RESENHA

 

 

Dóra Chor de Souza Ribeiro; Mariano Salazar Castellón

Alunos do Mestrado em Saúde Pública da ENSP

 

 

CIUDAD Y MUERTE INFANTIL. Jaime Breilh et alii Quito, Ed. CEAS, 1983

O estudo desenvolvido pelos autores utiliza os registros oficiais de mortalidade infantil e afins para aprofundar, mediante o sistema articulado de registros ("record linkage"), o conhecimento do processo epidemiológico que conduz à mortalidade infantil na área urbana da cidade de Quito.

Na introdução do estudo, os autores assinalam as limitações dos registros oficiais em relação à análise complexa dos determinantes da mortalidade infantil. Apontam que:

"Seria impossível pretender que o enlace de informações básicas sobre variáveis muito simples permitisse reconstruir a fundo a situação social de classe das crianças cujos óbitos são estudados, assim como seu perfil de vida ou de reprodução social. O que se pretende extrair com base no método mencionado é um estudo dos contrastes básicos dos níveis de mortalidade que ocorrem entre grupos sociais essencialmente distintos que habitam zonas típicas da cidade. Este é um primeiro passo para descobrir as grandes diferenças epidemiológicas que existem entre as distintas classes sociais, questão que vem sendo reiteradamente escondida pelas estatísticas oficiais que falam de dados médios e da constante melhoria dos níveis de saúde das crianças".

Em continuação, os autores iniciam uma descrição sumária do processo de crescimento da cidade de Quito. Relatam que a capital cresceu aproximadamente 5000 hectares durante os anos 70 e absorveu 42% do total do crescimento industrial do país, fato que representou um aumento numérico equivalente a 60% da expansão industrial dos 14 anos anteriores. O grande acontecimento em termos de ampliação dos excedentes econômicos e das taxas de acumulação de capital, a partir de 1972, foi o início da exploração de petróleo. O crescimento acelerado dos centros urbanos, incrementado pelo deslocamento de grandes contingentes de imigrantes rurais atraídos pelo desenvolvimento industrial, gerou altos índices de desemprego, subemprego, grande limitação da capacidade aquisitiva dos salários e a acumulação crescente de amplos setores sociais que experimentaram uma vertiginosa queda em sua qualidade de vida.

Segundo os autores:

"O estudo do processo saúde-doença em Quito demonstra a dinâmica da conformação de distintas zonas ou setores sociais da cidade, onde habitam grupos humanos em diferentes condições de vida (reprodução social). De acordo com as classes sociais que habitam diferentes áreas da cidade, estas adquirem, através de seu equipamento arquitetônico e de serviços, diferente conteúdo e forma que podem ser medidos através do valor econômico (renda diferencial do solo) e do valor ideológico (simbolismo) do espaço. O espaço de consumo estabelece, através de seu valor econômico e ideológico, as fronteiras para sua ocupação por parte das diferentes classes sociais que, por sua vez, delimitam as características deste espaço. Dessa maneira, pode-se distinguir na cidade espaços homogêneos, habitados predominantemente por classes sociais similares.

Os autores citam o "Plano Diretor da Área Metropolitana de Quito", desenhado por especialistas da USAID, por solicitação do Município de Quito. Este plano propõe um processo de descentralização da cidade, ou seja, a migração interna planificada, baseada na descentralização industrial. Assim, foi determinada uma tendência irreversível à polarização residencial que está determinada pela diferença do nível sócio-econômico de seus moradores.

Baseando-se na análise da distribuição diferencial da densidade demográfica das áreas dos distritos de Quito e nas condições de saneamento e habitação, os autores demonstram mais uma vez a segregação espacial dos setores subassalariados e assalariados. Assim, por exemplo, o distrito Norte concentra 37,4% da área residencial disponível, mas apenas 16% da população. O distrito central participa com apenas 13% da área residencial para 20% da população total.

De acordo com este marco de referência, os autores analisam como e onde moram as crianças em Quito.

No capítulo intitulado "Classe social e desigualdade ante a morte em Quito", os autores assinalam a categoria "classe social" como instrumento teórico metodológico fundamental para o estudo da mortalidade infantil. No entanto, os autores não conseguiram operacionalizar esta categoria, já que trabalharam com classificações estatísticas de registros oficiais. Assim, utilizaram "equivalências", configurando grupos homogêneos baseados em semelhanças de tipo ocupacional e educacional.

Os conglomerados sociais reconhecidos pelo estudo são os seguintes:

a) alto: empresários e industriais;

b) médio: técnicos, profissionais, militares e policiais com qualificação alta e média; agricultores qualificados, empregados e trabalhadores altamente qualificados;

c) baixo: trabalhadores e empregados de baixa qualificação, agricultores e comerciantes de baixa qualificação.

Para efetuar o estudo por zonas socio-geográficas, o espaço urbano foi classificado com base em estimações de composição social da cidade central.

Assim, foram estabelecidas quatro zonas:

Zona 1: Residencial suntuária Aproximadamente 30% da classe empresarial e grupos médios altos; empregados manuais, especialmente de serviços;

Zona 2: Residencial média Aproximadamente 30% da camada média média, aproximadamente 10% das camadas empresarial e média alta; outras frações medias, assalariadas e subassalariadas;

Zona 3: Popular média Classes empresariais e camadas médias altas quase inexistentes; 40% de camadas médias; assalariados e subassalariados;

Zona 4: Assentamento espontâneo Aproximadamente 80% de subassalariados e assalariados; aproximadamente 20% das camadas médias, especialmente média baixa.

A escolaridade dos progenitores ou responsáveis pela criança foi classificada em: analfabetos, primária, secundária, superior e ignorada.

Assim, os autores cruzaram estes indicadores de inserção social com uma série de variáveis (mortalidade neonatal, sexo, outras) e apresentaram suas conclusões a respeito da mortalidade infantil em Quito.

 

COMENTÁRIO

A obra tem, em seu conjunto, um caráter de denúncia da utilização tergiversada dos índices de mortalidade infantil pelas instituições oficiais.

"A literatura especializada e os documentos técnicos das instituições oficiais que se ocupam de aspectos vinculados à mortalidade infantil estão cheios de evidências de seu uso e compreensão incorretos, seja pelo enfoque descritivo e desintegrado que empregam, seja pelo manejo enganoso dos índices, com fins políticos ou ideológicos".

Os autores partem da premissa de que "nos países de organização social mais atrasada, persistem as causas relacionadas com a extrema privação, e, ainda que sejam bem conhecidos os aspectos biológicos e clínicos das enfermidades, permanece insuficiente o que a investigação estabeleceu sobre os determinantes sociais que constituem o fundo desta problemática". Assinalam a necessidade de estudos como este, "que permitam estabelecer cientificamente as modalidades de produção e distribuição dos óbitos nas idades neonatal e pós-natal". Estes estudos teriam um objetivo geral, eminentemente político que facilitaria "a avaliação crítica das políticas e programas do Estado e o avanço da consciência das organizações populares sobre os mesmos", através de uma leitura diferente em essência progressista, da informação disponível do setor saúde nos níveis oficiais.

Os autores utilizam de uma outra maneira a técnica tradicional, através da proposta de um marco teórico integral para a interpretação dos problemas de saúde das crianças, o que permitiu dar uso e projeções diferentes a um método epidemiológico convencional como o de enlace de registros por computação. Expressam sua posição de converter este trabalho de denúncia em uma arma política, que reforce as "teses de nosso povo organizado e dos movimentos democráticos que vêm denunciando reiteradamente as relações entre os problemas sociais trazidos pela exploração petroleira capitalista com grande parte da morbi-mortalidade das crianças, mulheres e homens equatorianos".

A proposta geral dos autores, no que tange à utilização das ciências sociais como instrumento de análise, está entre os diversos tópicos que Stavenhagen aborda ao revisar as singularidades e relações entre os conceitos de estratificação social e classes1. Os autores estabelecem uma hierarquia de grupos sociais, isto é, constroem estratos através de indicadores de inserção social, relacionando-os com a dinâmica social da cidade de Quito, delimitando desta maneira o objeto de estudo. Definiram como critérios de maior valor para fins da construção dos conglomerados a qualificação e o tipo de inserção, tendo claro suas limitações, especialmente pelas fontes de informação disponíveis. O estudo está orientado no sentido de estabelecer uma "análise estrutural da sociedade" dentro do universo estabelecido, dinamizando a análise estratificada, através da compreensão da relação estreita entre classes sociais e estratos, e de ingerências a partir destes estratos em relação às classes sociais.

Acreditamos que o estudo, dentro das limitações das fontes de informação apontadas pelos próprios autores, atingiu seus objetivos e ocupa um lugar importante no âmbito dos estudos epidemiológicos.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. STAVENHAGEN, R. — Estratificación Social y Estructura de Clases — Revista de Ciencias Políticas y Sociales, Escuela Nacional de Ciencias Políticas y Sociales, Universidad Nacional Autónoma de México, año VIII, no 27, Enero-Marzo, 1962, p. 73-102.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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