela 1
Componentes do Método de Hanlon.

A componente PEARL implica a discussão das necessidades com a comunidade, operacionalizada pela realização de um grupo focal com líderes e representantes formais e informais da comunidade. O grupo focal integrou: presidente da junta, padre, duas assistentes sociais da freguesia, enfermeiro diretor do Centro de Saúde da área, uma responsável da farmácia local e quatro idosos residentes na freguesia. Os participantes foram selecionados por exercerem funções com poder de decisão e capacidade mobilizadora na freguesia, assim como por deterem um conhecimento aprofundado da comunidade e das suas dinâmicas. Cada um dos cinco problemas levados à discussão foi analisado considerando os parâmetros: (i) a pertinência do problema; (ii) grau de aceitação da comunidade para a intervenção no problema; (iii) a viabilidade económica e (iv) a disponibilidade de recursos comunitários.

RESULTADOS

Na etapa 1, os achados obtidos com o diagnóstico de saúde da comunidade foram enquadrados nos diferentes determinantes de saúde. Isso permitiu identificar 37 problemas reais e/ou potenciais capazes de influenciar negativamente o processo de envelhecimento. O agrupamento de acordo com o nível de similitude conduziu à reorganização dos problemas para 19 (Tabela 2).

Tabela 2
Agrupamento dos problemas por nível de similitude. Fajã de Baixo, Portugal, 2012.

A triagem dos problemas na etapa 2 foi realizada com recurso à aplicação dos três critérios clássicos de cariz epidemiológico – magnitude, transcendência e vulnerabilidade44. Gonçalves A. Problema de saúde pública: caraterizando e avaliando aplicações. Rev Bras Epidemiol. 2006;9(2):251-6. https://doi.org/10.1590/S1415-790X2006000200013
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,88. Martínez D, Palacio J, Oliver A, Fuente N, Mariscal C, Corral M et al. Conceptos generales en atención primária para enfermaria. Sevilha: Edufarma; 2007. – a cada um dos 19 problemas detetados, pelos elementos da equipe de intervenção. Foi utilizada uma escala de símbolos para classificar o impacto que cada problema assumia. O símbolo (+) correspondeu a baixo impacto (25,0%); o símbolo (++) a impacto médio (26,0% a 50,0%), o símbolo (+++) a elevado (51,0% a 75,0%) e o símbolo (++++) ao maior impacto, (> 75,0%). O escore total foi obtido pelo somatório dos símbolos atribuídos a cada um dos três critérios (Tabela 3).

Tabela 3
Classificação, pela equipe, das necessidades/problemas agrupados. Fajã de Baixo, Portugal, 2012.

A etapa 3 consistiu na classificação dos nove problemas mais pontuados na etapa anterior, por peritos da área de gerontologia e de enfermagem comunitária e saúde pública, de modo a que pudessem incorporar na análise o seu conhecimento especializado sobre as temáticas em discussão.Tal permitiu uma reordenação da lista de problemas prioritários (Tabela 4). Na etapa 4, os cinco problemas mais pontuados pelos peritos foram analisados de modo sistemático e organizado, consoante os quatro componentes definidas no método de Hanlon (Tabela 5). Por meio da aplicação destes -magnitude, severidade, eficácia e exequibilidade (que inclui o componente PEARL, discutida com a comunidade) foi selecionado o problema considerado prioritário para intervenção junto da comunidade idosa em causa: baixa interação social na participação comunitária.

Tabela 4
Classificação dos nove problemas pelos peritos. Fajã de Baixo, Portugal, 2012.

Tabela 5
Classificação final dos problemas após a aplicação do Método de Hanlon. Fajã de Baixo, Portugal, 2012.

DISCUSSÃO

Este artigo descreveu, de forma sistemática, as etapas, estratégias e procedimentos que permitiram a seleção de um problema prioritário a partir de um conjunto inicial de 37 necessidades identificadas num diagnóstico de saúde de uma comunidade.

Priorizar significa estabelecer uma hierarquia dos problemas identificados por forma a determinar os prioritários a intervir, isto é, significa dispor os problemas de saúde de acordo com a sua importância, eficiência e grau de exequibilidade das intervenções propostas1010. Pallàs J, Bertrán E, Baiges J. Bases para la programación en atencíon primaria. In: Zurro A, Pérez J. 5a ed. Atención primaria: conceptos, organización y práctica clínica. Madrid: Elsevier; 2003. p. 408-19..

Pallàs et al. (2003) referem que qualquer processo de seleção de prioridades reveste-se de subjetividade, que não pode ser completamente eliminada, mercê de vários fatores que exercem influência nas dinâmicas de saúde de uma comunidade. O reconhecimento da interferência da subjetividade nesses processos torna mais premente a necessidade de se clarificarem estratégias e etapas de forma ordenada e sistemática para se obter um processo mais transparente, fundamentado e auditável55. Keller L, Strohshein S, Briske L. Prática de enfermagem de saúde pública centrada na população: a roda de intervenção. Stanhope M, Lancaster J. 7a ed. Enfermagem de saúde pública. Loures: Lusodidacta; 2011. p. 196-23.. A singularidade de cada processo de seleção de prioridades resulta, assim, da incorporação das diferentes “visões” dos vários profissionais. Recebe igualmente importantes contributos de fontes externas às equipes de intervenção comunitária, bem como da própria comunidade. No processo de seleção de prioridades apresentado, identificam-se diferentes focos de atenção em momentos distintos do processo: 1) perspetiva dos profissionais da equipe 2) perspetiva dos peritos 3) perspetiva da comunidade.

PERSPETIVA DOS PROFISSIONAIS DA EQUIPE

O foco centrou-se no trabalho dos elementos da equipe de intervenção comunitária.Traduziu-se na preparação dos achados provenientes do diagnóstico de saúde da comunidade, designadamente no agrupamento dos problemas/necessidades de saúde de acordo com o seu nível de similitude e na sua classificação inicial mediante a aplicação de critérios de cariz epidemiológico.

Analisando reflexivamente os procedimentos utilizados no processo de estabelecimento de prioridades, considerou-se relevante uma primeira avaliação pela equipe de intervenção. A definição de uma lista preliminar de problemas prioritários, sustentada pela contínua revisão de literatura e por processos de discussão, consensualização e minimização da subjetividade, garantiu uma melhor organização da informação tornando o processo de priorização mais fundamentado e eficiente. Esta estratégia assegurou que os problemas apresentados a discussão, aos peritos e à comunidade, se centrassem num conjunto delimitado de necessidades, evitando a dispersão e facilitando o processo de participação focalizado desses intervenientes.

PERSPETIVA DOS PERITOS

Na fase seguinte, considerou-se importante a incorporação/intervenção de perspetivas externas na análise dos problemas em processo de seleção. Pallàs et al. (2003) reafirmam a importância de integrar outros contributos no processo de definição de prioridades para a análise dos problemas e tomada de decisão, que não apenas os dos elementos das próprias equipes de intervenção1010. Pallàs J, Bertrán E, Baiges J. Bases para la programación en atencíon primaria. In: Zurro A, Pérez J. 5a ed. Atención primaria: conceptos, organización y práctica clínica. Madrid: Elsevier; 2003. p. 408-19..

Dos 19 problemas mais pontuados na fase anterior, foram enunciados os nove que obtiveram maior escore para classificação independente por parte dos peritos. Sua intervenção forneceu um contributo importante na avaliação dos problemas, por possibilitar um “olhar externo” e amplo, sob diferentes perspetivas relativamente às temáticas em escopo.

A partir da atuação dos peritos, foi possível constatar a existência de dissonância face à ordenação realizada previamente pela equipe, uma vez que apenas a ausência de atividade física regular foi classificada, simultaneamente pelos peritos e pela equipe, no conjunto dos três problemas mais pontuados. Por outro lado, ao se analisar a um nível mais macro, constata-se que a intervenção dos peritos possibilita diferenciação mais clara da ordenação dos problemas. Isso porque os seis que foram classificados pela equipe com o mesmo escore (a que correspondia a quarta posição – Tabela 3) foram diferenciados pelos peritos, que lhes atribuíram posições diferentes (Tabela 4).

O processo conjunto de seleção e análise dos problemas efetuado pela equipe e pelos peritos permitiu encontrar e ordenar os cinco com maior pertinência de intervenção, pelos potenciais ganhos em saúde a obter.

As diferentes análises dos vários profissionais enriqueceram a priorização e discussão dos problemas encontrados. Reforçaram a necessidade da própria comunidade ser envolvida no processo de tomada de decisão quanto aos problemas que a afetam diretamente66. Laverack G. Promoção de saúde: poder e empoderamento. Loures: Lusodidacta; 2008.,1515. Wiggins N. Popular education for health promotion and community empowerment: a review of the literature. Health Promot Int. 2011;27(3):356-71. https://doi.org/10.1093/heapro/dar046
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.

PERSPETIVA DA COMUNIDADE

Um dos pressupostos essenciais ao sucesso das intervenções de saúde nas comunidades reside na importância destas assumirem um papel ativo na identificação e minimização dos problemas reais ou potenciais de saúde existentes, em prol da promoção de níveis mais elevados de saúde e bem-estar. O conceito de empoderamento adquire especial relevância. É entendido como um processo social pelo qual indivíduos, organizações e comunidades desenvolvem mestria na resolução de desafios, num contexto de atuação/mudança no ambiente social e político tendente à aquisição de melhores níveis de qualidade de vida e à equidade66. Laverack G. Promoção de saúde: poder e empoderamento. Loures: Lusodidacta; 2008.,1515. Wiggins N. Popular education for health promotion and community empowerment: a review of the literature. Health Promot Int. 2011;27(3):356-71. https://doi.org/10.1093/heapro/dar046
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.

Para garantir o envolvimento da comunidade no processo de estabelecimento de prioridades, selecionou-se a aplicação do método de Hanlon. Um dos requisitos para a sua utilização centra-se na análise dos problemas e exequibilidade das respetivas intervenções, conjuntamente com a comunidade.

Esse método, que combina critérios de importância do problema (magnitude e gravidade) com critérios sobre a capacidade de resolução (eficácia da solução e exequibilidade da intervenção), complementou o processo de análise, incorporando a perspetiva da comunidade acerca da pertinência de atuação nas várias problemáticas, e aferiu o seu nível de aceitabilidade. Os problemas puderam ser contextualizados no ambiente em que acontecem, pelas pessoas que experienciam a sua influência, equacionando-se a existência de recursos mobilizáveis para a intervenção comunitária. A utilização do grupo focal para intregrar o contributo da comunidade no estabelecimento de prioridades foi um dos passos essenciais para o processo.

O grupo focal é uma técnica de investigação social consolidada que adota a forma de uma discussão estruturada e envolve a partilha progressiva e a clarificação dos pontos de vista e ideias dos participantes. Assume especial interesse na análise de temas que possam levantar opiniões divergentes ou que possam levantar questões complexas que precisam de ser exploradas com maior precisão33. Geoffrion P. O grupo de discussão. In: Gauthier B, editor. Investigação social: da problemática à colheita de dados. Loures: Lusociência; 2003. p.319-44..

A aplicação dessa técnica permitiu a partilha de várias perspetivas e de experiências acerca dos assuntos discutidos, possibilitando aferição clara da posição dos vários intervenientes face a cada problema.

A discussão gerada traduziu um processo de mediação entre a equipe e a comunidade, promotor da reflexão sobre os problemas em discussão. Isso contribuiu para a tomada de decisão sobre o problema prioritário e para o desenvolvimento do sentido crítico e da capacidade de intervenção futura.

O processo de estabelecimento de prioridades, com a consequente seleção do problema prioritário, deu origem à implementação de um projeto de intervenção comunitária, desenvolvido com a comunidade idosa. O objetivo foi incrementar seus níveis de participação comunitária e reforçar a interação social.

O planejamento em saúde é um processo de construção exigente e meticuloso. Sua efetivação é essencial para o trabalho com a comunidade. O diagnóstico de saúde e os múltiplos métodos de estabelecimento de prioridades existentes apresentam-se como instrumentos disponíveis para os profissionais de saúde que desempenham as suas funções ao nível comunitário e que pretendem atuar em temáticas pertinentes com marcada multicausalidade.

A metodologia para estabelecimento de prioridades implica a concetualização de um referencial tendente à construção de um processo sustentado em critérios rigorosos, adaptável por cada equipe e que seja consensual para os diferentes elementos, no qual a participação da comunidade seja obrigatoriamente prevista. No exemplo apresentado, o recurso a diferentes etapas e, em particular ao método de Hanlon, constituiu-se mais-valia pela diversidade de componentes que integra e pela previsão da participação da comunidade na tomada de decisão.

Partindo de uma lista de problemas de saúde identificados pela realização de um diagnóstico de saúde de uma comunidade idosa, e mediante a definição de um processo para estabelecimento de prioridades, com múltiplas etapas e integrador de diferentes perspetivas, foi possível selecionar progressivamente os problemas identificados. Isso culminou com a seleção do reconhecido como o mais prioritário.

Este processo, pela inclusão dos diferentes atores envolvidos, é consumidor de tempo e implica o desenvolvimento de competências no âmbito gestão e integração de distintas perspetivas em processos múltiplos de discussão e negociação. Todavia, a inclusão integrada da perspetiva dos diferentes atores (profissionais de saúde e comunidade) permite progressiva análise dos problemas identificados numa comunidade. Assim, conduz a processos efetivos de tomada de decisão e adiciona o conhecimento da comunidade à inflexibilidade dos números. Esse equilíbrio poderá ser a chave que possibilita o sucesso de intervenções comunitárias em matéria de saúde, uma vez que se garante que os problemas detetados são efetivamente valorizados pelas comunidades.

A disseminação de mais experiências concretas, descrevendo a forma como as equipas de saúde comunitárias implementam estratégias inclusivas para alocar recursos escassos em função dos dados que possuem, será de grande valia para os profissionais de saúde comunitária e coletiva.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Mar 2017

Histórico

  • Recebido
    8 Jun 2015
  • Aceito
    30 Nov 2015
Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revsp@org.usp.br