Classificação Internacional das Doenças - 11ᵃ revisão: da concepção à implementação

Manuella Santos Carneiro Almeida Luis Ferreira de Sousa Filho Patrícia Moreira Rabello Bianca Marques Santiago Sobre os autores

RESUMO

A Organização Mundial da Saúde lançou em maio de 2019 a nova Classificação Internacional de Doenças (CID), 11ᵃ revisão. Como contribuição a essa transição, o objetivo deste texto é apresentar as principais mudanças da versão revisada da classificação e indicar os desafios mais prementes. Após 30 anos da publicação da CID-10, identificam-se desafios importantes quanto à nova classificação, que foi apresentada para adoção dos Estados-membros e entrará em vigor em janeiro de 2022. A finalidade da pré-visualização é permitir aos países planejar o uso e treinar seus profissionais. A nova versão é completamente digital, diminuindo assim os erros de notificação e facilitando a divulgação e consolidação da nova versão. A atualização deixa transparecer os avanços da compreensão cientifica e exige dos governos ações estruturantes e eficiência na implementação, para que todos que tratam da assistência possam se comunicar numa mesma linguagem, em escala mundial.

DESCRITORES:
Classificação Internacional de Doenças; Organização Mundial da Saúde; Saúde Pública; Epidemiologia

INTRODUÇÃO

Diante do desenvolvimento social e econômico estabelecido e enfatizado pela globalização, as ações em saúde precisaram encontrar um novo enfoque de atuação. A incapacidade da assistência pontual e curativa em abranger ações com impacto realmente significativo para as necessidades sociais deixa clara a necessidade de uma visão assistencial mais complexa e planejada das ações em saúde pública. Assim, com o objetivo de minimizar afecções e gastos, é preciso antecipar ações frente às injúrias que acometem a sociedade.

Essa necessidade de planejamento das ações em prevenção e promoção de saúde alicerça uma coleta de dados cada vez mais fidedigna e planejada. Nesse contexto, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS)11. World Health Organization. ICD-11 for mortality and morbidity statistics. Version: 2019 April. Geneva: WHO; 2019 [cited 2019 Aug 20]. Available from: https://icd.who.int/browse11/l-m/en
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, a Classificação Internacional de Doenças (CID) aparece como ferramenta fundamental para estabelecer políticas públicas alinhadas com as necessidades sociais.

A CID serve de base para identificar tendências estatísticas de saúde em todo o mundo. Como principal ferramenta de codificação dos agravos de mortalidade e morbidade11. World Health Organization. ICD-11 for mortality and morbidity statistics. Version: 2019 April. Geneva: WHO; 2019 [cited 2019 Aug 20]. Available from: https://icd.who.int/browse11/l-m/en
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, ela pode nortear políticas que visam mudanças concretas e impactantes no contexto da saúde pública.

A DINÂMICA DAS CLASSIFICAÇÕES INTERNACIONAIS DAS DOENÇAS

A cada atualização da CID, uma cascata de transformações pode ocorrer no perfil epidemiológico de uma região. O agrupamento de várias enfermidades em uma patologia pode aumentar a frequência desta enfermidade como causa de morte, sem que sua incidência tenha necessariamente aumentado22. Laurenti R, Buchalla CM, Mello Jorge, MHP, Lebrão ML, Gotlieb S. Perfil epidemiológico da saúde masculina na região das Américas: uma contribuição para o enfoque de gênero. São Paulo: Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo; 1998..

Desde a primeira classificação, em 1900, mais ou menos a cada 10 anos novas conferências eram realizadas para nova revisão. Essa dinâmica ocorreu até a 10ᵃ revisão (1989), quando houve, então, um intervalo de cerca de 30 anos para a apresentação da 11ᵃ versão. Esse grande intervalo entre as revisões só foi possível devido à adoção da política de atualizações anuais. Assim, apesar do grande intervalo, as atualizações da 10ᵃ revisão tentavam torná-la menos obsoleta.

Apesar disso, limites e insuficiências da CID-10 acabaram por demandar nova revisão. Os principais motivos foram:

  1. Necessidade de atualização científica, com incorporação de mais definições e 41 mil códigos a mais que a versão anterior. O aumento das entidades nosográficas reflete a adaptação da classificação ao desenvolvimento científico.

  2. Necessidade de mudança estrutural para formato eletrônico em virtude da introdução de documentação eletrônica em todas as áreas do setor da saúde e em todos os ambientes de trabalho, incluindo regiões com recursos limitados. A nova classificação pode ser usada on-line, ou off-line, onde a estabilidade da internet é menos confiável.

  3. Conveniência de conexão com outros sistemas terminológicos – Família das Classificações Internacionais.

  4. Necessidade de se adequar a aplicativos e obtenção de traduções multilíngues.

  5. Imposição de aprimorar a reprodutibilidade de detalhes clínicos importantes das afecções, obtendo-se, portanto, melhor usabilidade – mais detalhes clínicos com menos tempo de treinamento.

  6. Imprescindibilidade de orientação aprimorada ao usuário. As melhorias na orientação ao usuário tiveram base em projetos-piloto de implementação.

A CID vem sendo fundamental para a economia da saúde pública e privada. No financiamento dos serviços de saúde, a ferramenta comumente utilizada é a Autorização de Internação Hospitalar (AIH), que é parte do sistema de codificação de diagnósticos da classificação. Esses formulários, contudo, são objeto de crítica por serem utilizados predominantemente para fins contábeis, desconsiderando a qualidade da codificação e das informações. Apesar disso, esses documentos se apresentam como rica fonte de dados administrativos e epidemiológicos, que podem nortear ações assistenciais e preventivas. Busca-se, portanto, avançar na análise crítica dos usos da CID.

A área financeira dos hospitais sempre teve maior atenção à codificação do que o Serviço de Arquivo Médico e Estatística (Same). Utilizar uma classificação tão completa quanto a CID, para fins quase exclusivamente econômicos, é uma subutilização ilógica. Nesse sentido, facilitar a implementação e utilização da CID-11 – o que é conseguido com a digitalização –, bem como a participação ampla e continuada de diversos atores no processo de revisão, pode ser o primeiro passo para mudar a mentalidade econômica da classificação.

Outro dado de reflexão é que, atualmente, 117 países relatam causas de morte à OMS utilizando a CID33. World Health Organization. ICD-11 implementation or transition guide. Geneva: WHO; 2019 [cited 2019 Aug 20]. License: CC BY-NC-SA 3.0 IGO. Available from: https://icd.who.int/docs/ICD-11%20Implementation%20or%20Transition%20Guide_v105.pdf
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. A classificação contribui para o mapeamento das estatísticas mundiais de mortalidade; contudo, quando o agravo avaliado é de morbidade, a CID não recebe a mesma importância no campo internacional.

A CID-11

A CID-11 surge no contexto de uma realidade nunca experimentada pelas sociedades. Em nenhum momento a integração mundial foi tão possível, graças ao advento dos sistemas informatizados de comunicação e da possibilidade de acesso, quase em tempo real, a informações relevantes. Para integrar-se a essa realidade, a CID-11 foi desenvolvida com a intenção de diminuir os erros de notificação, aumentar a praticidade e dar mais abrangência às informações catalogadas.

Alguns pontos relevantes nortearam essa atualização. A participação de profissionais de realidades distintas possibilitou uma heterogeneidade necessária para refletir as particularidades regionais. Clínicos, estatísticos, codificadores, especialistas em informação e tecnologia integraram a atualização33. World Health Organization. ICD-11 implementation or transition guide. Geneva: WHO; 2019 [cited 2019 Aug 20]. License: CC BY-NC-SA 3.0 IGO. Available from: https://icd.who.int/docs/ICD-11%20Implementation%20or%20Transition%20Guide_v105.pdf
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, em um tipo de participação global sem precedentes na história da CID.

Buscando por praticidade de registro e consulta, a nova versão é completamente digital, diminuindo assim os erros de notificação e facilitando a divulgação e consolidação da nova versão. A CID-11 traz mudanças de conteúdo e formato de apresentação e novas ferramentas. Dentre as alterações, o maior avanço é aceitar sugestões dos usuários da CID por meio da plataforma criada para a revisão. A 11ᵃ revisão apresenta uma ferramenta de avaliação de implementação (CID-Fit) com recursos analíticos que permitirão a atualização contínua da plataforma. As propostas serão analisadas por grupos consultivos e, caso se mostrem melhorias, serão implementadas à CID-11. Assim, os Estados-membros e a OMS podem avaliar a qualidade da codificação e das traduções e melhorar a classificação.

Com esses norteadores, a CID-11 apresenta melhorias notórias em comparação com a versão anterior, dentre elas11. World Health Organization. ICD-11 for mortality and morbidity statistics. Version: 2019 April. Geneva: WHO; 2019 [cited 2019 Aug 20]. Available from: https://icd.who.int/browse11/l-m/en
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:

  • Conhecimento médico atualizado. A ampla gama de entidades nosográficas reflete o desenvolvimento científico.

  • Conceitos contemporâneos de atenção primária, com maior atenção ao campo de atuação em que grande parte dos diagnósticos são realizados.

  • Revisão e atualização da seção que versa sobre a segurança do paciente.

  • Codificação sobre resistência bacteriana. Tema significativo atualmente e que não era contemplado na versão anterior.

  • Atualização da seção sobre HIV, justificada pelos muitos achados sobre o tema nas últimas décadas.

  • Seção suplementar para avaliação funcional do paciente antes e após a intervenção.

  • Incorporação de todas as doenças raras. Ganho importante no campo da pesquisa científica.

  • Os códigos referentes a estresse pós-traumático foram atualizados e simplificados.

  • Os transtornos dos jogos eletrônicos foram adicionados às condições que podem gerar adição.

Outras modificações nosográficas e estruturais importantes da nova versão da CID:

  • O novo Capítulo 7 trata de distúrbios de sono-vigília, anteriormente apresentados nos capítulos sobre sistema respiratório, sistema nervoso ou saúde mental.

  • O Capítulo 17, que aborda as condições relacionadas à saúde sexual, apresenta a condição “incongruência de gênero”, antes considerada afecção de “saúde mental”. A preocupação com a inclusão social e a aceitação das diferenças são aspectos relevantes da nova versão da CID. A codificação dessa condição por meio de pensamentos de cunho exclusivamente cultural, sem o devido embasamento científico, não seria possível. Esse aspecto pode ser apontado como um dos principais pontos de melhoria da CID-11.

  • O novo Capítulo 26 corresponde à seção específica sobre medicina tradicional. Em vários países, utilizam-se conceitos e práticas da medicina tradicional sem acompanhamento, devido à falta de registro. Com a CID-11, pode-se acompanhar essas práticas e seu impacto sobre a saúde das populações.

IMPLEMENTAÇÃO DA CID-11

A implantação de um sistema de codificação complexo e abrangente de classificação de doenças demanda grande atenção, dados os obstáculos naturais. Segundo a OMS, a transição da CID-10 para a CID-11 deve durar de 2 a 3 anos, podendo despender um tempo ainda maior em localidades com déficit tecnológico ou de logística33. World Health Organization. ICD-11 implementation or transition guide. Geneva: WHO; 2019 [cited 2019 Aug 20]. License: CC BY-NC-SA 3.0 IGO. Available from: https://icd.who.int/docs/ICD-11%20Implementation%20or%20Transition%20Guide_v105.pdf
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. Os países que se reportam à OMS devem fazer essa transição de forma paulatina, continuada e concomitante com a utilização da CID-10.

A implementação da CID-11 no Brasil será um grande desafio. O aspecto desfavorável inicial é o idioma. O português não é língua oficial para a OMS, e o processo de tradução, adaptação, revisão e implementação na nova língua é um dificultador importante, que demandará tempo. Outro agravante são os projetos que estão em desenvolvimento e têm o CID-10 como base de apoio – Global Burden of Disease from Institute for Health Metrics and Evaluation (GBD/IHME); Painel de Monitoramento da Mortalidade por Causas Básicas Inespecíficas ou Incompletas (Garbage Codes); Análise de Causas de Morte (Nacional) para Ação (Anaconda); e Sistema para Codificação Automatizada de Causas de Morte e Seleção da Causa Básica de Morte (Iris).

Porém, é fundamental entender que o principal desafio está no estabelecimento de medidas que mudem o entendimento dos usuários da CID. Um sistema tão consistente e complexo de classificação não pode ser visto como um documento puramente descritor e burocrático de condições de morbidade e mortalidade. A classificação precisa ser definitivamente consolidada na prática de saúde como uma ação estratégica capaz de definir rumos para todo o sistema assistencial e preventivo.

Desde 2017, vários países – como Inglaterra, País de Gales, Escócia, Irlanda do Norte, Japão, Alemanha e Austrália – têm participado de testes formativos para o desenvolvimento da CID-11. Após a apresentação à Assembleia Mundial da Saúde em maio de 2019, a CID-11 foi indicada para adoção. Nos 194 Estados-membros da OMS, ela substituirá as revisões anteriores a partir de 1 de janeiro de 2022.

Pela primeira vez, os países das Américas, por meio da Organização Pan-Americana da Saúde, tiveram a oportunidade de participar dos estágios iniciais de desenvolvimento de uma nova classificação11. World Health Organization. ICD-11 for mortality and morbidity statistics. Version: 2019 April. Geneva: WHO; 2019 [cited 2019 Aug 20]. Available from: https://icd.who.int/browse11/l-m/en
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. Além da colaboração de conteúdo, a participação consistiu também na tradução da CID-11 para o espanhol e testes-piloto em inglês e espanhol. Nesse ínterim, no estudo de requisitos para a transição à nova versão da CID, também foram identificados os principais problemas, como falta de recursos humanos e financeiros, número insuficiente de codificadores treinados, alta rotatividade da equipe de informações, déficits ocasionais de infraestrutura de tecnologia da informação e necessidade de ampla divulgação.

A dimensão e a influência da implantação efetiva da CID-11 em países em desenvolvimento ainda não foram mensuradas. Os países de baixa e média renda respondem por um volume significativo de doenças, ao mesmo tempo em que têm sistemas com verbas limitadas para tratamento, prevenção e coleta de informações para o planejamento em saúde. Nesses países, o estabelecimento concreto da CID-11 pode facilitar a coleta de informações assistenciais e, consequentemente, gerar modelos de decisão em saúde mais bem fundamentados.

A versão atual da CID está disponível no link: (https://icd.who.int/browse11/l-m/en).

Referências bibliográficas

  • 1
    World Health Organization. ICD-11 for mortality and morbidity statistics. Version: 2019 April. Geneva: WHO; 2019 [cited 2019 Aug 20]. Available from: https://icd.who.int/browse11/l-m/en
    » https://icd.who.int/browse11/l-m/en
  • 2
    Laurenti R, Buchalla CM, Mello Jorge, MHP, Lebrão ML, Gotlieb S. Perfil epidemiológico da saúde masculina na região das Américas: uma contribuição para o enfoque de gênero. São Paulo: Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo; 1998.
  • 3
    World Health Organization. ICD-11 implementation or transition guide. Geneva: WHO; 2019 [cited 2019 Aug 20]. License: CC BY-NC-SA 3.0 IGO. Available from: https://icd.who.int/docs/ICD-11%20Implementation%20or%20Transition%20Guide_v105.pdf
    » https://icd.who.int/docs/ICD-11%20Implementation%20or%20Transition%20Guide_v105.pdf

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Nov 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    08 Out 2019
  • Aceito
    24 Jan 2020
Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo São Paulo - SP - Brazil
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